O cinema pensa – CABRERA (FU)

CABRERA, J. O cinema pensa. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. Resenha de: PORTELLA, Sergio; KUSSLER, Leonardo. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.1, p.118-120, Jan./abr., 2009.

Seria critério de afirmação de um bom texto filosófico a estrita aceitação por uma comunidade especializada, logo, seu igual distanciamento ao público “leigo”, incapaz e indiferente às reflexões do filósofo? O ensaio intitulado O cinema pensa do professor Julio Cabrera, argentino radicado no Brasil e “apátrida” confesso, poria em xeque este critério. Seja pela linguagem complacente ao leitor ou pela tomada de objetos que fariam qualquer um desejar conhecer mais Platão, Hegel, etc., quais sejam, bons e inteligentes filmes, Cabrera não por isso relega em sua obra o delineamento de figuras conceituais e teorias filosóficas.

Tão reais quanto o rei, estas teorias mesmo brotariam da vivacidade cabível à filosofia do renomado filósofo analítico cujo pensamento “sempre oscilou entre análise e existência”. A filosofia não careceu da invenção do cinematógrafo para se constituir, isso é fato, mas também não deve se considerar uma prática cultural avessa às demais produções humanas. Esse alargamento da definição de filosofia, aliás, nem sequer esperou o cinema para se afirmar. O livro inicia com uma introdução teórica intitulada Cinema e filosofia: para uma crítica da razão logopática, onde Cabrera identifica no itinerário do pensamento ocidental, de Platão a Deleuze, duas posturas opostas acerca do otimismo reservado à linguagem escrita na exposição do problema filosófico. Seriam, primeiramente, os chamados filósofos apáticos aqueles que privilegiam a exposição proposicional linear da filosofia. Aristóteles, Kant e Wittgenstein seriam exemplares para esta filosofia que se caracteriza pela pretensão de exaurir lógico-analiticamente a compreensão racional do mundo. Contrariamente, os então chamados filósofos páticos, Platão, Hegel, Nietzsche e Heidegger, p.ex., admitiriam a pertinência de um elemento afetivo no “acesso [filosófico] ao mundo”. Este componente seria responsável pela capacidade de “desalojar” o ponto em análise de suas bases habituais de sustentação, sem, contudo, findar relações com o caráter cognitivo originariamente pretendido pela filosofia. “O emocional não desaloja o racional: redefine-o” bem expressa a “razão logopática”. O elemento afetivo comporia um “impacto emocional” que, proporcionando a emersão daquilo que até então se manteve velado na compreensão racional do mundo, facilitaria a empresa do filósofo de “traduzir” o problema, logo, mantendo seu valor epistêmico mediante os assim chamados “conceitos-ideias”.

Os conceitos-ideias teriam, não obstante seu longo histórico prévio ao surgimento do cinema, encontrado neste sua mais adequada expressão. Suas variadas formas percorreram o aforismo, a frase especulativa, o poema filosófico e a biografia para, ao cabo, encontrarem nos “conceitos-imagem” do cinema a “superpotencialização” dos seus elementos constitutivos. São, num todo, experiências [não experimentos] do caráter “existencial” do pensamento enquanto especulação sobre os limites da linguagem propositiva filosófica acerca do real. Justamente este é o sentido dado por Cabrera à “experiência do filme”, indescritível, somente experienciável. “As imagens parecem vincular conceitos e explorar o humano de maneiras mais perturbadoras que a lógica e ética escritas”. O valor conceitual de um filme reside nas “proposições imagéticas” por ele instauradas, incompatíveis à condição epistêmica prévia à sua experiência dado que nela emerge a sensibilidade condizente ao caso cinematográfico. Pois a “verdade” é então compreendida no horizonte de uma universalidade cuja manifestação não exclui as demais, como “possibilidades” cuja atualização remete ao contexto e ao caso face ao qual o expectador é colocado. Trata-se não do “acontece necessariamente, mas… [do que] poderia acontecer a qualquer um”. A riqueza conceitual de um filme é justamente dada a partir da forma como estas possibilidades são pressupostas e encontram seu desfecho, o que se dá mediante unidades iconográficas expressas ou postas em paralelo ao roteiro (a partida de xadrez do cavaleiro Antonius Block com a Morte em O sétimo selo – Det Sjunde Inseglet, do sueco leitor de Kierkegaard Ingmar Bergman, apresentaria uma tecitura sintática análoga aos episódios como compreendidos e vividos em um primeiro plano do roteiro pelo protagonista, expressando sua insuficiência em articular a realidade conforme seu saber e querer particulares face ao destino inevitável). Por conseguinte, o filme num todo se tornaria um único argumento cujo termo consequente residiria em premissas as quais é impossível isolar num tempo só seu, logo, numa temporalidade que só em seu desfecho reencontra o timer do projetor.

Postos os devidos referenciais teóricos, o autor propõe quatorze exercícios nos quais demonstra a articulação entre “conceitos-ideias” e “conceitos-imagem” e o cinema pensante que daí resulta. Os temas são clara e prazerosamente apresentados, de modo a contentar cinéfilos e filósofos num mesmo discurso. De Heidegger e a serenidade e Antonini e o tédio, somos mesmo convencidos de não compreender a profundidade de Platoon, de Oliver Stone, sem ler Platão por ele mesmo. A emocionalidade da guerra não se presta à tradução conceitual exaustiva pela filosofia política, requer mesmo o choque imagético trazido pela violência do filme, a convicção do testemunho como experiência subjetiva, único aporte às impressões do real. Neste e noutros casos de títulos provocantes (São Tomás e o bebê de Rosimery ou Hegel, Paris Texas), o fio de conduta é sempre a permanência essencial velada da verdade face à abordagem puramente abstrata racional da linguagem escrita.

A sequência da obra, capítulo intitulado O cinema pensa, divide-se em dois momentos. No primeiro, as relações apresentadas no ensaio inicial e desenvolvidas nos exercícios são retomadas numa perspectiva detidamente filosófica, ao passo que, no segundo, são evocadas as teorias de cinema que ocasionam o diálogo cinema e filosofia cujo sentido é justificar a afirmação basilar de que O cinema pensa, dando sentido à obra como um todo. Pois, como proposta de uma “introdução à filosofia através dos filmes”, um cinema pensante e uma filosofia mediante imagens em movimento não dispensariam uma definição de filosofia que propriamente os conjugasse. Contudo, assumidamente, a obra de Cabrera lança maior atenção a esta em detrimento daquele, fazendo um uso filosófico do cinema que dispensa uma maior construção cinematográfica da filosofia. Claro, a “problematicidade intrínseca da imagem” sustenta a metáfora de que O cinema pensa, o “acesso ao mundo” mediante a universalidade e pretensão de verdade da experiência pática comportadas pelo cinema. Mas esta relação unilateral entre cinema e filosofia, “filósofos cinematográficos” mas não “diretores filósofos”, dispensaria de todo o caráter intencional da estrutura de produção dos filmes?

A pergunta seria facilmente respondida pela alegação de tal não ser a finalidade de Cabrera (à filosofia importa o pathos do cinema, seu “componente afetivo”; os conceitos-imagem têm sua definição claramente delimitada na afirmação de que “não são categorias estéticas”). Mas tal resposta não eliminaria a questão de saber se o “impacto” provocado não teria sido intencionalmente causado no expectador (o cinema enquanto “linguagem”), o que, além de devolver o “estético” ao pático, lançaria luz à admissão de um caráter lógico-ordenador pressuposto ao caso apresentado pelo filme. Este decorreria não mais com base na “possibilidade” afirmada, mas mediante a “necessidade” negada. A afirmação do filme como um único conceito-imagem composto inferencialmente a partir de estruturas iconográficas impróprias ao isolamento funcional ao longo do seu desenvolvimento no roteiro ruiria. A unidade obtida se afirmaria a partir de um metassistema [lógico, ordenador] pressuposto à sistematização dos elementos objetivos [manifestos], qual seja, a linguagem utilizada pela direção na estruturação do filme. Um ponto a reforçar este argumento se revela no fato de que nenhum dos exercícios propostos pelo autor incide a um filme distinto da estrutura cinematográfica clássica (mesmo De Sica mantém-se num plano narrativo, sem falar em Quentin Tarantino ou Tim Burton), logo, uma suposta impositividade teórica dada com base numa falácia de generalização na proposta da obra. Ou se veria que somente alguns filmes se prestam à logopatia, dado o silêncio de Cabrera a um maior aprofundamento em teorias do cinema? Ou seja, andaria a logopatia de mãos dadas com roteiristas? Pois, ou dá-se o mero uso didático do cinema pela filosofia, ou admite-se uma delimitação funcional dos elementos iconográficos na unidade da obra cinematográfica como condição ao “impacto emocional”, o que, entendemos, requereria ajustes junto à própria definição de filosofia admitida pelo autor no âmago da sua obra O cinema pensa. A construção teórica de uma “filosofia cinematográfica” estaria, assim, suportada pela afirmação de um “cinema filosófico”, afirmação esta que ainda permanece aguardada pelo leitor.

Sergio Portella – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: [email protected]

Leonardo Kussler – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: [email protected]

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