O Chile de Allende e Pinochet: memória e historiografia / História Unisinos / 2012

11 de setembro de 1973, fim do governo da Unidade Popular liderado por Salvador Allende. A via chilena para o socialismo encontrava com a sua derrota.

11 de setembro de 1973, início da ditadura liderada por Augusto Pinochet que duraria 17 anos e deixaria o saldo de quase quatro mil mortos e desaparecidos.

11 de setembro de 1973, data símbolo dos golpes que marcaram o Cone Sul da América Latina nos anos 1960 e 1970.

Mais do que uma data chilena, o 11 de setembro acabou se transformando em uma data latino-americana que reflete o cenário de ditaduras e violência política da segunda metade do século XX na região. Amplamente documentado, o ataque ao La Moneda pode ser visto em imagens, assim como podemos ouvir o último discurso de Salvador Allende e a gravação feita de forma clandestina dos postos de comando à sede do poder Executivo (Verdugo, 1998). As imagens correram o mundo e hoje, disponíveis na internet, seguem a impressionar, a emocionar.

Visto como um país onde “não se passa nada” em função da sua estabilidade política, especialmente se comparado aos países vizinhos, o Chile possuía certo grau de amadurecimento político que levou o ainda candidato Salvador Allende a afirmar na I Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), realizada em Cuba entre os dias 31 de julho e 10 de agosto de 1967, que no seu país a luta armada não seria necessária, pois a via institucional era possível e vitoriosa.

De fato, a eleição da coligação partidária Unidade Popular1 em 1970 demonstrou que a avaliação de Allende não estava completamente equivocada. Contudo, ao longo dos mil dias de governo, a Unidade Popular enfrentou uma crescente oposição nacional (de setores da classe média, representados fortemente por movimentos como o gremialismo, de parte das Forças Armadas e da Igreja Católica) e internacional (com destaque para o Brasil e Estados Unidos). Ao mesmo tempo, setores de apoio ao programa de governo começaram a pressionar pelo avanço e rapidez das mudanças.

As primeiras análises sobre o golpe foram feitas não apenas por pesquisadores, mas também por protagonistas do período. Dentre elas podemos destacar os trabalhos de Valenzuela, Garretón, Moulian e Corvalán.2 Com visões de amplo espectro, sem analisar muitas vezes as disputas internas, esses autores privilegiaram as explicações essencialmente políticas num país supostamente dividido entre favoráveis e opositores ao programa da Unidade Popular, não discutindo as disputas internas e / ou o comportamento pendular de grande parte da sociedade, que ora apoiava o governo e ora partia para o enfrentamento.

Outra explicação para a queda da Unidade Popular foi a forte atuação dos Estados Unidos no golpe de 11 de setembro e o apoio à ditadura recém instalada. Essa visão ficou bastante clara não apenas nos trabalhos acadêmicos ou jornalísticos, com destaque para o livro de Patrícia Verdugo (2003), e em filmes como Missing, de Costa-Gravas. O filme, de 1982, conta a história do assassinato do estadunidense Charles Horman e a procura de explicações para o seu desaparecimento, realizada por seu pai em viagem ao Chile.

Muitas das informações sobre os Estados Unidos fazem parte do Relatório Church, ou “Ações encobertas no Chile 1963-1973”, trabalho redigido pela comissão instalada no Senado dos EUA no ano de 1975 para apurar as ações clandestinas do país. A CIA, principal representante do governo nessas ações, reunia dados, repassava informações, estabelecia conexões com a polícia local, etc. A agência norte-americana investiu ao longo de 10 anos cerca de U$ 14 milhões. O dinheiro foi usado de distintas maneiras, ou seja, desde o investimento em campanhas políticas dos adversários de Allende, passando por propagandas, investimento nos meios de comunicação até pesquisas de opinião, culminando com o financiamento de tentativas de golpe anteriores ao próprio 11 de Setembro.

O golpe no Chile acabou por contribuir para a divulgação das ditaduras do Cone Sul aos olhos do mundo. Convém lembrar que em 1973 já estavam sob governos autoritários, marcados por graves violações dos direitos humanos, Brasil, Paraguai e Uruguai, sendo que nesse último a ditadura havia começado em junho de 1973. No entanto, a busca por asilo em embaixadas (Rollemberg, 1999) e a chegada de uma grande quantidade de exilados em países da Europa, fora as próprias imagens do golpe e a notícia do suicídio de um presidente legitimamente eleito, chocaram o mundo. Com os olhos sobre o país, a ONU também foi pressionada para apurar as graves denúncias de atentados aos direitos humanos (Quadrat, 2008, p. 361-395).

Se a queda da Unidade Popular não apresenta consenso na historiografia, a ditadura também serviu de debates. Para Huneeus, o governo ditatorial chileno possuía três identidades (Huneeus, 2000). A primeira é a identidade econômica neoliberal através do fortalecimento dos Chicago Boys e a intensa campanha de privatização das empresas públicas. A segunda é a identidade coercitiva, pela qual Augusto Pinochet, apesar de contar com o apoio de uma parcela significativa da sociedade, usou da violência para calar a oposição. Por fim, a terceira identidade tem a ver com a própria figura do general. Imbuído de um discurso messiânico de que veio salvar a nação dos males do comunismo.

Embora estejamos falando de debates acadêmicos e jornalísticos, devemos observar que, a exemplo de outros países, como a Argentina, o conhecimento histórico demorou a se ocupar da trajetória recente do país, que durante alguns anos ficou sob os cuidados da antropologia, sociologia, ciência política, linguística etc.

Contudo, em 1999, foi publicado o Manifiesto de historiadores (Grez e Salazar, 1999). Trata-se da resposta de reconhecidos historiadores à Carta a los chilenos, redigida pelo ex-ditador enquanto se encontrava detido em Londres. O documento suscitou um intenso debate no Chile, inclusive com a participação do historiador oficial da ditadura, Gonzalo Vial Correa. Foi a primeira vez que profissionais do ofício da História se integraram de maneira intensa aos debates sobre o passado recente do país.

O dossiê que organizamos para este número da História Unisinos conta com oito contribuições, advindas de diferentes lugares institucionais, e que trazem distintas perspectivas de abordagem da temática proposta pela editoria da revista.

O conjunto dos textos que compreendem este volume não está marcado, auspiciosamente, pela unidade de perspectiva, seja ela teórica, metodológica ou historiográfica. Os autores que submeteram seus manuscritos à revista, notadamente os que foram acolhidos pela presente publicação, repercutem, na variedade de posições aqui representada, a diversidade que a historiografia dedicada aos temas da ditadura na América Latina expressa.

Neste sentido, chama a atenção, por exemplo, a presença da temática do anticomunismo nos dois primeiros artigos que abrem o dossiê. O primeiro deles, de Ernesto Bohoslavsky, destaca os vários âmbitos aos quais pode ser associado o anticomunismo, ao mesmo tempo em que refuta o uso do rótulo “direita” sem a pluralização do substantivo. Para o autor, “[…] el anticomunismo debe ser entendido como una fuerza política central del siglo XX en Chile”. E afirma ainda: “Pero junto con reconocer su peso en la política de Chile entre 1919 y 1989, también hay que hacer notar su grande heterogeneidad y su notable dinamismo a lo largo del tiempo”. Já o texto de Ricardo Souza Mendes, em uma perspectiva temporal de mais curta duração, procura reconhecer no livro de Augusto Pinochet Ensayo sobre un estúdio preliminar de una geopolítica en el año de 1965 a presença de considerações políticas formuladas pelo militar e que, ao mesmo tempo, dizem da compreensão que o general tinha da própria sociedade chilena na década de 1960.

Na sequência, o texto de Claudio Llanos expõe algumas das concepções e ações políticas de grupos populares durante o governo de Salvador Allende. Abarcando o período entre 1970 e 1972, o autor chama a atenção para processos de radicalização dos referidos setores que mostraram uma dinâmica independente da estratégia de organização levada a efeito pelo governo da Unidade Popular.

Já o artigo de Ivan Lima Gomes centra sua análise na dimensão cultural do governo da Unidade Popular, por meio da análise da curta atuação da Editora Quimantú e, especificamente, da revista Cabrochico nos anos de 1971 e 1972. Na construção do “novo homem” que o projeto socialista chileno demandava, a luta no campo do imaginário social se fazia perceber, também, na produção de histórias em quadrinhos conformadas ao novo contexto ideológico que se fazia hegemônico, não obstante as diferentes forças que integravam o “caldeirão político” vinculado ao governo.

O texto de Camilo Negri, por sua vez, analisa as dificuldades de implementação da “via chilena ao socialismo”, por meio do exame do impacto de três propostas econômicas: nacionalização do cobre, reforma agrária e socialização de propriedades privadas. Para este intento, o autor se vale de entrevistas realizadas com sete ex-ministros do governo de Salvador Allende, recentemente feitas, bem como do Programa de Governo da Unidade Popular.

Centrando-se nos acontecimentos que antecederam o golpe militar de setembro de 1973, Carlos Federico Dominguez Avila estabelece um diálogo com a historiografia que tem se dedicado à questão, fazendo uso, ao mesmo tempo, de documentação do Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores, sediado em Brasília. A partir da leitura das referidas fontes, é possível ter acesso à recepção da crise político-social chilena por meio da avaliação produzida pela embaixada brasileira em Santiago, a qual era, na ocasião (Governo de Emílio Médici), comandada por Antônio Câmara Canto.

Para concluir o dossiê, integram o presente volume dois artigos cuja fonte principal de pesquisa são relatos de memória de personagens estrangeiros que viveram em algum momento de suas trajetórias no Chile. O texto de Claudia Wasserman reconstitui o percurso de quatro intelectuais – um alemão e três brasileiros – que estiveram no Chile e que “tiveram experiência acadêmica, de pesquisa e militância política no país governado pela Unidade Popular”. A autora faz uso de relatos autobiográficos (entre os quais, memoriais acadêmicos), currículos e produção intelectual de André Gunder Frank, Vânia Bambirra, Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos, a fim de recompor a experiência chilena dos referidos intelectuais na conjuntura anterior à ascensão de Allende ao poder e durante o seu governo. Para Wasserman, “Os memoriais e a produção intelectual sobre o Chile permitem entrever quais eram as preocupações dos brasileiros no exílio chileno entre 1970 e 1973 e como eles combinaram a sua militância política e o labor acadêmico, quais eram as suas atividades e até mesmo seus temores diante daquela realidade em transição. Mas os memoriais, escritos na década de 1990, depois do retorno ao Brasil, também permitem compreender a situação brasileira do período no qual esses textos foram redigidos.

Finaliza a seção o texto de Carla Simone Rodeghero, o qual traz a extensa entrevista feita pela autora com o músico brasileiro Raul Ellwanger. Neste depoimento, refaz-se a trajetória do referido compositor e cantor, desde Porto Alegre até o exílio no Chile e na Argentina, entre os anos de 1970 e 1977. A produção artística de Ellwanger, na análise de Rodeghero, acaba por repercutir sua vivência pessoal de expatriado. O texto finaliza com o relato tocante da viagem de retorno do músico ao Chile no ano de 2011. Nesta situação, a memória desdobrada no depoimento à autora alimentou-se de novo vigor. Nas palavras da autora: “Voltar fisicamente, rever as ruas e praças por onde caminhou, as casas nas quais morou, as tumbas onde estão enterrados os companheiros que caíram, o Estádio Nacional onde tantos ficaram presos e onde muitos morreram, a Universidade do Chile, os amigos ou familiares daqueles que foram solidários nos momentos mais difíceis, tudo isso pode ser oportunidade para repensar o significado daquela experiência para aquele que volta, para as esquerdas, para o Chile, para o Brasil, para a América Latina”.

No ano de 2003, ocasião em que se comemorava os 30 anos do golpe de estado militar que colocou Augusto Pinochet Ugarte no poder, foram várias as formas pelas quais lembrou-se o desditoso evento que traumatizou a nação chilena.3 Na avaliação feita por Manuel Antonio Garretón, naquela circunstância, “No hay entonces propiamente uma memoria colectiva consensual en torno a lo que somos como país y, por lo tanto, no podemos vernos como parte de uma misma comunidad ético-histórica, de algo a lo que pertenecemos que no sea la pura habitación geográfica” (Garretón, 2003, p. 223). Se existe ou não a necessidade de que se constitua uma “memória coletiva consensual” no país em relação ao longo período ditatorial é uma questão a ser discutida. Certamente, a morte de Pinochet em 2006 trouxe a este debate novos ingredientes, já que o passamento do líder militar “coloco una vez más el pasado de la dictadura en el centro del debate social” (Ruderer, 2010, p. 174).

Em 2013, a efeméride dos 40 anos do Pronunciamiento do 11 de setembro de 1973 renova os motivos para se pensar sobre o passado recente chileno, sobre projetos e ações fracassados ou vitoriosos, desde o ponto de vista de seus personagens e da memória que os mesmos foram capazes de constituir e que ainda estão elaborando. A atualização desta memória no campo midiático, no campo político e no campo historiográfico é motivo suficiente para dirigirmos nosso olhar a este tempo atualizado pela história.

O Chile de Allende e Pinochet: memória e historiografia quer concorrer – no cômputo de seus textos e nos limites desta modesta contribuição – a que se revigore os estudos sobre as experiências democrático-populares e ditatoriais da história recente da América Latina, o seu debate histórico e historiográfico, as suas memórias, desde os mais diversos pontos de vista, a partir das mais variadas fontes de pesquisa. Isto é um começo. Desejamos a todos uma boa leitura.

Notas

1. A Unidade Popular era formada pelos seguintes partidos e grupos: Comunista (PC), Socialista (PS), Radicais (PR), Social-Democratas (PSD), Ação Popular Independente (API) e parte da esquerda católica com o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU).

2. Dentre os trabalhos desses autores destacamos: Valenzuela (1978); Corvalán (2001); Garretón e Moulian (1978, 1983); Corvalán (2006).

3. Ver, a este respeito, o rol de publicações e outros eventos que marcaram o trigésimo aniversário do golpe no texto de Lecco (2004, p. 341-356).

Referências

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ROLLEMBERG, D. 1999. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro, Record, 375 p.

RUDERER, S. 2010. La política del pasado en Chile 1990-2006: un modelo chileno. Universum, 25(2):161-177.

VALENZUELA, A. 1978. El quiebre de la democracia en Chile. Santiago, FLACSO, 322 p.

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VERDUGO, P. 2003. Como os Estados Unidos derrubaram Salvador Allende. Rio de Janeiro, Revan, 146 p.

Samantha Viz Quadrat

Cláudio Pereira Elmir

Organizadores do Dossiê


QUADRAT, Samantha Viz; ELMIR, Cláudio Pereira. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.16, n.1., janeiro / abril, 2012. Acessar publicação original [DR]

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