História e Literatura no Século XIX / História e Cultura / 2014

Foi com muito prazer que recebi o convite para organizar um dossiê para a revista História e Cultura, publicação eletrônica discente do Programa de Pós-Graduação em História da UNESP (Franca). Propus o tema ‘História e Literatura no Século XIX’, levando em conta meus trabalhos de pesquisa sobre o período e o eixo principal de meus escritos desde o Mestrado: as relações entre os discursos sobre a nação, a formação da identidade nacional e as relações entre produção literária e contexto histórico numa perspectiva que sempre prioriza os processos de transferência e de circulação de códigos culturais entre a Europa e o Brasil.

Nestes estudos, protagonizam a elaboração discursiva – tanto da historiografia literária quanto da histórica – os personagens históricos das elites francesas e brasileiras que encetaram um projeto bilateral de construção da jovem nação independente. Ferdinand Denis, Eugène de Monglave, a família Taunay, Plasson, Hercule Florence, Pedro II, Gonçalves de Magalhães, Torres Homem e Araújo Porto Alegre têm lugar de honra na construção de um Brasil que nasce no papel – na Revista Nitheroy (1836), na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839) e na imprensa – mas também no protocolo diplomático dos jovens do Grupo de Paris, na delegação diplomática brasileira que anuncia a boa-nova transatlântica do nascimento de uma nação civilizada nos trópicos, sob a égide da França, sua guia. Nas últimas décadas do século, na tribuna, travam-se duelos verbais afiados entre os baluartes dos valores republicanos e que, simultaneamente, esgrimam suas penas ácidas nos romances-folhetins cariocas e nas charges que vão construindo um Brasil que ri de si mesmo, criticando.

Foi, também, por isso, com o mesmo prazer, que constatei, no recebimento dos artigos, trabalhos de pesquisadores que, atraídos pelo generoso da temática do dossiê, viram suas inquietações teóricas acolhidas nos eixos de discussão propostos. Com prazer igual, pude ler a produção de jovens pesquisadores que concebem, no lavor intelectual, a missão de serem os indivíduos cuja preocupação maior é a de refletir sobre o processo histórico e o fazer estético literário, oferecendo interpretações para eles.

Este dossiê ‘História e Literatura no Século XIX’ alegra-se por ser um êxito, tendo recebido um número importante de textos de pesquisadores que iniciam seu caminho de investigar, desvendar, desvelar, informar, e vêm de áreas de conhecimento e de instituições as mais díspares e de continentes diferentes, América do Sul, América do Norte, Europa.

Este dossiê reconhece o valor dos artigos aqui apresentados, escritos com análise fina e observação criteriosa. Estudiosos que revelam olhar preciso e rigor teórico. Tudo ensina que será cada vez mais profícua a colheita, prometendo, os jovens acadêmicos aqui reunidos, talentos para uma nova geração de pensadores, amantes do século XIX.

Sejam bem-vindos.

Segunda apresentação

Marcado pelo processo de criação dos Estados nacionais na Europa, pela definição de suas fronteiras e pela invenção de suas identidades, o século XIX ficou conhecido como “o século da história”. Conforme observa François Dosse (2010, p. 15-16), o processo de construção de tal expressão encobre duas realidades diferentes e complementares. De um lado, o Oitocentos foi o século da história porque a sociedade da época passou a esperar que a história enunciasse um tempo laicizado e que afirmasse para qual direção se dirigia a humanidade, atribuindo à história a função de um magistério do futuro em missão profética, e deslocando à disciplina histórica uma expectativa que tradicionalmente fora destinada à religião. Por outro lado, o século da história foi o XIX porque nesse período buscou-se uma profissionalização da prática histórica, que por toda a Europa foi dotada de um programa para seu ensino, com regras metodológicas e imbuído de uma preocupação para diferenciá-lo da literatura.

O nascimento da história como disciplina confundia-se com a imensa confiança na marcha progressiva das ciências. De acordo com José Carlos Reis (2003, p. 38), a busca por integrar a história aos padrões de cientificidade não impediu que os historiadorescientistas continuassem a considerar a história como o desenvolvimento progressivo, racional e contínuo do Espírito ou do Estado-nação, do povo, em direção à liberdade. “Para a história científica”, argumenta Reis (2003, p. 39), “a Europa continua sendo o centro e a vanguarda da história universal. Ela é guardiã e executora do ‘sentido histórico científico’, contra o qual não há apelação nem religiosa, nem especulativa”. Dito de outro modo, o olhar científico do século XIX significou a radicalização da confiança no projeto moderno, estruturado pela conquista europeia da história universal e pelo controle do sentido histórico.

Nesse contexto da afirmação do Estado-nação, das nacionalidades, enquanto o advento da razão moderna construiu um discurso teológico e / ou filosófico no qual chamou para si o privilégio de ser detentor da verdade, houve uma progressiva ascensão do discurso histórico sobre o discurso ficcional. Associada ao Estado-nação, a História havia se tornado centralmente uma história política em que a coletividade era substituída pelo relato dos fatos e pela biografia das grandes personalidades. Conforme explica Luiz Costa Lima (1989, p. 113-114), o domínio burguês em processo de expansão havia se associado “à ciência, ao desenvolvimento tecnológico e concedia à humanidade (europeia)” conceber-se enquanto uma espécie superior, cujo caminho se tornava sempre mais largo e promissor: “o fato histórico podia então ser tido como natural, autoevidenciador do domínio da vida pela espécie humana”.

Se a concepção da representação histórica verdadeira, positiva e científica tem sua origem no século XIX, antes dos Oitocentos, contudo, a historiografia era considerada como um assunto próprio da teoria retórica, como um ramo do discurso oratório. Tal qual Lima, Hayden White (1991, p. 24-25) também observa que a separação da historiografia da retórica teria se dado ao longo do século XIX, notadamente com o movimento cientificista, através de um “duplo ataque à retórica, dos poetas românticos, de um lado, e da filosofia positivista, de outro”, o qual teria levado “ao desprezo geral da retórica por toda a alta cultura ocidental”. Nesse movimento, argumenta White, a “literatura” teria suplantado o discurso oratório, da mesma forma que a prática da “escrita” e da “filologia” teriam suplantado a retórica como ciência geral da linguagem. A partir daí, a questão teórica da escrita da história passou pela especificação da relação da história com a “literatura”, o que, no entanto, teria criado um problema insolúvel, dado que a literatura era normalmente pensada como produto misterioso de uma “criatividade poética”.

Entretanto, para White, o fato das obras clássicas da historiografia continuarem a ser valorizadas por suas qualidades “literárias”, mesmo depois de seu conteúdo informativo ter sido considerado ultrapassado e lhe ter sido atribuída a característica de lugares-comuns do momento cultural em que foram escritas, confirma que o conteúdo do discurso historiográfico é indistinguível de sua forma discursiva:

É verdade que, ao falarmos da natureza “literária” de clássicos da historiografia como os escritos por Heródoto, Tácito, Guicciardini, Gibbon, Michelet, Tocqueville, Burckhardt, Mommsen, Huizinga, Febvre ou Tawney, podemos muitas vezes estar pensando em seu status como exemplares de um estilo bem-sucedido de escrita. Mas ao designarmos sua obra como “literária” não a estamos exatamente removendo do domínio da produção de conhecimento, e sim indicando, simplesmente, até que ponto se pode considerar que a própria literatura habita esse domínio, na medida em que ela também nos fornece modelos semelhantes de pensamento interpretativo (WHITE, 1991, p. 25).

Assim, os dois tipos de discurso, o literário e o historiográfico, mais se aproximariam que se distanciariam, pois, como ambos operam a linguagem, seria impossível traçar uma distinção clara entre a forma discursiva e o conteúdo interpretativo. Imprecisa, a diferença entre os discursos literário e histórico dever-se-ia ao fato de que seus referentes básicos são concebidos, respectivamente, mais como eventos “imaginários” que “reais”.

Não é aleatório que, já no século XX, precisamente no final dos anos 1970, um estudo de Lawrence Stone (1979) detectava uma espécie de retorno à retórica da prosa elegante do contar histórias (story-telling) “de Tucídides e Tácito à Gibbon e Macaulay”. Diante de um desgaste da explicação monocausal da mudança histórica amparada em determinismos econômicos, e com o reconhecimento da iniciativa do indivíduo no curso dos acontecimentos, em suas esferas cultural e emocional, de acordo com Stone, cada vez mais os historiadores passavam a trabalhar com seu objeto privilegiando uma perspectiva descritiva, através da qual a narrativa histórica organiza o material de pesquisa em uma sequência cronológica e o apresenta como conteúdo em uma única trama, ao invés – e cada vez menos – de dispô-lo em um arranjo analítico, de perspectiva estrutural, em cujo foco está a circunstância e não o sujeito. A história em questão era: haveria um “retorno da narrativa”, o surgimento de uma “nova velha história”, ligada à literatura que fora rejeitada pelo cientificismo do século XIX?

A partir disso, ao se pensar a história a partir de suas afinidades com a literatura, criou-se um conflito entre os historiadores com os pressupostos de cientificidade que haviam estabelecido a história como disciplina do conhecimento no século XIX, distanciando o historiador do cientista e aproximando-o do literato. Entretanto, se por um lado, as propriedades literárias da escrita da história, principalmente a narrativa, suscitaram questionamentos sobre a subjetividade e o caráter interpretativo do conhecimento histórico, evidenciando a relação complexa entre as fontes e a produção do discurso do historiador com uma incômoda interrogação sobre as garantias de objetividade científica na análise dos fatos do passado, por outro, a concepção da história, sobretudo enquanto narrativa, como um constructo linguístico intertextual, ofereceu elementos para que o historiador refletisse sobre seu ofício e para que buscasse um refinamento do seu trabalho de pesquisa e de escrita da história.

De fato, a julgar pelo imenso volume de contribuições que este dossiê recebeu, a compreensão interdisciplinar entre a história e a literatura deixou há muito de ser um assunto em litígio para se tornar um recurso valioso. É sintomático que, entre os artigos selecionados para o dossiê que se apresenta, há trabalhos nascidos no berço da literatura que se voltam com naturalidade à história e trabalhos provenientes do berço da história cujas reflexões encontram confortável amparo na literatura.

Assim, este dossiê é motivo de grande satisfação não apenas devido à qualidade de cada um dos trabalhos aqui publicados, um mérito indiscutível dos autores, mas também devido ao que ele próprio representa: é um sinal eloquente de uma tamanha afinidade da história e da literatura que torna indistinta a separação disciplinar tradicional dos ramos do saber.

Que este dossiê seja uma inspiradora semente de outras possibilidades.

Referências

DOSSE, François. História e historiadores no século XIX. In: MALERBA, Jurandir (org.). Lições de história: o caminho da ciência no longo século XIX. Rio de Janeiro: Editora FGV; Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. pp. 15-31.

LIMA, Luiz Costa. O Controle do Imaginário: razão e imaginação nos tempos modernos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

REIS, José Carlos. História & Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

STONE, Lawrence. The Revival of Narrative: Reflections on a New Old History. Past & Present, Oxford – UK, v. 4, n. 85, p. 3-24, nov. 1979.

WHITE, H. Teoria literária e escrita da história. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 21-48, 1991.

Ana Beatriz Demarchi Barel – Doutora em Literatura Brasileira – Université Paris III Sorbonne Nouvelle Pesquisadora Pós-Doutorado em História – FCRB (Bolsista FAPERJ).

Sérgio Campos Gonçalves – Doutorando em História – UNESP / Franca.

Organizadores do Dossiê História e Literatura no século XIX.


BAREL, Ana Beatriz Demarchi. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.3, n.1, 2014. Acessar publicação original; GONÇALVES, Sérgio Campos. Segunda Apresentação. Acessar publicação original [DR]

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