O mito da grande classe média: capitalismo e estrutura social – PROCHMANN (TES)

POCHMANN, Marcio. O mito da grande classe média: capitalismo e estrutura social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. 148p. Resenha de: CASTRO, Ramón Peña. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.12, n.3, set./dez. 2014.

O redescobrimento das classes sociais representa uma mudança positiva, cada vez mais presente em descrições das novas estruturas sociais dos ‘centros’ e ‘periferias’ do capitalismo globalizado. Repare-se que até recentemente a categoria ‘classe social’ tinha desaparecido do léxico analítico referido à distribuição da riqueza e do poder, ocupando o primeiro plano as problemáticas de gênero, raça, etnia, religião, nacionalidade etc., cuja importância não deve ser subestimada, dada a persistência de odiosas formas de discriminação, desigualdade, violência e criminalidade.

Ao mesmo tempo, não pode ser considerado casual que esse cenário controverso coincida com o declínio das utopias históricas (derrubada do socialismo real e do Estado de bem-estar social, hoje idealizado) concomitante com a expansão da contrarrevolução neoliberal, por um lado, assim como a erosão dos paradigmas culturais através dos quais interpretamos a complexa realidade social, por outro lado.

É, justamente, este cenário controverso o que serve de inspiração para o livro de Marcio Pochmann que passamos a resenhar.

Dividido em quatro partes, cada qual composta de seções que abrangem 15 subtemas, o livro faz jus ao título, pois por sua leitura constatamos que a noção de ‘nova classe média’ não passa de uma construção quimérica do mercado político.

Na primeira parte, intitulada “Classe média em quatro tempos”, o eixo da exposição consiste em um diálogo entre conceituação sucinta das etapas de desenvolvimento histórico do capitalismo e a origem incerta de diferentes usos espaço-temporais do termo ‘classe média’. Concluindo com uma reflexão crítica sobre a extemporaneidade deste termo no Brasil, porque a “adoção”, escreve Pochmann, “de uma medida descontextualizada da base original da sua materialização pode se revestir apenas e simplesmente de um voluntarismo teórico inconsistente com a realidade, salvo interesses ideológicos específicos ou projetos políticos de reconfiguração da redução do papel [social do] Estado” (p. 45).

A partir deste último raciocínio parece pertinente pensar que a utilização descontextualizada do termo classe média, em substituição do termo classe trabalhadora, também serviria para incutir no ânimo dos trabalhadores a ideia de que seu vínculo unitivo não é o trabalho, mas sim o seu ‘novo padrão’ de consumo e o correspondente nível de rendimento, descolado da sua origem: a alienação da força de trabalho pelo capital. Por extensão, tudo isto implica a individualização e destruição das solidariedades de classe e das capacidades de (re)ação coletiva.

A segunda parte do livro, intitulada “Classe média: fatos e interpretação no Brasil”, contém uma argumentada exposição da origem e características do modelo fordista de desenvolvimento e da composição social do capitalismo avançado do segundo pós-guerra. Na sequência, examina as particularidades da industrialização tardia brasileira e sua relação com as condições de subconsumo da classe trabalhadora, derivadas da resistência das classes dominantes a admitir as reformas estruturais (‘civilizatórias’) que foram conquistadas (no período 1945/1975) pela esquerda político-sindical nos países desenvolvidos, sem que isso implicasse reversão da ordem capitalista. Pelo contrário, o atual processo de destruição acelerada do ‘Estado de bem-estar’ demonstra que as conquistas sociais, ligadas a essa denominação otimista (Estado de bem-estar), representam um fenômeno absolutamente excepcional na história do modo de produção capitalista.

Nesta segunda parte do livro, cabe destacar como uma linha de reflexão e debate em aberto a tese de Pochmann sobre “a combinação, na última década, de crescimento econômico brasileiro com distribuição de renda, o que permitiu a retomada da mobilidade social, especialmente aquela associada à base da pirâmide social” (p. 71), incluindo “ascensão dos trabalhadores pobres [no] projeto social desenvolvimentista” (p. 62-70).

Registremos alguns elementos que achamos importantes para compreender o alcance da reflexão de Pochmann sobre a presente trajetória econômica e social do Brasil:

  • Ampliação da base da pirâmide social com forte expansão do emprego, com três quartos dos novos empregos remunerados até l,5 salários mínimos;
  • Quase 40% de queda da pobreza em vinte anos: l988-2008 (p. 67);
  • Aumento de quase 80% do gasto social no PIB, em 25 anos: 13,3% em 1985 para 22,7% em 2010 (p. 66).
  • Incorporação ao ‘mercado de consumo barato’ de quase um quarto dos brasileiros, em que “parcela considerável da classe trabalhadora foi incorporada no consumo de bens duráveis, como TV, fogão, geladeira, aparelho de som, computador, entre outros” (p. 71).

Destacamos a sua própria conclusão: “esse importante movimento social”, escreve Pochmann, “não se converteu, contudo, na constituição de uma nova classe social, tampouco permite que se enquadrem os novos consumidores no segmento de classe média” (p. 71).

A terceira parte, intitulada “Cadeias globais de produção e ciclos de modernização no padrão de consumo brasileiro”, contém análise, assente em numerosos dados estatísticos resumidos em gráficos e tabelas, da dinâmica da economia política de consolidação do capitalismo monopolista transnacional e seus impactos nas estruturas sociais, especificamente no Brasil.

Fazendo um balanço das informações obtidas pela sua consistente exploração bibliográfica e elaboração estatística, Pochmann expõe com singular clareza as três principais razões explicativas da evolução histórica do grau de desigualdade no padrão de bens e serviços civilizados.

A primeira razão explicativa é a globalização como novo paradigma da produção das empresas transnacionais. Assente não apenas nas novas tecnologias, mas sobretudo em políticas neoliberais de liberalização dos mercados e privatização do setor público, assim como na ampliação da base de recursos produtivos, matérias e humanos, como decorrência da restauração do capitalismo na União Soviética, Leste europeu e China, principalmente. Essa enorme expansão geográfica dos mercados significou um aumento de l,5 para 3,9 bilhões do exército de força de trabalho fragmentada em estados competidores. Tudo isso tornou possível a produção massiva de todo tipo de mercadorias de baixo custo e sobre esta base a emergência das sociedades de consumo de baixo custo (low cost).

A segunda razão explicativa é a especificidade da inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho, mostrada por meio da sucessão dos ciclos de modernização do padrão de consumo das distintas faixas de renda, ocupação setorial e grau de escolaridade, assim como a alteração sucessiva dos preços relativos. Trata-se de uma análise aprofundada de informação estatística abrangente, apresentada em tabelas e gráficos elucidativos.

A terceira razão explicativa da evolução das desigualdades, num sentido positivo, são as políticas sociais compensatórias, a bancarização de setores de menor renda, incluindo a expansão do crédito para consumo de bens duráveis e novos serviços. Na contraface dessas alterações encontra-se, sem dúvida, a mercantilização da vida e a financerização da sociedade.

Sabendo que a sociedade envolve muitas atividades e relações (de poder, de consciência, culturais, nacionais, sexuais, normativas etc.) que não concernem à Economia Política, o autor concentrou-se na temática da estrutura social, nitidamente transbordada da realidade por força do superdimensionamento fictício quando se fala de uma grande e nova classe média.

A quarta e última parte do livro concentra-se no exame da superação relativa da imobilidade social na primeira década deste século. Após a longa fase de regressão e estagnação da estrutura social das duas décadas anteriores, parece consolidar-se uma onda de novas ocupações e uma incerta política de rendas que visa à curva de distribuição da renda de 40% da população mais pobre. A identificação desses segmentos e o estudo da evolução geral da ocupação e do rendimento mostrariam, segundo Pochmann, sinais significativos da “volta da mobilidade social ascendente, sobretudo, na base da pirâmide social brasileira, que nada tem de nova, tampouco de classe média” (p. 139).

Ramón Peña Castro – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio,Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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O emprego no desenvolvimento da nação – POCHMANN (TES)

POCHMANN, Marcio. O emprego no desenvolvimento da nação. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, 240 p. Resenha: CASTRO, Ramón Peña. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 6, n. 3, p. 659-664, nov.2008/fev.2009.

No próprio título do livro, Pochmann deixa claro o horizonte intelectual em que situa a questão do emprego: a nação-Estado, entendida como materialidade humana historicamente diferenciada, tanto no plano territorial como, sobretudo, no social. Neste aspecto se associa à sólida tradição acadêmica desenvolvimentista.

Desenvolvimentista, no bom sentido do termo, entendido como desenvolvimento, a um só tempo, social, nacional e regional. Como é sabido, para essa tradição (personificada por Celso Furtado e outros reconhecidos economistas, críticos do pensamento único), a questão do emprego, enquanto forma naturalizada do trabalho de mercado, somente pode ser entendida e explicada cientificamente no contexto histórico do desenvolvimento do capitalismo brasileiro e de sua forma de inserção mundial.

Contexto, esse, muito mais amplo e esclarecedor do que o estreito e dogmático marco conceitual do chamado mercado de trabalho.

Em correspondência com sua opção teórico-metodológica, Marcio Pochmann estrutura O emprego no desenvolvimento da nação em uma Apresentação e sete capítulos. Na Apresentação, sintetiza seu objetivo: analisar a evolução, quantitativa e qualitativa, do emprego, em função das modalidades de desenvolvimento do brasileiro e da sua inserção internacional, descrevendo, a seguir, o conteúdo dos sete capítulos que compõem o texto. Os três primeiros capítulos versam sobre determinantes fundamentais do emprego, relativos ao desenvolvimento econômico nacional e regional. Os seguintes, quatro capítulos, abordam a dinâmica setorial do emprego rural, do emprego público e da ‘informalidade’, cuja dimensão e diversidade se mostram diretamente proporcionais ao volume do desemprego e à deterioração qualitativa dos empregos, realmente existentes.

O percurso temático do livro pode ser explicado como a tentativa de transformar em tese demonstrada a contundente afirmação contida na hipótese de partida, segundo a qual “a crise do emprego não é irreversível nem inevitável” (p. 10).

Visando essa demonstração, Pochmann desenvolve um panorama amplo e problemático de temas, debates e demonstrações, solidamente documentados ao longo dos sete capítulos.

É obvio que não se pode numa resenha resumir todos os variados aspectos do problema do emprego que são abordados no livro de Pochmann. Cabe, porém, referir sucintamente os pontos especialmente relevantes e sugestivos.

Em função disso, começamos por mencionar a sua distinção entre variáveis ‘endógenas e exógenas’. Com a primeira denominação o autor se refere às dinâmicas do salário, custo do trabalho e qualificação, entre outras. Com a segunda, da evolução e natureza dos investimentos, a modalidade de inserção internacional e inovação tecnológica. Ambos tipos de variáveis se entrecruzam, sem dúvida, para determinar o emprego e o funcionamento do mercado de trabalho, conforme a vontade discricionária dos empregadores.

Pochmann sintetiza a origem e natureza concentradora e dependente do atual modelo de acumulação do capital, resultante da ‘construção interrompida’ (p. 19-28, 110-122), para seguidamente expor, de forma amplamente documentada, a dinâmica do emprego. Com isso deixa patente a deterioração, qualitativa e quantitativa, dos empregos existentes, o desemprego massivo e estrutural e a dramática ampliação das desigualdades sociais. Fenômenos nada novos na história brasileira, mas que ficam emblematicamente ilustrados pela forte redução atual da participação do trabalho no total de renda nacional: de 36% (2003) contra 50% (no final da década de 1970, p. 27); pelo elevado e persistente desemprego, acelerado a partir da década de 1990 para atingir na presente década um patamar “três a quatro vezes mais alto que as taxas registradas na década anterior”.

O autor demonstra que, de fato, hoje nenhum trabalhador está imunizado contra o desemprego.

Os dados mencionados pelo autor provam, por exemplo, que o aumento dos níveis de escolaridade média e superior da população economicamente ativa (PEA) coincide com elevadas e persistentes taxas de desemprego entre os mais escolarizados. Daí, o que ele denomina “anomalia do desemprego intelectual” e o desperdício e perda de potencial, exemplificados pela importante “fuga de cérebros”. Trata-se de fenômenos novos, produzidos pelo atual modelo de acumulação concentradora de capital financeiro e de “inserção passiva e subordinada na economia mundial” (p. 36-46).

Completa o quadro de desestruturação do mercado de trabalho a desaceleração e queda do assalariamento, a partir dos anos 90, quando apenas 60% dos novos ocupados foram contratados como assalariados, aumentando, paralelamente, as formas de contratação precária, sem garantias legais, nem proteção social, assim como também a chamada ocupação ‘autônoma’.

Esta falsa autonomia ocupacional passou a responder por 21% do rendimento total do trabalho (no período 1990-2003), ficando o emprego ‘por conta alheia’ com menos de 70% (destes somente 52% correspondiam ao emprego formal).

Esses dados dão uma vaga idéia do significado real do grau de esfacelamento da condição salarial, politicamente protegida, que o discurso oficial pretende naturalizar com eufemismos tão triviais como flexibilização, terceirização e informalidade.

A terceirização – eufemismo que esconde uma série de formas destinadas a reduzir custos, aumentando simultaneamente a exploração do trabalho – respondeu, no período 1995- 2003, por 33,8% dos postos de trabalho gerados pelo setor privado formal. Em 2005, o segmento terceirizado registrou 4,1 milhões de empregos formais, quase l6% do emprego. Em termos oficiais, o segmento terceirizado envolve cinco categorias: “serviços não especializados prestados por empresas especializadas; atividades de limpeza e conservação, prestadas por empresas; alocação temporária de mão-de-obra; serviços de segurança e vigilância e ocupação em empresa individual” (p. 31).

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), citados por Pochmann (p. 29), indicam que a chamada economia informal era constituída por 10,3 milhões de ‘empreendimentos’ (dos quais 9,3 milhões ‘por conta própria’), absorvendo mais de 27% do total de ocupados, com destaque para a construção civil, onde o trabalho informal representa mais de 40% do total de ocupados. Segundo a mesma fonte (IBGE), mais de 70% dos ocupados na chamada economia informal pertencem à categoria ‘conta própria’ e seu rendimento equivale a 55% da média da PEA.

O texto resenhado deixa claro que a informalidade é o refúgio compulsório do desemprego e da precariedade generalizada do emprego realmente existente. Mais ainda, ela é, com toda evidência, produto e componente programado para assegurar a racionalidade funcional do atual modelo de acumulação capitalista, comandado pela oligarquia financeira universalizada.

Nesta ordem de idéias, acreditamos que este pequeno texto pode ser lido e digerido com proveito. Assim, uma primeira lição a tirar dele é a da comprovação de que o desemprego e o emprego fluidicamente precário ou informalizado são perfeitamente funcionais ao capitalismo moderno. Tal abordagem contribui, sem dúvida, para desmistificar a falsa naturalidade do mercado, como a principal instituição da modernidade capitalista. Instituição essa que tem, na falsa igualdade contratual do mercado de trabalho, a prova mais patente da sua impostura, cuja desproteção ou desorganização é diretamente proporcional ao poder discricionário dos empregadores, hoje potenciado pela crescente privatização do Estado.

Importa, igualmente, atentar para o fato de que o texto resenhado permite uma leitura saudável do maltratado conceito de Política, ao deixar claro que a política de emprego (como qualquer outra relativa à Educação, à Saúde ou à Ecologia, por exemplo) tem tudo a ver com a ordem socioeconômica e que, por isso mesmo, a Política não pode ser rebaixada a pura tecnologia de gestão ou administração de fatores (como ocorre com a ‘coisificadora’ nomenclatura de Recursos Humanos). Uma visão que apresenta a Política existente como uma ordem sobrenatural e predeterminada de relações, sob denominação técnica de governança, anglicismo pós-moderno, falaciosamente identificado com a democracia.

Outro aspecto destacável do texto de Pochmann é que nele dialogam continuamente o rigor conceitual com as urgências da reflexão política comprometida, o que nos autoriza a concluir que o autor e seu texto caminham, com passo tranqüilo e sem dissimulada retórica, na contramão da ordem dominante e do seu discurso ‘politicamente correto’. Discurso que nos últimos tempos transformou as ciências econômicas e sociais, difundidas em muitos espaços da academia e da mídia de mercado, em versões teológicas secularizadas, elevadas a princípios de realidade das relações sociais.

A incipiente crise mundial que apenas se iniciou com a queda das bolsas e a falência de alguns bancos, muito representativos do capitalismo homicida que nos domina, permite temer uma intensificação maior da ofensiva do capital contra o trabalho, iniciada nos anos 70.

A crítica desta realidade exige, em primeiro lugar, o conhecimento das suas causas e a identificação dos seus mecanismos e agentes. A história ensina – dizem os sábios – mas não tem tido discípulos aplicados. O desafio continua sendo o de sempre: a crítica de uma realidade exige a construção de outra realidade (que os filósofos chamam práxis: atividade teórica e prática a um só tempo).

Para terminar, uma reflexão politicamente comprometida, cuja pertinência parece neste momento crítico do mundo mais do que correta: “O Brasil – escreve Pochmann – precisa combinar urgentemente regime democrático com crescimento econômico sustentado. Isso seria, de fato, um êxito inovador para qualquer brasileiro nascido a partir dos anos 1960” (p. 8).

Ramón Peña Castro – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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