A Procissão de Cinza dos Terceiros Franciscanos da Bahia: uma expressão religiosa, pedagógica e barroca no mundo colonial – CASMIRO (RBHE)

CASMIRO, Ana Palmira Bittencourt. A Procissão de Cinza dos Terceiros Franciscanos da Bahia: uma expressão religiosa, pedagógica e barroca no mundo colonial. Campinas: Editora Librum e Navegando, 2012. Resenha de: TOLEDO, Cézar de Alencar Arnaut de; BARBOZA, Marcos Ayres. Aspectos pedagógicos da procissão de cinzas da Ordem Terceira de São Francisco no Brasil colonial. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 14, n. 2 (35), p. 301-307, maio/ago. 2014.

A primeira Custódia Franciscana no Brasil foi fundada em Olinda, em 1585; e a Ordem Terceira de São Francisco de Salvador, em 1635, constituída por representantes da alta sociedade colonial. As ordens terceiras, associações religiosas de leigos, caracterizam-se como confrarias ou irmandades, tendo sido constituídas para a prática da caridade. Dentre suas finalidades, no período colonial, destacavam-se: os fins espirituais e a aquisição, administração e a aplicação de seu patrimônio; funcionavam como agentes de solidariedade, congregando anseios comuns frente à religião e à realidade social. As irmandades agiam no sentido de integração e algumas delas desfrutaram de grande poder político.

O livro A Procissão de Cinza dos Terceiros Franciscanos da Bahia, escrito por Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro, resultado de seus estudos de pós-doutoramento realizados na Faculdade de Educação da Unicamp, em 2011, sob a supervisão do Prof. Dr. José Luís Sanfelice, analisa a Procissão de Cinzas da Ordem Terceira de São Francisco da Bahia, e mostra os aspectos estéticos, iconográficos e pedagógicos envolvidos no contexto histórico-cultural do Brasil Colônia.

No capítulo 1, O Altar, o trono e o ensino: os religiosos e a educação, a autora analisa a relação entre o poder do Estado e o poder eclesiástico na configuração do Brasil Colônia. Trata-se de dois poderes que, no campo das relações sociais, agiam mutuamente. O Estado apoiava-se na Igreja para legitimar o seu poder; e a Igreja visava conformar a ação do Estado. Este não desprezava o papel da religião para legitimar a classe dominante e a justificação de seus interesses, especialmente de sua prosperidade material por meio da Providência Divina.

De acordo com a autora, o Estado afirmou seu poder por meio da ação social das ordens religiosas, na medida em que a Igreja reservou para si o trabalho missionário, a catequese, o ensino religioso, o ensino escolar, a missa, os sacramentos, as procissões, a evangelização, entre outras atividades. Ficou responsável também pela educação: articulou a educação religiosa com a educação para as ciências e para as humanidades para subordiná-la à fé católica.

O capítulo 2, O Brasil Colonial como parte do Império Português, discute a organização social e econômica do Brasil Colônia. Destaca que as culturas açucareira, mineira e pecuária, entre outras, contribuíram para o surgimento de novas camadas sociais, baseadas em classes de interesses antagônicos, em que o tráfico e o comércio de escravos impulsionaram a produção de riquezas coloniais.

Segundo a autora, a preservação do status quo de uma pequena parcela da sociedade colonial configurou-se com base no sacrifício de indígenas e escravizados africanos. Os escravos, por exemplo, eram tratados como gado, inclusive, marcados com ferro em brasa; além disso, quando chegavam à colônia, eram separados de suas famílias, acorrentados, colocados em depósitos, tinham suas cabeças raspadas e vendidos nas ruas. Ao fugirem, após a captura, eram amarrados e chicoteados; muitos deles, diante da crueldade insuportável, cometiam suicídio.

Nas fontes pesquisadas, a autora entende que a classe dominante era formada pelos portugueses e seus descendentes, constituíam a nobreza metropolitana, com domínio do poder político e econômico. Por outro lado, a maioria da população, os escravos, era responsável pela produção de riquezas, submetida a trabalhos forçados e destituída de quaisquer privilégios. Nesse contexto, as ordens religiosas, além de serem detentoras de privilégios, agregavam muita riqueza e ostentação, inclusive, as classes dominantes patrocinavam as ordens religiosas para disseminação da cultura cristã e de seus interesses. O clero também pertencia à nobreza. Muitos deles eram oriundos da classe dominante, o que marcou o lugar social dos religiosos com características elitistas.

No capítulo 3, A expressão barroca e fé colonial, a autora assinala que a evangelização do Brasil expandiu-se a partir do Concílio de Trento (1545-1563), por meio da instalação de bispado, inúmeras paróquias, capelas rurais, missões, associações, irmandades e ordens terceiras. As diretrizes jurídicas e ideológicas do poder eclesiástico foram instituídas pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, promulgadas em 1707, elaboradas por uma equipe de religiosos jesuítas cujos objetivos legitimavam e conformavam o caráter evangelizador e colonizador do Brasil.

Para ela, a ação ideológica e a mentalidade da Igreja e do Estado Português contribuíram para o processo de conservação da sociedade em classes. No que se refere à educação, a Igreja ofereceu oportunidades desiguais, expressou preconceitos, justificando-os em nome do Evangelho. As ordens religiosas, como os carmelitas, mercedários e franciscanos, proporcionavam aos não brancos o ensino de primeiras letras, o ensino profissionalizante, a catequese e a cristianização.

Para ingressar na carreira eclesiástica e em algumas irmandades, afirma a autora, era necessário que os candidatos fossem cristãos velhos e brancos legítimos. As ordens religiosas eram classificadas e, nas procissões, tinham lugares marcados, de acordo com a posição social; porém, o espaço das irmandades “[…] era o único lugar onde o cristão de qualquer cor ou etnia podia sentir-se seguro” (CASIMIRO, 2012, p. 81). As irmandades não se caracterizavam somente como uma forma de manifestação religiosa, mas também como a possibilidade de acesso à cultura dominante pela obtenção de privilégios, graças e indulgências, uma vez que a organização da Igreja naquele período era caracterizada por uma religiosidade informal fundamentada na intimidade com os santos, cultos exteriores, festas religiosas, procissões e romarias.

No capítulo 4, A Pedagogia barroca colonial: os franciscanos na dilatação da fé e do Império, a autora propõe que a religião e a educação tiveram papel determinante na formação cultural do Brasil, mediadas pelas manifestações artísticas barrocas. Essa relação ocorria por meio dos sermões, da literatura, da música e das artes plásticas. Para cada classe, existia um processo de evangelização e uma educação. Os filhos dos brancos estudavam em colégios e seus estudos eram complementados em Portugal. A maioria da população, os não brancos, recebia rudimentos das primeiras letras, o ensino profissionalizante, a catequese e a cristianização. Os franciscanos atuavam na educação missionária, na educação de primeiras letras e na formação de seus quadros.

De acordo com a autora, a partir de 1707, todas as ordens terceiras, dentre outras instituições religiosas, passaram a ser regidas pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Havia uma série de pré-requisitos para fazer parte dos quadros da ordem: pureza de sangue, cor da pele e a situação socioeconômica. A enorme quantidade de bens adquirida pela Ordem estudada por ela, ao longo do período colonial, tornou complexa a administração de seu patrimônio, que se caracterizava de maneira centralizada, hierárquica e burocratizada. Os recursos vinham de duas fontes: uma de doações dos bens encapelados, esmolas, doações de joias e objetos sacros, profissões, promessas e coleta de dinheiro, e a outra, oriunda da aplicação desses bens em aluguéis, foros, juros, laudêmio etc. Nos atos litúrgicos, nas festas, solenidades e procissões religiosas, o que predominava era a estética barroca, luxuosa, de fausto e esplendor, tudo em conformidade aos propósitos pedagógicos da Igreja contrarreformista.

No capítulo 5, As procissões coloniais como fenômeno pedagógico, religioso e humano, a autora afirma que os atos litúrgicos, as festas e solenidades civis no Brasil Colonial apresentavam uma luxuosa estética de caráter barroco, em suas formas, fausto e esplendor. A riqueza decorativa e diversificada das procissões religiosas respeitava as formas de expressão da época, bem como o ordenamento e a sedimentação social que conformavam os poderes instituídos.

Ela destaca que as procissões tradicionais da Bahia sobreviveram até em torno de 1940, são elas: Senhor dos Navegantes; Nossa Senhora da Boa Virgem; Senhor dos Passos da Ajuda; Senhor Bom Jesus da Paciência; Senhor Bom Jesus dos Passos da Regeneração; Senhor da Redenção; Enterro do Senhor; Ressurreição; São José, São Benedito; São Francisco Xavier; Corpo de Deus; Nossa Senhora do Carmo; Nossa Senhora da Boa Morte; Nossa Senhora do Rosário das Portas do Carmo; São Pedro Gonçalves; Nossa Senhora da Conceição da Praia.

Em seus estudos, verificou que os fiéis eram obrigados a comparecer nos atos litúrgicos, nas festas e solenidades. Nos casos de desobediência, aplicavam-se punições pecuniárias, castigos, excomunhões e, em casos graves, açoites, degredos e galés. Os aspectos pedagógicos envolviam a educação do corpo e da espiritualidade, por meio de práticas que impunham medo, ameaças, admoestações e punições.

No capítulo 6, Aspectos religiosos e pedagógicos da procissão de cinza dos Terceiros Franciscanos, a autora propõe que as procissões na Bahia Colonial envolviam artistas e artífices de diversas naturezas na produção de imagens, roupas, joias, cabelos, pintores, andores, faixas, decoração das ruas, entre outras. Elas possuíam um caráter didático, destinavam a despertar a piedade e a fé cristã.

A procissão da penitência ou da ‘Quarta-feira de Cinzas’, segundo ela, caracterizou-se como um dos importantes eventos religiosos franciscanos do período colonial. O objetivo da procissão era penitencial; além disso, os aspectos pedagógicos da ordem eram vinculados à história da Ordem, que envolvia as virtudes teologais (fé, esperança e caridade) e cardeais (prudência, justiça, temperança e fortaleza).

Para ela, o declínio das ordens terceiras seguiu o mesmo fim das ordens primeiras, regulares e do poder da Igreja, ainda mais, pela expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, em 1759. Pode-se afirmar que as procissões coloniais acompanharam o estilo estético da época. A procissão extinguiu-se em 1864, sendo que, aos poucos, aboliram-se os ornamentos e as alegorias luxuosas. A espiritualidade dos terceiros franciscanos caracterizou-se como uma espiritualidade de pessoas que vivem no mundo. Tinha como ideal a mensagem da pobreza franciscana; no entanto, aceitava toda a riqueza destinada aos altares, mediante vultosas quantias, joias e imóveis. Essa foi, segundo a autora, a pedagogia que se configurou no contexto da Bahia no período colonial.

Na Conclusão, ela defende que a mensagem pedagógica presente nas procissões objetivava persuadir os fiéis pelo seu aspecto teatral. Essa pedagogia suscitava a ideia do pecado, a penitência e a ideia de salvação. Configurou-se uma concepção de educação de conformação religiosa que subordinava a educação à fé para a ‘Maior Glória de Deus e da Igreja’. As imagens do ‘Senhor Morto’, de Santa Margarida de Cortona e do conjunto escultório de São Francisco de Assis recebendo as ‘chagas’ de Cristo Crucificado tinham um forte apelo pedagógico, confundindo obediência a Deus com obediência ao patrão.

A análise da Ordem Terceira de São Francisco da Bahia feita pela autora caracteriza-se como uma importante contribuição ao campo da História e da História da Educação no Brasil, ao relacionar religião, educação e arte, em um contexto social de interesses antagônicos. Nele, a religião configurou-se como um instrumento poderoso de dominação, em que a educação do fiel impunha a obediência pela penitência, com a diferença de que, para cada classe social, havia uma evangelização e uma educação, contraditoriamente ao espírito de pobreza idealizado pelo movimento franciscano em suas origens, por envolver espiritualidade, luxo e fé. O livro nos mostra que a indistinção entre religião e vida política tem uma longa história no Brasil. A leitura do livro nos fornece pistas para a discussão sobre as origens remotas da mistura entre vida religiosa e vida política.

Trata-se de uma leitura recomendada aos pesquisadores que pretendem aprofundar o entendimento das relações entre Estado e Igreja, entre religião e política, tão presentes em nossa história. A autora explora um corpus documental que é praticamente desconhecido dos pesquisadores da área. O livro apresenta um conjunto de documentos que podem ser mais amplamente pesquisados.

Cézar de Alencar Arnaut de Toledo – Doutor em Educação pela UNICAMP (1996). Professor do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Estadual de Maringá/UEM-PR, Líder do Grupo de Pesquisa sobre Política, Religião e Educação na Modernidade. E-mail: [email protected]

Marcos Ayres Barboza – Psicólogo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná Câmpus Paranavaí, Mestre em Educação (2007) pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Estadual de Maringá/UEM-PR Estudante do Grupo de Pesquisa sobre Política, Religião e Educação na Modernidade. E-mail: [email protected]

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