Guerra Literária: panfletos da Independência (1820-1823) – CARVALHO e. al (VH)

CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lúcia; BASILLE, Marcelo (Orgs). Guerra Literária: panfletos da Independência (1820-23). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. GASPAR, Tarcísio de Souza. Guerra Literária: panfletos da Independência (1820-23). Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 57, Set./ Dez. 2015.

A confluência de novas tecnologias de comunicação – as chamadas redes sociais – com velhas insatisfações políticas tem modificado, disseminado e talvez potenciado o debate e a mobilização política no Brasil e noutras partes do globo, e contribuído para a ocorrência de movimentos como a Primavera Árabe e os protestos de junho de 2013 no Brasil. É impossível prever o futuro dessa interação. Mas o seu passado, isto é, o da correlação entre a efervescência de ideias e de manifestações públicas de opinião e a deflagração de conflitos políticos de grande escala, foi historicamente consagrado. Nos últimos séculos, momentos de crise coincidiram quase sempre com a proliferação de falas, de textos e de outras expressões do pensamento. Alterações políticas trouxeram consigo furor comunicativo. Ou, antes disso, a popularização de conceitos ocasionou modificações no vocabulário e nas estruturas políticas.

A monumental obra em questão, dividida em quatro grossos volumes, expõe uma dessas felizes – e raras – combinações entre proliferação da palavra e efervescência política na história brasileira. Organizada por três grandes nomes de nossa historiografia política, a coleção de panfletos da Independência traz boa parte do que se escreveu e se discutiu publicamente no Brasil ao longo de um curto, porém, crucial período, no qual transformações políticas decisivas se sucederam em ritmo acelerado. O movimento liberal do Porto, em agosto de 1820, foi o estopim de tensões impactantes no mundo luso-brasileiro, suscitadoras da produção de expressivo conjunto de panfletos manuscritos e impressos, que alimentaram o debate envolvido na constitucionalização do reino lusitano, nas eleições e nos debates das Cortes, na emancipação brasileira e na afirmação inicial do novo Estado americano. Em obra pretérita, intitulada Às armas, cidadãos! (2012), os organizadores já haviam dado à luz 32 panfletos manuscritos redigidos entre 1820 e 1823. Agora, em Guerra Literária: panfletos da Independência, completam a coleção com a parte mais robusta do acervo, composta pelos folhetos políticos impressos à mesma época, num total de 362 panfletos.

Coligida em diferentes instituições, ao longo de décadas de pesquisa acumulada por seus organizadores, a edição crítica dos panfletos é um colosso documental. Seu impacto na historiografia interessada na independência e na história do pensamento político brasileiro na primeira metade do século XIX promete ser expressivo, tanto por facilitar o acesso a documentos importantes, quanto por revelar fontes pouco utilizadas ou desconhecidas. Os impressos informam sobre a formação de uma incipiente esfera pública de discussão política, que incluiu “periodiqueiros”, jornalistas, membros das elites coimbrã e brasiliense, bacharéis, militares, religiosos, letrados e leitores diversos e se estendeu, pela oralidade, até grupos populares e iletrados. Esse lastro social do processo constitucional e independentista apenas recentemente começou a ser descortinado por nossa historiografia. A obra interessa ainda por se coadunar a diferentes perspectivas da história política em voga, como as que perseguem conceitos (sob influência de R. Koselleck),linguagens (inspirada em autores como J. G. A. Pocock e Q. Skinner) e culturas políticas. Essa historiografia, mais afeita às expressões populares e ordinárias do pensamento político, de preferência aos cânones e aos registros oficiais, tem reconstituído formas de pensar, de agir e de se exprimir em embates ou processos políticos, historicamente situados.

Guerra Literária cumpre bem os requisitos de uma obra de referência. Os volumes estão ordenados por gêneros literários e, no interior desses, os panfletos se dispõem em ordem cronológica anual. A opção pelo gênero textual adequa-se às características da documentação. Datados apenas com o ano de publicação, os folhetos não se prestam a sequenciamento cronológico preciso. Tampouco poderiam ter sido organizados por autor, haja vista a ocorrência comum do anonimato e do pseudônimo. Os dois primeiros tomos, compostos por cartas (v. 1) e por análises, reflexões e projetos de teor especulativo (v. 2), são mais homogêneos. O terceiro e o quarto englobam tipos distintos: sermões, orações, discursos, diálogos, catecismos, dicionários, manifestos, proclamações, representações, protestos, apelos e elogios (v. 3); e poesias, relatos, exposições, memórias, notícias e narrações (v. 4). Nesse volume ainda constam os folhetos políticos impressos na Cisplatina, então parte do Reino Unido. Os organizadores contribuíram com uma introdução geral à coleção e outras específicas a cada volume. Os panfletos platinos tiveram introdução especializada, redigida por Ana Frega. O leitor conta ainda com cronologia do período, índices onomásticos, notas biográficas e o rol das tipografias envolvidas.

Os impressos eram “literatura de circunstância” que almejava comunicar-se com o grande público. A oralidade impregnou textos em forma de diálogo, orações, catecismos, entre outras. Cabia fazer circular o “novo vocabulário político”, valendo-se de técnicas retóricas e de artifícios literários. Os panfletos tomaram as ruas. A leitura em voz alta e a rede de murmurações e de boatos levaram o conteúdo de discursos e de comunicações escritas àqueles que não sabiam ler. Baratos e acessíveis, os escritos de circunstância serviam, como se disse à época, ao entretenimento dos que não podiam pagar entrada no teatro. Num contexto de agitação política, foram instrumentos fundamentais de participação e de mobilização. Possibilitaram a intervenção do homem comum no espaço público. Disseminaram notícias e informações políticas, tornando-as de domínio público. Popularizaram, em frequência inédita no Brasil, os conceitos políticos oriundos da Ilustração e do contexto revolucionário que desestruturou o Antigo Regime (v. 1, p. 12-16).

Apesar do clima de liberdade de expressão e de participação política, manifestada inclusive através do voto, as heranças coloniais daquela sociedade escravista restringiram e, no limite, inviabilizaram essa esfera pública. Nos panfletos relativos à situação brasileira, a escravidão metaforizava o despotismo e a tirania. A princípio, a constituição deveria estipular “os direitos do cidadão livre”, distinguindo-o do “escravo de tantos senhores”. Em seguida, a postura recolonizadora adotada pelas Cortes transformou-se numa tentativa de escravização, “como se fôssemos um punhado de miseráveis escravos sujeitos à discrição e capricho de seus senhores, e não um Reino aliado mais poderoso e com mais recursos do que o mesmo Portugal” (v. 2, p. 110-123). Um poema feminino que se acredita ter sido escrito por menina baiana de 13 anos indagou: “Justos céus, de que nos servem/Bases da Constituição/Se a lusa tropa só quer/Impor-nos a escravidão” (v. 4, p. 263).

A independência garantiu a alforria política das elites regionais, antes submetidas à metrópole europeia. Como discursou posteriormente o deputado Lino Coutinho, “o Brasil quebrou os ferros da escravidão e separou-se do reino e se pôs no estado de independência”. Mas não estendeu esse “estado” à massa de africanos e de descendentes submetidos ao cativeiro doméstico, desprovida do foro de cidadania, privada do acesso à educação formal e alheia, portanto, aos conteúdos da cultura escrita e do debate político letrado. Segundo José Bonifácio, “nossa independência não é mais do que aquela de um filho que se emancipa”. Em 1822 apenas uma parte da ex-colônia se emancipou ou, em termos kantianos, atingiu sua maioridade política. Faltou que o mesmo ocorresse à outra parte, cuja razão, desprovida de uso público, ainda forceja por libertar-se da escravidão.

Tarcísio de Souza Gaspar – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais. Campus Muzambinho. Estrada de Muzambinho, km 35, Bairro Morro Preto, Muzambinho, MG, 37.890-000, Brasil. [email protected].