Cinco estudos em história e historiografia da educação – OLIVEIRA (RBHE)

OLIVEIRA, Marcus Aurelio Taborda de (Org.). Cinco estudos em história e historiografia da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. Resenha de: BORNATTO, Suzete de Paula. Revista Brasileira de História da Educação, n. 23, p. 253-259, maio/ago. 2010.

Cinco estudos… é o terceiro título da coleção História da educação, iniciada pela Editora Autêntica em 20061, e organiza-se como um programa de formação em pesquisa, ao condensar discussões pertinentes sobre o estágio atual da pesquisa em história da educação no Brasil e reunir exemplos de abordagem de diferentes temáticas a partir de um repertório diversificado de fontes.

A obra supõe, conforme as palavras do organizador, Marcus Taborda de Oliveira, a necessidade de “unificar em alguma medida a narrativa historiográfica como crítica da cultura”; portanto, propõese a articular diferentes pesquisadores e projetos, “portadores de perspectivas distintas, mas que têm como horizonte comum a crítica permanente dos modos de fazer a história da educação no Brasil e, por corolário, as formas de organização da cultura neste país” (p. 7).

O primeiro artigo, de Carlos Vieira (UFPR), trata das “característica e potencialidades dos jornais diários” como fonte e como tema de pesquisa, destacando a importância do jornal como suporte de sentidos, lugar em que se pode vislumbrar a “experiência citadina”, mas também seu protagonismo como agente social.

Antes de entrar no detalhamento da pesquisa, em torno da presença de temas educacionais nos diários paranaenses Gazeta do Povo e Diário da Tarde na década de 1920, com o intuito de “interpretar os projetos dos intelectuais e da imprensa em relação à educação” (p. 36), o texto problematiza a natureza dessas fontes e sua produtividade para a escrita da história dos intelectuais. Assim, além de apresentar alguns contornos da história da imprensa no Paraná, propõe um modo de ler e entender o jornal, tendo em vista a identificação de estratégias discursivas e a investigação de possíveis efeitos de sentido.

“Para além do registro e do comentário político, os homens de imprensa ocuparam os espaços públicos legitimados pelas suas trajetórias como redatores, analistas e críticos da moderna ágora” (p. 20). Nos anos 1920, o desejo da imprensa empresarial moderna de

[…] permanecer atuante na esfera política levou-a a engajar-se em projetos sociais, com base na produção de slogans e de campanhas […]. É nesse contexto que verificamos a adesão da imprensa à causa educacional, bem como a presença da elite letrada nos quadros do jornalismo na condição de arautos da inserção do País na modernidade com investimento em educação [p. 21].

A segunda metade do texto traz uma grande tabela em que estão classificados, em nove categorias primárias e 43 secundárias, 2.702 registros de temas educacionais, veiculados em 2.555 exemplares de jornal. Essa tabela é desmembrada em outras sete, conforme as grandes categorias localizadas: cenário educacional e educação; profissão docente; experiências e modelos educacionais; modalidades e níveis de ensino; cotidiano escolar; temas da modernidade e da educação. As análises que seguem cada tabela sugerem o extenso trabalho de que são a breve amostra e podem instigar o leitor interessado no tema e/ou no período a um maior contato com essas fontes, ou à exploração de novos recortes e objetos, o que é um grande mérito nesse tipo de texto.

Tanto a tese que permeia o estudo, da afirmação gradativa do intelectual como agente político na cena pública brasileira, como a discussão em torno do “projeto da modernidade” são oferecidas ao leitor a partir de reflexões teóricas que costuram adequadamente os resultados da pesquisa. Pode este se ressentir apenas da falta de referências relativas aos “efeitos de sentido”, à análise discursiva, de que a nota número 10, remetendo à reflexão de Pocock sobre a linguagem política, constitui exceção.

O segundo artigo reúne pesquisadores ligados à UFMG – Luciano Faria Filho, Maria Cristina de Gouvêa e Matheus da Cruz e Zica –, em torno do difícil tema da literatura como fonte para a história – no caso, história da infância, tomada como entrada analítica para a história cultural da sociedade.

O título já anuncia “possibilidades, limites e algumas explorações”. Entretanto, o caráter formador do texto revela-se na forma como os autores (que, às vezes, se singularizam, outras vezes se assumem como coletivo) recapitulam os cuidados necessários para a abordagem da literatura como fonte – desde a questão do maior ou menor compromisso com a realidade e com a verossimilhança, a historicidade própria dos textos literários e das práticas de leitura, até as diversas vertentes teóricas de análise (Chartier, Williams, Prost). Assim, o cruzamento de perspectivas analíticas “indica um adensamento da análise da produção e circulação histórica do escrito, rompendo-se com hierarquias advindas da crítica literária, e sinaliza a importância de uma análise interdisciplinar na interpretação historiográfica do texto literário” (p. 47).

No terceiro tópico do artigo, que discute a pertinência da fonte literária para a construção da história da infância, aconselham os autores a não se tomar “como absolutas as fronteiras que delimitam os espaços da literatura infantil e adulta”. Em seguida, no entanto, são problematizadas questões referentes à literatura “infantil” (que alguns especialistas preferem hoje chamar de literatura “para crianças”), considerada em sua própria historicidade como objeto cultural:

[…] analisar a produção literária destinada à criança permite-nos não apenas ter acesso às representações sobre a criança e aos modelos de comportamento infantil num determinado período e contexto histórico, mas também às representações sobre os modelos de ação social e conhecimento de mundo ali legitimados [p. 49].

O exemplo de abordagem, entretanto, não é da literatura “infantil”, mas enfoca as imagens de infância construídas na obra de Bernardo Guimarães, escritor mineiro do século XIX, qualificado como “um autor atento à história de seu tempo e reflexivo sobre a experiência de sua gente” (p. 54). Defendem os autores que “é na descrição/produção dos sentimentos e ações das crianças que a narrativa cria melhores condições para que adentremos outros territórios das culturas oitocentistas” (p. 55), que não os temas “clássicos” da educação e da ocupação infantil.

A conclusão parece um pouco deslocada, ao sugerir maior investimento na pesquisa de literatura “infantil”, uma vez que esse não é o caso do exemplo apresentado, porém ressalta o que merece atenção nesse gênero de pesquisas: a investigação em torno das “experiências dos sujeitos infantis” (tão difíceis de serem flagradas em seu momento histórico), sujeitos “que insistem em interpelar e interpretar as culturas adultas e dominantes e a fazer disso uma forma de estar-na-história, de fazer a história” (p. 63).

Também na linha da investigação da experiência dos sujeitos está o terceiro estudo, de Marcus Taborda de Oliveira e Sidmar Meurer (UFPR), mas este toma forma a partir de textos de leitura, aparentemente, bem menos aprazível: relatórios da instrução pública paranaense da primeira década do século XX.

A investigação nesses documentos visa perceber as “tensões entre o prescrito e o realizado” nas experiências de professores primários. Combatendo as generalizações de certa historiografia, segundo a qual a legislação impõe “determinado modo de organizar a cultura”, privilegia-se aqui a experiência dos indivíduos ou grupos na “dinâmica de apropriação” dos documentos oficiais:

[…] antes de considerar os relatórios como parte de um esforço conformador isento de dissenso, procuramos localizar nos registros […] tanto a retórica da confirmação daquilo que foi anunciado pelo legislador quanto a crítica explícita ou velada àquele esforço. […] a legislação aparece aos nossos olhos como um esforço de organização racional da realidade social, esforço que pressupõe tanto filigranas ideológicas quanto reação do Estado às demandas oriundas da sociedade, nem sempre coincidentes com o que esperava a autoridade pública [p. 73].

Nesse sentido, os diversos excertos dos relatórios são ricos e emblemáticos das questões discutidas. Em relatório de 1806, por exemplo, a professora Carolina Moreira escreve: “Sinto dizer que, infelizmente, em nossas escolas os preceitos de hygiene estão bem longe de ser observados”. Adiante, avalia:

No meu franco modo de entender, acho que o nosso Regulamento é defeituoso e mesmo pernicioso na parte referente a matricula das escolas publicas primarias, pois é claro que um professor por mais trabalhador e esforçado não poderá, em absoluto, ministrar conhecimentos a 70 e 80 alumnos diariamente, com grande proveito, sem o concurso de um auxiliar;… [p. 83].

Os relatórios, tanto de professores quanto de inspetores, vão oferecendo, assim, uma ideia da rotina, mas também das carências e perplexidades que compuseram o cotidiano desses profissionais, em carreiras de organização incipiente, e dos conflitos entre a operacionalidade (ou a falta de) prevista na legislação e o funcionamento possível das instituições, permitindo reconhecer que “nada é mais equivocado do que supor que aqueles homens e mulheres simplesmente corroboravam o existente, fosse no plano das proclamações oficiais, fosse no plano das preocupações com os limites e as possibilidades de suas ações” (p. 84).

O quarto estudo, de Marta Carvalho (Uniso) e Maria Rita Toledo (Unifesp), trata da “análise material” das coleções de Lourenço Filho (Biblioteca da educação) e Fernando de Azevedo (Atualidades pedagógicas) voltadas à formação de professores. Para as autoras, as investigações sobre impressos de destinação pedagógica e seus usos escolares propiciam sólido suporte “a uma história cultural dos saberes pedagógicos interessada na materialidade dos processos de difusão e imposição desses saberes e na materialidade das práticas que deles se apropriam” (p. 89).

Aparece aqui, novamente, o perfil formador da coletânea: o estudo recupera conceitos de Chartier e Certeau imprescindíveis ao pesquisador iniciante – orienta quanto à necessidade de atenção à materialidade do impresso, às estratégias que conduziram sua produção e às táticas de apropriação que podem subverter os usos previstos.

O impresso destinado aos professores é tomado como produto de estratégias pedagógicas e editoriais de difusão dos saberes pedagógicos e de normatização das práticas escolares – as coleções de livros “organizam e constituem o corpus dos saberes representados como necessários à prática docente, constituindo, concomitantemente, uma cultura pedagógica” (p. 92). Referência importante para a análise é a Histoire de l’edition française, de Isabelle Olivero, que caracteriza as coleções como “uma nova classe de impresso cuja função essencial é a de conquistar e atender um público maior de leitores” (idem). No Brasil, o desenvolvimento do mercado editorial nas décadas de 1920 e 1930 favorece o investimento na “invenção” de um leitor-professor ou professor-leitor.

A identidade das coleções será produzida a partir da padronização de formato, estrutura, estratégias de seleção de textos e autores, e de divulgação. Contudo, é seu “aparelho crítico” (prefácios, notas, comentários de especialistas) que vai propor uma orientação, um “modo de usar” ao leitor e, ao mesmo tempo, permitir ao historiador, nas palavras de Carvalho e Toledo (2001), “entrever o leitor destinatário, desenhado pelo editor” (p. 93).

Apesar das semelhanças, as duas coleções analisadas diferenciam- se, e sua organização revela concepções diversas quanto à formação de professores. Assim, é identificado na coleção de Lourenço Filho um perfil mais prescritivo, com maior presença de prefácios e notas de tradução, em torno de um “conjunto fechado e ideal de saberes”, ao passo que a coleção de Fernando de Azevedo remeteria à ideia de pluralidade de perspectivas e saberes e à sua “eterna renovação” (p. 106).

O trecho que encerra o artigo ressalta o fato de que essas coleções são “partícipes” do processo de estruturação da rede escolar do país, assim como dos debates sobre a formação de professores e sobre o significado da educação para a modernização brasileira, o que sintetiza, de algum modo, a importância deste e de novos estudos voltados a esse objeto.

Finalmente, em “Desafios da arquitetura escolar: construção de uma temática em história da educação”, Marcus Lévy Bencostta (UFPR) procura costurar algumas reflexões sobre as “possibilidades interpretativas da linguagem arquitetural nos estudos em história da educação”, com o intuito explícito de fomentar o interesse de pesquisadores brasileiros pela arquitetura escolar. Bencostta refaz o itinerário de seu interesse pelo tema, aponta autores que educaram seu olhar para a linguagem da arquitetura e do espaço escolar, e destaca a importância metodológica do exame da própria concepção de espaço escolar bem como da percepção das relações deste com os projetos políticos, educacionais e urbanísticos.

Sugerindo fontes que vão desde contratos de construção, textos de cronistas e jornalistas sobre as transformações da cidade, tratados de arquitetura, até biografias e projetos de arquitetos, o autor defende a utilidade da diversificação de leituras, dos estudos comparados e da aproximação com diferentes áreas, como a geografia e a semiótica, para a compreensão dos sucessos e insucessos da “gramática arquitetônica” em meio à dinâmica urbana.

Dada a existência de estudos, tanto na área de arquitetura como na de história[1], sobre as construções escolares, talvez não seja ocioso ressaltar, nas proposições, o que distingue a investigação do historiador da educação – a intenção de entender a escola: “para se entender a escola e suas transfigurações, é significativo também compreender como as linguagens arquiteturais penetram nesse espaço permeado pelos discursos ramificados na sociedade e na história” (p. 122).

O livro cumpre, assim, seu projeto de articular perspectivas que, explorando diferentes objetos culturais, indicam e orientam possibilidades para a escrita da história da educação no Brasil. Apenas os muitos descuidos de revisão textual por parte da editora não condizem com a qualidade dos textos, nem com o bonito acabamento da edição.

Notas

[1] Os outros títulos são História da educação – Ensino e pesquisa, Cultura escolar –

Prática e produção dos grupos escolares em Minas, de 2006, Para a compreensão histórica da infância, de 2007, Escolas em reforma, saberes em trânsito – A trajetória de Maria Guilhermina Loureiro de Andrade (1869-1913) e Livro didático e saber escolar – (1810-1910), de 2008.

Suzete de Paula Bornatto. E-mail: [email protected]

[1] Exemplo recente é “Grupos escolares de Curitiba na primeira metade do século XX”, livro e CD de autoria de Elizabeth Amorim Castro (2009), arquiteta e doutoranda em história pela UFPR.

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