Territorialidades camponesas no noroeste do Paraná | Maurilio Rompato e Leandro de Araújo Crestani

Leandro de Araujo Crestani Imagem CICPEEGUniMinho
Leandro de Araújo Crestani | Imagem: CICP/EEG/UniMinho

Um livro escrito a muitas mãos, mas principalmente, muitas vozes, muitas vidas; as dos camponeses e camponesas que cederam parte das suas vivências para que pesquisadores e a universidade pública se apropriassem desse tipo de memória coletiva (HALBWACS, 1990) é o que faz o presente livro “Territorialidades camponesas no Noroeste do Paraná” recém-publicado pela editora FAG, Cascavel-Pr, 2021, (327 p.) organizado pelos professores, Maurilio Rompatto e Leandro de Araújo Crestani e nos brinda com treze (13) trabalhos acadêmicos de grande esforço analítico teórico e metodológico de história oral.

Em sua tessitura o livro ao longo da sua narrativa é capaz de dar um corpo sólido que amarra todas as escritas, numa só; a escrita da história. Poderia se chamar memória-trabalho como a professora Ecléa Bosi (2004) fez com os seus “velhos” em “Memória e sociedade: lembrança de velhos”. Leia Mais

Nova História das Mulheres no Paraná | Georgiane Garabely Heil Vázquez

Em um contexto de negação dos direitos das minorias, de aumento da violência contra mulheres, bem como de discursos que procuram negar as relações de gênero existentes na sociedade, ganha ainda mais importância e surge como sinônimo de coragem a obra coletiva Nova História das Mulheres no Paraná, organizada pela professora Georgiane Garabely Heil Vázquez. O livro, composto por 8 capítulos, foi escrito por pesquisadoras ligadas a diferentes instituições. O que estabelece a unidade da obra é a discussão da mulher a partir das discussões teóricas de gênero nas mais variadas perspectivas, bem como recortes temporais distintos e em diversos municípios do Paraná.

A publicação é voltada principalmente para as pessoas que se dedicam à pesquisa histórica. No entanto, não apenas historiadores e historiadoras poderão utilizar o livro como referência quando estiver em pauta a História das Mulheres ou discussões teóricas e metodológicas a respeito dos Estudos de Gênero. Pesquisadores (as) de áreas como Psicologia, Ciências Sociais, Direito, entre outras, que constantemente dialogam com a História e que discutem as implicações de gênero na sociedade, terão no livro uma contribuição importante. Leia Mais

A invenção do recreio escolar: uma história da escolarização no estado do Paraná (1901-1924) – MEURER (RBHE)

MEURER, S. S.. A invenção do recreio escolar: uma história da escolarização no estado do Paraná (1901-1924). Curitiba: Appris, 2018. Resenha de: MORAES, L. C. L., GOMES, L. do C., & MORAES E SILVA, M. O lugar da educação das sensibilidades e dos sentidos – apontamentos sobre o livro A invenção do recreio escolar: uma história de escolarização no estado do Paraná (1901-1924). Revista Brasileira de História da Educação, 19. 2019.

A obra A invenção do recreio escolar: uma história de escolarização no estado do Paraná (1901-1924) foi publicada no ano de 2018 pela editora Appris. Escrita pelo professor Dr. Sidmar dos Santos Meurer, tal obra trata-se da pesquisa realizada por ele durante o mestrado, desenvolvido na linha de história e historiografia da educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). O autor apresenta aos leitores um livro que tem o propósito de colocar os recreios escolares no Paraná, no início do século XX, como objeto de investigação histórica. Para alcançar tal intento, a obra divide-se em apresentação, prefácio, introdução, duas partes principais compostas de três subtítulos cada, tópico conclusivo e, ao fim, um capítulo dedicado à apresentação das fontes primárias da pesquisa.

Sidmar Meurer graduou-se em educação física pela UFPR em 2005, obteve título de mestre em Educação pela mesma universidade em 2008 e defendeu seu doutoramento junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2019. O autor é professor assistente no setor de educação da UFPR, atuando na formação de professores e no âmbito da pesquisa, no qual faz investigações sobre escolarização, história da educação, história da escolarização, história da educação dos sentidos e das sensibilidades e história da educação do corpo.

A apresentação, registrada pelo próprio autor, complementa-se pelo prefácio, escrito pelo professor Dr. Marcus Aurélio Taborda de Oliveira, o qual foi orientador de Sidmar Meurer durante a graduação, o mestrado e o doutorado e atualmente é docente titular do departamento de ciências aplicadas à educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da UFMG. No prefácio, Taborda de Oliveira reconhece as contribuições e qualidades do trabalho realizado pelo seu orientando, indicando a

importância da obra para o campo da história da educação. Cabe destacar que as ponderações levantadas, tanto na apresentação quanto no prefácio, trazem à tona a pretensão da obra como um todo, que é fazer com que o leitor reflita sobre o fenômeno social da escolarização, mais especificamente sobre a história do recreio no Paraná na temporalidade de 1901 a 1924.

A introdução traz como premissa o olhar e o cuidado do autor ao manusear as documentações das instituições de ensino. Esse tipo de procedimento possibilitou a construção da narrativa de sua investigação, a qual, conforme enfatizado pela própria autoria, apresenta preocupações com as práticas e ações típicas da ambiência escolar, que ainda não eram uma problemática para os estudos de uma historiografia mais tradicional da educação. Com o intuito de embasar o entendimento do leitor sobre o trato com as fontes, Meurer explora trechos dos relatórios de docentes, apresentando inúmeras interpretações e potencialidades desses exemplares. O autor potencializa tais fontes em diversos momentos, manifestando as peculiaridades do período, da escola e dos comportamentos, o que acaba por auxiliar a responder e/ou alimentar um debate sobre os diversos elementos que contribuíram para a consolidação dos recreios nas escolas paranaenses no início do século XX.

A parte I, intitulada ‘Justificativas pedagógicas para os recreios escolares; expectativas sociais para a escola primária’, inicia-se com o subtítulo ‘Forjar a ‘alma’, descansar o ‘espírito’, fortalecer o corpo: a educação como empreendimento moral, intelectual e físico’, que trata das pretensões tanto dos professores quanto dos políticos para com as implementações e reformas do ensino primário, além de enfatizar como surgem os denominados ‘recreios’ e/ou ‘intervalos’. Para realizar tal feito, o autor utilizou-se de relatórios de docentes, disponíveis no Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná/DEAP-PR, provenientes de diversos lugares do Paraná, deixando explícitas as metamorfoses das ideias sobre o entendimento do que e de como seria a escola primária em um período de republicanização, a qual deveria prezar por uma educação do físico, do intelecto e da moral e cívica, surgindo, então, a intenção de desenvolvimento integral do aluno.

A autoria aponta que nesse período existia certa confusão de significados e propostas em relação aos recreios. Afinal, eram atribuídos tempos distintos em cada instituição e o espaço (jardins, salas de aulas, quarto, pátio) e os exercícios implementados (gymnastica, respiração, canto, declamação) também variavam. Na sequência de seus argumentos, o autor indica que o tempo do recreio foi adequando-se às demandas que o ensino primário em reforma procurava, ou seja, a um projeto de escolarização que proporcionasse conhecimentos úteis a uma vida ativa e prática.

Já o segundo subtítulo, intitulado ‘A escola primária como instituição cardeal da sociedade paranaense: quando um projeto de escolarização pretende ser motor de mudança social’, baseia-se em dois conjuntos de fonte: os relatórios de autoridades do ensino paranaense e a revista A escola. A autoria apoiou-se em tais materiais para contextualizar o período de reforma do ensino primário, que deveria ser alicerçado de acordo com a tríade da formação física, intelectual e moral dos alunos. A preocupação apresentada nos documentos sobre a educação gratuita e universal, bem como a formação de indivíduos conscientes, aborda tópicos relevantes para se refletir sobre o processo de organização escolar, a relação entre educação e política e as questões relacionadas ao papel utilitário da educação.

Para esmiuçar esse amplo repertório de colocações, Meurer apresenta algumas referências na área da história da educação, destacando as contribuições de Marta Carvalho, numa perspectiva interpretativa de documentos das instituições de ensino, atribuindo à escola a preparação de mão de obra, e de Mirian Jorge Warde, que chama atenção para a ampliação do sentido e a função dada à escola, indo ao encontro de um entendimento de que a ação reguladora da instituição está mais associada à construção de hábitos, desenvolvimento de comportamentos e sensibilidades humanas. Diante dessas duas concepções, o autor apresenta fontes que favorecem a posição levantada por Mirian Jorge Warde.

O autor menciona que, para explicitar sua percepção, foram acionados os trabalhos de Jean Hérbrard, que tratam da escola francesa, e conceitos de ‘ferramentas mentais’, de Lucian Febvre. Com base em tais concepções, Meurer indica que a escola do período de republicanização desejava produzir maneiras de sociabilidades e construir conjuntos de sensibilidades e espírito prático que poderiam levar a sociedade a um suposto progresso. Os recreios surgiram como parte desse projeto de construção de sensibilidades, vistos como uma prática útil e necessária.

Em ‘Os recreios escolares e a ‘marcha do ensino’: por uma escola ‘moderna’, ‘útil’ e ‘atraente’’, última fração da primeira parte da obra, sobressaem-se resquícios do material empírico utilizado, que contém, além dos citados anteriormente, artigos do jornal A República, trecho da revista Pátria e Lar e um texto do médico José Maria de Paula. Contudo, o autor lembra que a escola era alvo de críticas oriundas dos segmentos médicos, pedagógicos e políticos, sobretudo por apresentar um ensino marcado pela memorização de conteúdo sem praticidade. A desaprovação mais eminente, constatada por Sidmar Meurer, relaciona-se à falta de cientificidade no ensino. Essa discussão repercutiu na racionalização de uma rotina escolar mais estruturada da qual o recreio fazia parte, contando, nesse momento, com o apoio de pressupostos pedagógicos para ser legitimado.

Todavia, o autor, analisando os discursos médico e pedagógico, indica que os médicos culpabilizam os professores pela pouca aproximação do ensino com aspectos científicos. Muitos dos relatórios traziam breves declarações que englobavam nomes influentes no âmbito pedagógico, como Spencer, Pestalozzi, Froebel, Rousseau e Locke, demonstrando pelo menos uma ligação e/ou uma tentativa com tópicos mais científicos para serem abordados na escola, como psicologia, ciências naturais e higiene. Meurer reconhece ainda que os documentos analisados apontavam que o público infantil apresentava especificidades que deveriam ser levadas em consideração no processo de ensino na escola primária paranaense.

A segunda parte do livro, intitulada ‘Dispositivos de institucionalização e normatização dos recreios escolares. Tempos, espaços e modos de proceder’, apresenta o quarto subtítulo, denominado ‘Da conformação dos espaços, um lugar para recrear – os pátios de recreio’. Para adentrar os espaços que se constituíram durante o período, o autor retoma as noções e os significados de recreios e/ou das formas de se recrear que foram encontradas na pesquisa. Tais significações apresentam uma ligação com a modernização do ensino, porém, sem pertencer ao currículo escolar formal, utiliza-se de um momento pedagógico, constituído por atividades de canto, exercícios de ginástica e desenhos. Meurer chama atenção para que se entenda o processo de mudança nos recreios como um movimento não linear. Além disso, o autor dá sentido de institucionalização ao recreio, pois, com o passar do tempo, aquele se diferencia de outros componentes escolares.

Entretanto, a disponibilidade de recursos para se investir em um espaço para os recreios era escassa e o movimento de instalações de grupos escolares, com o intuito de modernizar o ensino paranaense, acabou por ganhar força, surgindo como novo modelo para o processo de organização de um sistema público de educação. A Escola Xavier da Silva, primeiro grupo escolar do Estado do Paraná, teve relatórios de seus docentes frequentemente analisados pelo autor, visto que a instituição buscou realizar uma ampla reforma educacional, revelando preocupação com espaços específicos para os recreios, o que a tornou um exemplo a ser seguido. Foi somente em 1915, com o Código de Ensino, que ocorreu a normatização do recreio com seu respectivo espaço, recuado para as laterais e para os fundos das estruturas, que deveria seguir parâmetros de higiene e ser arborizado e composto de flores. Por fim, o autor demarca que os fatores e desejos que compunham esse espaço foram racionalizados, priorizando-se os aspectos higiênicos e estéticos, vistos como potencializadores da percepção dos alunos, que dispunham de esperada espontaneidade e intuição imprescindíveis para a modernização do ensino.

O quinto tópico, intitulado ‘Da contagem e demarcação do tempo de recrear – a passagem dos ‘intervalos’ ao ‘recreio’’, trata especificamente da delimitação temporal para os recreios. Uma fonte bastante explorada pela autoria, nessa parte do livro, foi o Código de Ensino do Estado do Paraná de 1915. Documento este que apresentava inúmeros elementos para se pensar a organização escolar, desde o controle temporal das atividades até as determinações de séries graduais do ensino. Mesmo com todos os pontos colocados por essas normatizações, que tinham o propósito de dar caráter mais educativo e disciplinar às escolas, poucas eram aplicáveis às outras instituições escolares. Com todo esse processo de mudanças e anseios por ‘inovações’, conforme enfatiza o autor, tentou-se, no modus operandi da época, constituir um conjunto de sensibilidades em relação ao tempo (otimizado) na escola a partir do pleito legal.

Por fim, no último subtítulo do livro, denominado ‘Modos de proceder na escola – os recreios como rotina escolar’, analisou-se o recreio sob a perspectiva dos modos de comportamento e das funções dos envolvidos nesse determinado tempo e espaço que salvaguardavam sua distinção perante os demais componentes curriculares. Ao se entender que todo espaço com a aglomeração de pessoas denominava-se ‘recreio’, passou-se a prescrever ações que diferenciavam os ‘recreios’ dos períodos de entrada e saída das aulas. As novas significações produzidas em relação a esses intervalos visavam atender às demandas fisiológicas e psicológicas dos alunos, além de enfatizar uma noção de recompensa pelo desempenho obtido nas atividades escolares. Abria-se também uma lacuna para que se utilizasse essa gratificação como castigo, apoiando-se na privação deste quando fosse necessária. Posteriormente, o recreio passou a tratar-se também de um espaço-tempo apropriado para a realização da merenda/alimentação.

Ao retomar alguns trechos dos relatórios, o autor enfatiza que os recreios passaram a conter uma disciplina diferenciada da exigida em sala de aula, consistindo em um ordenamento não silencioso, permitindo brincadeiras, atividades espontâneas e a concentração de todas as classes em um único espaço e tempo, sob a fiscalização dos agentes das instituições. Porém, conforme constata o autor, nada tem a ver com a disposição e o desenvolvimento da liberdade e autonomia do aluno, visto que todos os elementos constitutivos do recreio se unem para a formação de sensibilidades e na racionalização de um sistema que permite a aquisição de um ethos almejado.

Por último, em ‘Palavras finais – Pensar a escola e sua organização a partir de seus processos e práticas’, o autor faz ponderações sobre a sua pesquisa, apresentando reflexões para a área da educação. Diante disso, suas considerações finais apresentam aportes teóricos de filósofos como Michel Foucault e Theodor Adorno e dos historiadores Edward Thompson e Cristopher Hill. Um eixo importante do livro, que é válido mencionar, reporta-se à diversidade dos materiais empíricos, utilizados na construção da narrativa do livro, fazendo com que as fontes guiassem as análises que foram distribuídas nas partes e que conseguiam embasar ao leitor o contexto relacionado à temática principal, além de responder às problemáticas evocadas antes de assinalar os saberes e sentidos mobilizados pela oferta dos recreios num projeto de escolarização paranaense.

A título de apontamentos finais, observa-se que a leitura da obra convida o leitor a repensar no desenvolvimento dos recreios no Paraná, além de possibilitar aos interessados na história da educação e das sensibilidades que tenham um material qualificado para embasar novos estudos, visto que o livro é amparado numa abordagem historiográfica que facilita a realização de futuros trabalhos com tais características, constituindo-se, portanto, em uma leitura atrativa para pesquisadores interessados na temática da escolarização e dos diversos processos de educação do corpo.

Referências

Meurer, S. S. (2018). A invenção do recreio escolar: uma história de escolarização no estado do Paraná (1901-1924). Curitiba, PR: Appris.

Letícia Cristina Lima Moraes – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]

Leonardo do Couto Gomes – mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]

Marcelo Moraes e Silva – professor doutor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]

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Piquiri o vale esquecido: História e memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora, oeste do Paraná | Maurilio Rompatto

Obra originária de pesquisa para obtenção do título de mestre em história-social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP, o livro “Piquiri o vale esquecido: História e memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora, oeste do Paraná, tem temática que vira em torno das histórias da violência que ocorreram durante as décadas de 1950 até 1970 e conta as histórias de vidas de pessoas camponesas na luta pela posse das suas terras conquistadas como pioneiros na região do vale do Piquiri e mais especificamente em Nova Aurora/PR. O que Rompatto faz em sua pesquisa é dar voz a trinta trabalhadores do campo, captando as narrativas com grande sensibilidade e rigor metodológico que exige a postura da história oral.

Assim, história e memória vão se entrecruzando na trama dos acontecimentos fazendo emergir um tipo de história vista de baixo como pede a historiografia renovada, à lá Annales. Assim como dialoga diretamente com E.P. Thompson para ali encontrar os conceitos de economia moral, cultura camponesa, valores camponeses e classe camponesa. Este último conceito muito bem apropriado e operacionalizado na obra, na qual o leitor irá se deparar com essa categoria, por vezes, muito bem organizada na luta por seus direitos. Pode-se aferir que Rompatto chega a sugerir certa ideia de classe em si para os camponeses aqui narrado. Fazendo, dessa forma, implodir o sentido de trabalho e os valores dados à terra por esses camponeses pioneiros que vão travar uma epopeia agrária nos confins do oeste paranaense contra os grileiros sendo eles o Estado, a União e também empresas privadas como a Colonizadora Norte do Paraná S.A do paulista Oscar Martines.

Outro grande mérito da pesquisa é fazer da chamada história regional, do Norte do Paraná, Vale do Piquiri, uma história total, em que para explicar o micro cosmo de uma região “esquecida” nos dizeres do autor, este recorte a história estrutural para ali buscar o entendimento da questão agrária no Brasil, voltando á época do Brasil Imperial ao ano de 1850, quando é publicada a primeira lei agrária brasileira, a Lei de terras que passa a dar valor imobiliário a esse bem, que até então a terra era distribuída pela União via sesmarias. Depois a pesquisa ainda explica que com a Proclamação da República a terra passa a ter outros valores, bem como os Estados que agora substituem as províncias imperiais passam a ter a posse e o direito às terras e ao seu comércio. Por fim, Rompatto ainda nos revela outro aspecto da história do Brasil relacionada à questão agrária e seus complicadores em relação à posse dessa durante a fase politica do Estado Novo ditatorial implantado no Brasil pelo Presidente Getúlio Vargas que durou de 1939 até 1945. Este regime faz com que as terras de fronteiras sejam devolvidos para a União em razão da ideia de proteção das fronteiras. Vale dizer que o objeto de estudo aqui narrado é interdisciplinar num diálogo muito profícuo entre a história e geografia, a geo-história. Nesse quesito a obra é rica em mapas detalhados acerca da região do Vale do Piquiri, sua riqueza hidrográfica, com rios e fluentes que margeiam o Rio Piquiri. São num total de treze mapas, todos eles bem inseridos ao longo da narrativa e com caráter e função de melhor explicar o acontecimento dentro de uma regionalidade, assim como levar o leitor a viazualizar o lugar da história. Cabe também, nesse contexto do uso de imagens, ressaltar a sensibilidade do autor ao estampar fotos de algumas famílias pioneiras mostrando parte do seu cotidiano rural, perfazendo um total de quinze fotos de pessoas e residências. Dentre elas, a contra capa estampada a família Ballico cercada pelo arame farpado em delimitação das suas terras por empresa particular grileira.

Entender a história das lutas camponeses no Brasil é um processo muito complexo e angustiante em que o próprio historiador se depara com momentos de injustiça. Complexa porque as próprias fontes são escamoteadas ou se encontram em lugares de difícil acesso, e angustiante uma vez que os depoimentos trazem á toma memorias e relatos de camponeses sendo injustiçados, quer pelo poder público, quer pelas empresas privadas que tem interesse nas terras ditas devolutas que são também conceitos vazios meramente politico, haja vista que nunca houve terra devoluta, pois a princípio estas eram dos índios ou dos quilombolas que nela habitavam e produziam.

Como disse Peter Burke “ a função da história é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer”. Rompatto cumpre nessa sensível e competente obra essa função de historiador profissional e comprometido com a história política e social vista de baixo. Dando voz aos camponeses para eles expressarem suas experiências e vivências. Numa trajetória de história local dialogando com a história total para o construto de uma narrativa coerente e explicativa. Temos aqui um livro de história do Brasil do período varguista e seus desdobramentos da politica nacionalista nos confins do oeste paranaense, um livro onde o local e o total se permeiam, dialogando com a escrita da história.

Depois de tudo que foi analisado acima cabe ainda uma última referência a outra imagem; a da capa que foi escolhida com grande sensibilidade e rigor teórico-metodológico ao se optar pela foto do Rio Piquiri, margeando o Vale e passando a impressão de calmaria e tranquilidade o que não se encontrará ao abrir o livro, longe disso, a narrativa que se lerá está muito mais próxima de uma história de faroeste, no sentido mesmo de velho oeste, o velho Oeste paranaense e suas disputas desleais entre homens grileiros fortemente armados contra camponeses com suas famílias ali estabelecidas há tempos.

Por fim o livro é recomendado a todos os amantes de uma boa narrativa e trama histórica, mas sobretudo para dois públicos específicos os historiadores e aos moradores do Vale do Piquiri em especial da cidade de Nova Aurora/PR.

Eduardo Martins –  Doutor em História pela UNESP/ Assis e Docente do Curso de História do Campus de Nova Andradina, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).


ROMPATTO, Maurilio. Piquiri o vale esquecido: História e memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora, oeste do Paraná. Curitiba: CRV, 2016. Resenha de: MARTINS, Eduardo. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 9, n. 17, p. 286-288, jan./jul., 2017.

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Intelectuais, modernidade e formação de professores no Paraná (1910-1980) | Carlos E. Vieira, Dulce R. B. Osinski e Marcus L. Bencostta

A publicação do livro Intelectuais, modernidade e formação de professores no Paraná (1910-1980) é resultado do trabalho desenvolvido no âmbito do Núcleo de Estudos e Pesquisas em História, Educação e Modernidade (NEPHEM), composto por membros e pesquisadores convidados da linha de pesquisa em História e Historiografia da Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. A produção do livro contou com o apoio do Conselho de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), contemplado em edital específico pelo projeto homônimo.

Trata-se de uma publicação que está muito bem situada no âmbito da produção de História da Educação brasileira, trazendo em seu conteúdo o resultado da pesquisa histórica sobre algumas especificidades do contexto paranaense, caracterizadas pelas trajetórias de ao menos seis intelectuais que estiveram à frente de projetos educacionais ao longo do século XX: Lysimaco Ferreira da Costa (1883-1941), Raul Rodrigues Gomes (1889- 1975), Erasmo Pilotto (1910-1992), Pórcia Guimarães (1918-1997), Ivany Moreira (1928- 2008) e Eurico Back (1923-1997). O livro de 205 páginas conta com a apresentação de Libânia Nacif Xavier, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob o título “A educação paranaense nos quadros de um projeto de modernidade”. Além da introdução assinada pelos organizadores, o livro compõe-se de cinco capítulos, os quais serão mencionados a seguir. Leia Mais

As guerras dos índios Kaingang. A História épica dos índios Kaingang no Paraná (1769-1924) – MOTA (RHR)

MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang. A História épica dos índios Kaingang no Paraná (1769-1924). 2ed revisada e ampliada. Maringá: EDUEM, 2009. 301 p. Resenha de: NOELLI, Francisco Silva. Revista de História Regional, v.15, n.2, p.280-282, 2010.

A segunda edição revisada e ampliada deste livro é muito bem-vinda. Sua trajetória começou em 1992, quando foi apresentado e defendido como dissertação de mestrado. Em 1994, foi modificado e preparado para edição, sendo um dos primeiros títulos publicados pela EDUEM, Editora da Universidade Estadual de Maringá, no Paraná. Após dezesseis anos, é possível dizer que se tornou uma obra de referência de história indígena no Brasil, sobretudo dos Kaingang e da Região Sul do país. Foi o ponto de partida para um amplo projeto de história regional, tendo o Paraná como espaço principal e uma série de temas desenvolvidos posteriormente por Lúcio Tadeu Mota, como a tese de doutorado O aço, a cruz e a terra: índios e brancos no Paraná provincial (1853-1889), defendida em 1998; e os livros: As colônias indígenas no Paraná Provincial (2000) e Os Kaingang do vale do rio Ivaí-PR: História e relações interculturais (2008), co-autoria com Éder Novak; e vários livros e artigos sobre a história dos Kaingang e outros povos indígenas, sem contar as publicações dos seus alunos e parceiros de pesquisa.

Foram duas prolíficas décadas e um exemplo bem sucedido de interiorização da pesquisa, com a participação de Mota na criação do Programa Interdisciplinar de Estudos de Populações da Universidade Estadual de Maringá, em 1997.

Além de analisar um período de 163 anos, As guerras dos índios Kaingang estabelece as linhas gerais para uma história dos Kaingang, sobre suas relações interculturais e alguns dos seus principais líderes. Também mostra possibilidades na ampliação de temas mais comuns da historiografia paranaense, sobretudo na atualização teórica e metodológica de caráter multidisciplinar. Um aspecto decisivo da abordagem desenvolvida é a crítica à historiografia hegemônica produzida no Paraná até o início dos anos 1990, que defendia teses anacrônicas sobre um “vazio demográfico” anterior à presença européia. Sua crítica foi construída a partir de uma farta documentação obtida em fontes publicadas e inéditas, desmistificando uma construção “arquitetada e divulgada” pelos intelectuais paranaenses.

O principal mérito do livro está no levantamento de dados e na sua articulação, a partir de uma perspectiva póscolonial, dedicada a transformar os Kaingang em sujeitos capazes de defender sua autodeterminação nos diversos embates e contatos com os “brancos”. Mota conseguiu alterar um padrão historiográfico que se pautou por omitir, sabotar e diminuir o papel das sociedades indígenas na formação das sociedades paranaenses desde o período colonial até as primeiras décadas da República.

A parte 1 analisa as principais idéias de historiadores, geógrafos e sociólogos, debatendo as noções de vazio demográfico, terra de ninguém e terras devolutas. O autor analisa o impacto dessas perspectivas nos livros didáticos e na obras que cantaram a apologia à colonização regional, a partir do século 19.

A parte 2 trata das populações indígenas no Paraná, descrevendo suas principais características e delimitando seus territórios. Constitui uma das descrições mais completas dos territórios Kaingang, sendo aperfeiçoada e ampliada nas pesquisas posteriores do autor. Resume os principais elementos das várias estratégias Estatais estabelecidas para o tratamento político e fundiário dos Kaingang, que foram da guerra à diplomacia, mas ao fi m e ao cabo, acabaram por submeter os direitos e a autodeterminação indígena aos interesses dos agentes do Estado, ao confinamento em verdadeiros campos de concentração e ao descaso com os direitos mais básicos da cidadania. Além disso, foram acrescentados mais dados de arqueologia, ampliando e atualizando o texto em relação à primeira edição.

A parte 3 apresenta detalhes sobre os Kaingang, centrando- se em aspectos mais tradicionais da etnografia, sobretudo dos equipamentos e táticas usados para resistir aos enfrentamentos bélicos com as forças coloniais. Mostra as principais guerras e a resistência às tentativas de desterritorialização e confinamento, tentadas pelos diversos representantes do poder público desde 1769 até o período republicano.

Também apresenta as estratégias não militares de resistência e uma lista de caciques, descrevendo suas ações em relação aos “brancos”.

É um livro importante que merece ser lido e debatido, pois apresenta vários temas que devem ser mais pesquisados e desenvolvidos sobre a formação da sociedade e do território do Paraná. É possível declarar que, em termos de ruptura com as perspectivas coloniais da historiografia paranaense, este trabalho é um divisor de águas e a abertura para o caminho da história indígena. Há vinte anos Lúcio Tadeu Mota trouxe uma novidade científica e política. Novidade, por que refletia o papel efetivo dos Kaingang na história paranaense, com uma abordagem ainda hoje pouco usual no estado. Política, por que considerou os Kaingang como sujeitos reais do passado e do presente do Paraná, dignos de serem vistos e tratados como cidadãos.

Francisco Silva Noelli – Arqueólogo e Historiador. Prof. aposentado do Departamento de Fundamentos da Educação. Pesquisador do Programa Interdisciplinar de Estudos de Populações, Universidade Estadual de Maringá.

Quem assume esta tarefa? Um documentário de uma igreja em busca de sua identidade | Germano Burger

O MANIFESTO DE CURITIBA DA IGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL[1]

A IGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL, REUNIDA EM SEU VII CONCÍLIO GERAL EM CURITIBA NOS DIAS 22 A 25 DE OUTUBRO DO CORRENTE ANO, OBEDIENTE À MISSÃO QUE LHE É INERENTE COMO IGREJA DE CRISTO, RESOLVE MANIFESTAR O SEGUINTE:

  1. TESES SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE A IGREJA E O ESTADO

1.1 – A mensagem da Igreja cristã visa à salvação do homem, salvação que transcende as possibilidades humanas, inclusive as políticas. É mensagem de Deus – não deste mundo. Mas ela é destinada a este mundo e quer testemunhar Jesus Cristo como Senhor e Salvador do mundo. Por isso a Igreja não pode viver uma existência sectária, guardando para si mesma a mensagem que lhe foi confiada. Ela tem o ministério de testemunhar a palavra de Deus, ministério do qual ela não se pode esquivar, a não ser pelo preço da desobediência para com seu Senhor.

A mensagem da Igreja sempre é dirigida ao homem como um todo, não só à sua “alma”. Por isso, ela terá conseqüências e implicações em toda a esfera de sua vivência – inclusive física, cultural, social, econômica e política. Não tenderá apenas a regular as relações entre os cristãos, mas visará igualmente ao diálogo com outros cidadãos ou agrupamentos, sobre todas as questões relacionadas com o bem-comum.

1.2 – A mensagem “pública” da Igreja cristã, no que se refere aos problemas do mundo, não poderá ser divorciada do seu testemunho “interno”, já que este implica naquela. Assim a Igreja não pode condicionar seu testemunho público aos interesses de ideologias políticas momentaneamente em evidência, ou a grupos e facções que aspiram ou mantêm o poder. Em seu testemunho público, não poderá ela usar métodos incompatíveis com o Evangelho.

1.3 – Em princípio, Estado e Igreja são grandezas separadas, como o define também a Constituição do nosso País. Mas em virtude das conseqüências da pregação cristã que se manifestam na esfera secular, e pelo próprio fato de os cristãos serem discípulos de Cristo e simultaneamente cidadãos de seu país, não será possível separar totalmente os campos de responsabilidade do Estado daqueles da Igreja, embora seja necessário distinguí-los. Na esfera onde os respectivos campos se fundem, a Igreja, por sua vez necessitando da crítica do mundo, desempenhará uma função crítica – não de fiscal mas antes de vigia (Ezequiel 33,7) e de consciência da Nação. Ele alertará e lembrará as autoridades de sua responsabilidade em situações definidas, sem espírito faccioso, e sempre com a intenção de encontrar uma solução justa e objetiva.

1.4 – A Igreja busca o diálogo franco e objetivo com o Estado em atmosfera de abertura, de liberdade e de autêntica parceria – diálogo que tem por finalidade encontrar soluções para os problemas que afligem a sociedade. Como parceria co-responsável do governo secular, ela obedece ao preceito do Senhor que diz: “Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Marcos 12,17). Baseada nesta premissa fundamental, ela se sente chamada a cooperar com as autoridades governamentais em uma vasta gama de tarefas, como, por exemplo, na educação das novas gerações, na alfabetização de adultos, no apoio a ações sociais do governo, no combate a doenças, à pobreza, à marginalização do homem, e em outras atividades que não sejam de caráter puramente técnico. Esta cooperação implica no constante esforço destinado a eliminar as causas que eventualmente provoquem os males em questão.

1.5 – Em conseqüência da pregação pública da Igreja poderão surgir tensões com autoridades governamentais, seja por equívocos humanos, seja por razões de caráter fundamental. A Igreja, em tais casos, não procurará contestar o poder do Estado, como se ela fosse um partido político, mas proclamará o poder de Cristo. Onde ela sentir-se compelida a contrariar medidas governamentais, antes de tomar qualquer atitude pública, procurará dialogar com as autoridades respectivas. Em todos os casos agirá sem intuitos demagógicos – deixando claro que ela se sabe chamada a advogar em prol de todos os homens que sofrem.

  1. ASSUNTOS QUE PREOCUPAM A IGREJA

2.1 – O caráter do culto cristão

A Igreja entende que o culto, sendo o evento central da vida do cristão, através do qual se nutre sua vida espiritual, deverá ter resguardado o seu caráter de serviço de Deus, de adoração, de comunhão cristã e de diálogo com Deus. Jesus Cristo é o único Senhor do culto cristão.

O culto terá conseqüências políticas, por despertar responsabilidade política, mas não deverá ser usado como meio para favorecer correntes políticas determinadas. Pátria e governo serão objetos de intercessão da comunidade reunida para que, possam promover justiça e paz entre os homens, e os fiéis darão graças ao seu Senhor por estas preciosas dádivas. A pátria será honrada e amada; seus símbolos serão respeitados e usados com orgulho cívico, no sentido mais legítimo, mas o cristão não poderá falar da pátria em categorias divinizadoras.

O diálogo entre Igreja e Estado poderá resultar numa responsabilização conjunta pela programação dos dias festivos nacionais que rendem homenagem à pátria.

2.2 – Ensino cristão e educação moral e cívica

Embora numa sociedade pluralista e multiconfessional, como a brasileira, o Estado, compreensivelmente, esteja interessado em evitar uma orientação sectária no campo educacional, julgamos ser indispensável que nas escolas seja mantido, inequivocamente, o ensino cristão. Consideramos ser a educação moral e cívica uma matéria necessária para a formação do cidadão, porém não a julgamos uma matéria que possa ou deva suplantar o ensino cristão. O ensino moral e cívico, com bases ideológicas declaradas, para muitos cristãos deixou imprecisos os limites entre a esfera da Igreja e a do Estado. Entendemos que qualquer atitude moral e cívica autêntica tenha as suas raízes em uma confissão autêntica. Um ensino “teista mas aconfessional”, como o define o Decreto-Lei 869/69, pode induzir muitas pessoas a compreendêlo como substitutivo do ensino cristão, e as suas bases ideológicas como sendo alternativa para uma orientação confessional cristã. Tanto professores como educandos serão levados necessariamente a conflitos de consciência, caso estes conceitos se fixarem.

É do interesse da IECLB que esta questão seja objeto de um exame em conjunto de representantes das Igrejas e do Estado.

2.3 – Direitos humanos

Numerosos cristãos sentem-se perturbados pelo fluxo de notícias alarmantes sobre práticas desumanas que estariam ocorrendo em nosso País, com relação principalmente ao tratamento de presos políticos, donde surge uma atmosfera de intranqüilidade, agravada com a carência de informações preciosas e objetivas. Embora as notícias veiculadas no exterior, freqüentemente evidenciem o caráter tendencioso, e embora órgãos oficiais do País seguidamente tenham afirmado a improcedência das mesmas, permanece um clima de intranqüilidade, em virtude das informações não desmentidas da imprensa do País, sobre casos onde se inculcam órgãos policiais de terem empregado métodos desumanos – seja no tratamento de presos comuns, seja de terroristas políticos, ou seja de suspeitos de atividades subversivas.

Entendemos mesmo, como Igreja, que nem situações excepcionais podem justificar práticas quer violam os direitos humanos.

E como Igreja sentimos necessidade de dialogar com o nosso Governo também sobre o assunto – uma vez para apontar a extrema gravidade da questão, tendo em vista os princípios éticos em jogo, mas também para promulgar o nosso inteiro apoio a quem se acha seriamente empenhado em coibir abusos cometidos e em oferecer ao mais humilde dos brasileiros – inclusive ao politicamente discordante – a absoluta certeza de que seja tratado segundo as normas da mesma lei com a qual possa ter entrado em conflito.

Curitiba, 24 de outubro de 1970.

Karl Gottschald Pastor Presidente

Nota: O documento acima transcrito foi entregue pelos pastores Gottschald, Kunert e Schlieper, no dia 5 de novembro à tarde, à Presidência da República no Palácio Planalto em Brasília. No dia 6 de novembro de manhã, os mesmos pastores foram recebidos em audiência pelo Senhor Presidente da República. O diálogo muito franco e cordial , estabelecido entre o Senhor Presidente da República e os representantes da IECLB evidenciou, de maneira clara e insofismável, a disposição por parte dos homens responsáveis do nosso Governo em dialogar com a nossa Igreja sobre os problemas que nos preocupam. A maneira como recebida esta Manifestação da nossa Igreja demonstra a abertura do nosso Governo para sugestões e críticas construtivas.

Para evitar exploração indevida da Manifestação nesta época pré-eleitoral, foi estabelecido, desde o início, que o conteúdo deste documento fosse publicado apenas no dia 15 de novembro, dia das eleições.

COMENTÁRIOS SOBRE A FONTE

O Manifesto de Curitiba pode ser considerado um documento que marcou o desencadeamento de diversas ações no âmbito social da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB. Trata-se de um escrito emblemático, de significado ímpar, emitido pela VII Assembléia Geral da IECLB, em outubro de 1970, na cidade de Curitiba, sendo em seguida entregue pessoalmente ao Presidente da República, General Emílio Garrastazu Médici. O documento apresenta teses sobre as relações entre a Igreja e o Estado e assuntos que preocupam aquela Igreja. Entre esses, destaca-se o caráter do culto cristão, o ensino cristão e a educação moral e cívica, e a questão dos direitos humanos. A questão dos direitos humanos é considerada o assunto mais sensível tratado no manifesto. Há que se lembrar aqui aqueles anos delicados em termos de direitos humanos no Brasil, em virtude dos governos militares.

Para os luteranos, o documento pode ser considerado como uma afirmação de fé clara, numa época em que o Brasil vivia sob o regime de uma ditadura militar e os direitos humanos eram flagrantemente desrespeitados. O manifesto reafirmou o caráter do culto cristão como o serviço a Deus, entendendo ser Jesus Cristo o único Senhor do culto cristão. O documento defendeu a manutenção do ensino cristão nas escolas, ameaçado pela introdução da Educação Moral e Cívica. Quanto aos direitos humanos, o documento ressaltou “que nem situações excepcionais podem justificar práticas que violem direitos humanos” (…) “seja no tratamento de presos comuns, seja de terroristas políticos, ou seja de suspeitos de atividades subversivas”.

Não é necessário grande esforço de reflexão para entender os limites da compreensão dos termos utilizados se considerada a tradição da Igreja luterana e envolvimentos políticos comprometedores em outros momentos da história. A utilização de termos “terroristas” e “atividades subversivas” pode indicar que algumas formas de contestação ao regime também não eram aceitas na Igreja, e a explicitação das mesmas tenderia a auxiliar no diálogo com o Estado. Na verdade a Igreja não buscava um confronto com o Estado e nem questionava a ditadura em si. O que estava em jogo, na óptica da Igreja, eram questões de ordem religiosa e moral que deveriam ser respeitadas por qualquer governo. A forma como foi encaminhado o documento revela um jeito cautelar luterano de longa data. Lutero também havia alertado os príncipes de suas obrigações como senhores e como deveriam tratar seus súditos [2].

O Manifesto de Curitiba, embora naquele instante um documento avançado se considerada a tradição da Igreja Luterana, foi estimulado pela reação desencadeada com a transferência da V Assembléia da Federação Luterana Mundial do Brasil para a França. A transferência aconteceu em decorrência das denúncias das ações da ditadura contra os direitos humanos. Temia-se que a conferência, acontecendo no Brasil, acabaria ajudando a legitimar o governo brasileiro. Queria-se, por outro lado, também evitar constrangimentos, uma vez que, para um evento dessa natureza, fatalmente se convidaria o presidente da república para o cerimonial de abertura.[3]

O Manifesto de Curitiba é dividido em duas partes. Na primeira, reescreve, à luz do tempo presente, teses sobre as relações entre a Igreja e o Estado. Na segunda, externa assuntos que preocupam a Igreja. Na opinião desse historiador, a situação política vigente faz emergir no documento questões históricas inconclusas relacionadas à inserção do cristão nas questões temporais. A difícil discussão sobre os limites dos dois reinos (espiritual e temporal) aparece no manifesto.

Ao especificar a relação entre a Igreja e o Estado, o manifesto ressalta que a mensagem “pública” da Igreja cristã, no que se refere aos problemas do mundo, não poderá ser divorciada de seu testemunho “interno”, já que um implica o outro. Sendo assim, a Igreja não pode condicionar seu testemunho público aos interesses de ideologias políticas momentaneamente em evidência, ou a grupos e facções que aspiram ou mantêm o poder.

Neste sentido, a Igreja se preocupa em buscar o diálogo franco e objetivo com o Estado em atmosfera de abertura, com a finalidade de encontrar soluções para os problemas que afligem a sociedade. “Como parceira corresponsável do governo secular, ela obedece ao preceito do Senhor que diz: ‘Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus’”. O manifesto ressalta que, em conseqüência da pregação pública da Igreja, poderão surgir tensões com autoridades governamentais. Neste caso, porém, a Igreja não procurará contestar o poder do Estado, como se ela fosse um partido político, mas proclamará o poder de Cristo. E quando sentir-se compelida a contrariar o Estado, procurará no diálogo o primeiro passo para o entendimento.

Mesmo que demonstrasse ingenuidade e reservas sobre algumas questões, o manifesto pode ser considerado como um documento que comprova a não omissão da Igreja luterana nas questões delicadas daquele tempo. Pode ser hoje considerado um passo tímido, cautelar e modesto, mas foi um passo considerado relevante para a história da Igreja no que se refere à sua inserção social. A forma de colocar as questões acabou sendo o jeito possível encontrado no momento. A partir daquela data o documento será utilizado em vários momentos da história da Igreja, inclusive no tempo presente.

O documento não levantou questões de ordem estrutural. O modelo econômico e social não foi abordado, mas apenas o regime político no que tange à ideologia de segurança nacional e aos direitos humanos. Schünemann vê no manifesto um tom não-ofensivo e amenizador. Isto teria feito segundo ele, com que o plenário do Concílio de 1970, composto majoritariamente por cidadãos luteranos que possuíam grande estima pelo regime vigente, aprovasse o manifesto. Enfatizando toda a cautela que acompanhou a elaboração e a entrega do documento ao presidente da república, considera que o documento reflete a consciência possível da Igreja naquelas circunstâncias. [4]

Notas

1. FONTE: BURGER, Germano. Quem assume esta tarefa? Um documentário de uma igreja em busca de sua identidade. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1977, pp. 37- 41.

2. O texto de Lutero que mais especifica o assunto intitula-se À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão e Da Autoridade Secular.

3. SCHÜNEMANN, Rolf. Do gueto à participação: o surgimento da consciência sócio-política na IECLB entre 1960 e 1975. São Leopoldo: Sinodal, 1992.

4. Ibidem., pp. 103-104

Tarcísio Vanderlinde –  Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Desenvolve a tese intitulada “Entre dois Reinos: a inserção luterana entre os pequenos agricultores”.


BURGER, Germano. Quem assume esta tarefa? Um documentário de uma igreja em busca de sua identidade. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1977, pp. 37- 41. Resenha de: VANDERLINDE, Tarcísio. O Manifesto de Curitiba: alguns comentários. Cantareira. Niterói, n.6, 2005. Acessar publicação original [DR]

Os Eurobrasileiros e o Espaço Colonial: migrações no Oeste do Paraná (1940/70) | Valdir Gregory

Resultado de tese de doutoramento defendida em 1997 na Universidade Federal Fluminense – UFF, o livro Os Eurobrasileiros e o Espaço Colonial é um estudo de fôlego a respeito da história social do Oeste Paranaense. Trata-se de uma abordagem que prioriza a experiência de comerciantes, caixeiros viajantes, colonos e colonas que por simples aventura, sonhos ou necessidades, migraram em busca de um novo espaço: a região Oeste do Paraná entre os anos 40 e 70 do século XX.

O argumento central de Valdir Gregory é de que os eurobrasileiros ligados à lide na terra moldaram o espaço colonial do Brasil Meridional ao mesmo tempo em que foram se moldando por ele. Resistindo às mudanças, se adaptando a elas, migraram para novas fronteiras agrícolas, onde preservaram e inovaram seus hábitos culturais. À época das inovações tecnológicas, estando sob a ameaça de deixarem de ser colonos, tiveram de reestruturar o modo-de-ser do colono.

Para sustentar essa tese, o autor apoiou-se em um considerável arcabouço documental e bibliográfico: relatórios e planos de ação de empresas colonizadoras, documentos oficiais (IBGE, INCRA e SUDESUL), documentos cartoriais, fontes jornalísticas (jornais e revistas), textos de época e depoimentos orais. A natureza variada das fontes, demonstra por si mesma, mérito do autor em conseguir “amarrá-las”, extraindo delas semelhanças e contradições, principalmente no que se refere à (re) organização espacial e social da região Oeste do Paraná em meados do século XX.

Para construir seu objeto de análise, Valdir Gregory começa o texto discorrendo sobre a colonização da região Sul do Brasil (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) por imigrantes europeus (alemães, italianos, ucranianos e poloneses), iniciada no décimo nono século. O contexto europeu da época, as migrações para a América e a dinâmica colonial implantada pelos imigrantes também são trabalhados, utilizando-se dos estudos de Leo Waibel, Emílio Wilhems, Maria Tereza Schörer Petrone, Lúcio Kreutz, Ruy Christovam Wachowicz, José Vicente Tavares dos Santos, entre outros. “Os eurobrasileiros puderam constituir uma sociedade colonial na qual a herança cultural, no seu sentido amplo, européia, mesclou-se com a realidade encontrada e constituída pelos colonos para formar o espaço colonial dinâmico e instável”. (p.53) Instável porque a estrutura fundiária das regiões coloniais gaúchas e catarinenses, em princípios do século XX, não mais suportava o crescente aumento populacional e a limitada disponibilidade de terras cultiváveis, fazendo com que os eurobrasileiros se deslocassem para as cidades ou para novas fronteiras agrícolas. “O Paraná foi o estado receptor por excelência”. (p.55)

A partir dos discursos dos governadores Moysés Lupion (1948/52; 1957/61) e Bento Munhoz da Rocha Neto (1953/57) sobre a colonização do território paranaense, bem como de relatórios e planos de ação de algumas empresas colonizadoras e madeireiras que atuaram no Oeste do Paraná entre as décadas de 1940 a 60, o autor percebe uma série de interesses comuns em torno da colonização das terras situadas próximas à fronteira internacional com outros países (Argentina e Paraguay). “A visão geopolítica federal via na colonização a consolidação territorial brasileria assegurada por colonos pequenos proprietários. Os empreendedores de empresas colonizadoras e madeireiras vislumbravam novas possibilidades de investimentos em negócios madeireiros e de mercantilização de terras. Os colonos se dispunham a migrar para reconstruírem espaços coloniais” (p. 70). Controle, direcionamento e presença constante e efetivas dos homens do Estado e das estratégias de atuação das colonizadoras fizeram com que se estabelecesse um novo espaço colonial aos moldes do antigo espaço colonial, isto é, uma estrutura baseada na pequena propriedade rural (em média 25 hectares) ocupada por colonos gaúchos ou catarinenses acostumados à lide na policultura.

Esses são alguns itens explorados por Valdir Gregory na documentação, por exemplo, da Industrial Madeireira e Colonizadora Rio Paraná – MARIPÁ, organizada em Porto Alegre no ano de 1946: “Na medida em que a colonização avançava, os administradores adotavam novas formas de atuação e de investimentos em atividades industriais, comerciais e de serviços, criando novas empresas e participando da estruturação das infra-estruturas necessárias para o desenvolvimento das atividades religiosas, educacionais, recreativas e outras” (pp.151-152).

Uma ênfase especial é dada pelo autor no que se refere às estratégias adotadas pelas empresas colonizadoras na seleção do colono “ideal”: divulgação restrita a grupos específicos de colonos, cuja preferência era dada àqueles descendentes de imigrantes alemães e italianos; a localidade de origem, a língua e a religião tiveram grande influência na escolha dos locais tanto para a escolha dos colonos como para o estabelecimento das famílias no novo espaço colonial: “Os teuto-brasileiros, os ítalo-brasileiros, os eurobrasileiros, enfim, já tinham, pois, acumulado experiências agrícola e de vida rural nas colônias do Sul do Brasil durante mais de um século. Estavam acostumados ao trabalho árduo em pequenos lotes de terra. Tinham a fama de serem econômicos, evitando gastos para alimentar seus espíritos de poupança e de provedores do futuro próprio, dos filhos e dos netos. Nessas colônias, os empreendedores buscaram o modelo de sua estruturação espacial e dessas colônias atraíram os colonos ideais para atingirem seus intentos” (p. 176).

Para os colonos, a mudança do antigo espaço colonial para a construção de um novo espaço se constituiu numa situação de crise, de incertezas, manifestando-se de formas variadas no cotidiano e na memória dos eurobrasileiros, afetando seu estilo de viver e de ser. A riqueza de detalhes apresentado por Valdir Gregory impressiona mesmo aqueles que pouco sabem ou leram sobre a relação homem-terra. Aliada à modernização das técnicas agrícolas, iniciada em fins da década de 1960, os eurobrasileiros foram obrigados a assumir novos papéis, se adaptar e resistir às mudanças.

Para analisar esse processo de mudança e resistência a ela, o autor fez uso de depoimentos orais, do relatório final de um projeto denominado PERSAGRI II, desenvolvido pelo Ministério da Agricultura e pela Fundação Getúlio Vargas e, de uma extensa bibliografia sobre a temática. Nesta documentação foi possível perceber o conflito entre a pressão pela mudança, provocada pela modernização, e a resistência para a manutenção da situação de colonos. “A migração continuou sendo uma forma de resistir à inovação […] Querer ter terra, querer reconstruir um espaço colonial conflitava com as exigências de um programa, de uma política de modernização do campo que potencializavam desejos de ascensão social, desejos de competição, enfim, desejos anti-coloniais” (p. 235).

Creio que Valdir Gregory poderia ter apresentado mais detalhes a respeito da atuação dos órgãos criados pelo Governo Paranaense para realizar e coordenar a colonização “oficial” ou “pública” de parte considerável do território paranaense. Os conflitos de terra, ocorridos de forma intensa na região Oeste do Paraná durante a colonização, é outro ponto que também merecia mais atenção. No mais, apreciei muito a maneira como Valdir Gregory escreve: sem floreios, rodeios e divagação teórica. A argumentação teórica quase passa despercebida, mas está lá, de forma coesa. As informações a respeito das fontes documentais e a forma como foram exploradas revelam, ainda mais, o faro deste historiador. Enfim, os méritos são diversos.

Antonio Marcos Myskiw – Professor de História do Paraná na UNIOESTE. Mestre em História Social pela UFF. E-mail: [email protected]


GREGORY, Valdir. Os Eurobrasileiros e o Espaço Colonial: migrações no Oeste do Paraná (1940/70). Cascavel: EDUNIOESTE, 2002. Resenha de: MYSKIW, Antonio Marcos. Cantareira. Niterói, n.2, 2002. Acessar publicação original [DR]