Guerra Literária: panfletos da Independência (1820-1823) – CARVALHO e. al (VH)

CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lúcia; BASILLE, Marcelo (Orgs). Guerra Literária: panfletos da Independência (1820-23). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. GASPAR, Tarcísio de Souza. Guerra Literária: panfletos da Independência (1820-23). Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 57, Set./ Dez. 2015.

A confluência de novas tecnologias de comunicação – as chamadas redes sociais – com velhas insatisfações políticas tem modificado, disseminado e talvez potenciado o debate e a mobilização política no Brasil e noutras partes do globo, e contribuído para a ocorrência de movimentos como a Primavera Árabe e os protestos de junho de 2013 no Brasil. É impossível prever o futuro dessa interação. Mas o seu passado, isto é, o da correlação entre a efervescência de ideias e de manifestações públicas de opinião e a deflagração de conflitos políticos de grande escala, foi historicamente consagrado. Nos últimos séculos, momentos de crise coincidiram quase sempre com a proliferação de falas, de textos e de outras expressões do pensamento. Alterações políticas trouxeram consigo furor comunicativo. Ou, antes disso, a popularização de conceitos ocasionou modificações no vocabulário e nas estruturas políticas.

A monumental obra em questão, dividida em quatro grossos volumes, expõe uma dessas felizes – e raras – combinações entre proliferação da palavra e efervescência política na história brasileira. Organizada por três grandes nomes de nossa historiografia política, a coleção de panfletos da Independência traz boa parte do que se escreveu e se discutiu publicamente no Brasil ao longo de um curto, porém, crucial período, no qual transformações políticas decisivas se sucederam em ritmo acelerado. O movimento liberal do Porto, em agosto de 1820, foi o estopim de tensões impactantes no mundo luso-brasileiro, suscitadoras da produção de expressivo conjunto de panfletos manuscritos e impressos, que alimentaram o debate envolvido na constitucionalização do reino lusitano, nas eleições e nos debates das Cortes, na emancipação brasileira e na afirmação inicial do novo Estado americano. Em obra pretérita, intitulada Às armas, cidadãos! (2012), os organizadores já haviam dado à luz 32 panfletos manuscritos redigidos entre 1820 e 1823. Agora, em Guerra Literária: panfletos da Independência, completam a coleção com a parte mais robusta do acervo, composta pelos folhetos políticos impressos à mesma época, num total de 362 panfletos.

Coligida em diferentes instituições, ao longo de décadas de pesquisa acumulada por seus organizadores, a edição crítica dos panfletos é um colosso documental. Seu impacto na historiografia interessada na independência e na história do pensamento político brasileiro na primeira metade do século XIX promete ser expressivo, tanto por facilitar o acesso a documentos importantes, quanto por revelar fontes pouco utilizadas ou desconhecidas. Os impressos informam sobre a formação de uma incipiente esfera pública de discussão política, que incluiu “periodiqueiros”, jornalistas, membros das elites coimbrã e brasiliense, bacharéis, militares, religiosos, letrados e leitores diversos e se estendeu, pela oralidade, até grupos populares e iletrados. Esse lastro social do processo constitucional e independentista apenas recentemente começou a ser descortinado por nossa historiografia. A obra interessa ainda por se coadunar a diferentes perspectivas da história política em voga, como as que perseguem conceitos (sob influência de R. Koselleck),linguagens (inspirada em autores como J. G. A. Pocock e Q. Skinner) e culturas políticas. Essa historiografia, mais afeita às expressões populares e ordinárias do pensamento político, de preferência aos cânones e aos registros oficiais, tem reconstituído formas de pensar, de agir e de se exprimir em embates ou processos políticos, historicamente situados.

Guerra Literária cumpre bem os requisitos de uma obra de referência. Os volumes estão ordenados por gêneros literários e, no interior desses, os panfletos se dispõem em ordem cronológica anual. A opção pelo gênero textual adequa-se às características da documentação. Datados apenas com o ano de publicação, os folhetos não se prestam a sequenciamento cronológico preciso. Tampouco poderiam ter sido organizados por autor, haja vista a ocorrência comum do anonimato e do pseudônimo. Os dois primeiros tomos, compostos por cartas (v. 1) e por análises, reflexões e projetos de teor especulativo (v. 2), são mais homogêneos. O terceiro e o quarto englobam tipos distintos: sermões, orações, discursos, diálogos, catecismos, dicionários, manifestos, proclamações, representações, protestos, apelos e elogios (v. 3); e poesias, relatos, exposições, memórias, notícias e narrações (v. 4). Nesse volume ainda constam os folhetos políticos impressos na Cisplatina, então parte do Reino Unido. Os organizadores contribuíram com uma introdução geral à coleção e outras específicas a cada volume. Os panfletos platinos tiveram introdução especializada, redigida por Ana Frega. O leitor conta ainda com cronologia do período, índices onomásticos, notas biográficas e o rol das tipografias envolvidas.

Os impressos eram “literatura de circunstância” que almejava comunicar-se com o grande público. A oralidade impregnou textos em forma de diálogo, orações, catecismos, entre outras. Cabia fazer circular o “novo vocabulário político”, valendo-se de técnicas retóricas e de artifícios literários. Os panfletos tomaram as ruas. A leitura em voz alta e a rede de murmurações e de boatos levaram o conteúdo de discursos e de comunicações escritas àqueles que não sabiam ler. Baratos e acessíveis, os escritos de circunstância serviam, como se disse à época, ao entretenimento dos que não podiam pagar entrada no teatro. Num contexto de agitação política, foram instrumentos fundamentais de participação e de mobilização. Possibilitaram a intervenção do homem comum no espaço público. Disseminaram notícias e informações políticas, tornando-as de domínio público. Popularizaram, em frequência inédita no Brasil, os conceitos políticos oriundos da Ilustração e do contexto revolucionário que desestruturou o Antigo Regime (v. 1, p. 12-16).

Apesar do clima de liberdade de expressão e de participação política, manifestada inclusive através do voto, as heranças coloniais daquela sociedade escravista restringiram e, no limite, inviabilizaram essa esfera pública. Nos panfletos relativos à situação brasileira, a escravidão metaforizava o despotismo e a tirania. A princípio, a constituição deveria estipular “os direitos do cidadão livre”, distinguindo-o do “escravo de tantos senhores”. Em seguida, a postura recolonizadora adotada pelas Cortes transformou-se numa tentativa de escravização, “como se fôssemos um punhado de miseráveis escravos sujeitos à discrição e capricho de seus senhores, e não um Reino aliado mais poderoso e com mais recursos do que o mesmo Portugal” (v. 2, p. 110-123). Um poema feminino que se acredita ter sido escrito por menina baiana de 13 anos indagou: “Justos céus, de que nos servem/Bases da Constituição/Se a lusa tropa só quer/Impor-nos a escravidão” (v. 4, p. 263).

A independência garantiu a alforria política das elites regionais, antes submetidas à metrópole europeia. Como discursou posteriormente o deputado Lino Coutinho, “o Brasil quebrou os ferros da escravidão e separou-se do reino e se pôs no estado de independência”. Mas não estendeu esse “estado” à massa de africanos e de descendentes submetidos ao cativeiro doméstico, desprovida do foro de cidadania, privada do acesso à educação formal e alheia, portanto, aos conteúdos da cultura escrita e do debate político letrado. Segundo José Bonifácio, “nossa independência não é mais do que aquela de um filho que se emancipa”. Em 1822 apenas uma parte da ex-colônia se emancipou ou, em termos kantianos, atingiu sua maioridade política. Faltou que o mesmo ocorresse à outra parte, cuja razão, desprovida de uso público, ainda forceja por libertar-se da escravidão.

Tarcísio de Souza Gaspar – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais. Campus Muzambinho. Estrada de Muzambinho, km 35, Bairro Morro Preto, Muzambinho, MG, 37.890-000, Brasil. [email protected].

 

A Biologia militante – DUARTE (VH)

DUARTE, Regina Horta. A Biologia militante: o Museu Nacional, especialização científica, divulgação do conhecimento e práticas políticas no Brasil – 1926-1945. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010, 219 p. Resenha de: PEREIRA, Airton dos Reis; OLIVEIRA JÚNIOR, Rômulo José Francisco de. “A  voz mais alta da Biologia”: Diálogos entre história política e história da ciência. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

A Biologia Militante, de Regina Horta Duarte, professora titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, é, certamente, uma grande contribuição aos muitos cursos de graduação e pós-graduação em História e permite-nos não apenas aprender sobre o tema analisado, mas compreender os procedimentos teórico-metodológicos do fazer histórico.

A partir da leitura dessa obra temos a certeza de que, além de pesquisas em arquivos, a escrita da história é fruto de escolhas afetivas, de constantes perguntas, da busca por conhecimentos transformadores e do desejo de fazer História como uma aventura intelectual que ressignifica nossas questões referentes à relação presente-passado por meio da construção de narrativas plausíveis.

A Biologia Militante é uma escrita leve, sedutora, clara e traz excelentes análises sobre a história do Brasil no período varguista. O fio condutor adotado foi a história do Museu Nacional do Rio de Janeiro, no período compreendido entre 1926 e 1945, privilegiando as articulações entre prá-ticas cientificas e vida política, o surgimento das especializações, no caso especifico da ciência biológica, e as experiências de divulgação científica.

O livro nos convida a entrar em contato com os conhecimentos e as práticas de três cientistas do Museu Nacional: Edgar Roquette-Pinto (18841954), antropólogo; Alberto Sampaio (1881-1946), fitobotânico; e Cândido de Mello Leitão (1886-1948), aracnólogo. Ambos haviam passado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro quando esta tinha passado por reformas, com a introdução de novas disciplinas e ênfase no ensino prático. As novas tendências européias de valorização do laboratório e do conhecimento biológico, sob influência da teoria de Pasteur, estiveram presentes na faculdade, nesse período. Esses homens fizeram de suas pesquisas ferramentas para a construção de uma identidade nacional e por meio da noção de saber criativo possuíam a esperança de que este tipo de conhecimento transformaria a sociedade brasileira

Roquete-Pinto foi professor do Museu Nacional desde 1906, sóciofundador da Academia Brasileira de Ciências (ABC), membro fundador da Associação Brasileira de Educação (ABE) e participou ativamente da organização da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro da qual foi seu secretáriogeral. Mello Leitão iniciou sua carreira como zoólogo, em 1913, na Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, do Rio Janeiro e no ano de 1916 trabalhou com Roquete-Pinto na Escola Normal do Rio de Janeiro. Sampaio foi contratado como professor de Botânica do Museu Nacional, em 1912, era membro da ABE e participou ativamente das atividades da Rádio Sociedade. Roquete-Pinto e Sampaio, embora que em momentos distintos, participaram de viagens feitas por Marechal Rondon no interior do Brasil.

Além de serem grandes amigos, tais cientistas articulavam, entre si, não só a produção e difusão de conhecimentos, mas o jogo de reconhecimento pessoal e intelectual e, por outro lado, partilhavam grandes expectativas de transformação do Brasil numa grande nação, num contexto de jogo político intenso do governo provisório de Getúlio Vargas. A perspectiva era a construção de uma sociedade sem conflitos, harmônica, corporativa e regida por um Estado forte e centralizado. Estudos como os de Mello Leitão – num processo de negação ao darwinismo -focalizavam a vida social dos animais negando a competição entre os seres vivos, mas a obediência, harmonia, bondade, solidariedade, a hierarquia. Não obstante, as perspectivas de Vargas encontraram eco nas concepções defendidas pelos cientistas do Museu Nacional. Apesar das nuances do jogo político da época, esses cientistas foram atores em sintonia com as perspectivas do governo provisório de Vargas em “curar o corpo e aperfeiçoar o espírito” de um povo desvalido e empobrecido, vítima de elites egoístas.

O livro é composto de três capítulos. No primeiro, “A voz mais alta da biologia”, a autora argumenta que, desde o final do século XIX, a idéia da natureza como patrimônio nacional era um tema importante, e acreditava-se que o Brasil deveria se afinar ao debate internacional para amoldar-se aos padrões de civilidade. A hipótese central deste capítulo era de que, entre 18951930, a biologia se afirmou como saber específico e diferenciado, ganhando importância política e visibilidadede “mestra da vida”. Duarte estabelece sua argumentação a partir de quatro temas: a eugenia nas primeiras décadas do século XX,a biomedicina,a entomologia (médica e agrária) e o que ela vai chamar de a experiência de campo (em que poderíamos denominar de pesquisas para obter a noção da relação teoria e prática dos estudos).

A autora mostra como a biologia se constituiu como campo específico do conhecimento e como este se firmou como um saber decisivo na resolução de problemas políticos, principalmente a partir da emergência da população como objeto de preocupação nacional. Neste capítulo, Duarte trata ainda da participação de Roquette-Pinto, Mello Leitão e Sampaio, autoridades científicas do Museu Nacional, na elaboração de um anteprojeto do Código de Caça e Pesca, solicitado pelo Ministério da Educação e Saúde, em 1933, cujo decreto foi assinado pelo Presidente da República, no ano seguinte. O Código de Caça e Pesca seria um instrumento importante na regularização e preservação do patrimônio flora-faunístico. Naquela época era notória a extinção de espécies animais cujas peles eram exportadas para compor a moda da “alta sociedade”. Os cientistas advogaram a necessidade do Governo Federal regular os “apetites” das elites em favor dos interesses de todos. Duarte destaca os êxitos e as frustrações dos cientistas no tocante ao texto final da Lei.

No segundo capítulo, A miniatura da Pátria, a historiadora inicia discorrendo sobre um churrasco realizado na Quinta da Boa Vista, na cidade do Rio de Janeiro, por contingentes das forças armadas gaúchas que visitavam a capital do Brasil. Edgar Roquette-Pinto, diretor do museu, convidou os soldados e os acomodou no Museu Nacional para assistir vídeos educativos sobre a natureza fauna-florística brasileira. Tal evento ganhou expressão para compreender como os biólogos articulavam uma série de meios comunicativos para propagar a idéia de preservação da natureza do país. Rádio, cinema, jornais e a Revista Nacional de Educação foram os principais divulgadores dessa idéia e o Museu Nacional abriu as portas para aulas práticas com crianças e jovens, e para visitas à sala de exposições de antropologia. Divulgar o conhecimento natural de todas as formas possíveis, ensinar às massas a ler e a escrever eram metas dos biólogos do museu. Ao final deste capítulo a autora se debruça sobre a documentação da Coleção Brasiliana1 e analisa as idéias dos três cientistas publicadas em diversos livros que produziram e cujo tema central versava sobre a biologia no Brasil. Entretanto, sendo o período histórico em questão, um momento na qual circulava no país as concepções da Escola Nova, seria muito mais enriquecedor se a autora tivesse tecido relações com essa postura pedagógica. Acreditarmos que essas análises seriam um elemento a mais para compreender a propagação das políticas de divulgação do conhecimento científico na era Vargas.

No terceiro capítulo, Como se fazia um biólogo, a autora nos apresenta a criação da Sociedade dos Amigos do Museu Nacional. Esse grupo surgiu em detrimento do afastamento dos três cientistas do museu e nos conduz a compreender a trajetória de Cândido de Mello Leitão ao analisar esmeradamente as obras escritas por ele e como sua produção foi significativa para a Biologia tornando-o reconhecido nacional e internacionalmente como um especialista em aracnídeos. Duarte não deixa de mencionar que o Museu Nacional perdeu força no fim da era Vargas como instrumento constituidor de opinião pública e que o discurso biológico, da mesma forma, se enfraqueceu como símbolo da identidade brasileira. Não obstante, a Biologia despontou como ciência importante no cenário brasileiro e ganhou espaço significativo nas universidades do país.

A leitura de A Biologia Militante é fundamental por ser um exemplo de trabalho bem escrito, fundamentado teoricamente e com fontes utilizadas de forma burilada. Deve ser lido para entender que o exercício interdisciplinar, lançado mão desde a Escola dos Annales, é extremamente significativo para as pesquisas históricas. É possível ainda conhecer possibilidades do exercício prosopográfico e perceber que muitos temas podem ser vistos como edificadores da nacionalidade brasileira.

O texto nos mostra ainda que a melhor referência teórica a ser aplicada na escrita depende dos documentos que escolhemos para cotejar as informações; é assim que Michel Foucault emerge diversas vezes na obra, principalmente quando fica notória a noção de que os sujeitos se constituem nas redes relacionais em que atuam, como no caso dos biólogos analisados. A obra coloca o leitor na perspectiva da História como conhecimento criador, realizado nas condições de possibilidades de cada pesquisa. Ao analisar racionalmente o papel do fazer científico na instituição das sociedades ao longo dos tempos, a autora busca se afastar do que Marc Bloch chamou do “satânico inimigo” da História: a mania de julgar.

A Biologia Militante, além de ser um excelente diálogo entre História e Biologia, pode permitir primorosos debates sobre questões sócio-ambientais, no Brasil, além de servir de alerta à sociedade brasileira para não aplainar o novo Código Florestal, aprovado em maio de 2011, sem indignações.

Mais do que um discurso histórico construído na interface da história política e da história da ciência, o livro de Regina Horta Duarte ajuda a compreender as articulações e os arranjos políticos que certos intelectuais fazem em seu tempo, no campo de produção e no jogo de relações com os poderes instituídos. Podemos, com certeza, afirmar: é uma excelente contribuição ao campo da história intelectual.

Programa de Pós-Graduação em História/Centro de Filosofia e Ciências Humanas.Universidade Federal de Pernambuco. Campus Recife.Avenida Acadêmico Hélio Ramos S/N10º andar CFCH. Cidade Universitária -Recife- PE- Brasil. CEP:50670-901.

1 A Coleção Brasiliana foi inaugurada em 1931 por Fernando Azevedo e o projeto central era de “descobrir o Brasil aos brasileiros”.

Airton dos Reis Pereira – Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Professor da Universidadedo Estado do Pará (UEPA) e membro do Grupo de Pesquisa: Movimentos Sociais, EducaçãoeCidadania na Amazônia/UEPA/CNPq. [email protected].

Rômulo José Francisco de Oliveira Júnior – Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Integrante do GEHISC/UFRPE/CNPq. [email protected].

Paulistas e emboabas no coração das Minas – ROMEIRO (VH)

ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008, 431 p. Resenha de: STUMPF, Roberta. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

Publicado em 2008, este livro da professora Adriana Romeiro, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, tem como tema a Guerra dos Emboabas, como ficou conhecido o levante ocorrido na capitania das Minas Gerais em 1708-1709. Já nas primeiras páginas retoma as análises historiográficas de um episódio que foi exaustivamente estudado até a segunda metade do século XX, perguntando-se o que de novo poderia dizer sobre a matéria. E não é preciso avançar demasiadamente na leitura para observar que apresenta uma visão claramente inovadora, ao adotar uma perspectiva analítica que privilegia a história política “à luz de uma perspectiva cultural” (p.26).

É esta mesma proposta a de seu livro anterior, publicado em 2001, Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais,1 pelo que se pode dizer que a trajetória de investigação da autora apresenta um percurso homogêneo, não obstante a diversidade dos temas aos quais se dedica. Neste livro anterior, estuda um personagem fascinante, o português Pedro de Rates Henequim, que ao voltar ao Reino, depois de viver nas Minas, foi acusado de heresia pelo Santo Ofício e queimado em um auto de fé, em 1744. Em ambos os livros, a análise recai não tanto na história de vida dos personagens ou na descrição dos eventos, por si só interessantes ao leitor. O que lhe importa analisar são as práticas e as idéias de acentuado cunho político que coexistiram nas Minas do século XVIII e que tinham diferentes matrizes: uma portuguesa e outra, original, inovadora, mestiça, sertaneja, popular….

Sobre a última obra publicada, o que nos importa explorar é a tese principal de Romeiro, que permeia todos os capítulos, embora se apresente com maior clareza no quinto, “Idéias e práticas políticas”, o qual segundo a própria autora é “o âmago do livro”. Neste caso, não opta por seguir uma seqüência cronológica linear, comum aos historiadores mais interessados na descrição dos eventos. Antes opta por um percurso narrativo que vai da dimensão imperial ao nível local das Minas, atenta sempre às idéias e às práticas daqueles que atuaram neste contexto particularmente importante na história das Minas e de todo o Império português: a década inicial do Setecentos.

As diferentes propostas administrativas que eram gestadas para as Gerais são compreendidas mediante a análise dos imaginários políticos que coexistiram e que acabaram por explicar o confronto que teve a capitania como palco. O posicionamento da Coroa e de seus representantes é cuidadosamente analisado porque foi determinante para o sucesso ou o fracasso das estratégias adotadas por paulistas e emboabas, que irão se enfrentar ao longo das diferentes etapas que constituíram este processo de descobrimento e colonização das Gerais.

Longe de apresentar uma atuação uniforme, a política governamental foi determinada muitas vezes pelos interesses pessoais de governadores gerais e governadores da Repartição Sul assim como pelas diferentes percepções que dividiam as autoridades no Reino em relação à importância estratégica do ouro e das Minas para a monarquia portuguesa. As incertezas em relação aos benefícios da extração aurífera e à importância do estabelecimento de um aparato administrativo consolidado beneficiou, nos primeiros anos do século XVIII, os paulistas que encontraram naqueles sertões recém descobertos um terreno propício para agirem. A valentia destes homens, guiados por valores como a honra, que mais do que ninguém sabiam vencer os perigos de um território povoados de índios e súditos rebeldes, foi útil à empresa colonizadora nas Minas, como haviam sido, na figura de Domingos Jorge Velho, na luta contra o quilombo dos Palmares (p.197). Pelo que nos primórdios a Coroa aproveitou-se da ambição dos paulistas pelas distinções para cooptar seus serviços, provendo-os em cargos políticos importantes e beneficiando-os com o primeiro Regimento que regularizava a distribuição das datas.

É verdade que muitas autoridades não eram favoráveis a esta tendência pró-paulista, pois a outra face da “legenda negra”, associada a estes, e que eles próprios contribuíram para consolidar, prejudicava a consolidação de uma ordem nos moldes desejados pela monarquia. Quando a riqueza proveniente do ouro despertou a cobiça régia e a monarquia julgou necessário controlar a região, a imagem dos paulistas como homens inclinados à autonomia ganhou maior acolhimento. A forma particular que tinham em negociar com as instâncias políticas centrais, a adoção de uma tática de “guerra brasílica”, o sangue mestiço, ou mesmo a violência utilizada em defesa da honra, sustentavam a desconfiança, por exemplo, dos conselheiros ultramarinos que resistiam cada vez mais lhes conceder mercês.

A semelhança do que ocorria em outras paragens da América, onde os primeiros descobridores ou restauradores de um território ocupado por inimigos julgavam-se beneméritos de mercês régias, também os homens do Planalto se apropriaram da retórica do “direito da conquista” para “pleitear as mais valiosas honras e mercês” (p.38). Mas a vertente detrativa da imagem atribuída aos mesmos dificultou seus intentos favorecendo, por sua vez, os emboabas, como eram chamavam pelos paulistas aqueles que não descobriram as Minas, mas que para lá se dirigiam para tirar proveito de suas riquezas e de seus cargos ainda por ocupar. Mas se estes forasteiros não podiam se valer do fato de terem sido os primeiros a desbravar os sertões, esforçavam-se por serem vistos como fieis súditos do monarca que restaurariam o poder régio na região comandada pelos tirânicos paulistas. Trata-se de duas retóricas distintas, e igualmente legítimas para a cultura política vigente, adotadas por dois grupos que tinham estratégias diversas que visavam o mesmo fim e que traduziam, como evidencia com sucesso a autora, imaginários políticos em confronto, que terão repercussões duradouras naquele território.

É este talvez o maior contributo desta obra: o destaque dado a um conflito que não teve como principal palco o campo de batalha. Os vencedores não foram os que sabiam melhor guerrear ou os que tinham as armas bélicas mais eficazes. Mas sim aqueles que percebendo a realidade, e agiam nesta, de forma mais conveniente aos interesses régios, foram eleitos como sendo os mais dignos de receberem as recompensas, cargos ou honras, que ambos os grupos almejavam conquistar. A economia moral do dom não fora apenas um instrumento que permitiu a consolidação dos laços entre súditos e monarcas. Foi um sistema tão atrativo aos desejos de ascensão social que determinou muitas vezes que súditos envolvidos em embates na disputa de recursos e mercês utilizassem retóricas distintas e conflitantes para verem-se agraciados pelas autoridades.

Por vezes somos levados a pensar que Romeiro atribui à naturalidade dos vassalos um fator essencial para explicar o posicionamento régio e consequentemente o desfecho do levante, contrariando assim as análises historiográficas mais recente que insistem na pouca relevância da oposição entre naturais da América e do Reino, ao menos até o final do século XVIII. Se os paulistas possuíam uma identidade cultural que os singularizava, ou mesmo “étnica” como afirma a autora, eram reconhecidos evidentemente como sendo os naturais de São Paulo. Porém, no que compete aos em-boabas, se há indícios de que os conselheiros ultramarinos lhes atribuíam uma naturalidade reinol, provavelmente assim faziam para salientar as diferenças em relação aos paulistas, a quem faziam fortes ressalvas. A autora, no entanto, cita outros documentos coevos que comprovam o quanto a naturalidade dos emboabas era uma questão controvérsia, que tampouco deve ser resolvida. Assim, embora a dimensão paulista seja sempre enfatizada, ao mostrar que os emboabas eram tanto americanos como reinóis, a autora critica as análises que deram ao levante um cunho nativista. Se no contexto de 1708-9 a naturalidade paulista estava associada a uma postura contestadora e autonomista, no decorrer da centúria nada indica que esta associação continue a ter a mesma intensidade, ao menos é o que percebemos no teor das solicitações de mercês efetuadas pelos habitantes das Minas nas quais a naturalidade não aparece nos pareceres como um critério a legitimar ou não a justiça das súplicas.

Se o levante emboaba, como se infere no título do livro, é crucial para entender todo o século XVIII mineiro, não o é por esta razão. Seu maior legado, como afirma a autora nas conclusões, são as formulações políticas que naquele contexto eclodiram e que serão essenciais ao imaginário político da população local (p.317). Ao longo do Setecentos as idéias e as práticas políticas, que traduzem matrizes da tradição insurgente e também não insurgente, sobreviverão, muitas vezes com um conteúdo remanejado. Tanto o discurso embasado no “direito da conquista” como o “restauracionista”, defendidos respectivamente por paulistas e emboabas, legitimaram motins e sedições, entre os quais o mais importante deles ocorrido em 1788-9. Talvez fosse interessante saber, seguindo a sua própria linha de raciocínio, se ao longo desta centúria os súditos interessados em fazer valer seus direitos pelas vias consideradas legítimas, se apropriaram destes discursos para solicitar mercês ao Conselho Ultramarino.

A autora, porém, apesar de mencionar na introdução a importância de se evitar uma análise da Guerra dos Emboabas que se restrinja à curta temporalidade, ou seja, ao episódio em si, só analisará rapidamente a permanência destas retóricas nos movimentos sediciosos na última página do quinto capítulo, voltando a lhe dar destaque nas conclusões. Romeiro não despreza a importância do tema, mas não o aprofunda, quase como se estivesse a sugeri-lo para uma investigação futura, de sua autoria ou de outro historiador, disposto a aproveitar esta dica tão valiosa.

Esta obra foi bem acolhida pela historiografia brasileira, e deve continuar a sê-lo pelo que nela foi dito e exaustivamente analisado, ou pelo que foi apenas sugerido, já que a consistência das sugestões também se deve ao rigor e à originalidade da pesquisa que apresenta.

1 ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.

Roberta Stumpf – Pesquisadora do Centro de História de Além Mar/Universidade Nova de Lisboa Rua Berna, 26C, gabinete 2.19, Edifício DRM Lisboa, Portugal, CEP1069-061, [email protected].