Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático – STREECK (C-FA)

STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018. Crise e neoliberalismo no capitalismo setentrional. Resenha de: MARINO, Rafael; COSTANZO, Daniela. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 25 n.1 Jan-Jun, 2020.

A partir de uma longa visada, o livro de Wolfgang Streeck, Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático, pretende explorar as determinações essenciais da passagem, em meio a crises fiscais e financeiras, de um capitalismo democrático, baseado em um Welfare State e instituições políticas keynesianas, para um capitalismo neoliberal, no qual um regime econômico neo-hayekiano – caracterizado essencialmente por uma máxima desregulamentação econômica e pela proteção frente a qualquer normatização ou correções políticas de massa – impõe um mercado que se pretende imune a qualquer tipo de intervenção democrática. Nesse sentido, uma das teses mais fortes do economista alemão é a de que a crise de 2008 marcaria o possível fim dos adiamentos de conflitos decorrentes da crise do capitalismo democrático, ocorrida na década de 1970. Falamos em longa visada, pois o seu estudo abarca, pelo menos, as transformações do capitalismo e a marcha do capital desde os fins da década de 1960 até a década de 2010. O que acaba por tornar-se um respiro benfazejo em meio às análises políticas e econômicas presentes no mercado das ideias, fortemente pautadas por certo imediatismo e por estudos de curto fôlego.

A base material com que Streeck lida é a do capitalismo de países ricos  notadamente nações europeias, como Alemanha e França, além de nações de outros continentes, como Estados Unidos da América e Japão “como unidade multifacetada, constituída pela interdependência, em meio à dependência coletiva dos Estados Unidos, quanto pelas peculiaridades dos conflitos internos e dos problemas de integração sistêmica” (Streeck, 2018, p. 12).1 A fundamentação teórica que lança mão para cuidar deste material é um amálgama entre marxismo, renovado pela assim chamada novas leituras de Marx (Elbe, 2013), teoria crítica frankfurtiana das crises e as formulações de Michal Kalecki e Karl Polanyi. O que não deixa de também chamar a atenção, dada a preponderância de pesquisas e trabalhos fortemente especializados e centrados em particularismos formais e subjetivos, seja de atores ou mesmo de instituições políticas, nas ciências sociais, principalmente na economia e na ciência política. Não obstante a sua aproximação destas teorizações amalgamadas, Streeck não deixa de ver nelas algumas limitações frente ao material por ele enfrentando, o que serve, sobretudo, para o aperfeiçoamento daquele instrumental e não seu abandono.

Quanto às suas divisões internas, o livro é composto por seis partes, sendo quatro capítulos, um prefácio à segunda edição, de 2015, e uma introdução, os quais procuraremos explorar, mesmo que sumariamente e sem necessariamente seguir a sua ordenação.

No prefácio, Streeck volta-se para a discussão de seus pressupostos teóricos, suas escolhas de caminhos durante a apresentação de seu argumento e a exposição sucinta de alguns de seus achados de maior relevância. Quanto ao primeiro elemento, o referido amálgama crítico e neomarxista permite que o economista alemão veja o capitalismo como uma sequência de crises imanentes ao processo de valorização do valor; o mercado como algo reposto empiricamente a partir do entrecruzamento entre ação estratégica e as lutas distributivas coletivas “nos mercados expandidos, impulsionado por uma dinâmica relação de troca entre espaços de classes e de interesses, de um lado, e de grupo organizados e instituições políticas, de outro, com particular consideração do problema da reprodução financeira do Estado” (Streeck , 2018, p. 9) e o capital como uma espécie de sujeito capaz de assumir estratégias complexas para levar a bom termo sua valorização e expansão. Estratégias as quais operam, por exemplo, via greve de investimentos, como as antevistas por Kalecki (1943), para quem os capitalistas, vendo o pleno emprego e o poderio da classe trabalhadora aumentado, utilizariam-se daquele expediente para o enfraquecimento dos trabalhadores e para a extenuação do poder do Estado. Nesse bojo, o mercado e suas estratégias políticas, deixados por eles mesmos, sem a resistência da classe trabalhadora e de políticas voltadas para desmercadorização, poderiam, tendencialmente, tornar-se um moinho satânico com potencial para destruir a civilidade e a sociedade (cf. Polanyi, 2000).

Já em relação às trilhas percorridas por Streeck, três parecem ser os elementos essenciais. Em primeiro lugar, o capitalismo democrático dos países ricos a que se refere é visto pelo economista como um período de excepcional e específica estabilidade, construída politicamente a partir de uma elite tecnocrática, frustrada com os anos 1930 e “fundada em uma economia de guerra (…) centrada no Estado, que tinha uma coisa em comum com todas as linhas partidárias: profunda e experimentada dúvida sobre a viabilidade e sustentabilidade do livre mercado capitalista” (Streeck, 2018, p. 16). Havia, portanto, uma crise de legitimidade capitalista que exigiu que os capitalistas aceitassem um regime social democrata. Em segundo lugar, esse casamento entre capitalismo e democracia não é natural, pois, dentre outras coisas, ambos operam com formas contrárias de justiça. O capitalismo pratica uma justiça de mercado baseada no desempenho individual, enquanto a democracia se baseia na universalidade de direitos a partir da justiça social. Há, além disso, uma assimetria entre as duas justiças, já que o capital tem mais condições de reagir, podendo impor crises ao conjunto da população e justificar suas reivindicações como condições para o funcionamento do sistema como um todo. Já as reivindicações dos trabalhadores são vistas como perturbações e não como necessidades ao funcionamento do sistema.

Como último elemento distintivo da pista sob a qual o argumento de Streeck se desenvolve, vê-se a ideia de que, a partir do final dos anos 1960 e começo dos anos 1970, esse casamento forçado entre capitalismo e democracia começou a mostrar suas contradições através de crises que foram seguidamente adiadas de formas distintas até o momento atual. Com, principalmente, três fatores: a) a diminuição do crescimento econômico, antes constante e crescente; b) o clima político desenvolvido a partir das revoltas de 1968, a partir do qual alguns atores políticos, organizações de classe e intelectuais passaram a falar até mesmo na superação do mercado e do capitalismo; e c) a uma revalorização grande do mercado como instância de satisfação e gestão das mais diversas esferas da sociedade. Nesse período, a burguesia, acossada principalmente pelos dois primeiros fatores elencados acima e legitimada pelo terceiro fator, inicia a quebra do que fora duramente acordado por décadas e deixa de financiar essa forma de organização estatal voltada ao bem estar social. Desta feita, criticando a visão de autores como James Buchanan, Gordon Tullock e outros teóricos da chamada public choice, o Estado de Bem-estar social não teria chegado ao fim pela irresponsabilidade fiscal de trabalhadores que votariam pela maximização de seus bens e serviços de seu interesse, mas sim por uma escolha política deliberada dos capitalistas em geral.

Na sua introdução, intitulada “Teoria da crise  no passado e no presente”, Streeck enuncia mais fortemente a sua filiação às teorizações da crise vindas da assim chamada Escola de Frankfurt, passando, de forma inespecífica, por Theodor Adorno, Max Horkheimer, Friedrich Pollock, Jürgen Habermas e Claus Offe. O essencial desta formulação sobre a crise, para o autor alemão, gira em torno de dois aspectos: i) o seu fundamento heurístico, desde o qual é possível ver uma tensão essencial entre a vida social civilizada e suas esferas e uma economia dirigida pelo imperativo de valorização do capital, que tende ao infinito e não possui freios normativos contra a barbarização; ii) o pressuposto de que o mais importante a ser estudado são os processos, em sua historicidade e em suas determinações basilares, e não os estados e momentos; de modo que aí as instituições sociais seriam vistas como engendradas pelo processo social, isto é, seriam provisórias, em permanente debate entre orientações políticas contraditórias e instáveis. Isso, a nosso ver, possibilitou um ponto de arrimo crítico interessante para Streeck, dado que, a partir dessa visão complexificada sobre a totalidade social em movimento, não caiu nas armadilhas da economia e da ciência política mainstream, confinadas ao individualismo metodológico e a uma operacionalização que isola o econômico e o político de outras esferas da vida (cf. Sartori, 2004; cf. Paulani, 2005). Não obstante, Streeck também faz críticas às teorizações frankfurtianas, pois, a seu ver, teriam acreditado demais na capacidade política de legitimação e planejamento do Estado e subestimado o poder do capital enquanto agente político e força social apta a desmobilizar e destroçar formas estatais específicas. Algo que, apesar de nosso acordo quanto a Habermas e Offe, é injusto com os frankfurtianos da chamada primeira geração, como mostraremos ao fim de nosso exercício de leitura crítica.

Já no primeiro capítulo do livro, Streeck repisa a sua crítica apesar de reafirmar sua filiação à teoria crítica frankfurtiana das crises, argumentando que esta teria se transformado em teorias da cultura, do Estado e da democracia, deixando de lado a crítica da economia política, achado essencial de Karl Marx e boa parte de suas teorizações sobre, por exemplo, crescimento, subconsumo e superprodução. Contra isto, o autor alemão propõe que voltemos a olhar o capital como um agente econômico e político voltado à sua autovalorização constante e dotado de forte capacidade estratégica contra o que acha ser uma barreira contra seu desígnio maior: a acumulação. Deste modo, a construção de um capitalismo democrático, durante as chamadas três décadas de ouro após a Segunda Guerra Mundial, deveria ser vista como um momento muito específico no qual o capitalismo e os capitalistas estavam em baixa e aceitaram a fusão, tensa, com a democracia e com a melhoria constante do nível civilizacional da classe trabalhadora. Tudo isso fora aceito pelos agentes do capital como uma forma de reestruturação de sua legitimidade, bem como uma espécie de imposição pela luta entre as classes e não como mudança do ímpeto acumulativo do capital.

Esta crítica de Streeck às ideias de crise de legitimação frankfurtiana deságua num diagnóstico bastante instigante a respeito da crise desta forma de capitalismo democrático em meados da década de 1970, a saber: “não foram as massas que se recusaram a seguir o capitalismo do pós-guerra, acabando com ele, mas, sim, o capital sob a forma de organizações, organizadores e proprietários” (Streeck , 2018, p. 65). Porém, por que essa recusa se deu? Sobre este ponto, as explicações dadas pelo autor aparecem em momentos distintos do texto, o que pode causar certa confusão no(a) leitor(a); além disso, duas delas, ao menos aparentemente, são contraditórias – conforme exploraremos mais adiante. Todavia, Streeck aponta que três seriam as causas. Em primeiro lugar, teria ocorrido o início de certo achatamento da lucratividade do capital, devido, principalmente, aos custos com mão de obra, cada vez mais valorizada, e com os chamados encargos do Welfare State. Em segundo lugar, com as revoltas da década de 1960, mais especificamente, as de 1968, instaura-se um clima político entre segmentos específicos de forças sociais, políticas e intelectuais supostamente voltados à negação e superação do mercado e da mercadoria, deixando os capitalistas extremamente assustados. Em terceiro lugar, nessa mesma década de 1960, assiste-se a uma elevação inédita da legitimidade, em várias camadas da sociedade, das forças do mercado vistas, neste período, como as melhores gestoras de diversas esferas da vida e da política  e ao aumento exponencial do consumismo e sua ideologia, conquistando novos domínios da vida social. Essa nova onda de legitimidade do mercado deu-se, num primeiro momento, a despeito das revoltas de 1968. Todavia, posteriormente, ela se deu utilizando-se, também, das pretensões emancipatórias dos manifestantes quanto à maior autonomia, à criatividade e à possibilidade de novas formas de vida distintas da família de classe média europeia e estadunidense. Deste modo, o desejo de autorrealização e flexibilidade comportamental e libidinal dos revoltosos de 1968 fora capturado por formas de trabalho e ocupação que embaralhavam termos opostos como independência e precariedade, conforme os diagnósticos de Boltanski e Chiapello (2009).

Outro lance argumentativo interessante de Streeck é quando liga a crise  adiada do capitalismo democrático de 1970 aos dias de hoje. De acordo com o nosso economista, tendo em vista os três elementos anteriores, pode-se notar o abandono dos capitalistas (ou dos dependentes do capital) do capitalismo democrático. Não obstante, esse abandono foi algo processual e não peremptório, dado que, ao mesmo tempo em que deveriam lograr a liberalização total da economia e de outras esferas da sociedade, não poderiam perder a sua legitimidade frente aos dependentes de salário em geral. Até porque, sem nenhum tipo de distribuição aos de baixo, o caminho para revoltas de todos os tipos estaria pavimentado. Streeck nota que, andando próximo àquela tendência de desacoplamento frente à regulação democrática, vê-se, entre as décadas de 1970 e 2010, uma contínua diminuição do crescimento econômico das economias centrais cada vez mais estagnadas. Tal diminuição do crescimento econômico fica sem maiores explicações e explicitações causais e de gênese por parte de Streeck – o que também criticamos ao final da resenha.

De toda forma, três seriam as formas de adiamento dos conflitos decorrentes da crise dos anos de 1970: i) inflação; ii) endividamento do Estado e iii) endividamento privado por meio da expansão dos mercados de créditos privados. Todos esses adiamentos, de um modo ou de outro, marcaram derrotas importantes para os assalariados e serão explorados por nós rapidamente  juntamente com as suas consequências para o povo dependente de salários e para a tentativa autoritária do mercado em se livrar de qualquer constrição da democracia.

A primeira forma de adiamento da crise se deu entre as décadas de 1970 e 1980 e foi materializada por meio da inflação. Isso se deu porque já nos anos de 1970 o pleno emprego, pedra angular da democracia no pós-guerra, passa a ser de difícil manutenção, dado que o crescimento econômico resultante do trabalho e do capital deixou de ser sistemático e ascensional. Assim, para evitar uma insatisfação popular generalizada com a não redistribuição dos lucros vindos da produção, o aumento salarial acima do aumento da produtividade fora sustentando por meio de uma política monetária de introdução “de recursos adicionais, que, no entanto, não estavam disponíveis senão sob a forma de dinheiro, não ou ainda não como algo real” (Streeck, 2018, p. 80). Gerando-se, desta feita, inflação. Mas não só. Essa ilusão monetária fora uma miragem de curto prazo, cujo fim fez com que investimentos diminuíssem ou fossem canalizados para outras moedas fora da zona econômica do atlântico norte. Já na metade da década de 1970, os agentes do capital, vendo tal situação de estagnação e inflação, colocaram na ordem do dia, sob a liderança de Reagan, nos Estados Unidos da América, e Thatcher, na Inglaterra, medidas de estabilização neoliberal drásticas. As quais foram um duro golpe nos dependentes de salários, visto que a deflação da economia foi decisiva para recessão e desemprego constantes. Condições importantes para a perda de poder dos sindicatos e da classe trabalhadora. Por conseguinte, a arena da disputa de classes, a partir deste momento, passa a se deslocar do mercado de trabalho e das fábricas, para lugares cada vez mais “abstratos” e inacessíveis ao cidadão comuns.

Essa política econômica “estabilizadora”, localizada no final dos anos 1970 e ao longo da década de 1980, mostrou-se uma porta de entrada importante, a um só tempo, para uma nova configuração estatal. Com a deflação anterior e o decréscimo no nível de vida, viu-se novamente o perigo da não legitimação do capitalismo tardio frente às camadas médias e populares, fazendo com que Estados e agentes econômicos fossem atrás de outra fonte de adiamento e legitimação, qual seja: o endividamento público. Ao modo da inflação, o endividamento público permite ao governo utilizar recursos financeiros provenientes do sistema monetário, mais especificamente do pré-financiamento de futuras receitas fiscais do Estado via instituições privada de crédito. Recursos que serão de suma importância para pacificação de conflitos sociais provenientes do crescente fosso entre as promessas do capitalismo e sua realização efetiva para a maioria da população. Outro movimento a que se assistiu, juntamente com esse endividamento do Estado, foi o de aumento dos créditos sobre os sistemas de seguridade social, em função, principalmente, da elevada taxa de desemprego e pelo fato de a moderação salarial da classe trabalhadora ter tido como termo de negociação o aumento de parcelas. Ou seja, politicamente, os governos não podiam nem cortar mais direitos do Estado Social nem aumentar impostos, dado que uma ou outra alternativa poderia cutucar onças com varas curtas; fazendo com que recorresse ao endividamento público.

Essa forma de adiamento fora tão sensível que se constitui como um pilar essencial da passagem do que Max Weber, Adolph Wagner, Richard Musgrave e Rudolf Goldscheide concebiam como Estado Fiscal, que expropriou sistematicamente e soberanamente os cidadãos em geral da sociedade civil, a fim de financiar o cumprimento de suas tarefas como interferir no crescimento econômico, redistribuir riqueza e cobrir externalidades negativas do mercado -, para o Estado endividado.Este, para cumprir as suas tarefas e obrigações, passa a contrair empréstimos e deixa de cobrar uma taxa mais elevada de impostos daqueles que se apropriam da maior parte da riqueza socialmente produzida, os chamados dependentes do capital. Assim, Streeck pode afirmar, com dados e fatos, que a crise financeira não foi gerada pelas massas e suas demandas de civilidade, mas sim pelo andar de cima, que, década após década, viu seus rendimentos e propriedades, cada vez mais aumentados, serem cada vez menos taxados. Ou seja, numa movimentação unilateral de classe, deixaram de financiar o Estado social e o capitalismo democrático em prol da valorização do capital. Nesse bojo, a luta entre as classes também ganha outro contorno, passando a ser disputada dentro dos Estados de bem-estar social e não mais na produção, como anteriormente, girando em torno de disputas intraburocráticas e ainda mais distantes dos cidadãos dependentes do trabalho.

Nessa forma de Estado endividado, Streeck identifica propriamente uma nova fase de relação entre capitalismo e democracia. Isso se dá pelo fato de que, como o Estado passa a dever para instituições privadas de crédito, há sempre a desconfiança por parte destas de que o aparato estatal não honre as suas dívidas apesar de ser um devedor deveras lucrativo e seguro -, o que faz com que os agentes do mercado passem cada vez mais a influenciar a política estatal com o intuito de assegurar seus lucros. Por conseguinte, os credores passam a ser uma espécie de segunda raiz constitutiva do Estado, de sorte que as políticas devem responder a dois setores ou povos distintos, a saber: a) o povo do Estado, composto por cidadãos nacionais, portadores de direitos civis, dependentes de serviços públicos, formadores da opinião pública e que expressam sua vontade eleitoral periodicamente  tudo isso em troca de lealdade ao Estado e ao pagamento de impostos; b) o povo do Mercado, formado por investidores – e não cidadãos – internacionalmente integrados, que visam exclusivamente a maximização de seus lucros e que se ligam ao primeiro povo apenas por contratos.

À vista deste quadro, o nosso autor tira algumas consequências importantes da relação entre capitalismo e democracia. Primeiro, o capital ou o povo do mercado deixou de influenciar a política apenas indiretamente, via investimento na economia, e passou para uma ação direta na política nacional ao escolher ou não financiar todo o Estado. Segundo, o povo do Estado, principalmente as camadas mais pobres, por resignação, comparecem cada vez menos às eleições, pois já não veem o que esperar de mudança do partido no governo, visto que a agenda política e econômica da esquerda e da direita pouco se diferenciam e passam a sofrer constrições decisivas do povo do mercado. Com isto, cada vez mais o capitalismo vai se blindando em relação à democracia e suas decisões e a transição neoliberal vai se estabilizando e se alastrando.

Na passagem da segunda para a terceira forma de adiamento da crise vê-se, além de uma nova forma de preterir a crise (o endividamento privado), a constituição de outra configuração estatal, ainda mais voltada aos interesses do capital e para consolidação do neoliberalismo. Já ao final dos anos 1980 e começo da década de 1990, iniciou-se um movimento dúplice: os governos passaram a se preocupar cada dia mais com o aumento do peso do serviço da dívida no orçamento e os credores, a cada dia que passava, desconfiavam da capacidade estatal para o pagamento das dívidas. Nesse período, sendo os EUA de Clinton a vanguarda do atraso, começaram cortes nos gastos sociais e tentativas de “equilibrar” o orçamento, prática seguida por várias outras nações e incentivada diretamente por organizações como Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Apesar desse processo de liberalização radical dos mercados já vir de duas décadas anteriores, o capitalismo ainda precisava de uma forma de legitimação que, de uma só vez, mobilizasse recursos adicionais para evitar revoltas populares e não permitisse que a procura de capitais pelos países diminuísse, isto é, que a varinha de condão da confiança burguesa não deixasse de tocar as nações centrais. Para cumprir essas duas demandas, a saída da vez fora o endividamento privado, ou o que Colin Crouch chamou de “keynesianismo privado” (Crouch, 2009), injetando uma solvência antecipada no mercado numa segunda onda de liberalização dos mercados de capitais. Deste modo, substitui-se o endividamento público pelo endividamento privado como uma forma de aumentar as reservas disponíveis de recursos para distribuição. Nesse contexto, o papel do Estado mudou novamente, via liberalização do mercado de capitais no sentido de permitir o endividamento irrestrito dos agregados familiares, os quais tentam compensar tanto as perdas salariais de décadas, quanto a destruição das políticas estatais de desmercadorização.

Essa nova forma de adiamento forjou as bases para duas mudanças políticas e ideológicas importantes. Politicamente, vê-se a harmonização total entre a saída política encontrada e os desejos dos agentes do capitalismo neoliberal, harmonizando as necessidades e expectativas de ambos; até porque a desregulamentação das esferas da vida e dos mercados de capitais atingiu ali um nível nunca antes visto. Ideologicamente, operou-se um movimento dúplice: ao mesmo tempo em que surgiram novas teorizações a respeito da eficiência dos mercados desregulados, os quais contariam com agentes racionais que deteriam todas as informações necessárias para agir desde que o Estado não interferisse e desestabilizasse essa dinâmica, foram reabilitadas ideias de autores como o austríaco Friedrich Hayek, cuja proposição da transfiguração de todas as esferas da sociedade em empresas fora importante para imantar a prática de agentes capitalistas.

Nesse mesmo período, a formação estatal ganha outra conformação: passasse do Estado endividado nacional para o Estado de consolidação internacional. Por consolidação, Streeck entende o crescente processo de consolidação do orçamento e das finanças públicas no sentido de restringir direitos e parcelas do Welfare State à população e permitir um ambiente seguro para as movimentações políticas e econômicas do povo do mercado. Desta feita, essa consolidação está intrinsecamente ligada a três outros movimentos importantes: i) redução do Estado ao mínimo funcional à expansão dos mercados, impedindo a intervenção estatal ativa no sentido de regular e mitigar a justiça de mercado; ii) institucionalização de uma economia política internacionalizada e a transformação dos Estados nacionais em entidades não soberanas ajustadas a uma política fiscal decidida por uma diplomacia internacional do capital, cujo ponto de fuga não é a civilidade e sim o da valorização do capital e iii) restrição da capacidade de ação e regulação democrática do povo do Estado, de forma a colocar na ordem do dia uma democracia desdemocratizada e domesticada pelas forças do mercado e não o contrário. Como o Estado de consolidação é um regime internacional, a própria luta distributiva atinge o seu maior nível de abstração e inacessibilidade aos estratos médios e popular, já que o poder passa a se concentrar numa diplomacia financeira internacional e em mercados de capitais blindados à intervenção democrática e política.

Não obstante, em 2008, o keynesianismo privado veio abaixo. Essa forma de endividamento sustentou uma prosperidade enorme do setor financeiro e uma economia afluente, tudo isso sustentado pelo endividamento inaudito e colossal dos agregados familiares. Porém, a estrutura de crédito que permitia esse novo adiamento foi para os ares e o motivo era que todo aquele crédito liberado de modo algum poderia ser efetivamente saldado e boa parte do dinheiro em circulação, na forma de crédito, era fictício e lastreado em nada. Desta feita, os recursos para o adiamento da crise do capitalismo foram, um a um, testados e fracassaram, tornando qualquer saída cara demais para a diplomacia financeira internacional. À vista disto, o economista alemão vê duas alternativas possíveis: ou instaura-se realmente uma ordenação estatal neoliberal internacionalizada e pós-democrática, na qual o totalitarismo do mercado único sobrepujaria totalmente o povo do Estado, ou, a partir das mais variadas resistências populares – como o movimento global Occupy dos 99% –, volta-se a pensar na reconsolidação de democracias nacionais capazes de reinstaurar instituições promotoras de uma justiça social não redutível à justiça do mercado, a exemplo do praticado durante o chamado consenso socialdemocrata, além da repactuação de um Bretton Woods necessário à manutenção da soberania e democracia nacionais. Desta feita, a alternativa pensada por Streeck passaria, necessariamente, pelas seguintes medidas: a) reaproveitamento e revitalização de instituições nacionais, ao modo de parlamentos, bancos centrais, canais de representações popular e instituições de seguridade social socialdemocratas, as quais representariam as diferenças entre os povos e as nações; b) o aumento do espaço de autonomia dos Estados nacionais frente às instituições globais de governança do povo do mercado e c) a reformulação de um acordo econômico europeu, feito Bretton Woods, desde o qual se repactuassem regras para relações econômicas, as quais resistissem ao avanço desenfreado da desregulamentação mercantil. Tendo isso em vista, poder-se-ia argumentar que isto é muito pouco perto do diagnóstico feito pelo próprio economista alemão. Todavia, o próprio Streeck nos adverte que todas essas medidas são formas de ganhar tempo contra a expansão capitalista desmedida e que soluções melhores e mais radicais de ação contra a desdemocratização neoliberal devem ser pensadas com urgência.

Apesar de ser um estudo com elementos e argumentos indispensáveis para compreensão do capitalismo contemporâneo, articulando de modo exemplar a relação entre economia, política e sociedade, algumas críticas podem ser tecidas ao estudo de Streeck, as quais div idimos em teóricas, geopolíticas e de encadeamento interno da exposição.

No primeiro grupo, nota-se uma leitura generalizante a respeito da chamada Escola de Frankfurt ou da teoria crítica, 2 por dois motivos. Em primeiro lugar, a ideia de confiabilidade no caráter controlável do capitalismo, a partir da intervenção estatal e da democracia, é bem mais aplicável ao pensamento de Habermas e, em menor medida, ao de Offe -, para quem o Estado democrático de direito teria plenas condições de domesticar o crescimento capitalista, de modo que os cidadãos teriam aí direitos políticos para tomar parte e direitos sociais de ter parte nos processos decisórios e redistributivos da sociedade (Habermas, 2015). Deste modo, o problema essencial a ser enfrentado é o da continuidade da legitimidade do compromisso em torno deste Estado e os possíveis problemas da intervenção estatal na vida das pessoas; assim, a saída seria apenas a repactuação em torno de arenas políticas e discursivas, para que o princípio da solidariedade e o mundo da vida tivessem condições de sobrepujar os imperativos sistêmicos. Em Adorno e Horkheimer, como podemos ver em vários momentos de suas obras, o poder de mudança regressiva do capital e da forma mercadoria não são deixados de lado em prol de “análises culturais”. Mas sim que, partindo do diagnóstico pollockiano, poderíamos ver outros tipos de dominação menos imediatas determinadas não em sentido fatalista pela lógica da mercadoria (Fleck, 2016; Cook, 1998). Desta feita, a análise que fazem dos rackets não deixa dúvidas sobre a atenção que davam ao econômico e ao político (Adorno, 2003; Horkheimer, 2016). Ademais, se for permitido um reparo adorniano ao trabalho de Streeck, muito mais interessante que o uso da vaga ideia de ideologia do consumismo, seria lançar mão da noção de indústria cultural, dado que ela deveria ser entendida como uma continuação específica e crítica das teorizações sobre fetichismo e reificação de Marx e Lukács, de acordo com Adorno e Horkheimer (2006).Isso se dá porque o caráter de sistema da indústria cultural – composta pelo cinema, rádio, jazz, revistas, esporte, moda e livros de alta vendagem –, seria explicável justamente pela imposição do processo de reificação ao lazer e à cultura, impondo-lhes sua forma mercantil e tornando-as prolongamento do trabalho reificado. Forma reificada que condicionaria fortemente a apreensão da realidade, que passa a ser entendida agora como sistema imutável de leis especializadas e apreendida apenas pela contemplação, conformando uma individuação integrada à totalidade do capital e aos seus desígnios de consumo e manutenção do sistema.

Em segundo lugar, a teorização de Pollock surgiu em contraposição a outras duas. Uma, de origem social-democrata, propugnava a ideia de que as transformações do capitalismo no início do século XX apontavam para a sua estabilização; outra, aventada por figuras do comunismo ocidental, acreditava que estas transformações aprofundavam as contradições internas do capitalismo, apontando para seu colapso ou crise definitiva (Rugitsky, 2015). Contra ambas, Pollock (1973;1982) propõe que inexiste qualquer tendência inelutável de mudança ou colapso automático do capitalismo e que ele não estava passando por uma estabilização, mas sim por uma reestruturação na qual a primazia deixa de ser dos mecanismos do mercado e passa a ser do Estado, cuja política garante a reprodução da vida econômica.

À vista disto, pode-se entender a crítica de Streeck a certa “confiança” no planejamento mediante as reviravoltas do capital, porém é interessante que o economista alemão fale em greve de investimentos, em ação política das classes e na ideia de que as relações econômicas possuem uma fundamentação política, visto que isto não destoa de uma parte importante do diagnóstico de Pollock a respeito da politização do quadro institucional do capitalismo. E mais: o economista alemão havia pensado em duas possibilidades organizacionais para o capitalismo de Estado, o democrático e o autoritário; desta feita não poderíamos estar assistindo, na verdade, a passagem não para um Estado de consolidação, mas sim para um capitalismo de Estado autoritário? É preciso lembrar que o fato de a economia sofrer menos intervenções da democracia não quer dizer que a política saiu de cena, mas sim um tipo de política: a democracia de massas. Podendo restar aquilo que já era antevisto por Pollock, a saber: a força abismal dos dirigentes de grandes conglomerados e empresas, que, na esteira da monopolização acentuada decisivamente nos primórdios do século XX, passam a ser essenciais na vida social, política e econômica da população, pois, de um lado, o seu poder passa a se confundir com o poder estatal e, de outro, os seus prejuízos passam a ser socializados, dado que a sua falência causaria enorme impacto em toda a economia (Rugitsky, 2015, p. 63). Algo que, salvo engano, foi visto sistematicamente após a crise de 2008 em relação a variadas empresas e bancos, como Goldman Sachs e General Motors. Aspecto que poderia andar muito bem de mãos dadas com o processo de “ desdemocratização do capitalismo por meio da deseconomização da democracia ” (Streeck, 2018, p. 55).

Em relação à geopolítica, há duas ausências importantes na argumentação de Streeck: a primeira é a força da União Soviética e o contexto de Guerra Fria, a segunda são os processos de descolonização que assolaram o capitalismo central. Em relação ao primeiro fator, é possível dizer que a URSS, nas primeiras décadas do século XX, mostrou-se  independentemente de se gostar disto ou não  como uma alternativa de organização produtiva e social para a forte e organizada classe trabalhadora do centro e da periferia capitalista. Destarte, esses dois fatores um proletariado empoderado e dotado de uma alternativa de poder  produziram condições muito importantes para a consolidação de uma série de direitos sociais voltados para o bem-estar e para desmercadorização da população (Esping-Anderser, 1991), ou, como dizia Francisco de Oliveira, os direitos do antivalor (1998). Tanto é que Buci-Glucksmann e Therborn (1981) chegaram mesmo a entender o Welfare State como uma espécie de revolução passiva, na qual as classes dominantes passam a acolher uma série de demandas dos trabalhadores, dado que estão pressionadas política e socialmente pela possibilidade real de uma Revolução.

Já quanto ao segundo elemento elencado, desde o final da Segunda Guerra Mundial e se arrastando pelas décadas de 1950 e 1970, é possível notar um importante processo de descolonização pelo mundo, o que necessariamente implicou na perda relativa de poder político e econômico sobre a periferia do capitalismo mundial, deixando os dependentes do capital nos países centrais preocupados com uma diminuição da lucratividade de atividades organizadas em torno de matérias primas das ex-colônias (Jameson, 1999; Visentini, 2012). Nesse bojo, é notável o caso da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), que passou a nacionalizar as reservas petrolíferas e regular seus preços, e que produziu  em represália ao apoio dos EUA a Israel na guerra do Yom Kippur a chamada primeira crise do petróleo (Hobsbawn, 1995, p. 421-447). Com a qual, a partir do aumento proposital dos preços dos barris da referida commodity, a OPEP produziu consequências profundas nas economias centrais, cujos índices inflacionários bateram recordes, e que pode ter ajudado a acender o sinal amarelo das elites nacionais sobre os caminhos que o capitalismo democrático poderia traçar contra seus interesses de acumulação.

Ainda nessa seara, outro fato geopolítico importante, e que não aparece na explicação de Streeck, é a concorrência do que Araujo e Bresser-Pereira (2018) chamam de porções não-ocidentais do mundo no pós-Segunda Guerra Mundial. De acordo com estes autores, na esteira dos processos de globalização e descolonização, o que ocorreu não foi a destruição da forma política Estado-nação soberano, mas sim a sua dispersão e depuração mundial. Com isto, tais países alcançaram condições políticas e técnicas suficientes para controlar os recursos minerais de seus territórios e para dispor de um contingente enorme de mão de obra. Fatores que, combinados, passaram a exercer uma profunda pressão sobre os países desenvolvidos do centro ocidental do capitalismo, a qual “acabou afetando, a partir da década de 1970, o modo de legitimação dos Estados sob o chamado ‘consenso socialdemocrata’ dos anos dourados do capitalismo, os quais, após a Segunda Guerra Mundial, puderam oferecer cada vez melhores condições de vida às suas classes médias e populares” (Araujo; Bresser-Pereira, 2018, p. 556).

Desde o começo, salientou-se que a base sobre a qual o estudo de Streeck se concentra são os países desenvolvidos do centro do capitalismo, não obstante o fato de que considerações de economia geopolítica, como as que expomos, não fazerem parte de sua exposição acaba enfraquecendo seu argumento, dado que não se consegue explicar satisfatoriamente as determinações essenciais da estagnação do crescimento dos países centrais, por exemplo. À vista disso, partiremos para a exposição do que consideramos ser problemático no encadeamento expositivo interno do trabalho do economista alemão.

Conforme dissemos anteriormente, os anos de 1970 são chave para a passagem ao início de um adiamento tríplice da crise do capitalismo democrático e para o baixo crescimento econômico do que era antes o centro dinâmico do capitalismo no atlântico norte. No entanto, apesar da centralidade destes dois processos para o livro de Streeck, há três elementos que tornam essas passagens expositivas insatisfatórias.

Em primeiro lugar, como já dissemos no início deste exercício de leitura, as três causas do início da crise adiada a saber, o achatamento do lucro do capital no centro do capitalismo, a radicalização de alguns setores importantes contra a lógica mercantil e o prestígio da ideologia consumista são expostas de forma disparatada no texto, sem maior imbricamento e coesão entre elas, obrigando o(a) leitor(a) a caçar estas explicações ao longo do livro. Prova disto é que, ao longo dos capítulos um e dois, nos quais ele se debruça sobre os momentos de passagem de um capitalismo democrática mais consolidado para os adiamentos de sua crise, poucas são as vezes em que, ao menos, duas das causas expostas acima sejam apresentadas conjuntamente, de modo que durante quase cinquenta páginas é necessário pinça-las no texto. Ademais, a sua apresentação conjunta e imbricada não se dá durante a argumentação do economista alemão.

Em segundo lugar, apesar de Streeck concentrar-se propositalmente nos países desenvolvidos do capitalismo, algumas determinações de seus insucessos econômicos e políticos devem ser buscadas fora deles. Isso não se coaduna com a ideia de que Streeck seria etnocêntrico ou coisa do gênero (cf. Cariello, 2019), mas, tão somente, pretende-se chamar atenção para uma das lições da crítica da economia política de Marx (1983) reivindicada por Streeck contra as teorizações que esquecem das reviravoltas do capital: o fato de que o capitalismo é um sistema totalizante e que impõe a forma mercadoria e sua lógica em todos os cantos do globo e em todas as esferas da vida. Consequentemente, a exposição, mesmo concentrando-se nos países do centro do capitalismo, deveria prestar atenção em determinações que estão fora dele, pois, de acordo com outro ensinamento dos dialéticos, a primazia do método deve estar no objeto e suas implicações, as quais, no caso do capitalismo, são mundiais, queira-se ou não.

Em terceiro lugar, o economista alemão argumenta que haveria, em meados das décadas de 1960 e 1970, uma tendência contrária ao capitalismo e uma tendência que alargaria a sua legitimidade. À princípio, isto não seria em si problemático, porém a exposição do autor não deixa claro como esses dois termos se apresentam na realidade. A partir do que Streeck escreve, mas não desenvolve satisfatoriamente, poderíamos desdobrar a seguinte linha de raciocínio: ao mesmo tempo que segmentos específicos da sociedade, como parte dos trabalhadores, intelectuais e frações jovem e estudantis, tentavam colocar em xeque o sistema, gestou-se uma hegemonia ainda mais forte de legitimação mercantil, a qual enraizou-se de forma mais eficaz na sociedade. Ademais, essa tendência pró-capitalista pôde, ainda, apropriar-se de boa parte das bandeiras levantadas nos movimentos radicais de 1960 e 1970, convertendo-as aos dogmas do capital, apesar de sua aparência libertária. Desta feita, a luta por formas de vida autônomas e contrárias ao poder da mercadoria, fora funcionalizada como engrenagem de um capitalismo mais, aparentemente, flexível e hype.

Notas

1 À vista disto, não há base para Cariello (2019) chamá-lo de eurocêntrico, como se Streeck, espertamente, não tivesse revelado a base a partir da qual estuda mudanças importantes do capitalismo. Na verdade, Cariello é que nitidamente procura uma forma de atacar as posições de Streeck para elogiar as pretensas qualidades distributivas e civilizatórias do capitalismo. Que as pessoas tenham mais alguns dólares hoje do que o que ganhavam três décadas atrás, qualquer estudo empírico revela, mas Cariello esquece de dizer que as jornadas de trabalho no mundo voltaram a ter um nível de destrutividade poucas vezes visto e que, apesar de ganhos miseravelmente maiores, as desigualdades continuam aumentando de maneira gritante (Cf. Streeck, 2018, p.100; Piketty, 2014).

2 À primeira vista, esta crítica a Streeck pode parecer não essencial. Contudo, de acordo com argumento explorado posteriormente, caso o economista alemão tivesse dado maior consequência aos textos de Adorno e Horkheimer, poderia ter chegado a um diagnóstico e a uma crítica mais contundentes ao capitalismo contemporâneo e ao imbricamento ainda mais acentuado da tendência à reificação das subjetividades e ao poder destrutivo do capital, cujo cerne depõe contra o caráter facilmente controlável do capitalismo.

Referências

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STREECK, W. (2018).Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático São Paulo: Boitempo.Visentini, P. F. (2012).

As revoluções africanas: Angola, Moçambique e Etiópia. São Paulo: UNESP.

DanielaCostanzo – Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Rafael Marino – Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Riqueza e miséria do trabalho no Brasil III – ANTUNES (TES)

ANTUNES, Ricardo (Org.). Riqueza emiséria do trabalho no Brasil III. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014,464 p.p. Resenha de: CHINELLI, Filippina. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.14, n.1, jan./mar. 2016.

Lançado em 2014, em meio à crise socioeconômica, política e moral que o país atravessa, o terceiro volume de Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil, organizado por Ricardo Antunes, demonstra que a dinâmica do capitalismo contemporâneo analisada nos volumes anteriores da obra se aprofundou: o trabalho segue central na produção de valor, ao mesmo tempo em que continua se esfacelando como direito e se acentuam os processos de terceirização, precarização, informalização, ou seja, de vulnerabilização das condições de vida que afetam, em graus variados, os trabalhadores do mundo.

O livro constitui mais uma importante contribuição para a análise do que Antunes denomina de ‘laboratório capitalista’, realizada através de 25 artigos de autoria de pesquisadores tanto em início de formação quanto de reconhecimento nacional e internacional, combinando, “pesquisas coletivas, reflexões conjuntas, mas preservando o decisivo espaço de autonomia de cada pesquisador” (p. 9).

Tendo como fio condutor a compreensão das “heranças oriundas do padrão taylorianofordista de produção” e as “emergências decorrentes dos novos experimentos produtivos que resultam da acumulação flexível e presentes de modo expressivo no universo produtivo brasileiro” (p. 9), os autores se detêm nas transformações do mundo do trabalho e suas repercussões materiais e subjetivas sobre os trabalhadores, com olhos postos no Brasil, mas considerando as configurações que o capitalismo vem assumindo nos países centrais.

Santana assinala na orelha do livro que não se trata mais de analisar essas metamorfoses e transformações no Brasil da última década “como um ente em transição geral de um modo a outro, mas em mudança dentro de um estado já definido que precisa ser conhecido, interpretado e transformado”. Cabe agora tentar apreender os resultados desse processo, intenção que se revela pela leitura em conjunto dos artigos da coletânea.

Ao contrário das interpretações laudatórias que prometeram um quase paraíso aos trabalhadores do mundo, o que une os textos é uma perspectiva teórica profundamente crítica do mundo do trabalho, assentada no materialismo histórico, conforme delineado logo na primeira parte, cujos artigos apresentam discussões de caráter eminentemente conceitual que articulam, de forma explícita ou não, as interpretações do material empírico no qual se baseiam. Nela, denominada “Sistema global do capital e a corrosão do trabalho”, autores como Antunes e Druck, Mézáros, Bihr, Linhart, Alves, entre outros, tratam, de forma rigorosa, de temas como terceirização, trabalho abstrato, precarização, imigração, subjetividade, trabalho imaterial, estranhamento, alienação etc, relacionando-os aos processos que, em escala mundial, produziram o capitalismo flexível, o que vem se dando à custa da segurança material e subjetiva dos trabalhadores e da crescente fragmentação do tecido social, tanto no centro quanto na periferia do sistema, atingindo inclusive aqueles antes protegidos de suas intempéries.

As implicações subjetivas do regime flexível de organização do trabalho são abordadas em vários destes artigos, o que demonstra o interesse crescente da sociologia do trabalho contemporânea pelo tema. É preciso tentar apreender e analisar como o capitalismo flexível se justifica, como também quais são, como funcionam e quais os efeitos sobre os trabalhadores e as sociedades dos insidiosos dispositivos que objetivam o controle e a adesão ativa de todos aos objetivos das empresas.

É disso que se ocupam, por exemplo, Danielle Linhart, Giovanni Alves e Caio Antunes. Na opinião de Linhart, nem mesmo os empregados estáveis das grandes empresas estão a salvo das consequências psicológicas – e também físicas – consequentes aos novos modelos de gestão que produzem o que denomina ‘precariedade subjetiva’ caracterizada por sentimentos de isolamento, insegurança, angústia experimentados pelos trabalhadores. Em suas palavras, os “assalariados têm medo de não ser capazes, quer ocupem postos altos ou subalternos. Eles sabem que são continuamente avaliados, comparados, julgados; sabem que são explicitamente exigidas pela administração moderna a excelência e a capacidade permanente de ir além, de provar que merecem o lugar que têm e se convencerem do próprio merecimento (p. 51)”. “Desses dois pontos de vista”, acrescenta a autora, “o fracasso torna-se catastrófico, e o medo de enfrentá-lo causa uma angústia real” (p. 51).

Alves, também tendo como preocupação as estratégias gerenciais mobilizadas pela atual organização do trabalho, afirma que o “capitalismo manipulatório”, expressão que toma emprestado de Luckács, se esmera na disputa pela captura da subjetividade, processo produzido pela “disseminação de uma pletora de valoresfetiche, expectativas e utopias de mercado que constituem o que denominamos de inovações sociometabólicas, que perpassam não apenas os espaços de produção, mas também o espaço da reprodução social” (p. 55).

Procedendo a uma análise eminentemente teórica com base em Marx e Luckács, Caio Antunes trata da subjetividade em relação ao conceito de alienação. O autor afirma que a alienação sob o capitalismo repercute em graus diferenciados nos aspectos coletivos e privados, objetivos e subjetivos de todas as esferas da vida contemporânea. Nessa perspectiva e com base em Mészáros, ele ressalta que a alienação, “para além de interpor-se na relação direta que se estabelece entre o homem e a natureza, (…) sobrepõe-se, condiciona, conforma historicamente a categoria trabalho” (p. 127), não permitindo o desenvolvimento pleno da subjetividade humana.

A segunda parte do livro, intitulada “As formas de ser da reestruturação produtiva no Brasil e a nova morfologia do trabalho”, traz artigos que se debruçam sobre a configuração atual de diferentes setores produtivos da economia do país. A referência aos textos se limitará aos temas neles analisados, alguns dos quais estreantes quando considerados os volumes anteriores. Abordam-se nesta seção tópicos como construção civil e intelecto coletivo; telemarketing, telecomunicações e a nova divisão internacional do trabalho; prestação de serviços e situação do trabalho no telemarketing e nas telecomunicações brasileiras nos anos 2000; trabalho docente voluntário; trabalho de rua e informalidade; trabalho precarizado de trabalhadores de apoio técnico das artes; divisão sexual e condições de trabalho de vida de mulheres e homens inseridos no segmento avícola no contexto de integração de uma grande empresa no setor; trabalho na agricultura canavieira; trabalho das ‘caixas’ em hipermercados ligados a multinacionais do setor; trabalho degradante dos cortadores de cana.

“Os sindicatos na encruzilhada: ação e resistência dos trabalhadores” é o título da última parte da obra que se ocupa de questões do sindicalismo brasileiro atual. Sória, por exemplo, analisa as relações ambíguas e contraditórias entre a elite do sindicalismo de caráter propositivista e os fundos de pensão, no contexto de refluxo do movimento sindical e dos governos lulistas. Articula as dimensões político-conjuntural e teórico-ideológica para explicar o envolvimento ativo de lideranças sindicais nesse processo sob a justificativa de que, para lutar contra o capitalismo e proteger os interesses dos trabalhadores, era necessário que a gerência dos fundos passasse para as mãos de sindicalistas, o que acabou por promover forte – e, acrescente-se, perigosa – aproximação com o empresariado do país.

Nogueira trata das relações entre trabalhadores, sindicatos e uma empresa multinacional do setor automobilístico paulista, mostrando suas ambiguidades e contradições. Considera que na atualidade elas se caracterizam pelo “paradigma negocial e participativo”, mas também conflitivo, “o que indica a formação de um novo corporativismo de tipo societário, legitimado pela própria base operária na fábrica, diferentemente do padrão do sindicalismo corporativista estatal existente no Brasil” (p. 370).

No penúltimo artigo desta parte e também da coletânea, com base em material empírico sobre o trabalho dos teleoperadores paulistanos, Braga analisa as relações que vigem no país entre Estado e sindicatos, com ênfase nos governos lulistas. Em perspectiva semelhante à de Sória, afirma que os sindicatos se tornaram importantes atores no que se refere ao investimento capitalista no país por meio da gestão de fundos salariais e de pensão. O autor ressalta que essa configuração começa a dar sinais de esgotamento, expresso na recente onda de manifestações que se verificou em todo o país. Contudo, embora alguns desses movimentos expressem tendências progressistas, ele reconhece que a “evolução da luta de classe no país é, fundamentalmente, reprodutivista e, em consequência, conservadora” (p. 399).

Fechando a coletânea, Marcelino se ocupa da atuação sindical de trabalhadores terceirizados de Campinas. Em sua opinião, embora a terceirização resulte em limites às possibilidades de ação dos sindicatos devido à “precariedade das condições de trabalho e da fragmentação das categorias” (p. 401), as dificuldades não são intransponíveis, visto que vários deles conseguem empreender um trabalho combativo e reivindicativo, caso do Sindicato da Construção Civil, diferentemente do Sindicato dos Comerciários, cuja atuação se caracteriza pela conciliação. Sobre as experiências analisadas, Marcelino ressalta que o caráter da ação “não é dada (…) apenas pela composição da base, mas é resultado de uma combinação entre esse elemento e as condições políticas, sociais e econômicas, o peso da estrutura sindical corporativa, o papel desempenhado pelas direções sindicais, o histórico de luta de cada categoria e o desenrolar de enfrentamentos exteriores às empresas e cruciais para a construção de uma atmosfera de embates classistas” (p. 417).

Finalmente cabe ressaltar que Riqueza e miséria do trabalho no Brasil III amplia e enriquece o objetivo da série: dar ao conhecimento dos interessados, sejam alunos e professores da área de humanas, seja o público em geral, as faces atuais do capitalismo brasileiro, constituindo-se em leitura indispensável para todos aqueles que acreditam em sua superação.

Filippina Chinelli – Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Laboratório do Trabalho e da Edu-cação Profissional em Saúde, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]>

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A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano | MIchael Löwy

Publicado no Brasil pela editora Boitempo em 2014, A jaula de aço, do cientista social Michael Löwy, corrobora relacionar duas correntes sociológicas – a weberiana e a marxista –, muitas vezes entendidas como defensoras de proposições opostas, impossíveis de serem alocadas de forma amistosa na formulação de um quadro conceitual ou mesmo teórico-metodológico, mas que também, segundo o autor, têm sido frequentemente pensadas guardando convergências entre si.

De ascendência judaica, Michael Löwy nasceu em 1938 no Brasil, formou-se em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo em 1960, doutorando-se sob orientação de Lucien Goldmann em 1964 pela Sorbonne. Atualmente reside na França e é diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique. Löwy tem expressiva bibliografia sobre a história do pensamento de esquerda, desenvolvendo trabalhos sobre Karl Marx, György Lukács, Lucien Goldmann e Walter Benjamin. Nesse sentido, o presente livro, o qual se resenha, é instigante, uma vez que propõe pensar os usos da sociologia de Max Weber – considerado por Löwy um pensador liberal – por autores reconhecidamente marxistas, formando assim, uma “corrente” sociológica referida como webero-marxista. Leia Mais

O mito da grande classe média: capitalismo e estrutura social – PROCHMANN (TES)

POCHMANN, Marcio. O mito da grande classe média: capitalismo e estrutura social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. 148p. Resenha de: CASTRO, Ramón Peña. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.12, n.3, set./dez. 2014.

O redescobrimento das classes sociais representa uma mudança positiva, cada vez mais presente em descrições das novas estruturas sociais dos ‘centros’ e ‘periferias’ do capitalismo globalizado. Repare-se que até recentemente a categoria ‘classe social’ tinha desaparecido do léxico analítico referido à distribuição da riqueza e do poder, ocupando o primeiro plano as problemáticas de gênero, raça, etnia, religião, nacionalidade etc., cuja importância não deve ser subestimada, dada a persistência de odiosas formas de discriminação, desigualdade, violência e criminalidade.

Ao mesmo tempo, não pode ser considerado casual que esse cenário controverso coincida com o declínio das utopias históricas (derrubada do socialismo real e do Estado de bem-estar social, hoje idealizado) concomitante com a expansão da contrarrevolução neoliberal, por um lado, assim como a erosão dos paradigmas culturais através dos quais interpretamos a complexa realidade social, por outro lado.

É, justamente, este cenário controverso o que serve de inspiração para o livro de Marcio Pochmann que passamos a resenhar.

Dividido em quatro partes, cada qual composta de seções que abrangem 15 subtemas, o livro faz jus ao título, pois por sua leitura constatamos que a noção de ‘nova classe média’ não passa de uma construção quimérica do mercado político.

Na primeira parte, intitulada “Classe média em quatro tempos”, o eixo da exposição consiste em um diálogo entre conceituação sucinta das etapas de desenvolvimento histórico do capitalismo e a origem incerta de diferentes usos espaço-temporais do termo ‘classe média’. Concluindo com uma reflexão crítica sobre a extemporaneidade deste termo no Brasil, porque a “adoção”, escreve Pochmann, “de uma medida descontextualizada da base original da sua materialização pode se revestir apenas e simplesmente de um voluntarismo teórico inconsistente com a realidade, salvo interesses ideológicos específicos ou projetos políticos de reconfiguração da redução do papel [social do] Estado” (p. 45).

A partir deste último raciocínio parece pertinente pensar que a utilização descontextualizada do termo classe média, em substituição do termo classe trabalhadora, também serviria para incutir no ânimo dos trabalhadores a ideia de que seu vínculo unitivo não é o trabalho, mas sim o seu ‘novo padrão’ de consumo e o correspondente nível de rendimento, descolado da sua origem: a alienação da força de trabalho pelo capital. Por extensão, tudo isto implica a individualização e destruição das solidariedades de classe e das capacidades de (re)ação coletiva.

A segunda parte do livro, intitulada “Classe média: fatos e interpretação no Brasil”, contém uma argumentada exposição da origem e características do modelo fordista de desenvolvimento e da composição social do capitalismo avançado do segundo pós-guerra. Na sequência, examina as particularidades da industrialização tardia brasileira e sua relação com as condições de subconsumo da classe trabalhadora, derivadas da resistência das classes dominantes a admitir as reformas estruturais (‘civilizatórias’) que foram conquistadas (no período 1945/1975) pela esquerda político-sindical nos países desenvolvidos, sem que isso implicasse reversão da ordem capitalista. Pelo contrário, o atual processo de destruição acelerada do ‘Estado de bem-estar’ demonstra que as conquistas sociais, ligadas a essa denominação otimista (Estado de bem-estar), representam um fenômeno absolutamente excepcional na história do modo de produção capitalista.

Nesta segunda parte do livro, cabe destacar como uma linha de reflexão e debate em aberto a tese de Pochmann sobre “a combinação, na última década, de crescimento econômico brasileiro com distribuição de renda, o que permitiu a retomada da mobilidade social, especialmente aquela associada à base da pirâmide social” (p. 71), incluindo “ascensão dos trabalhadores pobres [no] projeto social desenvolvimentista” (p. 62-70).

Registremos alguns elementos que achamos importantes para compreender o alcance da reflexão de Pochmann sobre a presente trajetória econômica e social do Brasil:

  • Ampliação da base da pirâmide social com forte expansão do emprego, com três quartos dos novos empregos remunerados até l,5 salários mínimos;
  • Quase 40% de queda da pobreza em vinte anos: l988-2008 (p. 67);
  • Aumento de quase 80% do gasto social no PIB, em 25 anos: 13,3% em 1985 para 22,7% em 2010 (p. 66).
  • Incorporação ao ‘mercado de consumo barato’ de quase um quarto dos brasileiros, em que “parcela considerável da classe trabalhadora foi incorporada no consumo de bens duráveis, como TV, fogão, geladeira, aparelho de som, computador, entre outros” (p. 71).

Destacamos a sua própria conclusão: “esse importante movimento social”, escreve Pochmann, “não se converteu, contudo, na constituição de uma nova classe social, tampouco permite que se enquadrem os novos consumidores no segmento de classe média” (p. 71).

A terceira parte, intitulada “Cadeias globais de produção e ciclos de modernização no padrão de consumo brasileiro”, contém análise, assente em numerosos dados estatísticos resumidos em gráficos e tabelas, da dinâmica da economia política de consolidação do capitalismo monopolista transnacional e seus impactos nas estruturas sociais, especificamente no Brasil.

Fazendo um balanço das informações obtidas pela sua consistente exploração bibliográfica e elaboração estatística, Pochmann expõe com singular clareza as três principais razões explicativas da evolução histórica do grau de desigualdade no padrão de bens e serviços civilizados.

A primeira razão explicativa é a globalização como novo paradigma da produção das empresas transnacionais. Assente não apenas nas novas tecnologias, mas sobretudo em políticas neoliberais de liberalização dos mercados e privatização do setor público, assim como na ampliação da base de recursos produtivos, matérias e humanos, como decorrência da restauração do capitalismo na União Soviética, Leste europeu e China, principalmente. Essa enorme expansão geográfica dos mercados significou um aumento de l,5 para 3,9 bilhões do exército de força de trabalho fragmentada em estados competidores. Tudo isso tornou possível a produção massiva de todo tipo de mercadorias de baixo custo e sobre esta base a emergência das sociedades de consumo de baixo custo (low cost).

A segunda razão explicativa é a especificidade da inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho, mostrada por meio da sucessão dos ciclos de modernização do padrão de consumo das distintas faixas de renda, ocupação setorial e grau de escolaridade, assim como a alteração sucessiva dos preços relativos. Trata-se de uma análise aprofundada de informação estatística abrangente, apresentada em tabelas e gráficos elucidativos.

A terceira razão explicativa da evolução das desigualdades, num sentido positivo, são as políticas sociais compensatórias, a bancarização de setores de menor renda, incluindo a expansão do crédito para consumo de bens duráveis e novos serviços. Na contraface dessas alterações encontra-se, sem dúvida, a mercantilização da vida e a financerização da sociedade.

Sabendo que a sociedade envolve muitas atividades e relações (de poder, de consciência, culturais, nacionais, sexuais, normativas etc.) que não concernem à Economia Política, o autor concentrou-se na temática da estrutura social, nitidamente transbordada da realidade por força do superdimensionamento fictício quando se fala de uma grande e nova classe média.

A quarta e última parte do livro concentra-se no exame da superação relativa da imobilidade social na primeira década deste século. Após a longa fase de regressão e estagnação da estrutura social das duas décadas anteriores, parece consolidar-se uma onda de novas ocupações e uma incerta política de rendas que visa à curva de distribuição da renda de 40% da população mais pobre. A identificação desses segmentos e o estudo da evolução geral da ocupação e do rendimento mostrariam, segundo Pochmann, sinais significativos da “volta da mobilidade social ascendente, sobretudo, na base da pirâmide social brasileira, que nada tem de nova, tampouco de classe média” (p. 139).

Ramón Peña Castro – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio,Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir – RANIERI (TES)

RANIERI, Jesus. Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011, 176 p. Resenha de: MARTINS, Maurício Vieira. Revista Trabalho/ Educação e Saúde, v.11, n.2, Rio de Janeiro, maio/ago. 2013.

A relação existente entre o pensamento de Marx e o de Hegel sempre foi tema que dividiu os estudiosos do marxismo. Dentre as várias posições que se delinearam a este respeito, podemos citar a de Louis Althusser, que entendia que o corpus teórico marxiano deveria ser expurgado do pensamento de Hegel, para que ele encontrasse finalmente sua cientificidade mais genuína. Na outra ponta do debate (embora sem polemizar explicitamente com Althusser), temos a contribuição de György Lukács, que afirmava que, apesar de suas incontornáveis diferenças frente a Hegel, Marx absorveu de modo crítico alguns temas presentes no mestre de Jena.

O livro de Jesus Ranieri, Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir se filia claramente a esta última tendência. Já na Apresentação de seu trabalho, Ranieri é transparente ao reconhecer que sua leitura de Hegel deve muito às indicações presentes no Lukács tardio, especialmente em sua grande obra da maturidade, Para uma ontologia do ser social (que dedica um extenso capítulo precisamente a um balanço do legado hegeliano para o marxismo).

Sendo assim, Ranieri visa sobretudo recuperar aqueles elementos presentes em Hegel que se mostrem fecundos para uma teoria social de escopo mais amplo, ainda que para isso seja preciso proceder a uma crítica dos aspectos mistificadores igualmente presentes no filósofo alemão. Com este intuito, Trabalho e dialética enfatiza a compreensão hegeliana do mundo como uma processualidade permanente, que não se deixa capturar por uma visão estática da realidade (visão que ainda marcaria mesmo um filósofo tão proeminente como Kant). Com efeito, em Hegel, “a medida da reflexão é a certeza de que o mundo muda e de que a mudança exige um método capaz de acompanhar o movimento de mutação que, em si mesmo, já representa um universo de conexões” (p. 70).

Se é verdade que o primado do devir sobre o ser já havia sido afirmado há séculos por um filósofo como Heráclito, é igualmente verdadeiro que Hegel extrai consequências de fundo de tal compreensão, que se corporificam em sua abordagem propriamente dialética. Destarte, para poder formular adequadamente o devir mundano, é necessário um método que se liberte das antinomias excludentes dentro das quais se movia a tradição filosófica anterior, como essência e aparência, forma e conteúdo, necessidade e acaso etc. Libertação que vem a ser, aliás, outra das grandes contribuições de Hegel enfatizadas por Ranieri, como mostra sua análise das determinações-da-reflexão (Reflexionsbestimmungen, categorias desenvolvidas na Ciência da Lógica hegeliana). Muito resumidamente falando, tais determinações nos mostram o trânsito contínuo entre aquelas mencionadas categorias que haviam sido formuladas de modo dicotômico pela tradição filosófica anterior. Tendo sua origem mais remota no esforço de apreensão do mundo pela consciência sensível, as determinações-da-reflexão, quando corretamente apreendidas, findam por mostrar sua referência ao ‘outro’ do fenômeno isolado: “o conteúdo da ‘consciência sensível’ devia ser, em princípio, o puro singular, mas ele (o conteúdo) é dialético, já que força o singular, no seu excluir de si o outro, a referir-se ao outro, depender dele e, assim, ir além de si mesmo.” (p. 54).

Além da compreensão da realidade como um devir permanente e da correta visualização das determinações-da-reflexão, há que se destacar, ainda, o pensamento de Hegel sobre o trabalho humano como extremamente fecundo para as bases de uma teoria social consistente. De fato, Hegel foi um dos primeiros filósofos a mostrar a descontinuidade introduzida pelo trabalho no mundo natural. Nas argutas palavras do próprio filósofo: “…a ferramenta não possui ainda nela mesma a atividade. É coisa inerte, não retorna [zurückkehren] a si mesma. Obrigo-me a trabalhar com ela. Tenho a astúcia [List] de introduzi-la entre mim e a coisidade externa, a fim de poupar-me e de suprir com ela minha determinação e utilizá-la” (p. 80).

A partir destas indicações, Ranieri mostra que o trabalho humano introduz categorias de finalidade num universo que era antes dominado apenas por relações causais. Este é o núcleo fecundo para uma teorização acerca do ser social, que encontra no trabalho o protótipo mais antigo, incessantemente modificado, de sua constituição. Porém, prossegue Ranieri, o erro de Hegel foi ter projetado a teleologia de fato existente no trabalho para a história como um todo, o que o levou a acreditar numa espécie de teodiceia que supõe que existem finalidades ocultas no transcorrer da história humana: “o idealismo errou ao não compreender que a teleologia (a posição conforme a fins) não existe em outra esfera a não ser aquela do trabalho humano” (p. 116).

O texto aborda também a célebre dialética do senhor e do escravo, momento em que fica evidente o talento de Hegel em mostrar a tensão reflexionante dos papéis inicialmente assumidos por cada um destes personagens: apesar do exercício de sua dominação, o senhor passa a depender cada vez mais do trabalho do escravo para poder se relacionar com a natureza (p. 110). Já nos capítulos finais de seu livro, Ranieri discute como Marx simultaneamente se apropriou e transformou alguns dos mencionados núcleos temáticos desenvolvidos por Hegel.

Apenas como exemplo de tal procedimento, destaquese que o método de exposição marxiano – objeto de tantas controvérsias entre os especialistas – tem inegavelmente uma dívida com Hegel, mas dele se diferencia, já que: “para Marx, expor corretamente significa fundar, para a qualificação correta dos elementos componentes do objeto, uma teoria das abstrações racionais” (p. 147). Aqui, o primado cabe ao esforço de captura das determinações singulares do objeto que está sob análise (e não mais à sua referência mediatizada ao Espírito, princípio motor e culminância da dialética hegeliana). É a partir deste entendimento que se torna possível visualizar, por exemplo, as características do trabalho abstrato – que se desenvolve plenamente apenas na sociedade capitalista – como categoria que se articula ao capital, passando a presidir a lógica contraditória de desenvolvimento desta mesma sociedade. É por esta razão que o “método marxiano leva em conta que a determinação última da realidade é propriamente uma contradição real e não simplesmente um movimento lógico de autoconstituição do conceito (…), tal como é concebida a dialética em Hegel.” (p. 155).

Por fim, cabe o registro acerca de uma questão conceitual quase ausente na bemvinda contribuição de Ranieri. Referimonos ao que Marx certa vez nomeou como o “aspecto negativo do trabalho”, intimamente entrelaçado à sua positividade. Numa passagem decisiva dos Manuscritos de 1844, mesmo reconhecendo a grandeza da teorização de Hegel, Marx nos alerta: “Hegel se coloca no ponto de vista da Economia Política moderna. Concebe o trabalho como a essência do homem, que se prova a si mesma; ele só vê o aspecto positivo do trabalho, não seu negativo” (Marx, 1985, p. 190).1 Ora, este último aspecto está estruturalmente ligado ao estranhamento vigente na sociedade capitalista, ao esvaziamento das capacidades humanas em favor do capital. Assim é que Marx formula o trabalho em sua bivalência: se ele é o fundamento do processo do tornarshomem (destacando-o de sua determinação natural), é também, e ao mesmo tempo, fonte cotidiana de alienação e de mortificação dos trabalhadores. Garimpando mais nos referidos Manuscritos, veremos que há um conceito mais amplo que o de trabalho (Arbeit), que vem a ser o de atividade (Tätigkeit) consciente. E Marx visa claramente expandir esta dimensão da atividade consciente; daí sua insatisfação com o fato de que “até agora toda atividade humana era trabalho, isto é, indústria, atividade estranhada de si mesma” (Marx, 1985, p. 151). Reencontramos esta crítica à unilateralidade do trabalho também em ideologialemã, quando Marx sustenta, sem meias palavras, que a “revolução comunista se dirige contra o modda atividade até nossos dias, elimina o trabalho…”. É apenas neste momento que ocorre a “transformação do trabalho em autoatividade” (Marx e Engels, 2009, p. 56 e p. 59).2 Ora, tais afirmações seriam ininteligíveis se não levássemos em conta as considerações anteriores, referentes à crítica marxiana à negatividade também presente no trabalho. Entendemos que o texto de J. Ranieri se beneficiaria de um desenvolvimento conceitual desta contraditoriedade real. Vale lembrar que, no campo marxista contemporâneo, autores ilustres como Moishe Postone chegam a sustentar que “a análise marxiana do capitalismo (…), não é levada a cabo do ponto de vista do trabalho, mas se baseia mais propriamente numa crítica ao trabalho no capitalismo” (Postone, 2006, p. 59).3

Como se vê, neste ano de 2013 (que marca os 130 anos do falecimento de Marx), o pensamento do filósofo continua nos interpelando nas mais variadas dimensões de nossa experiência mundana. O texto de Jesus Ranieri ilustra de forma eloquente a fecundidade de uma obra.

Notas

1 Marx, Karl. Manuscritos: economía y filosofía. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 190, grifos nossos. Notemos que o próprio Jesus Ranieri traduziu para o português estes densos Manuscritos, aqui publicados pela Boitempo Editorial.

2 Marx, Karl; Engels, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 56 e p. 109, respectivamente.

3 Postone, Moishe. Tiempo, trabajo y dominación social. Madrid: Marcial Pons, 2006, p. 59. Não concordamos com a íntegra do argumento de Postone, mas ele é relevante para o ponto aqui sob exame.

Maurício Vieira Martins – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet – ASSANGE et. al (CTP)

ASSANGE, Julian et alli. Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet. Trad. Cristina Yamagami. [São Paulo]: Boitempo Editorial, 2013. Resenha de: MAYNARD, Dilton Cândido. Cypherpunks: o futuro da Internet segundo Julian Assange. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 11 – 10 de março de 2012.

“A internet, nossa maior ferramenta de emancipação, está sendo transformada no mais perigoso facilitador do totalitarismo que já vimos. A internet é uma ameaça à civilização humana” (p.25). O alerta é disparado pelo jornalista, ativista, hacker e, atualmente refugiado político, Julian Assange em seu livro sobre os perigos enfrentados pela rede mundial de computadores. Nome mais conhecido da organização Wikileaks, o australiano foi um dos responsáveis pela criação do portal que desde 2006 tem se dedicado a divulgar documentos sigilosos de governos e corporações, sempre exigindo transparência dos poderosos do planeta. O livro Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet (Boitempo Editorial, 2013), se destaca inicialmente por dois textos que não constam no original e, para o público nacional, serão importantes chaves de leitura.

O primeiro destaque é a apresentação assinada por Natalia Viana, jornalista que colaborou no caso “Cablegate”, quando mais de 250 mil documentos diplomáticos norteamericanos foram disponibilizados pelo Wikileaks. Viana ajuda a situar o problema dos embates travados pelo Wikileaks, decifra algumas das opções da Assange, tornando o livro mais compreensível para o leitor pouco habituado com os embates do inquieto hacker. A outra peça importante é o prefácio para os leitores da América Latina assinado pelo autor. Marcadamente panfletário, o texto de Assange anuncia os perigos da internet, comemora a quebra da hegemonia norte-americana, aponta as tentativas de desmonte de governos na América do Sul e alerta sobre os riscos que a liberdade sofre com o controle infraestrutural da internet por uma só potência.

O livro está dividido em 11 capítulos. Em cada um deles, com exceção do primeiro, Julian Assange realiza um debate com três colaboradores: Jérémie Zimmermann, Jacob Appelbaum e Andy Müller-Maguhn. O primeiro deles, Zimmermann, é co-fundador do “La Quadrature du Net”, organização de defesa do direito ao anonimato on-line; Appelbaum é membro do “Chaos Computer Club” (CCC) de Berlim, conhecida organização hacker, desenvolvedor de softwares, entre eles do Tor, sistema on-line anônimo para burlar a censura na internet. O último, Müller-Maguhn, também é membro e porta-voz do CCC, além de cofundador da “European Digital Rights” (Edri), organização não-governamental defensora dos direitos humanos na era digital.

Em meio aos debates do quarteto, ora tensos, ora bem-humorados, duas palavras ocupam o centro das atenções: liberdade e criptografia. Para Assange e seus parceiros, a liberdade nunca esteve tão ameaçada quanto em nossos dias. As empresas de vigilância em massa, as frequentes invasões de dados pessoais ou interdições repentinas de contas bancárias evidenciam o ataque que os grupos mais poderosos do planeta realizam ao direito de ir e vir e à liberdade de expressão. Por outro lado, a criptografia surge para estes ciberativistas como a melhor resposta à opressão. Através dela, seria possível democratizar um recurso de poder antes apenas disponível ao poder estatal: “Criando nosso próprio software contra o Estado e disseminando-o amplamente, liberamos e democratizamos a criptografia, em uma luta verdadeiramente revolucionária, travada nas fronteiras da nova internet” (p.22). Vem deste fascínio com a criptografia o termo que batiza o livro tanto em sua versão em português quanto no original, “cypherpunk”, uma derivação de “cipher”, a escrita cifrada, cuja prática denominada criptografia compreende uma comunicação em códigos secretos. Surgidos nos anos 1990 em listas de discussão da internet, os cypherpunks acreditam na criptografia como mecanismo para provocar mudanças sociais e políticas.

Para Julian Assange, ele mesmo um dos primeiros colaboradores da lista cypherpunk, o controle desta tecnologia é a última trincheira na luta pela preservação de direitos e contra o avanço do que ele considera uma espécie de neototalitarismo: “Enquanto Estados munidos de armas nucleares podem impor uma violência sem limites a milhões de indivíduos, uma criptografia robusta significa que um Estado, mesmo exercendo tal violência ilimitada, não tem como violar a determinação de indivíduos de manter segredos inacessíveis a ele” (p.28).

Quando se refere aos perigos que a liberdade tem vivenciado, Assange lembra dos argumentos em torno dos “Quatro Cavaleiros do Infoapocalipse”: a pornografia infantil, a lavagem de dinheiro, a guerra contra o narcotráfico e o terrorismo são contribuintes poderosos no discurso pelo controle da rede. Graças aos quatro cavaleiros, sem que um debate maior seja realizado, se esboçam projetos de leis como a SOPA ou Stop Online Piracy Act (Lei de Combate à Pirataria On-line) e a PIPA ou Protect Intellectual Property Act (Lei de Prevenção a Ameaças On-line Reais à Criatividade Econômica e de Roubo de Propriedade Intelectual). Ambas as propostas revelam, por um lado, as pretensões de controlar a rede e, por outro, evidenciam a emergência de uma oposição global. Até o Google já se manifestou contrário aos projetos, fato que evidenciou a existência de um poderoso lobby em torno da internet.

E se há embates pelo controle da rede, o domínio da sua infraestrutura se torna fundamental. Hardwares e backbones, se devidamente conquistados, podem ser poderosos aliados. Daí o pessimismo de Assange: “A natureza platônica da internet, das ideias, e dos fluxos de informações, é degradada por suas origens físicas. Ela se fundamenta em cabos de fibra óptica que cruzam oceanos, satélites girando sobre a nossa cabeça, servidores abrigados em edifícios, de Nova York a Nairóbi” (p.26).

Países como China, Irã e Rússia têm sido duramente criticados por todo o aparato criado para o monitoramento das atividades na internet. Porém, Assange e amigos chamam a atenção para o fato de que mesmo empenho de monitoramento existente no “grande firewall da China” pode ser observado por agências de inteligência norte-americanas. A grande diferença é que, ao concentrar as bases de grandes corporações como Visa, Mastercard, Google e Facebook, os EUA não precisam de muito esforço para arrancar as informações. A maioria das pessoas, de bom grado, já está fazendo isto. É o que acontece ao alimentarmos nossas contas do Facebook: “a cada vez que você faz o login com o número do IP, tudo é armazenado, cada clique, cada horário, e também o número de vezes que você visitou uma página, e assim por diante” (p.75).

Ao mesmo tempo, é válido lembrar que, como explica Assange, os caminhos da internet para a América Latina passam necessariamente pelos Estados Unidos e sua infraestrutura. Na prática isto significa que um fluxo intenso de informações atravessa diariamente território norteamericano e pode ser verificado sem que haja qualquer problema legal. A CIA e demais agências não necessitam de autorização prévia para vigiar estrangeiros.

Para o hacker australiano, a vigilância na internet se tornou um problema geopolítico tão importante quanto aquele relativo ao controle do petróleo: “a próxima grande alavanca no jogo geopolítico serão os dados resultantes da vigilância: a vida privada de milhões de inocentes” (p.20). O ciberativista concebe a militarização do ciberespaço como um grave problema a ser enfrentado. O avanço da vigilância sobre a rede, o seu uso militar, torna a experiência de usar a internet algo semelhante a adentrar uma zona militarizada: “É como ter um soldado embaixo da cama”, explica (p.53).

A próxima batalha entre as potências pode ter no ciberespaço o seu locus mais estratégico. Como mostram os recentes ataques com “drones”, os usos da rede mundial de computadores para provocar danos aos inimigos tem sido um expediente recorrente de potências como os Estados Unidos ou a Rússia. Ao lermos sobre tanto controle, vigilância cotidiana intensa, crescente e quase imperceptível, é impossível não lembrar George Orwell e o seu “1984”. Apesar disto, Cypherpunk é encerrado de um modo até certo ponto otimista.

Contudo, o radicalismo provoca distorções em certas propostas do grupo, algumas análises findam superficiais. A argumentação de que apenas o “insider”, o hacker que se viu “cara a cara com o inimigo” (p.25) tem a autoridade para falar do assunto é um argumento ingênuo. Seria algo tão absurdo quanto acreditar que para prescrever o correto tratamento a um câncer, é preciso antes contraí-lo. Assange e seus parceiros são excelentes quando falam da criptografia, das vantagens que ela oferece ao ativismo em nosso século, dos perigos de depositarmos 800 megabytes da nossa vida privada nas mãos de Mark Zuckerberg, o jovem Czar do Facebook, para que ele possa fazer dela o que bem quiser. Porém, algumas das análises históricas são precipitadas e há preocupantes simplificações nos argumentos sobre as consequências da quebra do anonimato em documentos de Estado, pois elas precisam, sim, ser seriamente pensadas. Neste último caso, não se trata de defender os poderosos, mas de evitar que os fracos ou os inocentes, mencionados em seus registros, sofram as consequências no lugar daqueles que podem se esconder atrás dos cargos, da segurança privada, dos advogados e das cifras acumuladas de maneira nem sempre honesta.

A leitura desta obra certamente agradará a sociólogos, analistas políticos, historiadores, comunicólogos, antropólogos e aos estudiosos das relações internacionais. Mas cabe ressaltar: Cypherpunks não é uma análise política. É mais que um manifesto. É uma convocação ao combate, um anúncio de que os hackers não estão dispostos a deixar Estados e megacorporações, os pretensos controladores da rede mundial de computadores, em paz. Segundo eles, haverá uma guerra pela internet. E você, de que lado estará?

Nota

Dilton Cândido S. Maynard – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Pós-Graduação em História UFS. Programa de Pós-Graduação em História Comparada UFRJ. Pesquisador FAPITEC. Coordena o Grupo de Estudos do Tempo Presente. É autor de Escritos Sobre História e Internet. Rio de Janeiro: Multifoco, 2011. [email protected].

Referências

ASSANGE, Julian et alli. Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet. Trad. Cristina Yamagami. [São Paulo]: Boitempo Editorial, 2013.

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O poder global e a nova geopolítica das nações | José Luís Fiori

Em O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações, José Luís Fiori tem o mérito de aproximar e, em alguns pontos, integrar as abordagens histórico-materialista e estratégico-realista das Relações Internacionais. O autor maneja o encaixe das abordagens concorrentes numa “teoria da acumulação do poder e da riqueza”, base de toda elaboração posterior, que irá culminar numa “teoria do poder global”. Assim fazendo, Fiori combina explanação histórica e determinação estrutural com análise de conjuntura, estratégia e tática, preenchendo espaços vazios da Teoria das Relações Internacionais.

Fiori parte da premissa de que as dimensões política e econômica determinam- se reciprocamente, sem que haja hierarquia ou precedência entre elas. Constata isso logo no Prefácio2 da obra, onde resgata a discussão entre as escolas da Economia Política Internacional. Lá trava diálogo pontual com os principais teóricos do “sistema-mundo”: André Gunder Frank, Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi; do “imperialismo”, John Hobson, Rudolf Hilferding, Nicolai Bukharin e Vladimir Lenin; e da “teoria da estabilidade hegemônica”, Charles Kindleberger, Robert Gilpin e Robert Cox. Sociólogo do desenvolvimento de inspiração estruturalista, Fiori situa-se na tradição teórica do “sistema mundial moderno”; entretanto, situa-se com reservas, diferindo, como se verá adiante, dos pensadores expoentes dessa escola em pressupostos e diagnósticos decisivos. Depois segue em retrospecto o curso do tempo da “longa duração” rumo às origens da “economia-mundo” de Fernand Braudel. Retorna até o momento em que Karl Marx identifica a passagem do “modo de produção feudal” para o “modo de produção capitalista”, quando então se formavam os primeiros Estados nacionais, no interregno que vai do século XIII ao XVI. É nesse período fulcral da história ocidental que o autor identifica o embrião da simbiose única que, criadora do “milagre europeu”, faria da Europa o centro do poder e da riqueza mundial dos séculos seguintes: a união do poder político territorial com o capital privado.

Tal simbiose dará à luz as entidades que Fiori denominou “Estados-economias nacionais”, verdadeiras máquinas de conquista militar e expansão econômica, sobre cuja potência e capacidades já haviam refletido Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes. Conforme o autor, serão esses Leviatãs, governados por príncipes associados às burguesias nacionais, que irão encarregar-se da tarefa de expandir as fronteiras territoriais e incrementar o comércio e as finanças das nações da Europa, num movimento expansivo e inexorável que terá abarcado o globo todo antes do fim do século XIX. Fiori constata que o impulso e o dinamismo dessa expansão vêm da competição militar e econômica entre os Estados. Dialogando com Von Clauzewitz, o autor constata, ademais, que a guerra entra na arena quando os capitais sofrem bloqueios, continuando a política “por outros meios”. Como bem observaram Charles Tilly e Norbert Elias, com quem o autor igualmente dialoga, a guerra vem a se constituir no traço característico da história do sistema internacional e em elemento dinamizador do próprio “processo civilizatório”. O dado que explica a perenidade da guerra e da competição econômica seria o que Fiori denomina “pressão competitiva”.

De acordo com Fiori, na medida em que toda relação de poder político é assimétrica e está baseada num “jogo de soma zero”, a própria relação termina por exercer “pressão competitiva” sobre si mesma. Levada ao extremo das consequências, a “pressão competitiva” entre os Estados poderosos, em busca de maiores parcelas de poder, e Estados fracos, em defesa de sua independência e sobrevivência, torna-se “pressão sistêmica”. Em decorrência da pressão do sistema, os Estados irão inevitável e incansavelmente competir pelas posições econômicas e políticas de seus contendores.

Segundo o raciocínio do autor temos que: a “manutenção do poder” leva à “acumulação de poder”, e esta, à “acumulação de riqueza”, dado que o núcleo do poder assenta-se sobre bases materiais. Essas bases poderiam ser obtidas à força ou por via da produção, do comércio e das finanças, ou de uma combinação de meios coercitivos e econômicos, o que tem sido mais comum ao longo da história, tal como o demonstram o colonialismo e o imperialismo. Nesse caso, a “pressão competitiva” faria com que as classes governantes e as classes capitalistas, ainda que motivadas por interesses distintos – e por vezes divergentes –, somassem esforços no incremento do poder nacional, projetando força e internacionalizando a economia.

Para Fiori, nos tempos modernos, a conquista militar de territórios fiscais e coloniais teria dado lugar à conquista de “territórios econômicos supranacionais”, onde os “Estados-economias nacionais” impõem suas moedas e seus capitais privados ocupam posições monopolistas que lhes rendem lucros extraordinários. Os Estados que dessa forma se conseguem impor tornam-se “Estados-economias imperiais”. O exemplo mais eloquente desse fenômeno de projeção imperial do poder nacional seria os EUA. O “poder global” desse país estaria assentado, explica-nos o autor, sobre as bases de um vasto “território econômico supranacional” que após o fim da Guerra Fria passou a abarcar todo o globo. A “globalização econômica” que vem avançando desde as últimas décadas do século XX nada mais seria, continua o autor, do que a expansão do “território econômico supranacional” dos EUA.

Isso fica claro se tivermos em conta os elementos que, conforme Fiori, constituem e possibilitam o novo surto global de internacionalização do sistema capitalista. (1) As tecnologias de comunicação, informação e logística que viabilizaram a formação de um mercado financeiro global operante em tempo real e a descentralização dos processos produtivos foram desenvolvidas nos EUA. (2) As multinacionais dos EUA foram as pioneiras do processo e continuam figurando entre os maiores e mais importantes atores da globalização. (3) A moeda que serve de referência contábil e meio de pagamento do sistema financeiro internacional é o dólar norte-americano, sob controle de autoridade monetária norte-americana. (4) Os EUA detêm poder de decisão de última instância nos principais foros e regimes internacionais que estabelecem as regras e procedimentos de acordo com os quais os mercados são abertos, desregulamentados e privatizados.

Com relação à estabilidade do sistema internacional, Fiori defende que não são as diferentes geometrias de poder (unilateral, bilateral, multilateral) que a garantem, mas a ameaça de um grande conflito entre as potências que conformam o “núcleo dominante” do sistema. Porém, ressalva que, mesmo que a potência hegemônica não tenha rival a sua altura, a estabilidade sistêmica jamais se pereniza, pois a posição de hegemonia é sempre transitória. Isso ocorre porque a potência hegemônica, no afã de aumentar o seu poder, movida pelo imperativo da “competitividade sistêmica”, acaba por se desvencilhar das regras e instituições que sustentavam sua supremacia, mas que depois se tornaram constrangimentos. Como exemplo desse comportamento “autodestrutivo”, Fiori menciona os EUA e a crise que essa potência hegemônica provocou ao invadir o Iraque em 2003, na Segunda Guerra do Golfo, à revelia da ONU. O decreto de falência do sistema de convertibilidade ouro-dólar de 1973 é outro exemplo expressivo de rompimento com compromissos internacionais inconvenientes citado pelo autor.

É nesse ponto que Fiori se afasta de Wallerstein e Arrighi, a eles se opondo diametralmente. Wallerstein e Arrighi preveem o declínio do poder dos EUA e, em sequência, o colapso do “sistema-mundo”. Por seu turno, tal como Paul Kennedy, Fiori admite que, quando perdem posições econômicas, os Estados inevitavelmente perdem parcela da capacidade de sustentar a supremacia militar. Todavia, ressalva o autor, esse fato em nada altera o funcionamento do “sistema-mundo”, um sistema de acumulação de poder e riqueza em constante expansão, dinamizado pela competição econômica e pelo conflito armado, marcado pela ascensão, queda e sucessão de impérios e hegemonias.

Fiori prossegue a construção de seu “sistema mundial moderno” com a identificação de três categorias de “Estados-economias nacionais” em posição inferior na hierarquia internacional. São elas: (1) a dos Estados que se desenvolvem sob os auspícios das potências centrais (“desenvolvimento associado”); (2) a dos Estados que adotam a estratégia do catch up (alcançar o líder); e (3) a dos Estados da “periferia”, que fornecem insumos para as potências do “centro”.

Já concluindo, identifica também cinco transformações estruturais e de longo prazo operantes no início do século XXI: (1) a expansão do sistema internacional com a integração de novos Estados soberanos; (2) o deslocamento do eixo articulador da economia mundial para a Ásia (“eixo sino-americano”); (3) o crescimento da importância da China como centro articulador e “periferizador” da economia mundial; (4) a consolidação do sistema monetário internacional do “dólar flexível”, a aceleração da globalização e a expansão do “poder global” dos EUA; e (5) o assentamento de um eixo geopolítico da competição entre EUA e China.

Num balanço geral, a teoria de Fiori, crê o resenhista, é dotada de consistência, coerência e rigor. Tem grande força explicativa, e a história contemporânea, com seus desenvolvimentos recentes, é ponto a seu favor.

Notas

2. Com 27 páginas (13-40), o Prefácio desempenha do papel de marco teórico da obra.

George Wilson dos Santos Sturaro – Mestrando Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFRGS. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]


FIORI, J. L. O poder global e a nova geopolítica das nações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. Resenha de: STURARO, George Wilson dos Santos. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.236-239, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original

Caio Prado Júnior: o sentido da revolução – SECCO (HH)

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SECCO Paulicéia Caio Prado Júnior POSTLincoln Secco. Foto: Francisco Emolo

SECCO, Lincoln. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008. MONTALVÃO, Sergio.[1] Biografia intelectual como exercício de escrita da história. História da Historiografia, Ouro Preto, n.4, p.306-313, mar. 2010.

Ensina-nos Ítalo Calvino que os clássicos são livros acerca dos quais não se costuma dizer: “estou lendo”. E sim: “estou relendo”. Desde a sua publicação, nas décadas de 1930 e 1940, a obra histórica de Caio Prado Júnior foi lida de diferentes maneiras, suscitando aplausos e críticas, de acordo com o próprio deslocamento da historiografia, mantendo vivo, no entanto, o interesse dos leitores. Chegado o ano de 2008, pouco depois de completar-se o centenário de nascimento do autor de Evolução Política do Brasil (1933) e Formação do Brasil Contemporâneo (1942), a sua biografia, feita por Lincoln Secco em Caio Prado Júnior: o sentido da revolução, da editora paulistana Boitempo, apresenta não apenas o intelectual dedicado à interpretação do Brasil, mas o ativista e parlamentar de esquerda, o publisher da editora Brasiliense. Voltado para o grande público, esse estudo não perde, em nenhum momento, o rigor analítico, tendo o mérito de reunir o pensador e o homem de ação, de traçar um retrato de corpo inteiro de um dos mais formidáveis historiadores do século XX.

O livro de Lincoln Secco se beneficiou da voga de estudos caiopradianos que se sucederam a partir da segunda metade da década de 1990 (IUMATTI, 1998 e 2007; MARTINEZ, 1998; RICUPERO, 2000, GNERRE, 2001 e SANTOS, 2001). A abertura dos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS/SP) e a descoberta dos cadernos políticos de Caio Prado Júnior – parcialmente apresentados na tese de Paulo Iumatti, que elegeu as anotações sobre o ano de 1945, o último do Estado Novo de Vargas –, hoje abertos à consulta pública no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), abriram um campo sobre o qual historiadores e cientistas sociais puderam descortinar as suas relações políticas e pessoais.

A nova ordem documental levou à mudança de foco, da historiografia ao historiador. Este movimento acompanhou as possibilidades de pesquisa atuais, que permitem maior variação nos jogos de escala. Parte evidente do regime de historicidade do século XIX, a biografia, depois de impactada pela história estrutural, renasceu a partir do final da década de 1960, em pesquisas que tiveram como objetivo revelar o cotidiano e a cultura dos “excluídos da história” (LORIGA, 1998). A partir de então teve início um movimento de revisão da história social, até então seduzida pelos expedientes de quantificação da chamada história serial. A crise do “paradigma galilaico” implicou na saturação da ideia de se levar a história ao limite de uma ciência em construção (GRENIER, 1998). A fortuna da biografia, porém, não se limitou apenas à história social, mas teve acolhida e espaço crescentes na história política renovada, que se dispôs a refletir sobre a ação dos indivíduos na esfera pública e de poder, recusando não somente a abordagem heróica, que fazia com que poucos personagens do passado gozassem de dignidade pessoal, mas também a abordagem totalizante, prefigurada em concepções teleológicas, que negavam o valor da experiência e do vivido.

A arte de tornar pública a sua opinião, criação, interpretação ou tese, que caracteriza os intelectuais e o seu relacionamento com a pólis, se inicia como atividade solitária e permanece associada ao autor ou à autora dos diferentes de obras e intervenções. Mesmo no caso dos “intelectuais orgânicos”, conforme o conceito gramsciniano, o empenho em servir a uma classe social depende de esforço próprio, que não pode ser delegado a terceiros. Na política, o intelectual está constantemente envolvido com processos e escolhas, nem sempre coerentes, de um lado e de outro. As suas escolhas políticas se fazem em meio a processos e acontecimentos históricos. Guerras, revoluções, torturas, genocídios, injustiças e desrespeito ao que consideram direitos individuais ou coletivos marcaram a entrada dos intelectuais na arena pública. Denúncias, acusações de desvios ou exacerbações daqueles que eles próprios apoiaram em um primeiro momento, levaram-nos à contestação ou ao silêncio. Se sujeito a tantas singularidades e idiossincrasias, haveria como tratar o intelectual além da biografia? Este me parece o desafio do livro de Lincoln Secco: tornar a biografia de Caio Prado Júnior um exercício de história política e, ao mesmo tempo, um exercício de história da historiografia.

O livro resenhado divide-se em cinco partes: “Os anos de formação”, “O parlamentar”, “O revolucionário”, “O historiador” e a “Questão agrária”. É interessante acompanhar esta divisão e, a partir dela, ver a atualidade e a originalidade dos enfoques utilizados. A origem familiar de Caio Prado Júnior, nascido do casamento de Caio da Silva Prado com Antonieta Penteado da Silva Prado, remete de imediato à elite paulistana, tendo Lincoln Secco ressaltado a importância do ramo materno, geralmente esquecido, ao escrever que “uma parcela importante da fortuna de seus pais provinha da família Penteado, que enriqueceu com a fabricação de sacos de juta demandados pela comercialização do café” (SECCO, 2008, pp. 19-20). Assim, a educação escolar e o convívio com os hábitos e a cultura da alta burguesia levaram Caio Prado Júnior a seguir os padrões típicos de sua classe social, identificáveis na frequência à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, pela qual recebeu o título de bacharel em 1928, e no casamento com Hermínia Cerquino, em 1929, no Mosteiro de São Bento.

A participação política do historiador teve início no movimento de cisão da oligarquia paulista, sintomaticamente demonstrada pela criação do Partido Democrático em 1926, do qual participou ativamente, inclusive na campanha presidencial de Getúlio Vargas e João Pessoa para as eleições de 1930. A revisão da sociedade oligárquica e a ânsia pela sua democratização formam o emblema político de Caio Prado Júnior. O fracasso da Revolução de 1930 em desarmar o pêndulo que, para o historiador, a fez retroceder mais do que avançar no sentido da autêntica superação do mando tradicional, ancorado na permanência da estrutura colonial e dependente da economia brasileira, o fez procurar, entre as opções da época,[2] a forma mais pertinente de expandir o radicalismo de suas ideias.

O comunismo dos anos 1930 foi vivido por Caio Prado Júnior como a experiência mais autêntica e radical de democratização e modernização aceleradas, conhecida pessoalmente por ele em sua viagem à União Soviética, depois defendida em sua possível aplicação ao Brasil, pelo que demonstram seus artigos na imprensa, escritos no tempo da Aliança Nacional Libertadora (ANL), da qual foi vice-presidente da regional de São Paulo. A crença nas ideias do marxismo soviético[3] e a imobilidade dessa crença no decorrer da sua vida levaram Caio Prado Júnior a se engajar numa “quase religião laica”. A expressão foi retirada por Lincoln Secco da autobiografia de Eric Hobsbawm e expõe, muito elucidativamente, o sentimento de dois intelectuais e historiadores marxistas de grande expressão em face daquilo que conformou as suas respectivas identidades públicas. Passar à esquerda comunista significava fazer parte de uma comunidade doutrinária, com regras e direcionamentos de difícil questionamento, e aceitar o modelo soviético como exemplo incontestável de sucesso político. Os posicionamentos de Caio Prado Júnior sempre revelaram a sua retidão em relação aos cânones da era stalinista, não passando por revisões e autocríticas devido a comportamentos heréticos, como outros intelectuais do partido, entre os quais podemos citar Astrojildo Pereira, Heitor Ferreira Lima e Octávio Brandão. A prisão em 1935 e o exílio na Europa nos primeiros anos da ditadura varguista tornaram-no um exemplo da inteligência engajada.

Mesmo sem negligenciar a importância desses anos de formação, nos quais Caio Prado Júnior escreveu os dois livros mais importantes de sua bibliografia, Lincoln Secco destaca a sua experiência parlamentar, no final da década de 1940, durante o pequeno intervalo de legalidade do Partido Comunista do Brasil (PCB). Depois de não ter apoiado a causa da “constituinte com Getúlio”, preferindo uma aliança tática dos comunistas com a União Democrática Nacional (UDN), o historiador e proprietário da Editora Brasiliense,[4] lançou-se candidato a deputado estadual pelo PCB, foi eleito e compôs a bancada comunista com mais dez deputados. Os Anais da Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP) o apresentam em debates nos quais demonstrou o trato polido e a fina ironia das suas colocações. Segundo Lincoln Secco, o ápice da sua presença no parlamento foi o projeto destinado à criação de uma fundação de amparo à pesquisa científica, concessora de bolsas e incentivos a estudantes e professores universitários.

A cassação do registro eleitoral do PCB causou novamente a prisão de Caio Prado Júnior e o fez ingressar, nos anos 1950 e 1960, em ativa “luta cultural”, entrincheirado na Revista Brasiliense. Foi nesta publicação que o historiador avaliou o tempo presente e discutiu o tema da revolução brasileira.

Sabe-se que Caio Prado Júnior olhava com desconfiança o governo João Goulart (1961-1964) e toda a agitação em torno da sua persona. O personalismo da política brasileira, germe do populismo e de toda a desgraça da esquerda que havia entendido a política de massas, induzida a partir dele, como a antecâmara da política revolucionária, chegava ao clímax em 1963, após o plebiscito de 6 de janeiro, que encerrou o período parlamentarista iniciado dois anos antes e devolveu a Goulart a inteireza dos poderes presidenciais. Reforma agrária na lei ou “na marra”, superação dos “resquícios feudais”, “dispositivo militar”, “burguesia nacional-progressista” e a máxima de Luís Carlos Prestes dizendo-se próximo ao poder, na visão de Caio Prado Júnior, pouco acrescentavam à revolução brasileira, que representava a passagem da colônia à nação e não ocorreria de maneira explosiva, no tempo curto dos acontecimentos políticos.

A entrada do historiador no debate político teve a retaguarda do filósofo.

Neste ponto, é muito interessante a contribuição de Lincoln Secco, pois a filosofia de Caio Prado Júnior pouco tem sido investigada e quando inquirida se apresenta com outras matrizes teóricas que não o marxismo. Encontra-se nela a recepção do positivismo lógico de Bertrand Russel e do Círculo de Viena, a partir da qual Caio construiu uma apreciação da história em que só há processos e relações, sem um sentido encontrado de antemão. Essa observação já havia sido feita por Jacob Gorender (1989, p.261), mas ganhou um destaque especial na biografia aqui comentada, pois é apresentada como fundamento lógico-teórico das análises políticas do historiador, sempre avessas a esquemas classificatórios feitos a priori.

As páginas sobre a circulação das ideias de Caio Prado Júnior acerca do tema da revolução brasileira, da maneira pouco entusiasmada como foram recebidas entre a intelectualidade de esquerda à sua consagração, materializada pela entrega do prêmio Juca Pato, de intelectual do ano de 1966, demonstram o conhecimento de Lincoln Secco sobre a história do marxismo no Brasil. É o que se pode notar pela seguinte passagem da biografia: Independentemente da opinião que temos sobre aquele livro [A revolução brasileira, 1966], ele enfim fez com que Caio Prado Júnior deixasse de ser apenas um comunista politicamente marginal no interior do partido para se situar no centro de uma polêmica sobre as razões da derrota da esquerda.

Isso porque sua leitura do Brasil agora encontrava um novo ambiente cultural e o próprio marxismo cedia lugar a uma era de vários marxismos, como já vimos. Caio Prado Júnior se tornou o novo paradigma das leituras críticas da nossa história e passou da condição de herege à do mais brilhante e modelar pensador marxista brasileiro. (SECCO, Op. Cit. pp. 117-118).

Enquanto a consagração de Caio Prado Júnior como intelectual de esquerda teve que aguardar a derrota da sua vanguarda política, o mesmo não aconteceu com o historiador que utilizou o materialismo histórico como método de investigação. A quarta parte de O sentido da revolução se inicia com a frase: “A história estava no alfa e ômega do seu pensamento” (Idem, p. 153). A história e não o marxismo. Mesmo que tenha sido reverenciado como o primeiro a retirar os frutos advindos dos conceitos de Marx para entender os cinco séculos da História do Brasil e sua relação com o capitalismo na Idade Moderna e Contemporânea, Caio Prado Júnior cultivou, em toda a sua trajetória de pesquisador, o melhor dos hábitos tradicionais de leitura e interpretação das fontes históricas. No entanto, não se pode deixar de incluí-lo no sopro de renovação dos estudos históricos e sociais da década de 1930. A intenção de Evolução Política do Brasil foi superar a tradicional historiografia do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e, ao mesmo tempo, contestar os devaneios acerca da presença do feudalismo em nossa formação social, presente numa incipiente produção de autores marxistas. O capítulo sobre o período regencial expõe o ímpeto revisionista da historiografia caiopradiana. Nele se encontra a primeira tentativa de se chegar ao solo dos conflitos políticos do século XIX, colocando o povo em cena. Organizado como síntese, o livro traça um roteiro das revoltas acontecidas na década de 1830, revelando personagens como os irmãos Antônio e Francisco Vinagre, que lideraram os cabanos do Pará, e o escravo Cosme, fundador de um quilombo no Maranhão durante a Balaiada. A entrada do povo na política não foi vista com ingenuidade. Francisco Vinagre, após se insurgir contra o governo de Félix Clemente Malcher e controlar o poder, buscou se aproximar do governo imperial e negociou um acordo (PRADO JÚNIOR, 1991 [1933], pp. 75-76). O escravo Cosme, logo intitulado “imperador, tutor e defensor de todo o Brasil”, “vendia a seus companheiros títulos e honrarias” (Idem, p. 80).

A interpretação histórica do Brasil feita por Caio Prado Júnior encontra a sua metodologia mais definida em Formação do Brasil Contemporâneo e História Econômica do Brasil.[5] Ambos obtiveram apreciável aceitação crítica, estando na raiz da história econômica praticada na Universidade de São Paulo (USP), como se observa da leitura de Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, de Fernando Novais. Críticas a essa interpretação e, em especial, aos excessos relativos à determinação externa da economia brasileira e à falta de acumulação interna de capitais viriam mais de três décadas depois. Ao apresentar essa polêmica, Secco defendeu o biografado contra as acusações da sua obra marxista ter-se apoiado mais nos aspectos da circulação de capitais (movimentos do mercado mundial capitalista da era moderna) do que nos aspectos da produção, mais especificamente do modo de produção predominante na colônia, apresentado como escravista.[6] Escreveu que os críticos: não atentaram para o fato de que, na periferia, o estudo da esfera da distribuição é que conduz à totalidade. Isso porque o dinamismo do modo de produção está no centro do sistema e é este que dita a lógica da reprodução global sistêmica ou, nas palavras de Caio Prado Júnior, dá o ’sentido da colonização’ (SECCO, Op. Cit. p. 177).

O capítulo final, Questão agrária, tratou também da atualidade de Caio Prado Júnior. Foi este um ponto de atrito entre o intelectual e o partido no início dos anos 1960, quando, em artigos da Revista Brasiliense, Caio defendeu a introdução da legislação trabalhista no campo e criticou as propostas do agrarismo pecebista. A especificidade do trabalhador rural, sujeito a relações capitalistas e à nossa herança rural, leia-se patriarcal e autoritária, levaram o historiador a bater-se pela cidadania daqueles que então eram a maior parte da população nacional. O problema segue até hoje e mostra a complexidade de tempos históricos embutidos na modernidade brasileira.

Para finalizar, é importante destacar a qualidade do projeto gráfico do livro, o caderno de fotos que revela os hábitos sociais do biografado e, sobretudo, os documentos anexados à edição. Entre estes documentos, a carta enviada a Carlos Nelson Coutinho comentando um escrito acerca da revolução baiana de 1798 diz muito sobre a concepção de história de Caio Prado Júnior. Não vou comentá-la aqui, preferindo deixar a curiosidade aos leitores que tiverem a oportunidade de ler esse valioso estudo sobre um dos fundadores de nossa moderna historiografia.

Bibliografia

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos? São Paulo: Cia. das Letras, 2007.

CÂNDIDO, Antônio. “A revolução de 30 e a cultura”. Novos Estudos CEBRAP, vol. 2, São Paulo: 1984, pp. 27-36.

GNERRE, Maria Lúcia Abaurre. A Forma e a Nação: Estilo Historiográfico em Formação do Brasil Contemporâneo. Campinas: Universidade Estadual de Campinas (Dissertação de Mestrado em História), 2001.

GORENDER, Jacob. “Do pecado original ao desastre de 1964”. In. D’INCAO, Maria Ângela. História e ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior. São Paulo: Brasiliense/UNESP, 1989, pp. 259-269.

__________. Escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1988.

GRENIER, Jean Yves. “A história quantitativa ainda é necessária?” In. BOUTIER, Jean e JULIA, Dominique. Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Ed. FGV, 1998.

IUMATTI, Paulo Teixeira. Diários políticos de Caio Prado Júnior. São Paulo: Brasiliense, 1998.

__________. Caio Prado Júnior: uma trajetória intelectual. São Paulo: Brasiliense, 2007.

LORIGA, Sabina. “A biografia como problema”. In. REVEL, Jacques (Org.) Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1998.

MARTINEZ, Paulo Henrique. A dinâmica de um pensamento crítico: Caio Prado Júnior (1928-1935). São Paulo: Universidade de São Paulo (Tese de Doutorado em História), 1998.

NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), 8ª edição. São Paulo: Hucitec, 2006.

PRADO JÚNIOR, Caio. Evolução política do Brasil, 19ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1991.

RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Júnior e a nacionalização do marxismo.

São Paulo: Editora 34, 2000.

SANTOS, Raimundo. Caio Prado Júnior na cultura política brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.

[1] Doutorando Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV) [email protected] Praia de Botafogo, 190/14º andar Rio de Janeiro – RJ 22250-900 Brasil.

[2] Escrevendo sobre a Revolução de 1930 e a cultura, Antônio Cândido tratou das diversas formas de radicalização do período, decorrentes do “convívio íntimo entre a literatura e as ideologias políticas e religiosas” (1984, p. 30), que levaram os intelectuais a vivenciar experiências radicais no catolicismo, no fascismo e no comunismo.

[3] Aqui penso o marxismo soviético enquanto ideologia e razão de Estado, não enquanto interpretação histórica das sociedades.

[4] Fundada em 1943, a Editora Brasiliense teve como demais sócios: Arthur Neves, Caio da Silva Prado e Leandro Dupré.

[5] Este livro retoma em grande parte as teses do livro anterior, sobretudo em relação ao período colonial.

[6] 5 A tese do modo de produção escravista colonial foi defendida por Jacob Gorender em um estudo que procurou encontrar sua lógica interna, descrita em leis específicas de reprodução histórica.

Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea – ROSSO (TES)

ROSSO, Sadi Dal. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, 208 p. Resenha de: TEIXEIRA, Márcia Oliveira. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v. 6 n. 3, p. 659-664, nov.2008/fev.2009.

Nas últimas semanas, enquanto aguardávamos o desfecho do segundo turno das eleições municipais de 2008, embaladas entre outros indicadores pelos constantes recordes no volume de empregos com carteira assinada, o país viveu uma paralisação nacional dos bancários. Seria mais uma greve, caso não fosse simultânea à crise deflagrada por quase duas décadas de hegemonia das teses neoliberais e sua apologia à desregulamentação dos mercados, à transnacionalização e à financeirização do capital.

Seria mais uma greve caso sua pauta de reivindicações não nos permitisse vislumbrar algumas características do mundo do trabalho contemporâneo – a sobreposição de diferentes formas de vínculos e de contratação, a terceirização, a flexibilização, as novas competências e atribuições.

Estes temas e eventos estão em sintonia com as reflexões de Sadi Dal Rosso, em especial com o seu mais recente livro Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea, lançado pela Boitempo Editorial no âmbito da coleção Mundo do Trabalho. Sadi Dal Rosso é professor titular da Universidade de Brasília e sociólogo com formação em filosofia, com passagens por centros de pesquisa europeus e norte-americanos, além da intensa produção de artigos, capítulos em coletâneas e livros. Suas pesquisas analisam as metamorfoses recentes do mundo do trabalho no ocidente capitalista, com destaque para temáticas associadas às condições de trabalho e à jornada de trabalho, essa última compreendendo discussões sobre a história, a flexibilidade, a intensidade e a redução de jornadas, além de uma série de estudos sobre o movimento sindical. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea aborda uma dimensão muito presente nos estudos acadêmicos (e nas pautas sindicais) sobre o trabalho na contemporaneidade ocidental, porém nem sempre aprofundada – a intensificação do trabalho.

Dal Rosso organiza sua análise sobre o processo de intensificação e a categoria de intensificação do trabalho em duas seções. Na primeira, uma discussão teórica da intensificação do trabalho, também desdobrada em duas partes – uma análise do conceito de intensidade do trabalho que abarca a discussão das teorias do trabalho e da mais-valia, seguida de uma descrição dos sistemas de organização do trabalho (taylorismo, fordismo, toyotismo). Ambas as partes são acompanhadas de uma breve, porém cuidadosa, revisão dos estudos contemporâneos da teoria de mais-valia, da produtividade e da intensidade do trabalho.

A discussão da teoria de mais-valia destaca-se no desenvolvimento da argumentação de Dal Rosso. De fato, ele parte da necessidade ou não de atualização da teoria diante das mudanças na acumulação e na reprodução do capital e, por conseguinte, das relações de trabalho. Mudanças geradas no intenso processo de deslocamento da base produtiva do setor industrial para o setor de serviços, com predomínio do capital financeiro. Nesse sentido, a compreensão da intensificação propugnada por Dal Rosso envolve uma revisão crítica de todas as categorias afetadas pelo processo de reestruturação do capital e associadas à teoria do valor trabalho – trabalho morto e trabalho vivo, trabalho material e imaterial.

Dal Rosso constrói sua argumentação em torno da possibilidade de tomar a intensificação como categoria diferenciada da produtividade.

Para consecução desse objetivo, o autor se lançará ao exercício de delimitar o fenômeno da intensificação. E, em contrapartida, de operar uma delimitação na própria categoria de produtividade.

A intensidade, segundo o autor, descreve um processo histórico correlato, mas individuado e, nesse sentido, delimitado histórica e socialmente em sua relação com outros fenômenos, mas em especial com aqueles descritos pela categoria de ‘produtividade’. Por conseguinte, Dal Rosso argumenta que a capacidade compreensiva das relações de trabalho no mundo produtivo contemporâneo é restrita, caso se considere a intensificação como fenômeno subsumido à categoria produtividade. Ou seja, a atribuição de um novo estatuto à intensificação implica o tensionamento da categoria produtividade.

Tensionar sua capacidade analítica dos fenômenos contemporâneos. Fenômenos produzidos pela reestruturação produtiva e pelas relações de trabalho.

Do exercício de formalização, para usar uma expressão do próprio autor, resulta compreender a intensidade como produção de mais trabalho (maior volume de produção e/ou valor de troca) tomando um mesmo período de tempo. O grau de intensidade está, por seu turno, no epicentro da luta de classes entre trabalhadores e capitalistas detentores dos meios de produção.

Os sistemas de organização do trabalho, aos quais Dal Rosso dedica o segundo capítulo, desempenham uma posição destacada não apenas na reprodução do capital produtivo, mas também no enfrentamento das resistências dos trabalhadores à intensificação (e não exatamente à produtividade).

Chamo a atenção do leitor à ênfase dada por Dal Rosso à matriz econômica (ou economicista) do conceito de produtividade. É importante conquanto ele atribui uma matriz sociológica à intensidade, implicando uma maior atenção às relações, às normas de conduta e aos padrões que participam do processo social e histórico de intensificação do trabalho. Assim, as duas categorias envolvem elementos instituintes distintos e possuem estatutos diversos. Essas diferenças ficam patentes quando o autor explicita a produtividade. Diz Dal Rosso: “trabalho é considerado mais produtivo quando seus resultados no momento t2 (depois) são maiores do que no momento anterior t1 (antes)” (p. 25). Produtividade é uma categoria da ordem da quantidade, do aumento de volume e de escala. Ela nos permite gerar medidas precisas. Ela é quantificável e comporta como tal a quantificação da atividade e dos produtos em um determinado período de tempo. Desta feita, é uma categoria afinada com os sistemas de organização da produção e do trabalho, notadamente o taylorismo e o fordismo. E mais: ela é uma categoria própria a uma configuração do capitalismo baseada na hegemonia da produção industrial.

Para Dal Rosso a insuficiência analítica da produtividade manifesta-se quando indagamos como o aumento ocorre, ou seja, quando procuramos compreender o fenômeno em si do aumento de produtividade. Segundo ele, a única situação onde ocorre aumento da produtividade sem envolvimento da intensificação do trabalho é quando “há resultados que decorrem de avanços efetuados tão-somente nos meios materiais com os quais o trabalho é realizado” (p. 25). Tese que lhe permite caracterizar a produtividade como um conceito restrito àquelas situações nas quais os efeitos das transformações tecnológicas são prevalentes (p. 29).

“Um trabalho é considerado mais intenso do que outro quando, sob condições técnicas e de tempo constantes, os trabalhadores que o realizam despendem mais energias vitais, sejam físicas, emocionais, intelectuais ou relacionais, com o objetivo de alcançar resultados mais elevados quantitativamente ou qualitativamente superiores aos obtidos sem acréscimo de energias.

A categoria intensidade do trabalho é reservada para descrever o fenômeno que reúne distintas formas e maneiras de fazer com que o trabalhador produza resultados quantitativa ou qualitativamente superiores, mantidas constantes as condições técnicas, a jornada e número de funcionários. (…) Trabalho mais intenso distingue-se de trabalho mais produtivo à medida que os resultados mais elevados do trabalho são obtidos mediante o acréscimo de energias adicionais do trabalhador e não resultados de ganhos mediante avanços técnicos, como acontece quando se emprega o conceito de produtividade” (p. 196-197).

Dal Rosso parece estabelecer uma forte aliança entre a categoria de produtividade e tudo aquilo descrito como trabalho morto; enquanto a intensidade descreve situações e fenômenos sob a égide do trabalho vivo. Portanto, a categoria intensidade goza de uma maior amplitude analítica para lidar com fenômenos da fase atual da produção capitalista precisamente pela sua relação com a categoria de trabalho vivo. Ao destacar o estatuto sociológico e o fato de ser fixada em regras e normas de conduta, ele parece tomá-la como uma categoria própria para designar atividades do setor de serviços e aquelas afetadas pela reestruturação produtiva, seja pelas mudanças na base técnico-científica ou nos mecanismos gerenciais. Trata-se, assim, de formas de trabalhos transformadas no processo de transição do fordismo para formas de organização e de produção ditas pós-fordista; processo, em geral, designado como reestruturação produtiva. Do ponto de vista teórico, a intensidade tal qual propugnada pelo autor, parece ampliar a capacidade analítica de trabalhos e arranjos produtivos imateriais. Talvez por isso Mais trabalho! esteja recheado de exemplos retirados do setor de serviços.

Entretanto, devemos sempre duvidar de esquemas fáceis, mormente quando está em jogo a teoria do valor trabalho. O próprio Dal Rosso parece resistir à idéia de considerar que o estatuto da categoria intensidade foi transformado pelos efeitos da reestruturação produtiva ao considerar o taylorismo e o fordismo como sistema de intensificação do trabalho. (Ou será o contrário, o estatuto da produtividade é que foi alterado pela reestruturação?). De todo modo, considero que o leitor deve refletir durante a leitura sobre possíveis perdas em termos analíticos quando se opera a delimitação proposta pelo autor na categoria produtividade, separando- a da intensidade.

Ricardo Antunes, no texto Os caminhos da liofilização organizacional: as formas diferenciadas da reestruturação produtiva no Brasil (2004), levanta alguns aspectos pertinentes para analisarmos as propostas de Dal Rosso em relação à categoria intensidade e, de modo geral, à situação do trabalho na contemporaneidade.

Primeiro, a reestruturação produtiva do capital no Brasil, que entre outros aspectos é um país de capitalismo tardio, assume formas diferenciadas. Assim, a análise de diferentes setores e ramos da economia redunda em desenhos multiformes (Antunes, 2004). Segundo, a análise da reestruturação produtiva altera a configuração do capitalismo localmente, mas como se tratam de processos recentes não há desenhos conclusivos. A partir das ponderações de Antunes, cabe indagar sobre a capacidade analítica da categoria intensificação (segundo a descrição de Dal Rosso) para compreendermos o mundo de trabalho contemporâneo em países de capitalismo tardio. Países esses nos quais o processo de reestruturação é diverso ou multiforme (para usar a expressão de Antunes), criando arranjos singulares entre diferentes formas históricas de organização da produção e do trabalho; e com relação a esse último, arranjos diferenciados entre trabalho vivo e trabalho morto.

Essa preocupação não escapou a Dal Rosso. Na segunda parte, intitulada “A intensidade do trabalho e os trabalhadores”, o autor discute os resultados preliminares de um estudo desenvolvido por sua equipe com trabalhadores ligados a diferentes setores da economia. Trata-se agora de discutir a capacidade analítica da categoria ‘intensificação’ para lidar com dados empíricos sobre condições de trabalho em Brasília.

A escolha de Brasília não é fortuita. Parte dos estudos sobre a produtividade refere-se ao setor industrial, característica também compartilhada pelas análises sobre a intensificação do trabalho. Brasília, por seu turno, concentra atividades econômicas ligadas ao setor de serviços.

E o estudo de Sadi Dal Rosso envolveu subsetores do setor de serviços pouco presentes nos estudos acadêmicos, como o educacional.

Porém, para tensionar ao máximo sua categoria, o setor industrial não foi esquecido, está representado pela indústria gráfica. Brasília também permitiu a sistematização de dados sobre setor público, representado por órgãos da administração do distrito federal e do governo federal.

O estudo classificou a economia de Brasília em três grupos – capitalista moderno (bancário, telefonia, construção civil, comunicações, shopping centers, escolas privadas, serviços médicos privados, indústria), tradicional (oficinas mecânicas, serviços pessoais, restaurantes, indústria gráfica, emprego doméstico, transporte coletivo, vigilância e limpeza) e governamental- estatal. Os dados foram coletados por intermédio de questionários com trabalhadores.

Considero, todavia, a amplitude da amostra fonte de alguns problemas, bem como a classificação em si de alguns subsetores como capitalista moderno ou tradicional. Mas irei concentrar- me na amplitude. Dal Rosso sustenta o desenho de sua pesquisa argumentando que ele lhe permitiu “avaliar em que medida o processo de intensificação é relevante no conjunto do trabalho local e nacional” (p. 101). Adiante complementa, referindo-se à análise empírica da intensificação, “fornece também uma medida de comparação internacional da transformação em curso das condições do trabalho em distintas sociedades, o que autoriza pensar a intensificação como fenômeno global próprio do capitalismo contemporâneo e não apenas como algo local ou regional devido a particularidades da formação histórica” (p. 101).

Inspirada pelas ponderações de Antunes, pergunto se é possível pensarmos em algo tão geral como o processo de intensificação nacional sem investigar os efeitos diferenciados da reestruturação e os arranjos produtivos resultantes para cada setor e subsetor? Em que medida a amplitude do estudo nos permite distinguir intensificação de produtividade? Considerando a condição de país com um capitalismo tardio e cujos impactos da reestruturação produtiva são extremamente diferenciados, não deveríamos primeiro iniciar estudos circunscritos a um setor e a uma região? Por fim, será que as especificidades da economia de Brasília fornecem elementos capazes de subsidiarem análises futuras sobre a intensificação do trabalho no Brasil? Considero a opção metodológica de Dal Rosso extremamente rica como mapa preliminar para estudos do processo de intensificação. Ele indica caminhos, aponta questões e, principalmente, expõe algumas tendências e situações em curso em subsetores e atividades que merecerão maiores aprofundamentos em futuras investigações do seu grupo de pesquisa. Porém, há problemas quando apreciamos o estudo empírico à luz dos objetivos do autor. A análise da intensificação é prejudicada pela falta de informações e de uma descrição aprofundada de processos como a terceirização, a introdução de novas tecnologias, as mudanças gerenciais na gestão e fusões que acometeram não apenas os setores e subsetores estudados, mas as próprias empresas.

Referências

ANTUNES, Ricardo. Os caminhos da liofilização organizacional: as formas diferenciadas da reestruturação produtiva no Brasil. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 28., 2004, Caxambu. Anais, 2004. Mimeografado.

Márcia de Oliveira TeixeiraEscola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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O emprego no desenvolvimento da nação – POCHMANN (TES)

POCHMANN, Marcio. O emprego no desenvolvimento da nação. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, 240 p. Resenha: CASTRO, Ramón Peña. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 6, n. 3, p. 659-664, nov.2008/fev.2009.

No próprio título do livro, Pochmann deixa claro o horizonte intelectual em que situa a questão do emprego: a nação-Estado, entendida como materialidade humana historicamente diferenciada, tanto no plano territorial como, sobretudo, no social. Neste aspecto se associa à sólida tradição acadêmica desenvolvimentista.

Desenvolvimentista, no bom sentido do termo, entendido como desenvolvimento, a um só tempo, social, nacional e regional. Como é sabido, para essa tradição (personificada por Celso Furtado e outros reconhecidos economistas, críticos do pensamento único), a questão do emprego, enquanto forma naturalizada do trabalho de mercado, somente pode ser entendida e explicada cientificamente no contexto histórico do desenvolvimento do capitalismo brasileiro e de sua forma de inserção mundial.

Contexto, esse, muito mais amplo e esclarecedor do que o estreito e dogmático marco conceitual do chamado mercado de trabalho.

Em correspondência com sua opção teórico-metodológica, Marcio Pochmann estrutura O emprego no desenvolvimento da nação em uma Apresentação e sete capítulos. Na Apresentação, sintetiza seu objetivo: analisar a evolução, quantitativa e qualitativa, do emprego, em função das modalidades de desenvolvimento do brasileiro e da sua inserção internacional, descrevendo, a seguir, o conteúdo dos sete capítulos que compõem o texto. Os três primeiros capítulos versam sobre determinantes fundamentais do emprego, relativos ao desenvolvimento econômico nacional e regional. Os seguintes, quatro capítulos, abordam a dinâmica setorial do emprego rural, do emprego público e da ‘informalidade’, cuja dimensão e diversidade se mostram diretamente proporcionais ao volume do desemprego e à deterioração qualitativa dos empregos, realmente existentes.

O percurso temático do livro pode ser explicado como a tentativa de transformar em tese demonstrada a contundente afirmação contida na hipótese de partida, segundo a qual “a crise do emprego não é irreversível nem inevitável” (p. 10).

Visando essa demonstração, Pochmann desenvolve um panorama amplo e problemático de temas, debates e demonstrações, solidamente documentados ao longo dos sete capítulos.

É obvio que não se pode numa resenha resumir todos os variados aspectos do problema do emprego que são abordados no livro de Pochmann. Cabe, porém, referir sucintamente os pontos especialmente relevantes e sugestivos.

Em função disso, começamos por mencionar a sua distinção entre variáveis ‘endógenas e exógenas’. Com a primeira denominação o autor se refere às dinâmicas do salário, custo do trabalho e qualificação, entre outras. Com a segunda, da evolução e natureza dos investimentos, a modalidade de inserção internacional e inovação tecnológica. Ambos tipos de variáveis se entrecruzam, sem dúvida, para determinar o emprego e o funcionamento do mercado de trabalho, conforme a vontade discricionária dos empregadores.

Pochmann sintetiza a origem e natureza concentradora e dependente do atual modelo de acumulação do capital, resultante da ‘construção interrompida’ (p. 19-28, 110-122), para seguidamente expor, de forma amplamente documentada, a dinâmica do emprego. Com isso deixa patente a deterioração, qualitativa e quantitativa, dos empregos existentes, o desemprego massivo e estrutural e a dramática ampliação das desigualdades sociais. Fenômenos nada novos na história brasileira, mas que ficam emblematicamente ilustrados pela forte redução atual da participação do trabalho no total de renda nacional: de 36% (2003) contra 50% (no final da década de 1970, p. 27); pelo elevado e persistente desemprego, acelerado a partir da década de 1990 para atingir na presente década um patamar “três a quatro vezes mais alto que as taxas registradas na década anterior”.

O autor demonstra que, de fato, hoje nenhum trabalhador está imunizado contra o desemprego.

Os dados mencionados pelo autor provam, por exemplo, que o aumento dos níveis de escolaridade média e superior da população economicamente ativa (PEA) coincide com elevadas e persistentes taxas de desemprego entre os mais escolarizados. Daí, o que ele denomina “anomalia do desemprego intelectual” e o desperdício e perda de potencial, exemplificados pela importante “fuga de cérebros”. Trata-se de fenômenos novos, produzidos pelo atual modelo de acumulação concentradora de capital financeiro e de “inserção passiva e subordinada na economia mundial” (p. 36-46).

Completa o quadro de desestruturação do mercado de trabalho a desaceleração e queda do assalariamento, a partir dos anos 90, quando apenas 60% dos novos ocupados foram contratados como assalariados, aumentando, paralelamente, as formas de contratação precária, sem garantias legais, nem proteção social, assim como também a chamada ocupação ‘autônoma’.

Esta falsa autonomia ocupacional passou a responder por 21% do rendimento total do trabalho (no período 1990-2003), ficando o emprego ‘por conta alheia’ com menos de 70% (destes somente 52% correspondiam ao emprego formal).

Esses dados dão uma vaga idéia do significado real do grau de esfacelamento da condição salarial, politicamente protegida, que o discurso oficial pretende naturalizar com eufemismos tão triviais como flexibilização, terceirização e informalidade.

A terceirização – eufemismo que esconde uma série de formas destinadas a reduzir custos, aumentando simultaneamente a exploração do trabalho – respondeu, no período 1995- 2003, por 33,8% dos postos de trabalho gerados pelo setor privado formal. Em 2005, o segmento terceirizado registrou 4,1 milhões de empregos formais, quase l6% do emprego. Em termos oficiais, o segmento terceirizado envolve cinco categorias: “serviços não especializados prestados por empresas especializadas; atividades de limpeza e conservação, prestadas por empresas; alocação temporária de mão-de-obra; serviços de segurança e vigilância e ocupação em empresa individual” (p. 31).

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), citados por Pochmann (p. 29), indicam que a chamada economia informal era constituída por 10,3 milhões de ‘empreendimentos’ (dos quais 9,3 milhões ‘por conta própria’), absorvendo mais de 27% do total de ocupados, com destaque para a construção civil, onde o trabalho informal representa mais de 40% do total de ocupados. Segundo a mesma fonte (IBGE), mais de 70% dos ocupados na chamada economia informal pertencem à categoria ‘conta própria’ e seu rendimento equivale a 55% da média da PEA.

O texto resenhado deixa claro que a informalidade é o refúgio compulsório do desemprego e da precariedade generalizada do emprego realmente existente. Mais ainda, ela é, com toda evidência, produto e componente programado para assegurar a racionalidade funcional do atual modelo de acumulação capitalista, comandado pela oligarquia financeira universalizada.

Nesta ordem de idéias, acreditamos que este pequeno texto pode ser lido e digerido com proveito. Assim, uma primeira lição a tirar dele é a da comprovação de que o desemprego e o emprego fluidicamente precário ou informalizado são perfeitamente funcionais ao capitalismo moderno. Tal abordagem contribui, sem dúvida, para desmistificar a falsa naturalidade do mercado, como a principal instituição da modernidade capitalista. Instituição essa que tem, na falsa igualdade contratual do mercado de trabalho, a prova mais patente da sua impostura, cuja desproteção ou desorganização é diretamente proporcional ao poder discricionário dos empregadores, hoje potenciado pela crescente privatização do Estado.

Importa, igualmente, atentar para o fato de que o texto resenhado permite uma leitura saudável do maltratado conceito de Política, ao deixar claro que a política de emprego (como qualquer outra relativa à Educação, à Saúde ou à Ecologia, por exemplo) tem tudo a ver com a ordem socioeconômica e que, por isso mesmo, a Política não pode ser rebaixada a pura tecnologia de gestão ou administração de fatores (como ocorre com a ‘coisificadora’ nomenclatura de Recursos Humanos). Uma visão que apresenta a Política existente como uma ordem sobrenatural e predeterminada de relações, sob denominação técnica de governança, anglicismo pós-moderno, falaciosamente identificado com a democracia.

Outro aspecto destacável do texto de Pochmann é que nele dialogam continuamente o rigor conceitual com as urgências da reflexão política comprometida, o que nos autoriza a concluir que o autor e seu texto caminham, com passo tranqüilo e sem dissimulada retórica, na contramão da ordem dominante e do seu discurso ‘politicamente correto’. Discurso que nos últimos tempos transformou as ciências econômicas e sociais, difundidas em muitos espaços da academia e da mídia de mercado, em versões teológicas secularizadas, elevadas a princípios de realidade das relações sociais.

A incipiente crise mundial que apenas se iniciou com a queda das bolsas e a falência de alguns bancos, muito representativos do capitalismo homicida que nos domina, permite temer uma intensificação maior da ofensiva do capital contra o trabalho, iniciada nos anos 70.

A crítica desta realidade exige, em primeiro lugar, o conhecimento das suas causas e a identificação dos seus mecanismos e agentes. A história ensina – dizem os sábios – mas não tem tido discípulos aplicados. O desafio continua sendo o de sempre: a crítica de uma realidade exige a construção de outra realidade (que os filósofos chamam práxis: atividade teórica e prática a um só tempo).

Para terminar, uma reflexão politicamente comprometida, cuja pertinência parece neste momento crítico do mundo mais do que correta: “O Brasil – escreve Pochmann – precisa combinar urgentemente regime democrático com crescimento econômico sustentado. Isso seria, de fato, um êxito inovador para qualquer brasileiro nascido a partir dos anos 1960” (p. 8).

Ramón Peña Castro – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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