Quem assume esta tarefa? Um documentário de uma igreja em busca de sua identidade | Germano Burger

O MANIFESTO DE CURITIBA DA IGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL[1]

A IGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL, REUNIDA EM SEU VII CONCÍLIO GERAL EM CURITIBA NOS DIAS 22 A 25 DE OUTUBRO DO CORRENTE ANO, OBEDIENTE À MISSÃO QUE LHE É INERENTE COMO IGREJA DE CRISTO, RESOLVE MANIFESTAR O SEGUINTE:

  1. TESES SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE A IGREJA E O ESTADO

1.1 – A mensagem da Igreja cristã visa à salvação do homem, salvação que transcende as possibilidades humanas, inclusive as políticas. É mensagem de Deus – não deste mundo. Mas ela é destinada a este mundo e quer testemunhar Jesus Cristo como Senhor e Salvador do mundo. Por isso a Igreja não pode viver uma existência sectária, guardando para si mesma a mensagem que lhe foi confiada. Ela tem o ministério de testemunhar a palavra de Deus, ministério do qual ela não se pode esquivar, a não ser pelo preço da desobediência para com seu Senhor.

A mensagem da Igreja sempre é dirigida ao homem como um todo, não só à sua “alma”. Por isso, ela terá conseqüências e implicações em toda a esfera de sua vivência – inclusive física, cultural, social, econômica e política. Não tenderá apenas a regular as relações entre os cristãos, mas visará igualmente ao diálogo com outros cidadãos ou agrupamentos, sobre todas as questões relacionadas com o bem-comum.

1.2 – A mensagem “pública” da Igreja cristã, no que se refere aos problemas do mundo, não poderá ser divorciada do seu testemunho “interno”, já que este implica naquela. Assim a Igreja não pode condicionar seu testemunho público aos interesses de ideologias políticas momentaneamente em evidência, ou a grupos e facções que aspiram ou mantêm o poder. Em seu testemunho público, não poderá ela usar métodos incompatíveis com o Evangelho.

1.3 – Em princípio, Estado e Igreja são grandezas separadas, como o define também a Constituição do nosso País. Mas em virtude das conseqüências da pregação cristã que se manifestam na esfera secular, e pelo próprio fato de os cristãos serem discípulos de Cristo e simultaneamente cidadãos de seu país, não será possível separar totalmente os campos de responsabilidade do Estado daqueles da Igreja, embora seja necessário distinguí-los. Na esfera onde os respectivos campos se fundem, a Igreja, por sua vez necessitando da crítica do mundo, desempenhará uma função crítica – não de fiscal mas antes de vigia (Ezequiel 33,7) e de consciência da Nação. Ele alertará e lembrará as autoridades de sua responsabilidade em situações definidas, sem espírito faccioso, e sempre com a intenção de encontrar uma solução justa e objetiva.

1.4 – A Igreja busca o diálogo franco e objetivo com o Estado em atmosfera de abertura, de liberdade e de autêntica parceria – diálogo que tem por finalidade encontrar soluções para os problemas que afligem a sociedade. Como parceria co-responsável do governo secular, ela obedece ao preceito do Senhor que diz: “Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Marcos 12,17). Baseada nesta premissa fundamental, ela se sente chamada a cooperar com as autoridades governamentais em uma vasta gama de tarefas, como, por exemplo, na educação das novas gerações, na alfabetização de adultos, no apoio a ações sociais do governo, no combate a doenças, à pobreza, à marginalização do homem, e em outras atividades que não sejam de caráter puramente técnico. Esta cooperação implica no constante esforço destinado a eliminar as causas que eventualmente provoquem os males em questão.

1.5 – Em conseqüência da pregação pública da Igreja poderão surgir tensões com autoridades governamentais, seja por equívocos humanos, seja por razões de caráter fundamental. A Igreja, em tais casos, não procurará contestar o poder do Estado, como se ela fosse um partido político, mas proclamará o poder de Cristo. Onde ela sentir-se compelida a contrariar medidas governamentais, antes de tomar qualquer atitude pública, procurará dialogar com as autoridades respectivas. Em todos os casos agirá sem intuitos demagógicos – deixando claro que ela se sabe chamada a advogar em prol de todos os homens que sofrem.

  1. ASSUNTOS QUE PREOCUPAM A IGREJA

2.1 – O caráter do culto cristão

A Igreja entende que o culto, sendo o evento central da vida do cristão, através do qual se nutre sua vida espiritual, deverá ter resguardado o seu caráter de serviço de Deus, de adoração, de comunhão cristã e de diálogo com Deus. Jesus Cristo é o único Senhor do culto cristão.

O culto terá conseqüências políticas, por despertar responsabilidade política, mas não deverá ser usado como meio para favorecer correntes políticas determinadas. Pátria e governo serão objetos de intercessão da comunidade reunida para que, possam promover justiça e paz entre os homens, e os fiéis darão graças ao seu Senhor por estas preciosas dádivas. A pátria será honrada e amada; seus símbolos serão respeitados e usados com orgulho cívico, no sentido mais legítimo, mas o cristão não poderá falar da pátria em categorias divinizadoras.

O diálogo entre Igreja e Estado poderá resultar numa responsabilização conjunta pela programação dos dias festivos nacionais que rendem homenagem à pátria.

2.2 – Ensino cristão e educação moral e cívica

Embora numa sociedade pluralista e multiconfessional, como a brasileira, o Estado, compreensivelmente, esteja interessado em evitar uma orientação sectária no campo educacional, julgamos ser indispensável que nas escolas seja mantido, inequivocamente, o ensino cristão. Consideramos ser a educação moral e cívica uma matéria necessária para a formação do cidadão, porém não a julgamos uma matéria que possa ou deva suplantar o ensino cristão. O ensino moral e cívico, com bases ideológicas declaradas, para muitos cristãos deixou imprecisos os limites entre a esfera da Igreja e a do Estado. Entendemos que qualquer atitude moral e cívica autêntica tenha as suas raízes em uma confissão autêntica. Um ensino “teista mas aconfessional”, como o define o Decreto-Lei 869/69, pode induzir muitas pessoas a compreendêlo como substitutivo do ensino cristão, e as suas bases ideológicas como sendo alternativa para uma orientação confessional cristã. Tanto professores como educandos serão levados necessariamente a conflitos de consciência, caso estes conceitos se fixarem.

É do interesse da IECLB que esta questão seja objeto de um exame em conjunto de representantes das Igrejas e do Estado.

2.3 – Direitos humanos

Numerosos cristãos sentem-se perturbados pelo fluxo de notícias alarmantes sobre práticas desumanas que estariam ocorrendo em nosso País, com relação principalmente ao tratamento de presos políticos, donde surge uma atmosfera de intranqüilidade, agravada com a carência de informações preciosas e objetivas. Embora as notícias veiculadas no exterior, freqüentemente evidenciem o caráter tendencioso, e embora órgãos oficiais do País seguidamente tenham afirmado a improcedência das mesmas, permanece um clima de intranqüilidade, em virtude das informações não desmentidas da imprensa do País, sobre casos onde se inculcam órgãos policiais de terem empregado métodos desumanos – seja no tratamento de presos comuns, seja de terroristas políticos, ou seja de suspeitos de atividades subversivas.

Entendemos mesmo, como Igreja, que nem situações excepcionais podem justificar práticas quer violam os direitos humanos.

E como Igreja sentimos necessidade de dialogar com o nosso Governo também sobre o assunto – uma vez para apontar a extrema gravidade da questão, tendo em vista os princípios éticos em jogo, mas também para promulgar o nosso inteiro apoio a quem se acha seriamente empenhado em coibir abusos cometidos e em oferecer ao mais humilde dos brasileiros – inclusive ao politicamente discordante – a absoluta certeza de que seja tratado segundo as normas da mesma lei com a qual possa ter entrado em conflito.

Curitiba, 24 de outubro de 1970.

Karl Gottschald Pastor Presidente

Nota: O documento acima transcrito foi entregue pelos pastores Gottschald, Kunert e Schlieper, no dia 5 de novembro à tarde, à Presidência da República no Palácio Planalto em Brasília. No dia 6 de novembro de manhã, os mesmos pastores foram recebidos em audiência pelo Senhor Presidente da República. O diálogo muito franco e cordial , estabelecido entre o Senhor Presidente da República e os representantes da IECLB evidenciou, de maneira clara e insofismável, a disposição por parte dos homens responsáveis do nosso Governo em dialogar com a nossa Igreja sobre os problemas que nos preocupam. A maneira como recebida esta Manifestação da nossa Igreja demonstra a abertura do nosso Governo para sugestões e críticas construtivas.

Para evitar exploração indevida da Manifestação nesta época pré-eleitoral, foi estabelecido, desde o início, que o conteúdo deste documento fosse publicado apenas no dia 15 de novembro, dia das eleições.

COMENTÁRIOS SOBRE A FONTE

O Manifesto de Curitiba pode ser considerado um documento que marcou o desencadeamento de diversas ações no âmbito social da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB. Trata-se de um escrito emblemático, de significado ímpar, emitido pela VII Assembléia Geral da IECLB, em outubro de 1970, na cidade de Curitiba, sendo em seguida entregue pessoalmente ao Presidente da República, General Emílio Garrastazu Médici. O documento apresenta teses sobre as relações entre a Igreja e o Estado e assuntos que preocupam aquela Igreja. Entre esses, destaca-se o caráter do culto cristão, o ensino cristão e a educação moral e cívica, e a questão dos direitos humanos. A questão dos direitos humanos é considerada o assunto mais sensível tratado no manifesto. Há que se lembrar aqui aqueles anos delicados em termos de direitos humanos no Brasil, em virtude dos governos militares.

Para os luteranos, o documento pode ser considerado como uma afirmação de fé clara, numa época em que o Brasil vivia sob o regime de uma ditadura militar e os direitos humanos eram flagrantemente desrespeitados. O manifesto reafirmou o caráter do culto cristão como o serviço a Deus, entendendo ser Jesus Cristo o único Senhor do culto cristão. O documento defendeu a manutenção do ensino cristão nas escolas, ameaçado pela introdução da Educação Moral e Cívica. Quanto aos direitos humanos, o documento ressaltou “que nem situações excepcionais podem justificar práticas que violem direitos humanos” (…) “seja no tratamento de presos comuns, seja de terroristas políticos, ou seja de suspeitos de atividades subversivas”.

Não é necessário grande esforço de reflexão para entender os limites da compreensão dos termos utilizados se considerada a tradição da Igreja luterana e envolvimentos políticos comprometedores em outros momentos da história. A utilização de termos “terroristas” e “atividades subversivas” pode indicar que algumas formas de contestação ao regime também não eram aceitas na Igreja, e a explicitação das mesmas tenderia a auxiliar no diálogo com o Estado. Na verdade a Igreja não buscava um confronto com o Estado e nem questionava a ditadura em si. O que estava em jogo, na óptica da Igreja, eram questões de ordem religiosa e moral que deveriam ser respeitadas por qualquer governo. A forma como foi encaminhado o documento revela um jeito cautelar luterano de longa data. Lutero também havia alertado os príncipes de suas obrigações como senhores e como deveriam tratar seus súditos [2].

O Manifesto de Curitiba, embora naquele instante um documento avançado se considerada a tradição da Igreja Luterana, foi estimulado pela reação desencadeada com a transferência da V Assembléia da Federação Luterana Mundial do Brasil para a França. A transferência aconteceu em decorrência das denúncias das ações da ditadura contra os direitos humanos. Temia-se que a conferência, acontecendo no Brasil, acabaria ajudando a legitimar o governo brasileiro. Queria-se, por outro lado, também evitar constrangimentos, uma vez que, para um evento dessa natureza, fatalmente se convidaria o presidente da república para o cerimonial de abertura.[3]

O Manifesto de Curitiba é dividido em duas partes. Na primeira, reescreve, à luz do tempo presente, teses sobre as relações entre a Igreja e o Estado. Na segunda, externa assuntos que preocupam a Igreja. Na opinião desse historiador, a situação política vigente faz emergir no documento questões históricas inconclusas relacionadas à inserção do cristão nas questões temporais. A difícil discussão sobre os limites dos dois reinos (espiritual e temporal) aparece no manifesto.

Ao especificar a relação entre a Igreja e o Estado, o manifesto ressalta que a mensagem “pública” da Igreja cristã, no que se refere aos problemas do mundo, não poderá ser divorciada de seu testemunho “interno”, já que um implica o outro. Sendo assim, a Igreja não pode condicionar seu testemunho público aos interesses de ideologias políticas momentaneamente em evidência, ou a grupos e facções que aspiram ou mantêm o poder.

Neste sentido, a Igreja se preocupa em buscar o diálogo franco e objetivo com o Estado em atmosfera de abertura, com a finalidade de encontrar soluções para os problemas que afligem a sociedade. “Como parceira corresponsável do governo secular, ela obedece ao preceito do Senhor que diz: ‘Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus’”. O manifesto ressalta que, em conseqüência da pregação pública da Igreja, poderão surgir tensões com autoridades governamentais. Neste caso, porém, a Igreja não procurará contestar o poder do Estado, como se ela fosse um partido político, mas proclamará o poder de Cristo. E quando sentir-se compelida a contrariar o Estado, procurará no diálogo o primeiro passo para o entendimento.

Mesmo que demonstrasse ingenuidade e reservas sobre algumas questões, o manifesto pode ser considerado como um documento que comprova a não omissão da Igreja luterana nas questões delicadas daquele tempo. Pode ser hoje considerado um passo tímido, cautelar e modesto, mas foi um passo considerado relevante para a história da Igreja no que se refere à sua inserção social. A forma de colocar as questões acabou sendo o jeito possível encontrado no momento. A partir daquela data o documento será utilizado em vários momentos da história da Igreja, inclusive no tempo presente.

O documento não levantou questões de ordem estrutural. O modelo econômico e social não foi abordado, mas apenas o regime político no que tange à ideologia de segurança nacional e aos direitos humanos. Schünemann vê no manifesto um tom não-ofensivo e amenizador. Isto teria feito segundo ele, com que o plenário do Concílio de 1970, composto majoritariamente por cidadãos luteranos que possuíam grande estima pelo regime vigente, aprovasse o manifesto. Enfatizando toda a cautela que acompanhou a elaboração e a entrega do documento ao presidente da república, considera que o documento reflete a consciência possível da Igreja naquelas circunstâncias. [4]

Notas

1. FONTE: BURGER, Germano. Quem assume esta tarefa? Um documentário de uma igreja em busca de sua identidade. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1977, pp. 37- 41.

2. O texto de Lutero que mais especifica o assunto intitula-se À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão e Da Autoridade Secular.

3. SCHÜNEMANN, Rolf. Do gueto à participação: o surgimento da consciência sócio-política na IECLB entre 1960 e 1975. São Leopoldo: Sinodal, 1992.

4. Ibidem., pp. 103-104

Tarcísio Vanderlinde –  Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Desenvolve a tese intitulada “Entre dois Reinos: a inserção luterana entre os pequenos agricultores”.


BURGER, Germano. Quem assume esta tarefa? Um documentário de uma igreja em busca de sua identidade. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1977, pp. 37- 41. Resenha de: VANDERLINDE, Tarcísio. O Manifesto de Curitiba: alguns comentários. Cantareira. Niterói, n.6, 2005. Acessar publicação original [DR]