Music, informal learning and the school – GREEN (O-ASPOM)

DIABATÉ Toumani seu filho Sidiki e seu grupo Symmetric Orchestra no festival Akoustik Bamako RFI David Baché Informal learning
Toumani Diabaté, seu filho Sidiki e seu grupo Symmetric Orchestra no festival Akoustik Bamako RFI/David Baché

Music informal learning and the school Informal learningGREEN, Lucy. Music, informal learning and the school: a new classroom pedagogy. Sn: Ashgate, 2008. Resenha de: COUTO, Ana Carolina Nunes. Opus, v. 26 n. 1, p. 1-10 jan./abr. 2020.

O ano passado marcou uma década do lançamento do livro Music, informal learning and the school: a new classroom pedagogy, de Lucy Green (GREEN, 2008). Dentro de um crescente interesse da musicologia a respeito daquela música popular que se insere na cultura pop e rock anglo-americana, o livro de Green se inseriu de forma a contribuir com os debates que buscam reposicionar o papel da música e do fazer musical na sociedade ocidental contemporânea. Nesse emaranhado de discussões emergentes, que procuram novos modelos teóricos para compreender os fenômenos musicais contemporâneos, cujo surgimento, manutenção, reprodução e valorização não mais são suportados teoricamente pelos antigos e canônicos critérios de legitimação, o livro em questão soma-se ao debate, apresentando uma nova proposta pedagógica para a sala de aula. Ainda que o marco temporal que completa uma década do seu lançamento seja algo significativo do ponto de vista da circulação, o livro pouco aparece dentre as referências da produção da área da educação musical no Brasil, o que se poderia explicar por diferentes razões. Uma forte aposta talvez seja a barreira da língua, uma vez que o texto continua sem tradução para o português. Music, informal learning and the school: a new classroom pedagogy faz parte de uma agenda de pesquisa mais ampla de Green, como veremos na sequência.

Professora e pesquisadora do Instituto de Educação de Londres (agora parte da University College London), Lucy Green foi integrante de um programa nacional de educação musical na Inglaterra chamado Musical Futures. Em 2001 publicou o livro How popular musicians learn (GREEN, 2002), no qual descreveu como 14 músicos populares adquirem suas habilidades e conhecimentos musicais. Neste livro, ela relata que os músicos populares aprendem por meio das chamadas “práticas informais de aprendizagem musical”[1] (GREEN, 2002: 5). Em suma, tais práticas evolvem a escolha do repertório a partir da preferência e identificação pessoal com a música que se deseja tocar; a prática de “tirar de ouvido”[2] essas músicas onde o recurso à partitura não é desejável e nem imprescindível; a aprendizagem através de grupos de amigos e/ou parentes, que interagem sem que ninguém exerça diretamente a função de professor; uma profunda integração das atividades tocar/compor/ouvir, com ênfase na criatividade; uma aprendizagem de natureza mais holística, ao invés daquela que é compartimentada em tópicos propositalmente organizados com intuitos explicitamente pedagógicos. Tudo isso ocorre dentro de um processo de “enculturação” no qual a “aquisição de habilidades e o conhecimento musical [acontecem] por imersão diária em música e em práticas musicais de um determinado contexto social” (GREEN, 2002: 22).

Tais práticas, que costumavam ficar à margem de ambientes formais de ensino de música, foram consideradas fundamentais para a aquisição de conhecimentos e habilidades pelos 14 músicos que Green investigou. A autora identificou que a utilização dessas práticas possibilita um melhor desenvolvimento da percepção auditiva de seus praticantes, uma vez que a tarefa de “tirar de ouvido” as músicas faz com que esta habilidade se aperfeiçoe. Além disso, outras habilidades, tais como flexibilidade, versatilidade, criatividade, desenvolvimento de um pensamento musical autônomo, foram identificadas como sendo comuns a todos aqueles músicos.[3]

A partir dessas informações, Green problematizou a inserção dessas práticas dentro de contextos formais de ensino, mais especificamente a escola,[4]dando início a uma pesquisa subsequente que resultou no livro objeto da presente resenha. Assim, Green se propôs a investigar como seria possível e desejável incorporar aquelas práticas informais de aprendizagem de música dentro do espaço escolar e conhecer como essa incorporação afetaria o processo de aquisição de habilidades e conhecimentos dos jovens, e também como elas poderiam modificar a forma com que eles ouvem, apreciam e compreendem música não apenas na sala de aula, mas também para além dela.

O livro está organizado em sete capítulos. Farei uma descrição sumária de cada um deles, para, em seguida, deter-me mais profundamente nos aspectos metodológicos do projeto de Green. A opção por esse caminho se dá por duas razões. Primeiramente, o livro traz diversos elementos diferentes que integram as discussões a respeito da pedagogia da música, e uma análise de todos eles numa resenha dessa natureza dificilmente escaparia à superficialidade. Segundo, a decisão pelo destaque dos aspectos metodológicos se faz considerando que a área de Música na academia ainda apresenta muitas dificuldades em relação às atividades envolvendo a pesquisa, como diversos autores já vêm apontando (BARROS, 2015; BORÉM; RAY, 2012; CAVAZZOTTI, 2003; COUTO, 2017; DEL BEN, 2010; DOMENICI, 2005, 2012; FIGUEIREDO; SOARES, 2012; GERLING; SOUZA, 2000; SANTIAGO, 2007; SANTOS, 2003; TOMÁS, 2015; TRAVASSOS, 2003). Desta maneira, a opção por construir a resenha dessa forma pode ser interessante, dentre outras coisas, do ponto de vista didático.

O capítulo 1 apresenta a problemática na qual surgiram a ideia do projeto e os procedimentos teórico-metodológicos de sua execução. O capítulo 2 descreve o primeiro estágio de execução do projeto, dando destaque para os cinco princípios que orientam as chamadas práticas informais de aprendizagem e sua inclusão dentro desse primeiro estágio. Relembrando, esses princípios são: a escolha do repertório pelos alunos, a partir de suas preferências; aprender através da prática “tirar de ouvido” as músicas, nos instrumentos de suas escolhas; aprender entre os colegas, seja através da imitação, troca de ideias e observações, sem que um professor esteja conduzindo e organizando as tarefas; construir os conhecimentos e habilidades holisticamente pela imersão na escuta e cópia da música escolhida, sem compartimentalização das tarefas ou conhecimentos; uma prática onde a escuta atenta, a performance, a improvisação e a criação estejam misturadas e integradas no processo da aprendizagem, com ênfase na criatividade pessoal (GREEN, 2008: 10). Um aspecto muito interessante deste capítulo, do ponto de vista da formação profissional, diz respeito à relação dos professores que participaram do projeto. Podemos acompanhar o processo de transformação da visão daqueles professores, que partiu do medo e receio iniciais e caminhou até um sentimento de entusiasmo provocado por novos insights didáticos. Assim, observamos como as modificações na metodologia do ensino de música podem suscitar conflitos internos e revelar as dificuldades de transposição de determinadas tradições enraizadas.

O capítulo 3 dá destaque ao processo de produção da música e, entrelaçadamente a este, ao desenvolvimento da escuta. As formas como os alunos manipulam diretamente os sons através dos seus instrumentos e/ou voz como decorrência das práticas de “tirar de ouvido” são analisadas, evidenciando a complexidade do fenômeno de aprendizagem por essa via. O capítulo 4 problematiza o quanto a educação musical tradicional valoriza os processos para aquisição e domínio da leitura e escritas da música em detrimento da habilidade de ouvir. Diante disso, Green retoma a centralidade que a escuta desempenha na trajetória de aprendizagem dos músicos populares e analisa detalhadamente como a experiência realizada com os alunos de seu projeto operou mudanças nos tipos de habilidades e conhecimentos que estes desenvolvem não apenas com os seus instrumentos, mas especialmente em relação à apreciação musical, inclusive para além da sala de aula.

O capítulo 5 destaca a subjetividade dos alunos em suas diferentes relações com música. O papel do envolvimento afetivo com o fazer musical aparece como determinante para a compreensão musical. Nesse sentido, as práticas informais de aprendizagem musical resgatam a importância do prazer e conduzem a uma autonomia da relação dos alunos com atividades musicais que ultrapassam aquelas realizadas no espaço da sala de aula.

O capítulo 6 analisa o aspecto coletivo desse tipo de aprendizagem. São examinados como os alunos se organizam, os processos de cooperação para o alcance da aprendizagem, bem como o surgimento de lideranças entre eles. Nesse sentido, o capítulo aponta caminhos para lidar com situações de diferenças nos níveis de habilidades e conhecimentos entre alunos de uma mesma turma.

O último capítulo do livro é o relato da mesma experiência com as práticas informais de aprendizagem de música, porém com um repertório diferente: a música clássica de tradição europeia. Com essa nova variável – a mudança do repertório –, Green pôde demonstrar como uma metodologia que insere as práticas informais, especialmente aquela de “tirar de ouvido” músicas de gravações, passa a ser o ponto de virada para repensarmos os modos de ensino da música. Ao verificar que os alunos melhoraram consideravelmente sua aprendizagem e sua relação com um repertório que não costumava agradá-los, Green ganha força em seu argumento de que, mais do que o repertório, o que importa é o método. A autora termina enfatizando que não se trata de uma proposta de abandono ou substituição das antigas metodologias, mas, sim, da inclusão de novas práticas que caminhariam conjuntamente em sala de aula.

Passaremos agora à análise metodológica da obra.

Questões metodológicas de Music, informal learning and the school: a new classroom pedagogy

Como argumento de problematização, Green afirma que, desde os anos 1960, os educadores musicais têm se empenhado em encontrar maneiras de aumentar a motivação e a participação dos alunos em sala de aula. Dentre as várias estratégias utilizadas, houve a tentativa de tornar o aprendizado musical mais significativo a partir da inserção de músicas que fossem familiares ao contexto social dos alunos. Com isso, novas músicas foram incorporadas às aulas, alterando-se o conteúdo dos currículos. No entanto, um aspecto importante teria sido negligenciado: o método. Isso levantou as suspeitas de que, mesmo após a inclusão de músicas populares nos currículos das escolas, a pedagogia utilizada em sala de aula pelos professores poderia ser o fator causador da permanência da indiferença e apatia dos alunos em relação às aulas de música, e não mais e unicamente o tipo de repertório utilizado (GREEN, 2008: 2-3). A partir dessa hipótese, Green propôs uma pedagogia alternativa que consistiu em incluir práticas informais de aprendizagem musical dentro da sala de aula, modificando não apenas o conteúdo, mas também o método de ensino.

Green delimitou cinco principais diferenças entre as metodologias empregadas nas aprendizagens formal e informal. Esquematicamente, tais diferenças estão sintetizadas no Quadro 1 a seguir:

 

Quadro 1: Características das aprendizagens formal e informal

Quadro 1 Característidas das aprendizagens formal e informaç Informal learning

Segundo Green (2008: 4), as habilidades promovidas pela prática informal foram negligenciadas dentro do ensino musical durante muito tempo. A autora afirma que o uso delas dentro da sala de aula poderia ser visto como uma atitude inclusiva, por oportunizar que diferentes habilidades musicais se façam presentes no desenvolvimento dos conteúdos, permitindo assim que mais alunos, muitas vezes rotulados de não musicais, também consigam se expressar musicalmente.

Identificada essa problemática e delineado o objeto, Green elaborou algumas questões de pesquisa:

  1. As práticas de aprendizagem informal de música (GREEN, 2002) poderiam aumentar a motivação para aprender música e ampliar a gama de habilidades musicais dos alunos?
  2. Essas práticas poderiam tornar a educação musical mais inclusiva, principalmente para aqueles alunos que tiveram suas capacidades embotadas nos ambientes formais?
  3. As práticas informais poderiam conduzir a uma ampliação da apreciação musical dos alunos, tanto do tipo de música presente em seus contextos de origem quanto do tipo de música existente além dele? (Adaptado de GREEN, 2008:4).

O objetivo, portanto, foi investigar se seria possível e benéfico trazer alguns dos aspectos das práticas de aprendizagem informal de música popular para dentro do ambiente da sala de aula escolar (GREEN, 2008: 9). Especificamente, o estudo visou:

  1. Possibilitar a emergência e descoberta de determinadas habilidades musicais dos alunos que até então não eram possibilitadas através da prática formal;
  2. Despertar nos alunos a capacidade de ouvir e compreender criticamente as músicas oriundas tanto de seus contextos quanto de quaisquer outros;
  3. Desenvolver nos alunos a autonomia para que eles mesmos sejam capazes de escolher estratégias que orientem a aprendizagem musical (GREEN, 2008: 13-14).

No total, participaram do projeto 21 escolas secundárias, 32 professores e aproximadamente 1.500 alunos. No entanto, para um estudo aprofundado, foram selecionadas 7 escolas localizadas nas cidades de Londres e Hertfordshire. A idade dos alunos variava entre 13 e 14 anos. Daquelas 7 escolas, foram selecionados um total de 200 alunos e 11 professores, dos quais foram extraídos os dados (GREEN, 2008: 14-15).

As escolas selecionadas concluíram os 2 primeiros estágios do projeto, que num total foi organizado em 7 estágios.[5] No entanto, Green afirma que o foco principal para levantamento dos dados se concentrava na realização do estágio 1 da pesquisa[6] (GREEN, 2008: 14). Tal motivo se explica pelo fato de que é “[…] nesse estágio em que se encontra o núcleo da abordagem, uma vez que é o estágio que mais se aproxima em replicar as práticas informais de aprendizagem musical da maneira que ocorrem fora da escola” (GREEN, 2008: 24). Ela contou com a colaboração de uma equipe de pesquisadores para a realização da pesquisa.

Para levantamento e coleta de dados, que durou um ano acadêmico em cada escola participante, Green utilizou uma multiplicidade de métodos, materiais empíricos, perspectivas e observadores em seu estudo. As ferramentas de coleta de dados foram: observação participante não estruturada dos estudantes trabalhando em pequenos grupos; observação das aulas; gravação de áudio do trabalho em grupo dos alunos; gravação de áudio e vídeo das performances e outras atividades com toda a turma; gravação de entrevistas semiestruturadas com alunos e professores em intervalos regulares; e gravação de reuniões da equipe de professores. Também foram feitas notas de campo de conversas nos corredores e salas de reuniões (GREEN, 2008: 14-15).

Green utilizou entrevistas semiestruturadas com os professores e também com alunos. Além das entrevistas individuais, também foram feitas entrevistas com grupos, tanto de professores quanto de alunos. A escolha de Green por realizar esse segundo tipo de entrevista se justificou como uma tentativa de esclarecer determinadas dúvidas e divergências particulares que surgiam nas entrevistas individuais realizadas ao longo do projeto. Além disso, para ela, “[…] todos os seres humanos formam suas visões e respostas para os fatos como fazendo parte de um grupo” (GREEN, 2008: 17).

As observações ocorreram desde o início do projeto, durante as atividades semanais dos alunos trabalhando em grupo e também nas aulas com a turma toda, e Green as considera como a principal fonte de coleta. Assim, essa estratégia foi tomada como “um bloco de construção central das estratégias do projeto, em relação não só aos papéis dos pesquisadores, mas também dos professores” (GREEN, 2008: 19). Após verificar que a naturalidade dos alunos estava comprometida pela presença dos pesquisadores, o grupo que trabalhou juntamente a Green no projeto optou pela utilização de equipamentos de gravação de áudio durante todo o tempo em que as atividades dos alunos ocorriam, com o consentimento dos alunos. As gravações eram transcritas logo em seguida.

Outras fontes de coleta de dados foram questionários, com respostas fechadas e abertas. Essa estratégia, além de ter servido como meio comparativo com as respostas fornecidas nas entrevistas, também foi um recurso utilizado para assegurar que os respondentes tivessem um espaço de expressão mais reservado, por se tratar de questionários anônimos. Assim, Green procurou garantir respostas individuais livres de uma possível pressão de colegas, e também para oportunizar que pessoas mais tímidas pudessem se expressar. Conversas informais ocorridas em corredores e em outros espaços, tais como sala de reuniões, também foram registradas em notas de campo.

A quantidade de dados coletados reúne cerca de 800 páginas de transcrições e notas de campo e cerca de 100 gravações de áudio, a maioria delas com mais de uma hora de duração.

Green (2008: 20) justifica que, numa pesquisa qualitativa, não é possível afirmar com completa exatidão os pensamentos e ideias dos participantes, considerando que o objeto é mutável. Consciente disso, os dados apresentados e discutidos não são generalizáveis para todo e qualquer contexto. Sempre que possível, as declarações foram ilustradas com excertos de falas ditas pelos atores. Além disso, há a recorrência aos dados obtidos das fontes quantitativas (questionários), como alternativa de checagem de suas afirmações.

Não existe um tópico específico no livro de Green que reúna descritivamente os resultados, considerando a opção da autora pela forma de construção cíclica em relatar o trabalho. Contudo, é possível reunir sumariamente os principais achados de seu estudo a partir do que foi analisado no decorrer dos capítulos, conforme a lista abaixo:

  • Todos os professores que responderam ao questionário final disseram que o uso das abordagens informais na sala de aula mudou positivamente suas maneiras de ensinar (GREEN, 2008: 22);
  • Os alunos aprenderam práticas que lhes possibilitaram a aquisição de uma consciência de suas próprias musicalidades, principalmente aqueles alunos que não tinham tido oportunidade de serem alcançados até então pela educação musical tradicional (GREEN, 2008: 22 e 64);
  • Os alunos adquiriram maior autonomia para direcionarem suas próprias práticas de aprendizagem; essa foi uma razão mencionada por eles para afirmar que essa forma de aprender foi mais prazerosa e mais eficiente pedagogicamente (GREEN, 2008: 102 e 117); OPUS v.26, n.1, jan./abr. 2020 8 COUTO. Resenha de Music, informal learning and the school
  • Os alunos mostraram uma melhora na compreensão e apreciação de músicas, não só daquelas que eles já conheciam, mas também de outras, tornando-os ouvintes mais críticos e com uma mentalidade mais aberta a novos estilos (GREEN, 2008: 22, 82-84 e 168).

Por fim, Green procura deixar claro que todo este trabalho não significou a sugestão pela substituição ou abandono do ensino tradicional de música. Segundo a autora, a utilização das práticas de aprendizagem informal de música seria uma pedagogia alternativa que poderia ocorrer como um complemento às abordagens já utilizadas.

Considerações finais

A música é um produto humano passível de ser investigado tanto pelas ciências empíricas – as naturais (enquanto fenômeno acústico) e as sociais (enquanto fenômeno sonoro-cultural) – como também através de uma abordagem não empirista, por meio de uma concepção formalista (matematizante), pois em música está implícito um pensamento lógico-matemático que possibilita a sua compreensão e transmissão através dos números. Talvez mesmo por tal multiplicidade, somando-se ao fato do pouco tempo de realização de pesquisa por músicos no Brasil, a maioria do conhecimento que produzimos nos cursos de Música ainda lançam mão de processos metodológicos e epistemológicos “emprestados” de outras áreas do conhecimento mais consolidadas no metiê da pesquisa acadêmica. Dentre as necessidades do músico que pretende enveredar-se pela atividade da pesquisa estão o conhecimento das diferentes metodologias e a capacidade de discernir qual delas utilizar, de acordo com a natureza de seu objeto.

Uma das possibilidades de aprendizagem destes aspectos está na observação e análise de trabalhos considerados referência para a área. Lucy Green possui ampla experiência como educadora musical, o que certamente lhe conferiu subsídios para compor seu perfil como intelectual e pesquisadora. Longe de pretender avaliar os méritos da adoção ou não da pedagogia que Green propõe como decorrência de seu estudo aqui descrito, a questão que interessou especificamente nesta resenha foi observar como uma pesquisadora reconhecida internacionalmente elaborou seu projeto de pesquisa e a metodologia para sua execução. A construção de sua problemática se deu a partir de uma trajetória ampla e de longa data, ou seja, a capacidade de Green para olhar a forma de se ensinar música nas escolas de seu país e a sua decorrente problematização só foi possível graças a uma série de conhecimentos práticos e teóricos que são frutos dessa trajetória e experiência.

Além dos conhecimentos sobre música e seu ensino, outro elemento que confere habilidade para sua prática enquanto pesquisadora é o diálogo com outras áreas do conhecimento. Notamos que o plano estratégico da autora para alcançar as respostas de suas questões de pesquisa demonstra perícia e domínio da metodologia de pesquisa amplamente empregada pelas Ciências Sociais. Este fato se dá não apenas pela natureza do objeto construído, mas também porque a autora sempre buscou, em sua trajetória, uma relação muito estreita entre a música e a sociedade (GREEN, 1988, 1997). Isso lhe permite domínio para escolher com conscienciosidade o melhor caminho metodológico para operacionalizar sua pesquisa. Pudemos verificar, então, a construção de um objeto bem delineado na área de educação musical e a escolha e aplicação de determinadas estratégias metodológicas que são facilmente encontradas em livros e manuais de pesquisa em Ciências Sociais. Tais elementos podem servir para os músicos iniciantes na OPUS v.26, n.1, jan./abr. 2020 9 COUTO. Resenha de Music, informal learning and the school atividade de pesquisa como um exemplo de realização de pesquisa sobre o ensino de música em contextos escolares.

Acredito que esse tipo de exercício analítico sobre trabalhos considerados referenciais, não só para a subárea da educação musical, mas também para outras subáreas da Música, pode contribuir para o aprimoramento da formação do músico pesquisador.

Referências

BARROS, Luís Cláudio. Retrospectiva histórica e temáticas investigadas nas pesquisas empíricas sobre o processo de preparação da performance musical. Per Musi, Belo Horizonte, n. 31, p. 284-299, 2015.

BORÉM, Fausto; RAY, Sônia. Pesquisa em performance musical no brasil no século XXI: problemas, tendências e alternativas. In: SIMPÓSIO DE PÓS-GRADUANDOS DA UNIRIO, 2., 2012, Rio de Janeiro. Anais […]. Rio de Janeiro: UFRJ, 2012. v. 1. p. 121-168.

CAVAZOTTI, André. Periódicos brasileiros da área de música: uma breve cronologia (1983-2003).

Opus, v. 9/2, p. 21- 27, dez. 2003. Disponível em: http://www.anppom.com.br/opus/opus9/ opus9-2.pdf. Acesso em: 20 ago. 2010.

COUTO, Ana Carolina Nunes do. A dialética social da pesquisa em Música: produção do conhecimento e autonomia profissional dos músicos performers na pós-graduação brasileira. Tese (Doutorado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, UFPE, Recife, 2017.

DEL BEN, Luciana. (Para) Pensar a pesquisa em educação musical. Revista da Abem, Porto Alegre, v. 24, p. 25-33, set. 2010.

DOMENICI, Catarina Leite. Interpretando o hoje: uma proposta metodológica para a construção da performance da música contemporânea. In: CONGRESSO DA ANPPOM, 15., 2005, Rio de Janeiro.

Anais […]. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Música da UFRJ, 2005. v. 1. p. 819-825.

DOMENICI, Catarina Leite. O intérprete (re)situado: uma reflexão sobre construção de sentido e técnica na criação de Intervenções para piano expandido, interfaces e imagens: centenário John Cage. In: CONGRESSO DA ANPPOM, 22., 2012, João Pessoa. Anais […]. João Pessoa, 2012. p. 1212-1220.

FIGUEIREDO, Sérgio Figueiredo; SOARES, José. Desafios para a implementação metodológica de pesquisa em larga escala na educação musical. Opus, Belo Horizonte, v. 18, p. 257-274, 2012.

Disponível em: http://www.anppom.com.br/revista/index.php/opus/article/view/185/166. Acesso em: 1 maio 2016.

GERLING, Cristina Capparelli; SOUZA, Jussamara. A performance como objeto de investigação. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM PERFORMANCE MUSICAL, 1., 2000, Belo Horizonte. Anais […]. Belo Horizonte: UFMG, 2000. p. 114-125.

GREEN, Lucy. Music on deaf ears: musical meaning, ideology and education. Manchester, New York: Manchester University Press, 1988.

GREEN, Lucy. Music, gender, education. London: Cambridge University Press, 1997.

GREEN, Lucy. How popular musicians learn. London: Ashgate, 2002.

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SANTIAGO, Patrícia Furst. Mapa e síntese do processo de pesquisa em performance e em pedagogia da performance musical. Revista da Abem, Porto Alegre, v. 17, p. 17-27, set. 2007.

SANTOS, Regina Márcia Simão. A produção de conhecimento em educação musical no Brasil: balanço e perspectivas. Opus, Porto Alegre, v. 9, p. 49-72, 2003.

TOMÁS, Lia. A pesquisa acadêmica na área de música: um estado da arte (1988-2013). Porto Alegre: Editora Anppom, 2015. Disponível em: http://www.anppom.com.br/ebooks/index.php/ pmb/catalog/book/4. Acesso em: 6 ago. 2016.

TRAVASSOS, Elizabeth. Balanço da Etnomusicologia no Brasil. Opus, Campinas, v. 9, p. 66-77, 2003.

Notas

[1] Informal music learning practices.

[2] Nota da tradução: O termo utilizado pela autora é copy (copying by ear), conforme consta em todas as suas publicações sobre a aprendizagem dos músicos populares citados neste artigo. A autora destaca a centralidade dessa prática dentro dessa cultura: “By far the overriding learning practice for the beginner popular musician, as is already well known, is to copy recordings by ear” (GREEN, 2001: 60). No entanto, no Brasil o termo vernacular equivalente ao copy do inglês seria “tirar de ouvido”. Optei por mantê-lo da forma que utilizamos aqui, buscando coerência com traduções anteriores de textos da autora no Brasil (GREEN, L. Ensino da música popular em si, para si mesma e para “outra” música: uma pesquisa atual em sala de aula. Revista da Abem, Londrina, v. 20, n. 28, p. 61-80, 2012), onde o termo traduzido também foi “tirar de ouvido”.

[3] 3 Esclareço que a autora discorre sobre a prática de “tirar músicas de ouvido” como sendo o primeiro estágio de autoaprendizagem, formador da base para o desenvolvimento criativo que ocorre a posteriori. Detalhes deste processo podem ser encontrados no capítulo 3 de sua obra de 2002, citada no presente artigo. Abstive-me de entrar na discussão epistemológica sobre criação musical e problematizá-la aqui, por não ser o objeto tratado no artigo.

[4] 4 “Na maioria das salas de aula do Reino Unido, a educação musical assume a forma de uma educação geral ou liberal que é fornecida para todos os alunos até a idade de 14 anos, independentemente da capacidade ou escolha” (GREEN, 2008: 23-24, tradução minha). Original: “Music education in most UK classrooms takes the form of general or liberal education which is provided for all pupils up to the age of 14, regardless of ability or choice”.

[5] Para detalhes, ver Green (2008, Apêndice B).

[6] “Estágio 1: Os alunos trazem músicas de suas próprias escolhas. Em pequenos grupos formados por laços de amizade, eles ouvem e escolhem uma música. Então eles escolhem os instrumentos e tentam ‘tirar a música de ouvido’, direcionando sua própria aprendizagem” (GREEN, 2008, Apêndice B, tradução minha). Original: “Pupils bring in the own choice of music. In small friendship groups they listen to it, and choose one song. They then select instruments and attempt to copy the song by ear, directing their own learning”.

Ana Carolina Nunes do Couto – Doutora em Sociologia pela UFPE (2017), mestra em Música (2008) e especialista em Educação Musical (2004) pela Escola de Música da UFMG. Possui Graduação em Licenciatura em Música pela Universidade Estadual de Londrina (UEL, 2002). Atua como professora junto ao Departamento de Música do Centro de Comunicação e Artes da UFPE desde 2009, trabalhando com o ensino de piano em grupo e com pesquisas sobre música popular e epistemologia da música. É professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Música da UFPE, atuando na linha de pesquisa: Música, Educação e Sociedade. É membra do Grupo de Pesquisa Sociedade e Práticas Musicais. Tem artigos publicados em revistas especializadas e eventos científicos da Música. [email protected].

 

 

Language, Ideology, and the Human: New Interventions – BAHUN; RADUNOVIC (B-RED)

BAHUN, Sanja; RADUNOVIC, Dusan (Eds.). Language, Ideology, and the Human: New Interventions [Linguagem, Ideologia e o Humano: Novas Intervenções]. Farnham, Surrey: Ashgate, 2012. 250 p. Tradução de Maria Helena C. Pistori. Resenha de: THOMSON, Clive. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.12 n.3 São Paulo Set./Dec. 2017.

Esta coleção de artigos apresenta algumas qualidades marcantes. Apesar disso, considerei difícil fazer esta resenha e tentarei explicar por quê. Em sua introdução (intitulada “Introducing, Intervening, and Introspecting” [Introduzindo, Intervindo e Interiorizando], Sanja Bahun e Dusan Radunivic, organizadores da coletânea, afirmam que o desafio que apresentaram aos colaboradores convidados foi explorar e percorrer os “orifícios” e “interstícios entre a linguagem, a ideologia e seus produtores e renegociadores humanos” (p.1)1. Os organizadores descrevem a diversidade de enfoques utilizada pelos colaboradores e assinalam com franqueza que “[…] as discussões de Language, Ideology, and the Human são notadamente heterogêneas” (p.8)2. Essa descrição dos doze capítulos corresponde exatamente à minha impressão depois da primeira leitura. Eu tinha notado que a natureza heterogênea da coletânea se manifesta tanto no nível das teorias que fundamentam os estudos quanto nos objetos de estudo escolhidos pelos colaboradores. Por exemplo, a Parte I (Revisiting [Revisitando]), cujo foco é principalmente teórico e filosófico, contém seis estudos, que envolvem, em graus variados e de modos muito interessantes, Kierkegaard, Platão, Nietzsche, Saussure, Wittgenstein, Searle, Chomsky, Kant, Zelinskii, Derrida e Carl Schmitt. Na Parte II (In the World, Prospecting [No mundo, prospecções]), há cinco capítulos estimulantes nos quais os autores desenvolvem análises mais concretas e específicas de uma variedade de fenômenos localizados em diferentes lugares geográficos/culturais: o ensino da Língua Portuguesa no Timor Leste, a lei consuetudinária na África do Sul, o turno discursivo e o corpo, o cosmopolitismo nas modernas sociedades europeias, e o tema do perdão num filme sul-coreano e o pensamento de Arendt. O posfácio de Ernesto Laclau mostra uma defesa convincente e provocante da necessidade de se criar um novo modo de pensar a respeito da ideologia, da linguagem e do homem.

Na segunda parte da introdução, Bahun e Radunovi explicam com detalhes suficientes as semelhanças entre as abordagens e metodologias dos autores da obra: “Todos esses enfoques implicam […] que há uma conexão íntima entre ideologia e linguagem e, especificamente, entre uma ideologia dentro da qual um indivíduo vive e sua visão da linguagem” (p.3)3. A coletânea se apoia num “impulso velado” que a orienta – um desejo de questionar a “viabilidade das fronteiras disciplinares” e esclarecer os “problemas com o modelo de estudos baseado na divisão de disciplinas” (p.9)4. A reunião de artigos também é descrita da seguinte forma pelos organizadores: “O desejo de tratar o pluralismo sem promover conciliações não conciliáveis nem assimilações numa coletividade benevolente favorável emerge poderosamente das páginas deste volume com muita força” (p.10)5. A questão de saber “como e por que fazemos esses estudos” é outro tema geral que percorre implicitamente todos os artigos, de novo de acordo com os organizadores. Além dessas similaridades amplas alegadas como caracterizadoras (de forma velada ou implicitamente) de todos os artigos, os organizadores identificam alguns subtemas que caracterizam alguns dos artigos, como: “A questão de saber se a verdade permanece o valor central em enunciados significativos é tratada numa série de capítulos neste volume […]” (p.11)6; “[…] duas contribuições [de Jean-Claude Monod e de Rey Chow] tratam especificamente da questão da subjetividade e da importância de sua contribuição relativa e/ou instável na esfera social” (p.11)7.

A dificuldade para mim, como resenhista, ocorre quando busco entender as afirmações opostas feitas pelos organizadores, que declaram, por um lado, que falta coerência às “discussões” na coletânea, enquanto, por outro lado, que os artigos revelam vários pontos comuns. Os organizadores, talvez inconscientemente, criaram uma situação na qual os leitores serão tentados, como eu fui, a perguntar qual a import6ancia relativa que deveria ser dado a cada opção. Depois de ler o volume cuidadosamente várias vezes, minha conclusão é que eu o vejo composto de doze artigos que têm muito pouco em comum. Não é que os organizadores estejam errados ao mencionar alguns fios condutores que percorrem alguns dos artigos. Pelo contrário, minha impressão é que esses fios são tão gerais que poderiam se referir a quase qualquer coletânea de artigos que se proponha interdisciplinar. Em outras palavras, não apenas a defesa dos organizadores da coerência da coletânea acaba por ser algo um pouco inquietante, mas ela me leva a notar algumas outras inconsistências e incoerências às quais retornarei no final de minha resenha.

Vários artigos da coletânea me parecem especialmente substanciais e originais. O artigo de Leonardo F. Lisi (The Politics of Madness: Kierkegaard’s Anthropology Revisited [A política da loucura: a antropologia de Kierkegaard revisitada]) apresenta lucidamente a definição de “o humano” (uma síntese do infinito e do finito e de liberdade e necessidade) e mostra como Deus funciona, em última análise, como uma alteridade radical. Essa alteridade tanto evita fechamento ideológico como torna necessário buscar o fechamento. O que é produtivo no pensamento de Kierkegaard (isto é, suas “implicações para política”, p.248) é que a contradição entre pensamento e experiência (isto é, o conflito básico para os seres humanos) pode resultar numa “falha de compreensão do sentido” (p.34)9. O artigo termina com uma sugestão cautelosamente otimista de que a incerteza, a ambiguidade e a falha podem “significar o fim da política ou sua reinvenção numa nova forma” (p.36)10. O admirável artigo de Craig Brandists (Rhetoric, Agitation and Propaganda: Reflections on the Discourse of Democracy (with some Lessons from Early Soviet Russia) [Retórica, agitação e propaganda: reflexões sobre o discurso da democracia (com algumas lições do período inicial soviético da Rússia])) tem como foco o modo como a propaganda funcionou durante a crise da democracia na União Soviética dos últimos anos da década de 1920, quando o discurso do Partido tornou-se um discurso monológico (isto é, ideológico) por excelência. O artigo bem elaborado de Aurora Donzelli (The Fetish of Verbal Inflection: Lusophonic Fantasies and Ideologies of Linguistic and Racial Purity in Postcolonial East Timor [O fetiche da inflexão verbal: fantasias lusofônicas e ideologias da pureza linguística e racial no Timor Leste pós-colonial]) demonstra concretamente como a transmissão de um sistema abstrato de regras gramaticais pode ser simultaneamente um instrumento de assimilação e o marcador da distinção racial e social (p.151). O contexto é o Timor Leste, quando a língua portuguesa estava sendo ensinada em sala de aula. Galin Tihanov (Cosmopolitanism: Legitimation, Opposition and Domains of Articulation [Cosmopolitismo: legitimação, oposição e domínios de articulação]), enquanto explora a diferença entre legalidade e legitimidade, cita Schmitt: “Através de uma confiança cega na legalidade, Schmitt defende que a sociedade ‘se torna incapaz de reconhecer o tirano que chega ao poder por meios legais'” […] (p.194)11. Tihanov sugere que “a legimidade deve ser compreendida como algo deferido, como algo com o qual se pode estar de acordo prospectivamente” (p.196)12. O artigo de Tihanov é instigante e potencialmente muito útil para nos ajudar a compreender como alguns discursos autoritários atuais funcionam.

Os quatro artigos que acabamos de mencionar, além de oferecer contribuições importantes em tópicos específicos, são exatamente aqueles que ecoam, de modos surpreendentes, certos debates políticos de 2017 e, portanto, apresentam “implicações para a política” – para usar a expressão de Lisi que citei no parágrafo anterior. De fato, sou tentado a afirmar que o valor principal desta coletânea é permitir nosso engajamento crítico com importantes questões da arena política contemporânea. Estou pensando especificamente nos intensos debates políticos relativos à recente decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia e os debates sobre democracia, liberdade de expressão e imprensa que estão ocorrendo, especialmente nos Estados Unidos, mas também na França e em outros países europeus. Nesses contextos, é particularmente deprimente observar os discursos populistas e antidemocráticos vindos de indivíduos e partidos políticos da direita. Vários artigos nesta coletânea têm o potencial de auxiliar a desconstruir afirmações como as seguintes, atualmente à disposição na Casa branca: “A imprensa é o inimigo do povo”; “Notícias falsas não dizem a verdade”; “A mídia desonesta constrói uma história falsa atrás da outra”; “Nós não vamos deixar que notícias falsas nos digam o que fazer, como viver ou no que acreditar. Somos livres e independentes e faremos nossas próprias escolhas”. Esses enunciados são, com certeza, o tipo de discurso ideológico que Brandist, Donzelli, Gorman, Parsons e Laclau mencionam em seus artigos. Segundo Laclau coloca, é por meio de tais discursos que “a classe hegemônica é capaz de transformar seus propósitos particulares naqueles da sociedade como um todo” (p.245)13. A fim de compreendê-los e ir contra eles, eles precisam primeiramente ser compreendidos dentro do contexto institucional no qual foram produzidos. Não é útil vê-los somente como o produto de uma mente psicótica ou caótica.

No último capítulo de Language, Ideology, and the Human: New Interventions (Afterword: Language, Discourse, and Rhetoric [Posfácio: linguagem, discurso e retórica]), Ernest Laclau mostra por que é importante ter uma clara compreensão de como “a imbricação entre a linguagem e a realidade humana é bem mais íntima do que a noção de linguagem como uma categoria regional sugere” (p.237)14. Laclau conclui seu argumento sugerindo duas direções possíveis que poderíamos tomar em nossos esforços para desconstruir tipos de retórica como aquele que tem sido produzido pela administração Trump. Primeiramente, é necessário compreender como os sentidos se constroem: “Se a objetividade estivesse fundamentada em bases perspícuas ela não seria ambígua: o signo seria um simples representante de algo que o precede […] (Um significante particular) significa uma totalidade que torna possível o sentido, mas uma totalidade que é um objeto impossível. Então, a significação é possível apenas ao significar sua própria impossibilidade” (p.245)15. Quando Trump afirma que: “Os vazamentos são reais mas as histórias da mídia são falsas”, ele cria um tipo de lapso que introduz o real como um terceiro termo (perturbador), subvertendo então a “lógica” binária (verdadeiro/falso) que qualifica suas outras afirmações (por exemplo, “As notícias falsas não dizem a verdade”). Uma compreensão do modo como os sentidos funcionam precisa, portanto, ser acrescida com uma chamada para a psicanálise. Isso é o que Laclau está propondo quando escreve: “Bem, nós estamos no epicentro de uma transformação intelectual cujos dois pontos iniciais básicos são a noção de langue de Saussure e a descoberta do inconsciente de Freud” (p.242)16.

Acho que eu seria omisso se não fizesse alguns comentários críticos a respeito dos modos como esta coletânea foi organizada. A maioria dos capítulos parece ter sido preparada e editada de acordo com as convenções acadêmicas contemporâneas (isto é, estão escritos num estilo razoavelmente padrão e uniforme e são acompanhados de notas de rodapé adequadas, com referências bibliográficas completas e detalhadas), enquanto outros se caracterizam por um estilo oral que sugere terem sido originalmente textos de conferências e não artigos. Alguns capítulos (especialmente aqueles de Brandist e Tihanov) são admiráveis por seu estilo “pedagógico” (considero-os pedagógicos pelo cuidado que tomam ao apresentar uma argumentação coerente e também porque os termos críticos básicos utilizados nos argumentos são explicados e contextualizados). Esses artigos são mais facilmente acessíveis a uma audiência de alunos no último ano da graduação e na pós-graduação, ou para leitores que talvez não tenham uma base sólida nos debates da teoria crítica atual.

Fica claro que os organizadores fizeram um esforço para escolher um título para a coletânea que cumprisse dois objetivos: criar uma impressão de unidade para o volume e indicar, tão precisamente quanto possível, seus temas principais. Um exame cuidadoso do conteúdo, porém, revela que apenas quatro artigos (Leonardi F. Lisi, Elizabeth Parsons, Aurora Donzelli, Ernest Laclau) têm como foco tratar, de um modo explícito e substancial, dos três tópicos mencionados no título – linguagem, ideologia e o ser humano. Dois artigos (David Gorman, Craig Brandist) tratam de assuntos relacionados a linguagem e ideologia. Dois artigos (Monina Wittfoth, Galin Tihanov) trabalham principalmente com a linguagem. Dois artigos (Jason Glynos, Rey Chow) focam questões de linguagem e do ser humano. Dois artigos (Jean-Claude Monod, Drucilla Cornell) tratam do humano mas não se envolvem com questões de ideologia ou linguagem – pelo menos, não explicitamente. Em outras palavras, há certa desconexão entre o título do volume e o foco de alguns dos artigos. Um título melhor poderia ser, talvez, Language, Rhetoric, and Subjectivity [Linguagem, retórica e subjetividade].

Desvia a atenção do leitor ver um grande número de erros tipográficos, especialmente na introdução. Mostro aqui apenas uma seleção de erros típicos17 (minha correção está em itálico): “In early 2000, merely thirty days [No início dos anos 2000, simplesmente trinta dias] (p.1); “not only the objectivist view of language” [não apenas a visão objetivista da linguagem] (p.2); “and the pre-Socratics” [e os pré-socráticos] (p.3); “such an open definition” [uma definição tão aberta] (p.3); “informed by the belief” [informado pela crença] (p.4); “revisits precisely (delete “to”) this point” [revisita (apague “a”) precisamente este ponto] (p. 5); “naturally coexist with us” [naturalmente coexiste conosco] (p.7); “frame through which” [moldura através da qual] (p.54); “bureaucracy were imposed” [burocracia foram imposta] (p.89); “Schmitt draws a distinction” [Schmitt traça uma distinção] (p.106); “the decision to choose as the” [a decisão de escolher como o] (p.138). Há também muitas frases inadequadas18 no volume, como as seguintes: “And it still endures in the declarations, in the political literature of fraternité, in the manifestos of French republicanism, and the similar” (p.105); “It might be that I have the impression, just now, at the time when the markets dictate even the decisions who should be political governors (in Italy or Greece, for instance), that Schmitt’s fear that the liberal “depolitization” in favour of the economic forces would culminate in a “liberalism” which can do without “democracy” has received a new and terrible actuality […]” (p.111).

Vale a pena a leitura de todos os artigos da coletânea. Muitos deles desenvolvem uma boa argumentação, são substanciais e originais. E, como tentei apontar, as ideias expressas por alguns colaboradores poderiam auxiliar a realizar o importante trabalho de envolvimento e desconstrução de discursos essencializadores/ideológicos que têm sido produzidos atualmente na esfera pública. No entanto, a meu ver, a coletânea, como um todo, não corresponde completamente às declarações dos organizadores a respeito de sua coerência geral ou de sua capacidade de ir além das teorias atuais em relação à “íntima conexão” entre linguagem e ideologia.

19Tradução de Maria Helena Cruz Pistori – [email protected]

1Texto no original: “the interstices between language, ideology, and their human producer and re-negotiator”

2Texto no original: “”[…] the discussions comprising Language, Ideology, and the Human are markedly heterogeneous”.

3Texto no original: “”All of these approaches imply […] that there exists an intimate link between ideology and language, and, specifically, between an ideology within which an individual operates and his or her view of language”.

4Texto no original: “the viability of disciplinary boundaries”; “problems with the model of scholarship based on disciplinary division”.

5Texto no original: “This urge to address pluralism without promoting either irreconcilability or assimilation to a benign collectivity emerges powerfully from the pages of this volume”.

6Texto no original: “The question whether truth remains the central value in meaningful utterances informs a range of chapters in this volume […]”.

7Texto no original: “[…] both contributions [Jean-Claude Monod and Rey Chow] specifically address the question of subjectivity and the importance of its relational, and/or unstable contribution in the social sphere”.

8Texto no original: “implications for politics”.

9Texto no original: “failure to grasp meaning”.

10Texto no original: “spell the end of politics or its re-imagination in a new form”.

11Texto no original: “Through blind reliance on legality, Schmitt’s argument goes, society ‘disables itself from recognizing the tyrant who comes to power by legal means'” […].

12Texto no original: “legitimacy has to be understood as something deferred, as something that can be agreed to prospectively”.

13Texto no original: “the hegemonic class is able to transform its own particular aims into those of society as a whole”.

14Texto no original: “the imbrication between language and human reality is rather more intimate than the notion of language as a regional category suggests”.

15Texto no original: “If objectivity had an ultimate, perspicuous ground, it would be unambiguous: the sign would be a mere representative of something preceding it. […] (A particular signifier) signifies a totality which makes possible signification, but a totality which is an impossible object. So signification is possible only by signifying its own impossibility”.

16Texto no original: “Well, we are at the epicenter of an intellectual transformation whose two basic starting points are Saussure’s notion of langue and Freud’s discovery of the unconscious”.

17N. do T.: As correções sugeridas pelo resenhista referem-se primordialmente a questões gramaticais e de sintaxe. A tradução das frases infelizmente não leva à compreensão dos problemas que o autor da resenha indicou.

18N. do T.: Decidiu-se não traduzir as frases, tendo em vista a especificidade do uso da língua inglesa percebida pelo articulista, ao declarar serem as frases awkward (inadequadas, estranhas, “desajeitadas”).

Clive Thomson – Professor of University of Guelph, Guelph, Ontario, Canadá; [email protected].