Argentina, 40 anos (1976-2016) / História – Questões & Debates / 2016

Os saberes historiográficos produzidos sobre as ditaduras latino-americanas, e, especialmente, sobre a ditadura civil-militar argentina (1976-1983), revelam continuamente a vitalidade desse objeto de estudo para a compreensão mais abrangente do recente contexto social, político e intelectual de nossas culturas. Nas últimas duas décadas, com a gradativa abertura dos “arquivos da repressão” em alguns países, associada à mobilização de organizações da sociedade civil no marco de uma política ostensiva de direitos humanos pautada pela consigna “justiça e reparação”, foi propiciada, relativamente, a (re)descoberta de registros e evidências mais nítidos da dimensão alcançada e dos métodos empregados por sistemas repressivos historicamente constituídos e com alto grau de capilaridade e permanência no imaginário social.

Os dispositivos de controle, censura, e repressão generalizada levados a cabo pelos sistemas autoritários regionais, mas, igualmente, o papel ambíguo dos movimentos e partidos de esquerda, a pauperização de vastos segmentos das sociedades, as atitudes sociais de repulsa, resistência, consenso / consentimento, ou indiferença a esses regimes foram inscritos como temáticas centrais na agenda dos historiadores identificados com o problema. Dentro desse horizonte, o Dossiê “Argentina: 40 anos (1976-2016)” publicado pela Revista História: Questões & Debates volume 64, n. 2 (2016),[1] almeja explorar o potencial analítico da história política do cone sul de nosso continente, ao sugerir como especificidade reflexões que envolvem uma série de enfoques sobre a natureza da ditatura civil-militar argentina.

Mais que destacar uma efeméride, o Dossiê busca contribuir para o debate ético acerca de um período da história argentina possível de ser cotejado a outras situações autoritárias no tocante a parentescos fenomenológicos, distanciamentos práticos e quanto à orientação de sentidos que tal processo intercambiou com experiências contemporâneas a ele.

Embora tenha na violência política e no terrorismo de Estado seus elementos constitutivos, a ditadura imposta à margem da lei em 1976 não é um excepcionalismo na vida do país no que se refere ao desenvolvimento de formas autoritárias de organização social. Ainda na década de 1980, o sociólogo Alain Rouquié falava em “tutela militar” e “golpe de Estado permanente” como as práticas políticas assumidas pelos militares desde 1930 na construção de um projeto de poder altamente profissional, e que não alienava as elites civis do processo de governabilidade. Com mais ênfase na ditadura de Juan Carlos Onganía (1966-1970), os militares passaram a ser vistos como “parceiros legítimos” dessas elites, e a angariar um papel político central, porque sua crescente autonomia em relação aos poderes civis associava-se à relevância que atribuíam às intervenções depuradoras e realizadas em série. Assim, imaginaram-se os gendarmes da nação, os guardiães de uma determinada ordem social ao mesmo tempo excludente e seletiva, mas também alicerçada no expressivo apoio de parcelas da opinião pública.

Por sua vez, a configuração de memórias no período que marca o eclipse das ditaduras do cone sul é extremamente díspar. No caso argentino, observou-se na aurora democrática a adoção de medidas que visaram o esclarecimento dos crimes de Estado e a punição dos líderes das juntas militares. Além do papel desempenhado pelo sistema judiciário, pela CONADEP (Comisión Nacional para Desaparición de Personas), e pelos diversos organismos de direitos humanos; nesse movimento pelo cumprimento da justiça esteve presente um ator de primeira ordem: o conjunto de vítimas sobreviventes dos centros clandestinos de detenção que assentiu em participar como testemunha nos ajuizamentos aos chefes militares. Tais medidas, entretanto, não prescindiram de acirradas disputas políticas e de recuos, como bem comprovam os episódios de anistias e indultos proferidos desde os governos civis de Raúl Alfonsín e Carlos Menem, somente revistos e declarados inconstitucionais pela Suprema Corte da Nação em junho de 2005.

Ao mesmo tempo, um dos imperativos programáticos da era Kirchner ancorou-se na elaboração de uma “política de memória”, apropriando-se claramente das experiências e demandas de parte da sociedade civil argentina que, desde meados da década de 1990 sinalizava para o não apagamento do passado e por uma rediscussão sobre as responsabilidades pelos crimes. A despeito de suas limitações e interesses, mas também de sabotagens originadas em setores sociais refratários ou nostálgicos do autoritarismo, essas políticas foram concebidas como políticas de Estado, com notórios deslizamentos em forma de projetos para os campos da pedagogia, da museologia, da estética, da arquivística, e, claro está, da história. Assim, não há como dissociar a historiografia mais recente sobre a ditadura argentina, de uma “batalha pela memória histórica” que encampa vários níveis de intervenção, assim como não há dúvidas que esses embates passaram a repercutir nos modos de os historiadores refletirem e escreverem sobre a época, e ensejaram uma renovação nas indagações e nos problemas de pesquisa.

Em um inspirado ensaio crítico publicado no ano de 2015, a historiadora Marina Franco [2] havia destacado que a pesquisa profissional na Argentina não se encontrou diante da tarefa de romper um silêncio social e político pós-ditatorial. Ao contrário, ela situou-se diante de um terreno próprio para se pensar e se pesquisar sobre o tema da ditadura, tendo em vista que o processo de transição para a democracia não se apoiou em uma política de ocultamento sobre os crimes do passado, tampouco em um olhar complacente sobre o ocorrido; ou, ainda, diríamos nós, em conciliações cínicas operadas desde o vértice da sociedade política.

Foi precoce, na Argentina, a iniciativa das Ciências Sociais – impulsionadas pela profusão de testemunhos públicos e políticas oficiais – em atribuir visibilidade às facetas fundamentais do terrorismo de Estado. No entanto, a mesma autora recorda que esse aspecto não representou, necessariamente, em consolidação de linhas de pesquisa, ou em sistematização de estudos sobre as características, conteúdos e alcances da ação repressiva nos seus distintos âmbitos. Nesse sentido, o que é efetivamente pleiteado em termos de investigação histórica sobre a ditadura argentina vincula-se a perspectivas que possam circunscrever agendas empíricas e teóricas em que sejam considerados: novos atores vítimas da violência, novos atores executores da violência, ampliação dos espaços (como a ênfase nas práticas regionalizadas da repressão), novos objetos e processos, e novas periodizações.

Assim, queremos acreditar que os artigos publicados neste Dossiê tendam a subscrever algumas das exigências elencadas acima, e permitam ao leitor a ampla reflexão e um conhecimento mais acurado sobre o período, mormente agora, quando nos deparamos com a ressignificação de fantasmagorias autoritárias e com a valorização de mitos políticos do passado.

Abrimos o Dossiê com um artigo que não trata explicitamente da ditadura argentina, mas desenvolve uma instigante discussão sobre os múltiplos efeitos e sentidos das políticas de esquecimento em sociedades que vivenciaram traumas políticos. “Políticas del olvido”, texto de autoria de Daniel Lvovich, da Universidad Nacional de General Sarmiento, é uma proposta adensada de conferência do historiador pronunciada no encerramento do Fórum “Violência de Estado, Justiça e Reparação: Relatos da Comissão Estadual da Verdade”, realizado em Curitiba no mês de junho de 2015, e organizado pela Linha de Pesquisa Intersubjetividade e Pluralidade do PPGHIS (Programa de Pós-Graduação em História da UFPR). Lvovich reflete sobre a tensão entre lembrar e esquecer como modelos indeterminados de pensar a relação passado / presente, porque memória e esquecimento não resultam em elementos opostos, mas em produtos simultâneos dos mesmos processos de seleção, hierarquização e transmissão de aspectos, valores, imagens, mitos localizados no passado. Enquanto o esquecimento coletivo aparece quando um grupo humano não consegue, voluntária ou passivamente, por rechaço, indiferença ou em razão de uma catástrofe, transmitir à posteridade o que aprendeu do passado, o dever de memória é, com efeito, a obrigação de o sobrevivente dar testemunho de uma experiência traumática, de falar por aqueles que desapareceram, e de os grupos relegados fazerem presente sua voz e suas demandas na esfera pública.

Em seguida, Emilio Crenzel, professor e pesquisador da Universidad de Buenos Aires, no artigo “Entre la historia y la memoria. A 40 años del golpe de Estado en la Argentina” nos proporciona uma auspiciosa aula de história das memórias construídas sobre os quarenta anos do golpe de Estado na Argentina. Primeiro, sem descuidar da dimensão processual, enfoca alguns dos conflitos chaves que desencadearam o golpe e suas consequências mais imediatas para a sociedade, destacando-se aí, o terrorismo de Estado e os embates iniciais da sociedade civil quanto aos posicionamentos adotados sobre as graves violações aos direitos humanos como a tortura e os desaparecimentos. Num segundo momento, Crenzel sugere uma criativa tipologia de batalhas pela memória desde a década de 1990 até 2012: o “eclipse da memória” (1990-1994) tem como marcas o impacto moral e político ocasionado entre os organismos de direitos humanos em razão dos indultos de Carlos Menem, o que aprofunda a sensação de frustração e a certeza de uma era de impunidades; e uma relativa desmobilização da sociedade tendo em conta que esse presente é lido, na perspectiva de Crenzel, como a imagem espectral de um passado sem direitos. A “explosão da memória” (1995-2003) é o contexto no qual uma situação bem específica narrada pelo autor revitaliza a memória do passado de violência e a faz adquirir um estatus independente do discurso punitivo ou da busca pela verdade. As inciativas em constituir pontes para a transmissão intergeracional assumem diversas formas, mas o fundamental é que um cenário pleno de significados de rememoração é preparado e gestionado pela sociedade à parte de qualquer ação efetiva de um Estado que se fragmentava diante de crises sociais insolúveis. Por fim, Crenzel designa como “estatalização da memória” (2003-2012), o período em que o Estado argentino toma para si a responsabilidade em produzir conteúdos sobre o passado. A derrogação das leis de impunidade permite reabrir os processos, e um novo Prólogo do emblemático Informe Nunca Más transforma em discurso estatal um sentido do passado forjado desde o vigésimo aniversário do golpe, quando os organismos de direitos humanos associaram os crimes da ditadura com a imposição do modelo econômico neoliberal.

Em “Represión clandestina y discursos públicos: los informes oficiales sobre la ‘lucha antisubversiva’ en los años iniciales de la dictadura argentina”, a pesquisadora e professora Gabriela Águila, da Universidad Nacional de Rosário, analisa detidamente um discurso público da Junta Militar de 1977 e constrói uma teia de significados em torno à estrutura repressiva da ditadura: o informe “La subversión en Argentina” foi uma narrativa que procurou sistematizar definições e conceitos sobre a alegada luta ou guerra antisubversiva. Gabriela, atenta estudiosa e com vasta pesquisa sobre as formas de atuação do sistema repressivo em suas modalidades regionalizadas e autônomas, investiga os modos de reconhecimento elaborados pela hierarquia militar a respeito do exercício da repressão nos seus anos iniciais. Um dos principais argumentos da autora, é que tais manifestações não devem ser vistas como “contradiscursos” ou meras reações às denúncias e pressões internacionais, mas estão inscritas em um contexto amplo, que combinou respostas políticas do governo aos “ataques” provenientes do exterior, estratégias especificamente militares e mecanismos de legitimação social e política. Um deles, foi plasmar no vocabulário político a terminologia “luta contra a subversão”, por onde os militares tanto definiam o perfil do inimigo, quanto procuravam mobilizar a sociedade na direção de atitudes de denúncia e apoio contra a “subversão”. Uma das chaves para entender a extensão do exercício repressivo esteve caracterizada desde o início pela descentralização operativa e pela organização de tal processo mediante escalas territoriais com perfis e notas distintas, segundo as áreas de risco e com graus de autonomia das forças de segurança bastante amplos.

O próximo artigo traz a contribuição de uma das pesquisadoras que pode ser considerada pioneira na sistematização de estudos sobre o exílio argentino no marco da última ditadura. Silvina Jensen, professora e pesquisadora na Universidad Nacional del Sur, em Bahía Blanca, além de autora de dezenas de livros e artigos sobre o tema exilar, organizou diversas coletâneas nas quais reuniu investigadores especialistas na massiva diáspora política latinoamericana da década de 1970. Silvina apresenta em “Exilio y legalidad. Agenda para una Historia de las luchas jurídico-normativas de los exiliados argentinos durante la última dictadura militar” uma reflexão sobre um lugar pouco explorado acerca do exílio: os modos em que a ação coletiva dos desterrados argentinos questionou as dimensões jurídico-normativas do terrorismo de Estado. Sua proposta consistiu em revisitar os inúmeros arquivos onde se depositam as denúncias exilares para compreender como é representada a política repressiva do Estado não em suas modalidades mais abjetas como o desaparecimento de pessoas e o funcionamento dos centros clandestinos de detenção, mas sua indagação é como reconhecer a forma de os desterrados lidarem com as paradoxais relações entre terrorismo de Estado e legalidade. Nessa perspectiva, a discussão é desenvolvida a partir de três eixos: 1) por quais racionalidades a luta empreendida pelos exilados respondeu às facetas repressivo-legais da ditadura; 2) na denúncia da legalidade autoritária, qual o território ocupado pelas diferentes formas institucionalizadas de exílio; 3) os modos adotados pelos exilados na sua apelação ao direito (nacional e internacional), para obtenção da verdade sobre o destino dos desaparecidos, conseguir a liberdade dos detidos sem causa nem processo, e para responsabilizar penalmente os responsáveis pelas violações aos direitos humanos.

O último artigo do Dossiê é de autoria de Marcos Gonçalves (UFPR), no qual o autor dialoga com um ex-militante da Organização Política Montoneros que, depois de breve refúgio no Brasil e do exílio na Suécia entre meados das décadas de 1970 e 1980, rememora algumas experiências políticas e pessoais de sua trajetória. O texto procura referências na tensão da passagem do tempo e como ela repercute na diversidade de transmissão das informações memorizadas.

Este volume da Revista História: Questões & Debates conta ainda com três artigos de temáticas diversificadas: “Considerações Histórico-Arqueológicas como Elementos para uma Reavaliação de Max Weber”, de Andréa Bernardes de Tassis Ribeiro, onde a autora, apoiada em recentes pesquisas dialoga com a sociologia weberiana que trata dos costumes tradicionais relacionados aos rituais de segregação. Na sequência, Máira de Souza Nunes, em “As demolições de Paris: a modernidade em ‘Rocambole’ (1857-1870)”, parte da leitura do romance de folhetim Rocambole, e analisa as transformações da cidade de Paris durante o II Império de Napoleão III, investigando as representações do processo civilizador oitocentista, da experiência burguesa, e as relações entre a cidade e o enredo da obra. Por fim, no artigo “O alimento como categoria histórica: saberes e práticas alimentares na região do Vale do Rio Pardo (RS / Brasil)”, Everton Luiz Simon e Éder da Silva Silveira, desenvolvem um exercício de caracterização de alguns costumes alimentares da Região do Vale do Rio do Pardo, Rio Grande do Sul. Os autores buscam perceber a influência ou a presença de características dos modelos alimentares “romano” e “bárbaro” em hábitos de descendentes de alemães e italianos nessa região.

Desejamos uma boa leitura!

Notas

1. A Revista está realizando um ajuste necessário em seus volume e número adequando-se às normatizações vigentes. Assim, a referência ao volume 64 e ao n. 2 correspondem respectivamente à informação do ano da Revista, e à quantidade de fascículos publicados no mesmo período.

2. FRANCO, Marina. Do terrorismo de Estado à violência estatal: Problemas históricos e historiográficos no caso argentino. In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. (Org.). Ditaduras Militares: Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015, p. 61-81

Marcos Gonçalves – Organizador.


GONÇALVES, Marcos. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.64, n.2, jul./dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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