Presença dos anos 1980: esperanças, nostalgias e historiografia / Anos 90 / 2017

Organizar o dossiê “Presença dos anos 1980: esperanças, nostalgias e historiografia” representou um desafio ao demandar a articulação da leitura acadêmica e das experiências e vivências de cada um de nós. Período ainda negligenciado pela historiografia, a década tem sido revisitada no âmbito público a partir de questionamentos sobre continuidades e rupturas, sobre sua atualidade e seus legados, em suas manifestações culturais, estéticas, políticas e religiosas. Pensamos o dossiê como uma possibilidade de encontrar respostas historiográficas ao “retorno” dos / aos 1980, como uma vivência utópica ou nostálgica e, ainda, como encontrar outras leituras sobre aqueles anos, leituras estas realizadas majoritariamente a partir do âmbito político.

Susan Sontag, ao avaliar seu livro Contra a interpretação (1966) mais de trinta anos após o lançamento, produzia um diagnóstico sobre aquela década: “Como tudo isso [os anos 1960] parece maravilhoso em retrospectiva. Como se deseja que algo de sua coragem, seu otimismo, seu desdém pelo comércio tivesse sobrevivido. Os dois polos do sentimento distintamente moderno são a nostalgia e a utopia. Talvez a característica mais interessante do que hoje chamamos de anos sessenta seja a parca existência da nostalgia. Nesse sentido, aquele foi de fato um momento utópico.”1

Impressão retrospectiva escrita após o que convencionalmente seria “o tempo de uma geração”, se é possível entender os anos 1960 como momento verdadeiramente utópico, ou, pelo menos, mais utópico que nostálgico, é preciso reconhecer que estas reflexões de Sontag nos anos 1990 são permeadas por certa nostalgia. A partir da ideia de uma oscilação entre nostalgia e utopia é que, enquanto organizadores, nos questionamos: o que nós e nossos colegas teríamos a dizer sobre os anos 1980, anos de experiência vivida e objeto de pesquisa? Teriam sido um tempo perdido?

Uma resposta à pergunta seria o impulso de reviver os anos 1980. Acompanhando a cultura nostálgica própria de nosso tempo, há pouco assistimos ao revival da cultura pop dos anos 1980 no que virou um fenômeno de classe média como as Festas Ploc. E desses fenômenos espontâneos surgiu um movimento da indústria cultural que reviveu bandas e personagens que marcaram aquele tempo. Não por acaso, portanto, Roger e Lobão, ídolos da transgressão para parte da juventude de então, podem ser alçados atualmente à condição de comentaristas políticos imprescindíveis. Na televisão a cabo, há um canal dedicado a novelas “antigas”, muitas delas produções da década de 1980. Ainda no campo da cultura de massa, internacionalmente, o sucesso de uma série como Stranger Things evidencia que os anos 1980 estão por toda parte, assim como a atenção e atualização de outros tempos que caracterizariam nosso presente como um tempo de expectativas decrescentes ou como momento pós-utópico.

Voltando à pergunta sugerida pela afirmação de Susan Sontag, os anos 1980 teriam sido tempos simultaneamente utópicos e nostálgicos na igual medida? Ou ainda se vivia, no Brasil, plenamente a utopia, dadas as esperanças jogadas no processo de redemocratização que não atingia apenas a política, mas o político entendido, a partir de Rossanvallon, como instância de conformação do social que atravessa diversos momentos e lugares das sociedades modernas? Se admitirmos que parte da narrativa historiográfica ainda preserva a história política como ossatura essencial, pode-se dizer que a história produzida sobre os anos 1980 seguiria a hierarquizar as instâncias e personagens da redemocratização: o fim da ditadura como evento principal e os novos movimentos sociais como seus principais agentes, secundados por novas organizações partidárias que lhe conferiam legitimidade num cenário ainda marcado pelo autoritarismo estatal.

É certo, porém, que já há 10 anos, a tímida, mas importante produção sobre o período torna visível a diversidade daquela década, tornando possível identificar naquela circunstância histórica muitas das pautas políticas contemporâneas: a luta das mulheres por seus direitos e outras questões de gênero, debates sobre a sexualidade, enfrentamento de preconceitos de cunho étnico-raciais e pela população LGBT etc. Nesse sentido, é possível reconhecer a marca utópica que funda a história e a historiografia moderna? Se pensarmos a redemocratização reconstruída pela historiografia atualmente, é possível identificar nesse esforço o compromisso essencial da historiografia com o futuro.

Mas a história hoje não participa também da nostalgia? A reconstrução dos anos 1980 pelos historiadores também não obedece ao impulso nostálgico que toma as relações mais gerais com o passado? Se assim for, é necessário distinguir dois tipos de nostalgia. Um, de caráter restaurador, leva a uma reconstrução pouco crítica de passados idealizados para cumprir fins identitários no presente; outro, que se conceitua como nostalgia reflexiva se caracteriza como um impulso melancólico, toma o gosto pelo passado como ponto de partida para pensar ainda futuros possíveis e abertos2. A historiografia teria, então, aqui um ponto de contato positivo com a cultura nostálgica contemporânea.

Algumas perguntas que nos moveram ao propor essa reflexão receberam respostas provisórias ao longo dos artigos que compõem o dossiê; outras permanecem como interrogantes para seguir retornando ao período e buscando alguma inteligibilidade para o presente: quais as possíveis relações entre a crise sociopolítica iniciada em 2013 e as especificidades de nossa transição da ditadura civil-militar para a democracia? O que permanece do legado autoritário, bem como das lutas e conquistas democráticas experimentadas desde o fim dos 1970? Estamos vivendo o fim da “Nova República”? Quais eram as esperanças e fantasmas desse passado-presente (“anos 1980”)? Quais os legados, as esperanças perdidas, os afetos atuais e inatuais daquele tempo? O que passou e o que não passou dos anos 1980? E, finalmente, como a historiografia responde ao movimento de “retorno” aos anos 1980 que atravessa nossa cultura?

Em 1986, a banda Legião Urbana lançava o álbum Dois. Aquela juventude que nascera sob uma ditadura civil-militar e sob o regime de terrorismo de Estado questionava-se sobre seu tempo e afirmava que não havia sido tempo perdido. As diferentes percepções em relação à década daqueles que a viveram e por outros que gostariam de tê-la vivido permitem que a pergunta seja apresentada e recolocada à produção historiográfica: o que há para ser escrito sobre a história dos anos 1980?

O dossiê é aberto com o artigo “Qual a importância de uma época? Anacronismo e história”, em que o autor, André Fabiano Voigt, teoriza, a partir de Kant, Hegel e Marx, quais as relações que o ser humano estabelece com o tempo e quem possui autoridade para determinar que indivíduos têm uma visão ou compreensão melhor da situação que outros. O artigo nos sugere, então, pensar a qualidade dos anos 1980 como uma época.

“Será que nada vai acontecer? Tempo e melancolia na poética da Legião Urbana”, de Henrique Pinheiro Costa Gaio, além de apresentar uma discussão sobre o rock nacional da década de 1980, analisa a emergência de certa sensibilidade sobre o tempo a partir da poética da Legião, que apresenta uma estética melancólica e afetos localizados entre a esperança e a frustração. Pode-se pensar, a partir dessa leitura, até que ponto a tensão entre expectativa e desilusão não foi uma percepção generalizada sobre a época.

Seguindo o dossiê, temos o artigo “O filme documentário Mauvaise Conduite: memória e direitos humanos em Cuba”, de Isabel Ibarra Cabrera e Rickley Leandro Marques, que apresenta reflexões sobre a relação história e cinema e o uso desse artefato cultural como fonte para o estudo do passado, analisando um filme de caráter documental sobre a violação de direitos humanos durante o período.

O artigo de Alvaro de Oliveira Senra, “CNBB, democracia e participação popular na década de 1980”, apresenta as concepções de democracia e participação popular elaboradas pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e demonstra que estas ideias guardavam relação com o pensamento social católico e serviram de base para ação de diversos movimentos sociais. Uma importante contribuição para se pensar quais sentidos de democracia foram derrotados pelas perspectivas liberais que se hegemonizaram no debate político.

Um dos temas negligenciados pela historiografia do período, a Assembleia Nacional Constituinte e a Constituição de 1988 – que completa 30 anos em 2018 –, a despeito da existência e disponibilidade de fontes para a pesquisa, é o tema do artigo de Mayara Paiva Souza e Noé Freire Sandes, intitulado “Entre silêncios e ruídos: a Anistia na Assembleia Constituinte de 1987 / 88”. Os autores analisam os debates sobre a ampliação da anistia durante a Constituinte e os setores que consideravam a discussão perniciosa para a construção da democracia.

Por fim, o dossiê se encerra com a contribuição de Francisco Gouvea de Sousa, “Escritas da história nos anos 1980: um ensaio sobre o horizonte histórico da (re)democratização”, em que o autor, a partir de algumas leituras realizadas em cursos de formação de professores, procura reconstruir o período de transição em diálogo com a história da historiografia e da construção da democracia com a institucionalização da pesquisa histórica no Brasil.

Os artigos reunidos neste dossiê apresentam uma dimensão da miríade de possibilidades de um retorno historiográfico àqueles anos. Desejamos uma boa leitura.

Notas

1. SONTAG, Susan. Against Interpretation and Other Essays. New York: Picador, 2001. p. 311.

2. Sobre essa diferença ver o livro e artigo de Svetlana Boym: BOYM, Svetlana. The future of nostalgia. New York: Basic, 2001 e BOYM, Svetlana. Mal-estar na nostalgia. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 23, p. 153-165, abr. 2017.

Caroline Silveira Bauer – Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail: [email protected]

Marcelo Santos de Abreu – Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP. E-mail: [email protected]

Mateus Henrique de Faria Pereira – Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP. E-mail: [email protected]


BAUER, Caroline Silveira; ABREU, Marcelo Santos de; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 24, n. 46, dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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