Le plancher de Joachim – BOUDON (RH-USP)

BOUDON, Jacques-Olivier. Le plancher de Joachim: l’histoire retrouvée d’un village français. Paris: Belin, 2017. Resenha de: SANTOS, Jair. A micro-história debaixo do tapete. Revista de História (São Paulo) n.178 São Paulo  2019.

“Feliz mortal, quando você me ler, eu não existirei mais”. Essa é a frase, com ares de epitáfio, que abre o novo livro de Jacques-Olivier Boudon, professor na Sorbonne e importante estudioso da história político-religiosa francesa no século XIX. A obra intitulada Le plancher de Joachim, publicada na França em 2017, é um estudo notável e digno da atenção dos historiadores brasileiros, mais pela metodologia que adota e pelas fontes inusitadas que utiliza do que pelo seu clássico objeto de estudo (a história de um vilarejo francês). O livro de Boudon, contrariando a atual tendência historiográfica das análises globais, transnacionais e conectadas, tira debaixo do tapete da historiografia o velho método analítico da micro-história e mostra que ele não perdeu a utilidade nem a capacidade de abrir novos caminhos de investigação. Aliás, não era apenas o método que se encontrava esquecido: também as fontes do autor, conquanto estas no sentido denotativo. A documentação de indiscutível originalidade com que trabalha Boudon compõe-se de frases escritas a lápis em pequenos fragmentos de madeira escondidos debaixo do assoalho do castelo de Picomtal, situado no vilarejo de Crots, no sudeste da França. A identificação da autoria foi assegurada pelo próprio redator, que cuidou de se revelar à posteridade assinando e datando seus textos gravados no madeiro: trata-se do carpinteiro do vilarejo, chamado Joachim Martin, que nos anos de 1880 e 1881 realizou reparos no assoalho do castelo. As pranchas que serviram de diário ao antigo obreiro da carpintaria foram descobertas pelos proprietários do palacete durante uma reforma executada entre os anos 1999 e 2000. Por obra do acaso, Jacques-Olivier Boudon, ao longo de uma viagem de preparação de um livro sobre o retorno de Napoleão Bonaparte a Paris depois do exílio na Ilha de Elba (1815), pernoitou no castelo de Picomtal, atualmente transformado em hospedaria, e tomou conhecimento da inopinada descoberta. Mal se concluiu um livro, outro já estava a caminho.

O acervo encontrado constitui-se de 72 textos, totalizando cerca de 4.000 palavras. Não obstante a classificação cronológica dos fragmentos seja impossível, a indicação do ano pelo próprio autor mostra que os textos foram redigidos nas ocasiões em que Joachim Martin estivera trabalhando no castelo durante os verões de 1880 e 1881. Diversos são os temas tratados pelo carpinteiro: ele fala do vilarejo, de seus habitantes e representantes políticos; do padre Joseph Lagier (pároco da igreja local) cujo comportamento lascivo, agravado pela acusação de exercício ilegal da medicina, era duramente reprovado por parte da população; dos fatos da atualidade, como um episódio de infanticídio que o perturbou profundamente; da sexualidade de alguns moradores e até mesmo das investidas indecorosas feitas pelo espevitado vigário às piedosas senhoras na penumbra do confessionário. Em suma, Joachim Martin esboça um quadro detalhado do seu pequeno universo, geográfico e mental, no intuito de legar à posteridade (pressupondo que seus escritos viriam a ser descobertos no futuro, quiçá por outro carpinteiro) uma marca indelével da sua existência.

Foi a partir desse material, cujo caráter sucinto e fragmentário deixava inevitavelmente muitas questões no ar, que Boudon assumiu o desafio de elaborar um interessante exercício de micro-história, a fim de estudar uma pequena sociedade rural dos Alpes no despontar do regime republicano francês. As lentes através das quais o autor contemplou o seu fato histórico figuram entre as mais raras e relevantes para quem lida com a história social: textos escritos diretamente por um homem do povo com plena consciência do transcorrer do tempo, a despeito da origem humilde e da parca instrução, e que almejava inscrever o seu nome na história, mesmo que nenhum ato heroico ou excepcional lhe pudesse ser imputado, de modo a perenizar a própria memória. Essa consciência histórica do carpinteiro acrescenta ao estudo um elemento de ponderação muito pertinente para a história social: como os indivíduos de outras épocas lidavam com o passar do tempo? O senso comum tende a induzir-nos à conclusão de que pessoas iletradas vivem apenas o hoje, sem nenhuma preocupação com o futuro e menos ainda com a memória que deixarão depois de suas mortes. O caso de Joachim Martin é um exemplo expressivo que desmente essa ideia e mostra que a reflexão sobre o tempo e a história também pode fazer parte das inquietudes de um simples carpinteiro, como destaca Boudon:

À certains égards, Joachim Martin est un être exceptionnel par le rapport qu’il entretient au temps. Il est à mille lieues de ces gens simples décrits comme uniquement préoccupés du lendemain, vivant au jour le jour, incapables même de se souvenir de leur date de naissance. Au contraire, Joachim a l’obsession de dater les événements de sa vie. (BOUDON, 2017, p. 145)

A proposta de Boudon de analisar a história de um vilarejo por meio de um homem comum segue, em certa medida, a trilha aberta pelo trabalho de Alain Corbin (1998), o célebre historiador das sensibilidades, no qual se conta a história de Louis-François Pinagot, um artesão desconhecido que vivia nos rincões da Normandia, cujo nome foi escolhido aleatoriamente pelo autor nos inventários dos arquivos da municipalidade para ter a sua história investigada e a sua biografia reconstituída. Apesar disso, a diferença entre os estudos de Boudon e Corbin é bastante significativa: enquanto o segundo estuda um indivíduo praticamente invisível e esquecido pelo tempo, sobre o qual não havia nenhuma informação direta, o primeiro se baseia num acervo documental razoável produzido pelo próprio personagem que examina. Também é evidente a influência dos trabalhos clássicos de Carlo Ginzburg (2006) e Giovanni Levi (2000), pioneiros na aplicação do método da micro-história. Ademais, o livro dialoga de bom grado com a corrente da “história vista de baixo” (SHARPE, 1992), ao colocar em perspectiva um processo histórico, isto é, as transformações sociais de um vilarejo francês no fim do século XIX a partir da visão de um indivíduo de nível social inferior e sem participação direta nas mudanças em curso. No que diz respeito ao processo histórico propriamente dito, segundo Boudon, o testemunho de Joachim Martin ilustra a dinâmica descrita pelo historiador Eugen Weber num estudo acerca das mutações da França rural que acompanharam a chegada da República, marcadas pelo objetivo de integrar toda a população do país no corpo mais ou menos homogêneo da nação, sobretudo por intermédio da escola laica e do serviço militar obrigatório (WEBER, 1983).

Obviamente, o acervo textual de Joachim Martin não bastava para a escrita de um livro. Como toda fonte histórica, esta também deveria ser submetida à análise crítica mediante confrontação com outros documentos que permitissem preencher as lacunas factuais, bem como detectar eventuais erros, exageros ou imprecisões. Para tanto, Boudon colocou em prática o savoir faire do historiador e prospectou os arquivos nacionais, regionais e diocesanos, assim como algumas fontes impressas entre o fim do século XIX e o início do século XX que tratavam do vilarejo de Crots. Ao término da pesquisa, o autor concluiu que muitas das afirmações de Joachim eram, de fato, corroboradas por outras fontes. Cruzando as diferentes informações coletadas, foi possível escrever uma breve história daquele vilarejo a partir de alguns núcleos temáticos sugeridos pelo carpinteiro nas mensagens gravadas nas pranchas: biografia de Joachim Martin (capítulo I); descrição de Crots e da sua população (capítulo II); história dos proprietários do castelo de Picomtal (capítulo III); considerações sobre a agricultura no vilarejo (capítulo IV); contexto político local (capítulo V); moral sexual da época (capítulo VI); percepção do tempo e relação com o passado (capítulo VII); declínio da prática religiosa (capítulo VIII); e transformações no campo e êxodo rural (capítulo IX).

Impressiona nos textos de Joachim a franqueza com que ele se exprime sobre os diferentes assuntos, movido talvez pela convicção de que não seria lido (pelo menos não em vida), e a razoável habilidade com que o faz, dado curioso cuja explicação Boudon associa à fé protestante da mãe do carpinteiro que provavelmente conservava o hábito difuso no protestantismo de ler cotidianamente a Bíblia em casa. Esta é a hipótese levantada pelo autor para explicar o apego de Joachim à escrita:

La mère de Joachim était protestante. Certes, elle a accepté qu’il soit baptisé et élevé dans la religion catholique, mais on ne peut pas imaginer que son protestantisme n’ait pas eu une influence sur son éducation. En effet, les protestants sont particulièrement attachés à l’apprentissage de la lecture et de l’écriture qui permet de rentrer en contact avec les textes bibliques. Dans les temples réformés, les murs affichent pour l’essentiel des versets de la Bible. Il est peu probable que Joachim soit jamais entré dans un temple, mais il est fort possible que sa mère lui en ait parlé (BOUDIN, 2017, p. 152).

Embora sua linguagem seja simples, direta e às vezes confusa, o mero fato de utilizar a escrita como meio de reflexão, numa época em que ler e escrever ainda eram habilidades raras no campo, revela a peculiaridade do personagem e ressalta a excepcionalidade da fonte. Num trabalho de micro-história, é fundamental que o historiador encontre a individualidade do sujeito que estuda, ou seja, que saiba determinar com clareza aquilo que faz o seu relato e a sua existência dignos de interesse. O parâmetro para julgá-lo está ligado aos traços e indícios que, a partir de um ponto de vista singular, podem ser colhidos a fim de melhor decifrar a trama complexa, plural e opaca da história social, cujo intenso dinamismo dificulta uma compreensão sistemática imediata. Essa é a ideia por trás do célebre “paradigma indiciário” de Carlo Ginzburg, entendido como um princípio metodológico fundamental para evitar as distorções de estudos excessivamente generalizantes sobre determinados fenômenos sociais (GINZBURG, 1999). O estudioso que falhe nessa consideração preliminar correrá inevitavelmente o risco da banalidade e seu estudo poderá se tornar uma compilação de obviedades ou de frivolidades históricas que pouco acrescentam à compreensão de contextos ou processos históricos mais amplos. Se, por um lado, o livro de Boudon não cai nessa armadilha, por outro, são recorrentes ao longo do texto as afirmações de caráter puramente hipotético que não podem ser atestadas em virtude do silêncio das fontes ou simplesmente de sua insuficiência material, como aquela à qual se acenou acima relativa ao vínculo de causalidade entre uma certa cultura literária de Joachim e o protestantismo professado por sua mãe, que sequer é mencionada nos escritos do carpinteiro.

Apesar de se apoiar em alguns momentos em ideias meramente especulativas e sem base empírica, o livro de Boudon é um exemplo estimulante do grande potencial criativo da micro-história, reforçado pela impecável habilidade narrativa do autor. Como visto, também impressiona o caráter fortuito e extraordinário das fontes. Se, normalmente, uma pesquisa histórica começa com a importante escolha dos arquivos por parte do estudioso, nesta obra a situação foi bastante diversa: foram as fontes que escolheram o seu historiador, ansiosas por trazer à tona a história de Joachim, escondida sob o assoalho de um castelo por mais de um século. É relevante mencionar ainda que a excepcionalidade da história atraiu a atenção do grande público para o livro, ao qual o canal televisivo France 2 dedicou uma acurada reportagem de 47 minutos, no dia 3 de fevereiro de 2019. Baseando-se na visão de mundo de um “protagonista anônimo da história” (VAINFAS, 2002), revelada por uma fonte atípica de conteúdo substancial, e explorando uma temática cara às análises micro-históricas, a obra de Boudon consegue traçar com riqueza de minúcias uma história do vilarejo de Crots num período pleno de mudanças sociais e políticas que afetavam significativamente a sociedade rural na França.

1Tradução livre: “Sob certos aspectos, Joachim Martin é um ser excepcional pela relação que mantém com o tempo. Ele está a mil léguas dessas pessoas simples descritas como preocupadas unicamente com o dia seguinte, vivendo no dia a dia, incapazes até mesmo de se lembrar de suas datas de nascimento. Ao contrário, Joachim tem uma obsessão por datar os acontecimentos de sua vida”.

Editores responsáveis pela publicação:

Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos.

Referências

BOUDON, Jacques-Olivier . Le plancher de Joachim: l’histoire retrouveé d’un village français. Paris: Belin, 2017. [ Links ]

BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1992. [ Links ]

CORBIN, Alain. Le monde retrouvé de Louis-François Pinagot: sur les traces d’un inconnu (1798-1876). Paris: Aubier, 1998. [ Links ]

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006. [ Links ]

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. [ Links ]

LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. [ Links ]

REVEL, Jacques (org.). Jeux d’échelles: la micro-analyse à l’expérience. Paris: Gallimard, 1996. [ Links ]

VAINFAS, Ronaldo. Micro-história: os protagonistas anônimos da História. Rio de Janeiro: Campos, 2002. [ Links ]

WEBER, Eugen. La fin des terroirs: la modernisation de la France rurale, 1870-1914. Paris: Fayard, 1983. [ Links ]

Jair Santos – Ex-aluno da École Normale Supérieure de Paris, mestre em Teoria do Direito pela Universidade Paris Nanterre, mestre em História pela Universidade Paris-Sorbonne. É doutorando em História na Scuola Normale Superiore di Pisa. Contato: [email protected]