Cinismo e Falência da Crítica – SAFATLE (FU)

SAFATLE, V. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. Resenha de: ROCHA, Rubens José da. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.3, p.345-347, set./dez., 2009.

Dialética Cínica

Hegel, Weber, Adorno, Lacan, Lyotard, Deleuze, Searle, Sloterdijk, Agamben e Zizek são alguns contrapontos teóricos que permitem a Vladimir Safatle compor, no livro Cinismo e Falência da Crítica, um vasto campo de coordenadas históricas para validar a tese sobre o cinismo como “categoria adequada” para análise de “formas hegemônicas de vida na fase atual do capitalismo”. A passagem abaixo exprime claramente a estratégia de argumentação presente nos seis ensaios que compõem o livro:

Partindo da noção de forma de vida como conjunto de sistemas de ordenamento e justificação de processos de interação social nas esferas do trabalho, do desejo e da linguagem, este livro procura insistir na convergência de mutações profundas que ocorrem nos modos de socialização do desejo, assim como nos modos de reprodução material da vida e de constituição de critérios de funcionamento e crítica da linguagem (Safatle, 2008, p.201).

O primeiro ensaio, Dialética, Ironia, Cinismo, propõe um recenseamento da crítica de Hegel à ironia romântica e aos modos de interversão cínica da lei, sugerindo um encaminhamento dialético para a tese central sobre o cinismo. De acordo com Vladimir, a racionalidade cínica deixa transparecer uma estrutura pautada pela estabilização da passagem incessante da norma para a infração, criando um estado de anomia que Hegel define como interversão da lei social (Umschlagen).1 A estabilização desse estado de anomia permite aos agentes sociais legitimar a ação cínica de maneira explicitamente contraditória com o seu fim, como se a norma que a regula portasse em si mesma, no momento de sua aplicação, o elemento transgressivo que a nega. Uma contradição que dá origem à flexibilidade identitária das formas de vida hegemônicas nas sociedades de consumo, capaz de dissolver perversamente os conflitos gerados pela lógica capitalista.

Em virtude desta contradição, o segundo ensaio, Was Ist Zynismus, mostra a pertinência da fórmula cínica de Sloterdijk “eles sabem o que fazem, e continuam a fazê-lo” (Safatle, 2008, p.69). Invertendo a fórmula de Marx, “eles não sabem, mas o fazem”, a fórmula cínica aponta para a obsolescência de categorias como reificação e alienação da falsa consciência, quando se trata de compreender os processos de racionalização nas sociedades de consumo. Esta obsolescência se deve ao fato de a contradição legitimada do comportamento cínico já não implicar, como supõe a fórmula de Marx, o desconhecimento do princípio objetivo que orienta a ação social. Tanto o princípio objetivo quanto o sentido da ação são transparentes à racionalidade cínica, embora esta negue voluntariamente o princípio que a orienta. Esta consciência da contradição é o que permite definir a ideologia cínica, não imediatamente pelo que se pensa, mas antes pelo o que se faz:

Poderíamos aqui concordar com Slavoj Zizek e afirmar que tudo isso só demonstra como a fórmula cínica ignora que o desconhecimento ideológico não está na dimensão do “saber” da consciência, mas na estruturação das condições de significação da práxis, ou seja, na dimensão do “fazer” (Safatle, 2008, p.83).

No terceiro ensaio, Sobre um Riso que não reconcilia, o cinismo aparece sob a forma da identificação irônica ou do humor, isto é, como figura da ação social que constrói seus padrões de racionalidade com base em um pretenso poder de aniquilamento da lei. Observa-se aqui um esforço de articular as formas de identificação social, os modos de ironização do sentido no ato de enunciação e a torção performativa do sentido pela ação. A articulação entre estas três esferas, que refletem a relação entre trabalho, linguagem e desejo, será retomada ao longo de todo o livro até o clímax do penúltimo ensaio, Sexo, Simulacro e Políticas da Paródia. Assim como as identificações irônicas, a ironização do sentido é um sintoma específico do que, numa dimensão social mais ampla, aparece como polimorfismo da crítica, transformada em falsos atos de perversão da lei social.

Analogamente à racionalidade cínica, o modelo clássico de crítica é considerado um exemplo de “ideologia que pode funcionar exatamente por não se tomar a sério” (Safatle, 2008, p.100). A crítica não conseguiria escapar à lógica performativa da contradição cínica pelo fato de esta já supor, como dispositivo interno de legitimação, a transparência da inadequação entre a práxis e o princípio que a fundamenta. Portanto, ao integrar o dispositivo de legitimação da racionalidade cínica, a busca da crítica pela transparência da totalidade dos mecanismos de produção do sentido, que tem por objetivo apontar para o erro, a ilusão ou a insinceridade da intenção, confrontando-a com a ação ou com os atos de fala que supostamente a enunciam, deixaria de cumprir a promessa de transformar as estruturas sociais, impedindo seus agentes de formular uma saída para o impasse criado pelo estado de anomia social.

Dialética, Weber e Lacan

No primeiro ensaio da segunda parte, Por Uma Crítica da Economia Libidinal, Vladimir propõe um novo recenseamento, desta vez a fi m de ressignificar a dimensão social de alguns conceitos-chave da teoria das pulsões de Freud. Em linhas gerais, o autor apresenta aqui uma teoria social de dupla orientação, Adorno e Lacan, que procura mostrar como a validação material do consumo desarticula tanto os dispositivos ideológicos da ética do trabalho (Weber), como os imperativos repressivos fundamentados na figura do supereu paterno (Freud), cedendo lugar a uma nova figura da ação social, que Lacan define como supereu materno. Ao conjugar-se com a plasticidade da forma mercadoria, o supereu materno regula, através de uma ética do gozo, as expectativas de satisfação do desejo nas sociedades de consumo, determinando as formas de racionalidade que se colocam a serviço de uma lógica de administração do desejo. O autor defende, a partir daí, que, aliada à ética do gozo, a interversão cínica transformou-se “na verdadeira mola propulsora da economia libidinal da sociedade de consumo” (Safatle, 2008, p.128). Este passo teórico permite-lhe descrever as principais mudanças estruturais que, a partir da década de 1920, desencadearam a transformação dos padrões de racionalidade que orientam os modos de socialização do desejo.

Assim, essa ironização absoluta dos modos de vida com sua lógica de autonomização da aparência nada mais é do que a posição subjetiva que internalizou a desvinculação geral entre imperativo de gozo e conteúdos normativos privilegiados a essa nova figura social do supereu (Safatle, 2008, p.134).

No último ensaio, o cinismo aparece como sintoma do esgotamento da autoprodução crítica da cultura. Ao ignorar que a natureza contraditória da racionalidade cínica já não supõe a adequação da intenção ao valor ou à norma, mas se alimenta da própria impossibilidade de adequação, como modo de legitimação de suas práticas discursivas, o modelo clássico de crítica esgotaria também seu poder de orientar as exigências de racionalidade no campo da produção estética. Aplicada às formas de fetichização do desejo, a crítica camufla a contradição legitimada da racionalidade cínica que, mesmo nos momentos mais sublimes de transgressão, como na música de Arnold Schoenberg, não é capaz de abandonar completamente os valores supostamente aniquilados, como o demonstrará mais tarde a reincidência do sistema tonal na flexibilidade paródica de John Adams e Thomas Adès.

Notas

1 “Action itself is this inversion (Verkehrung) of what was known into its contrary, into what is; it turns the law of character and knowledge into the law of their opposite [Umschlagen], with which the former is bound up in the essence of the substance” (Hegel, 2008, p.667).

Referências

HEGEL, G.W. 2008. The Phenomenology of Spirit. Disponível em: http://web.mac. com/titpaul/Site/Phenomenology_of_Spirit_page.html, acesso em: 09/12/2009.

Rubens José da Rocha – IFAC-UFOP. Ouro Preto, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

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