De Hitchcock a Greenaway, pela história da filosofia. Novas reflexões sobre cinema e filosofia – CABRERA (FU)

CABRERA, J. De Hitchcock a Greenaway, pela história da filosofia. Novas reflexões sobre cinema e filosofia. São Paulo: Nankin Editorial, 2007. Resenha de: KUSSLER, Leonardo Marques. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.12, n.1, p.87-89, jan./abr., 2011

Nesta segunda obra que aborda a temática de cinema e filosofia, Cabrera retoma alguns pontos de seu livro anterior (Cabrera, 2006) que geraram muitas dúvidas e mal-entendimentos, pressupondo que não se faz necessário demonstrar novamente o cinema em seu enlace com a filosofia, e sim, mostrar as repercussões acerca do que o cinema mostrou da natureza filosófica, diz o autor. Para tanto, Cabrera distingue dois momentos do livro: um primeiro, mais teórico com esclarecimentos e definições mais específicas dos conceitos de seu primeiro livro, e um segundo, que trata de novas reflexões do autor com análises e reflexões sobre novos filmes.

O autor retoma o conceito de páthos e sua presença no âmbito filosófico — sua importância ante os sistemas tradicionais (intelectualistas nas palavras do autor) de filosofia na tentativa de justificar a afetividade como parte de um modo de compreensão — e, especialmente, sua participação no momento filosófico do cinema. A grande crítica refere-se às tradicionais vertentes intelectualistas filosóficas, que entendem a compreensão somente como algo proposicional e apático, conforme Cabrera, totalmente desligada do páthos, da afetividade. A ideia de Cabrera parte do crédito que ele dá à possibilidade de conceber ideias não necessariamente nessa redoma intelectualista, que reduz a capacidade de composições de ideias ao meramente racional, duro, sem a dimensão da afetividade. O autor quer mostrar que, com a afetividade, é possível uma nova raiz de concepções ideáticas composta não só pela razão hard, mas também pela companhia do caráter afetivo, numa logopatia, diz Cabrera, onde esta carga afetiva seria um meio pelo qual seria possível conceber conceitos. Alguns filósofos, segundo ele, arriscaram-se a trazer o elemento pático na formulação de sua filosofia, tais como Hegel, Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger. Tais pensadores levaram a linguagem ao extremo de sua capacidade expressiva, buscando um movimento que fugisse da construção argumentativa linear. Por meio da escrita em aforismos e de poesias, diz Cabrera, tais autores fizeram críticas ao momento de expressão máxima — e também de limite — da linguagem, ao se darem conta que não conseguiam dizer tudo através dos referenciais da linguagem tradicional.

O cinema, na visão de Cabrera, seria um novo meio de se passar conceitos através de imagens. Tais conceitos não seriam simples imagens, visto que fariam tremer o espectador justamente por portarem o elemento afetivo. Da imagem “[…] não interessa somente sua eventual função de ‘auxiliares’ das ideias, mas a capacidade de interagir com elas modificando seu sentido, intensificando sua compreensão” (Cabrera, 2007, p.16). As imagens do cinema, ou cinematográficas, não se compõem pela simples representação gráfica em movimento, mas também por tudo que não aparece, ou seja, pelos sons, pelos ruídos, por todos os efeitos de câmera que em conjunto com as ideias podem representar ou descrever a realidade de uma forma mais rica. Na visão apática, própria dos filósofos intelectualistas, é omitida a dimensão afetiva, impactante da imagem, bem como sua carga de referência potencial, diz o autor. O cinema tem esta capacidade de moldar a imagem e potencializá-la no momento de impacto. O filme pode apresentar asserções de verdade, ou pretensões de verdade ou falsidade, pois, ao se pôr na função de provedor de conceitos, obviamente pode ter algum tipo de assertividade, embora não no sentido proposicional, mas situacional. Os conceitos-imagem, por meio de outros dispositivos, ligam-se a uma assertividade de tipo situacional que, no cinema, são “[…] algo semelhante às proposições para a filosofia escrita: um lugar onde os conceitos interagem e se desdobram” (Cabrera, 2007, p.19). O cinema, à medida que mostra alguns elementos, oculta outros, sendo por isso “[…] tão bipolar quanto a proposição, arriscando-se à falsidade e à inadequação” (Cabrera, 2007, p.21). O autor defende que a imagem não é facilmente saturada, pelo contrário, sua riqueza consiste em uma inquietante incompletude, um lado de sombra que deixa de mostrar. O cinema tem sua própria capacidade de comunicar-se de acordo com sua linguagem particular, “ele é uma linguagem porque dispõe de recursos para fazer afirmações, ou seja, para predicar algo acerca de algo” (Cabrera, 2007, p.22). O autor ainda ressalta que a assertividade das imagens não exclui o fictício, o fantástico, pois, os conceitos-imagem, ao contrário dos conceitos-ideia, não temem trazer sua própria verdade por intermédio do extraordinário, do implausível. Os impactos emocionais que os filmes causam nos espectadores fazem-nos perceber mais claramente a temática que o filme apresenta. Ao observar os conceitos-imagem de um filme, podemos compará-los com os de um outro filme que trata do mesmo assunto e filtrar de acordo com a melhor compreensão e gosto pessoal. Podemos simplesmente gostar do conteúdo do filme e rejeitar a tese imagética que ele carrega consigo. “Existem realidades às quais temos melhor acesso pelo auxílio de algum impacto emocional, mas uma vez que se teve o acesso e se compreende do que se trata, pode perfeitamente rejeitar-se” (Cabrera, 2007, p.27). O interessante a ressaltar nesta última parte descrita é o caráter filosófico do não enterrar a ideia refutada, pois, tal como na filosofia não se pode enterrar uma ideia refutada, o mesmo se dá no âmbito cinematográfico, pois parece atrelado à análise de conceitos, que são reformuláveis, como na filosofia. Uma nota de Cabrera explica que não necessariamente temos que explicar filosoficamente as coisas de um modo duro, apático, senão por um caráter mais aberto que leve de volta à essência reflexiva e inconclusiva filosófica, diz o autor, pois dispomos de inúmeros tipos de linguagens que expõem conceitos.

A segunda parte do livro apresenta alguns exercícios filosóficos e analíticos de filmes, tal como no primeiro livro, carregando títulos no mínimo provocativos, como por exemplo: “Kant na lista de Schindler?”, ou “Schelling, Amadeus e o pior diretor de cinema de todos os tempos”, ou então “Schopenhauer e Roberto Benigni. A vida é bela: análise de uma frase absurda e de um filme deplorável”. Aqui, Cabrera tenta colocar em prática suas teses desenvolvidas anteriormente e demonstrar a importância do caráter filosófico, de fato, nos filmes, no momento em que as problemáticas do cinema se tocam com as da filosofia — não necessariamente confluindo-se.

Por último, o autor destaca, de forma bem-humorada, o problema da tradução de títulos do cinema para a língua portuguesa, dividindo os tipos de tradução e comparando o nível de alteração do original para o traduzido. É importante ressaltar a defesa do autor ante os ataques críticos que recebeu em seu primeiro livro, o que mostra que sua pretensão se dá pela simples exposição de suas concepções, sem “pontos finais”, mas como alternativas somente. Enfim, sem dúvida, apesar das críticas, trata-se de um ótimo livro, que traz questões antigas sob uma nova perspectiva de pensar, com caráter transdisciplinar e contemporâneo.

Referências

CABRERA, J. 2006. O cinema pensa. Rio de Janeiro, Rocco, 399 p.

Leonardo Marques Kussler – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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O cinema pensa – CABRERA (FU)

CABRERA, J. O cinema pensa. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. Resenha de: PORTELLA, Sergio; KUSSLER, Leonardo. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.1, p.118-120, Jan./abr., 2009.

Seria critério de afirmação de um bom texto filosófico a estrita aceitação por uma comunidade especializada, logo, seu igual distanciamento ao público “leigo”, incapaz e indiferente às reflexões do filósofo? O ensaio intitulado O cinema pensa do professor Julio Cabrera, argentino radicado no Brasil e “apátrida” confesso, poria em xeque este critério. Seja pela linguagem complacente ao leitor ou pela tomada de objetos que fariam qualquer um desejar conhecer mais Platão, Hegel, etc., quais sejam, bons e inteligentes filmes, Cabrera não por isso relega em sua obra o delineamento de figuras conceituais e teorias filosóficas.

Tão reais quanto o rei, estas teorias mesmo brotariam da vivacidade cabível à filosofia do renomado filósofo analítico cujo pensamento “sempre oscilou entre análise e existência”. A filosofia não careceu da invenção do cinematógrafo para se constituir, isso é fato, mas também não deve se considerar uma prática cultural avessa às demais produções humanas. Esse alargamento da definição de filosofia, aliás, nem sequer esperou o cinema para se afirmar. O livro inicia com uma introdução teórica intitulada Cinema e filosofia: para uma crítica da razão logopática, onde Cabrera identifica no itinerário do pensamento ocidental, de Platão a Deleuze, duas posturas opostas acerca do otimismo reservado à linguagem escrita na exposição do problema filosófico. Seriam, primeiramente, os chamados filósofos apáticos aqueles que privilegiam a exposição proposicional linear da filosofia. Aristóteles, Kant e Wittgenstein seriam exemplares para esta filosofia que se caracteriza pela pretensão de exaurir lógico-analiticamente a compreensão racional do mundo. Contrariamente, os então chamados filósofos páticos, Platão, Hegel, Nietzsche e Heidegger, p.ex., admitiriam a pertinência de um elemento afetivo no “acesso [filosófico] ao mundo”. Este componente seria responsável pela capacidade de “desalojar” o ponto em análise de suas bases habituais de sustentação, sem, contudo, findar relações com o caráter cognitivo originariamente pretendido pela filosofia. “O emocional não desaloja o racional: redefine-o” bem expressa a “razão logopática”. O elemento afetivo comporia um “impacto emocional” que, proporcionando a emersão daquilo que até então se manteve velado na compreensão racional do mundo, facilitaria a empresa do filósofo de “traduzir” o problema, logo, mantendo seu valor epistêmico mediante os assim chamados “conceitos-ideias”.

Os conceitos-ideias teriam, não obstante seu longo histórico prévio ao surgimento do cinema, encontrado neste sua mais adequada expressão. Suas variadas formas percorreram o aforismo, a frase especulativa, o poema filosófico e a biografia para, ao cabo, encontrarem nos “conceitos-imagem” do cinema a “superpotencialização” dos seus elementos constitutivos. São, num todo, experiências [não experimentos] do caráter “existencial” do pensamento enquanto especulação sobre os limites da linguagem propositiva filosófica acerca do real. Justamente este é o sentido dado por Cabrera à “experiência do filme”, indescritível, somente experienciável. “As imagens parecem vincular conceitos e explorar o humano de maneiras mais perturbadoras que a lógica e ética escritas”. O valor conceitual de um filme reside nas “proposições imagéticas” por ele instauradas, incompatíveis à condição epistêmica prévia à sua experiência dado que nela emerge a sensibilidade condizente ao caso cinematográfico. Pois a “verdade” é então compreendida no horizonte de uma universalidade cuja manifestação não exclui as demais, como “possibilidades” cuja atualização remete ao contexto e ao caso face ao qual o expectador é colocado. Trata-se não do “acontece necessariamente, mas… [do que] poderia acontecer a qualquer um”. A riqueza conceitual de um filme é justamente dada a partir da forma como estas possibilidades são pressupostas e encontram seu desfecho, o que se dá mediante unidades iconográficas expressas ou postas em paralelo ao roteiro (a partida de xadrez do cavaleiro Antonius Block com a Morte em O sétimo selo – Det Sjunde Inseglet, do sueco leitor de Kierkegaard Ingmar Bergman, apresentaria uma tecitura sintática análoga aos episódios como compreendidos e vividos em um primeiro plano do roteiro pelo protagonista, expressando sua insuficiência em articular a realidade conforme seu saber e querer particulares face ao destino inevitável). Por conseguinte, o filme num todo se tornaria um único argumento cujo termo consequente residiria em premissas as quais é impossível isolar num tempo só seu, logo, numa temporalidade que só em seu desfecho reencontra o timer do projetor.

Postos os devidos referenciais teóricos, o autor propõe quatorze exercícios nos quais demonstra a articulação entre “conceitos-ideias” e “conceitos-imagem” e o cinema pensante que daí resulta. Os temas são clara e prazerosamente apresentados, de modo a contentar cinéfilos e filósofos num mesmo discurso. De Heidegger e a serenidade e Antonini e o tédio, somos mesmo convencidos de não compreender a profundidade de Platoon, de Oliver Stone, sem ler Platão por ele mesmo. A emocionalidade da guerra não se presta à tradução conceitual exaustiva pela filosofia política, requer mesmo o choque imagético trazido pela violência do filme, a convicção do testemunho como experiência subjetiva, único aporte às impressões do real. Neste e noutros casos de títulos provocantes (São Tomás e o bebê de Rosimery ou Hegel, Paris Texas), o fio de conduta é sempre a permanência essencial velada da verdade face à abordagem puramente abstrata racional da linguagem escrita.

A sequência da obra, capítulo intitulado O cinema pensa, divide-se em dois momentos. No primeiro, as relações apresentadas no ensaio inicial e desenvolvidas nos exercícios são retomadas numa perspectiva detidamente filosófica, ao passo que, no segundo, são evocadas as teorias de cinema que ocasionam o diálogo cinema e filosofia cujo sentido é justificar a afirmação basilar de que O cinema pensa, dando sentido à obra como um todo. Pois, como proposta de uma “introdução à filosofia através dos filmes”, um cinema pensante e uma filosofia mediante imagens em movimento não dispensariam uma definição de filosofia que propriamente os conjugasse. Contudo, assumidamente, a obra de Cabrera lança maior atenção a esta em detrimento daquele, fazendo um uso filosófico do cinema que dispensa uma maior construção cinematográfica da filosofia. Claro, a “problematicidade intrínseca da imagem” sustenta a metáfora de que O cinema pensa, o “acesso ao mundo” mediante a universalidade e pretensão de verdade da experiência pática comportadas pelo cinema. Mas esta relação unilateral entre cinema e filosofia, “filósofos cinematográficos” mas não “diretores filósofos”, dispensaria de todo o caráter intencional da estrutura de produção dos filmes?

A pergunta seria facilmente respondida pela alegação de tal não ser a finalidade de Cabrera (à filosofia importa o pathos do cinema, seu “componente afetivo”; os conceitos-imagem têm sua definição claramente delimitada na afirmação de que “não são categorias estéticas”). Mas tal resposta não eliminaria a questão de saber se o “impacto” provocado não teria sido intencionalmente causado no expectador (o cinema enquanto “linguagem”), o que, além de devolver o “estético” ao pático, lançaria luz à admissão de um caráter lógico-ordenador pressuposto ao caso apresentado pelo filme. Este decorreria não mais com base na “possibilidade” afirmada, mas mediante a “necessidade” negada. A afirmação do filme como um único conceito-imagem composto inferencialmente a partir de estruturas iconográficas impróprias ao isolamento funcional ao longo do seu desenvolvimento no roteiro ruiria. A unidade obtida se afirmaria a partir de um metassistema [lógico, ordenador] pressuposto à sistematização dos elementos objetivos [manifestos], qual seja, a linguagem utilizada pela direção na estruturação do filme. Um ponto a reforçar este argumento se revela no fato de que nenhum dos exercícios propostos pelo autor incide a um filme distinto da estrutura cinematográfica clássica (mesmo De Sica mantém-se num plano narrativo, sem falar em Quentin Tarantino ou Tim Burton), logo, uma suposta impositividade teórica dada com base numa falácia de generalização na proposta da obra. Ou se veria que somente alguns filmes se prestam à logopatia, dado o silêncio de Cabrera a um maior aprofundamento em teorias do cinema? Ou seja, andaria a logopatia de mãos dadas com roteiristas? Pois, ou dá-se o mero uso didático do cinema pela filosofia, ou admite-se uma delimitação funcional dos elementos iconográficos na unidade da obra cinematográfica como condição ao “impacto emocional”, o que, entendemos, requereria ajustes junto à própria definição de filosofia admitida pelo autor no âmago da sua obra O cinema pensa. A construção teórica de uma “filosofia cinematográfica” estaria, assim, suportada pela afirmação de um “cinema filosófico”, afirmação esta que ainda permanece aguardada pelo leitor.

Sergio Portella – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: [email protected]

Leonardo Kussler – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: [email protected]

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