Modelagem de conhecimento no ensino e na aprendizagem do pensamento criativo

Criatividade Imagem UOL.com .br Pensamento criativo
Criatividade | Imagem: UOL.com.br

 

I. APRESENTAÇÃO

Na aula 13, exploramos definições de pensamento crítico e apresentamos algumas razões para o seu ensino. Também conhecemos alguns padrões do pensamento crítico aplicáveis nas atividades do Ensino Médio.

Nesta última aula, vamos integrar esses padrões nas atividades e na discussão conceitual sobre o pensamento criativo, partindo de exemplos sugeridos pelo Currículo de Sergipe (CS) para o ensino das Ciências Humanas Sociais e Aplicadas (CHSA).

Sejam bem-vindos, novamente!


II. OBJETIVOS

  • Dar a conhecer definições de pensamento criativo.
  • Justificar o ensino do pensamento criativo integrado ao ensino do pensamento crítico nas CHSA
  • Exemplificar atividades básicas para o ensino do pensamento criativo.

III. ENCONTRANDO PISTAS

Como estimular sua criatividade em apenas alguns segundos | Imagem: Viver de Blog

Você é uma pessoa criativa? A criatividade é uma capacidade inata? Segundo a sua concepção de criatividade, como seria uma sociedade onde todas as pessoas se comportassem de modo criativo durante todo o dia?

O vídeo acima apresenta 15 dicas de como ampliar a sua criatividade. Assista e escreva um texto argumentativo de até 10 linhas respondendo a essas questões. Não é necessário partilhar conosco. Apenas guarde suas posições até o final desta aula.

1. Definindo pensamento criativo

Em geral, entre especialistas, o pensamento criativo ou o pensamento pautado na criatividade ou, simplesmente, criatividade é a ação psicossomática original (nova ou singular), eficaz (útil ou valiosa) e surpreendente manifesta por uma pessoa.

Por extensão, o criativo é algo ou pessoa original, útil e surpreendente. (Jung; Vartanian, 2018). Da mesma forma, criatividade é a “capacidade de realizar uma produção que seja, ao mesmo tempo, nova e adaptada ao contexto na qual la se manifesta.” Ela pode ser “uma ideia, uma composição musical, uma história ou ainda uma mensagem publicitária” (Tod-Lubart, 2007, p.18).

Por fim, e em aparente contradição, o criativo se configura em um hábito ou uma atitude em relação à vida de ver ou buscar o novo e o útil (Sternberg, 2007, p.2, 23), ainda que esse novo e útil o sejam somente para o aluno, no interior das salas de aula, mediante estímulos à valorização e à confiança sobre suas próprias ideias (Kneller, 1977, p.82, 87).

Nos termos da neurociência, o impulso criativo é a “função biológica do cérebro humano” no qual intervém a Homeostase e a motivação. Os excessos atrapalham a criatividade e podem ocorrer por medo (distanciamento — o medo de perder o emprego) ou por prazer (aproximação — descobrir algo). (Jung; Vartanian, 2018).

Assim, embora o lugar físico da criatividade seja o cérebro, ela não é flagrada em um ou noutro hemisfério. Os neurocientistas a percebem “quando o cérebro está em repouso” e a associam “à divagação da mente”, no córtex pré-frontal — onde se situa a “rede de modo padrão”. (Corballis, 2018).

De modo sistemático, podemos considerar que os condicionantes do impulso criativo são de três ordens. A primeira é a cognitiva [problematização, a codificação, comparação e combinação seletivas, pensamento divergente, crítica das ideias, flexibilidade]. Depois vem o fator conotativo [personalidade — “estilo cognitivo flexível” e “abertura para experiências”, “habilidades específicas de domínio” e “motivação intrínseca” (Amabili,1983, 1996)]. A última envolve fatores emocionais e ambientais [família, escola, profissão e meio social]” (Tod-Lubart, 2007, p.23).

De uma perspectiva diferente, embora não divergente, Robert Sternberg (2007, p.) apresenta alguns desses condicionantes da seguinte maneira:

Figura 1. Condicionantes do pensamento criativo

Pensamento criativo Imagem2 Pensamento criativo

É importante lembrar que a soma desses fatores não determina o fenômeno da criatividade (Sternberg, 2007, p.23), mas a excelência em um deles pode compensar outros mais fracos. (Todd-Lubart, 2007, p.202).

Também não é apenas o ser criativo que, unicamente, ratifica a sua criatividade. Para especialistas, há uma criatividade consensual — avaliação da ideia, utilidade e valor a partir da opinião de outras pessoas (colegas, juízes, críticos consumidores e fãs). E há também uma criatividade pessoal — avaliação da “ideia, utilidade e valor” com base na experiência do próprio produtor. (Jung; Vartanian, 2018). Considerando os fatores ambientais e as significações de útil, concluímos que o tipo consensual é o mais valorizado na escola.

Podemos ainda falar em “criatividade cotidiana” e “criatividade extraordinária”. A primeira se realiza como um avanço da aprendizagem do estudante em relação a um domínio (tocar, dançar, fazer operações algébricas etc.). A segunda se realiza como um avanço da arte, da técnica, da tecnologia e do conhecimento em relação a um domínio com repercussões em escala grupal/social, como as “grandes invenções” que tanto atraem a curiosidade dos estudantes (Neves Filho, 2018, p.25-26; Hoffman; Hills, 2021, p.144-145).

Em todos esses casos, a avaliação é duplamente um problema a ser enfrentado em sala de aula. Os especialistas alertam para as distâncias entre a avaliação por rubricas e a avaliação por experts. A primeira atribui valor a partir de habilidades separáveis, como procedemos neste curso. A segunda, tende a apresentar resultados divergentes considerando que os críticos especializados trabalham com critérios muito mais subjetivos. (Middleton, 2014, p.324-325).

Com essas considerações, esperamos que vocês tenham feito grandes ressalvas ao discurso do apresentador do vídeo acima. Não há um determinante único para a produção e a legitimação de um pensamento, ato ou produto como criativo. Veja qualquer iniciativa simplista de modo sempre crítico, como discutimos na aula 13.

2. Pensamento criativo e pensamento crítico nas CHSA

Não há especificidade nas justificativas para o emprego do pensamento criativo no ensino das CHSA. Isso é verdadeiro quando consideramos, como Todd-Lubart (2007, p.201), que a resolução de novos problemas na vida prática ou a adaptação flexível às mudanças tecnológicas, políticas, ideológica que experimentamos exige muitas habilidades do pensamento criativo.

Assim, frente a problemas complexos, observados filosófica, geográfica, histórica ou sociologicamente, devemos formar estudantes que tentem compreendê-los e resolvê-los de maneira complexa, o que nos remete ao pensamento criativo e ao pensamento crítico.

Vimo na aula 13 que a produção de aulas que potencialmente desenvolvem qualidades de clareza, razoabilidade, lógica, precisão e relevância dos argumentos são alguns dos requisitos básicos para tipificar um comportamento como crítico.

Dessa forma, se o pensamento criativo é instrumento básico para a adaptação dos alunos na vida prática, diante dos novos e inesperados problemas com os quais se deparam, é fácil perceber que ele se torna elemento básico para o pensamento crítico.

Sabemos que o inverso não é verdadeiro com a mesma intensidade, considerando os mais variados elementos que extrapolam a dimensão cognitiva. No entanto, quando tratamos de pensamento criativo, a exigência das habilidades de avaliar uma ideia e de convencer os outros sobre a utilidade e a novidade da sua ideia mediante argumentos já demonstra o caráter interativo das atividades para o pensamento crítico e o pensamento criativo. Ambos andam juntos no interior das salas de aula (Kneller, 1977, p.82)

Entre as habilidades exigíveis nessas situações (habilidades mensuráveis do pensamento criativo) e que andam ao lado do pensamento crítico estão: a fluidez ou a quantidade de ideias geradas, a flexibilidade com a qual uma pessoa mobiliza determinada quantidade de ideias e a originalidade em “compatibilizar a frequência das aparições das ideias em um conjunto de amostra interrogada.” (Todd-Lubart, 2007, p.185).

Estamos conscientes de que tais atributos estão na contramão do ensino e da aprendizagem criativos, considerando a benéfica orientação igualitária do comportamento uniforme de estudantes e professores e do ambiente sóbrio e neutro das salas de aula (Beghett, 2006, p.588-589). Mas é possível estimular o pensamento criativo no interior das CHSA quando somos sensíveis à prática do feedback entre os alunos, a autoavaliação a partir dessa retroalimentação  (Young, adotamos, por exemplo, as algumas das orientações apresentadas no quadro 1.

Quadro 1. Duas dimensões da abordagem do pensamento criativo em sala de aula
Abordagens para o ensino
Abordagens para a aprendizagem
Dizer aos estudantes que é e o que não é criatividade.
Estimular os estudantes a desenvolverem o seu potencial criativo em meio às avaliações da aprendizagem.
Ensinar conteúdo disciplinar com predisposição a experimentar estratégias variadas, flexíveis e abertas ao inesperado.
Estar aberto a tirar proveito de episódios inesperados em sala de aula.
Refinar, corrigir e compreender o conteúdo disciplinar junto aos professores e colegas.
Exercitar o equilíbrio entre originalidade, utilidade e exequibilidade das suas ideias e práticas.
Resolver problemas filosóficos, geográficos, históricos e sociológicos de diferentes maneiras.
Conjecturar sobre aplicação de conhecimentos e habilidades tipicamente filosóficas, geográficas, históricas e sociológicas na vida prática de modo não contemplado pelo material didático e pelo professor.
Produzido pelo autor a partir de: Breghetto (2006).

3. Exemplos de atividades para o desenvolvimento do pensamento criativo

Imagine o Brasil ser divido e o Nordeste ficar independente

Os elementos condicionantes do pensamento criativo já são, isolados ou combinados, critérios para a construção de atividades para o ensino para/de/com o pensamento crítico.

Vocês podem, por exemplo, produzir um plano de aula cujo objetivo central é estimular os estudantes a ampliarem suas capacidades de ver um mesmo problema histórico – o acontecimento do abril de 1500 – abordado no livro didático sob nova perspectiva.

Vocês podem estimular os estudantes a reescreverem uma narrativa realista em duas, três ou quatro narrativas divergentes e contrafactuais, refletindo, por exemplo, sobre a vitória dos habitantes de Palmares sobre as tropas de Domingos Jorge Velho, a permanência da Capital do Brasil em Salvador-BA, a adoção da metafísica islâmica como credo oficial da Constituição de 1988 e a possível repercussão sobre o cotidiano das mulheres em Aracaju no ano 2023.

Podem induzir os estudantes a produzirem podcasts sobre um imaginário jogo entre o Confiança e Liverpool, destacando o conflito entre torcidas, ou estimulá-los a produzirem imagens em inteligência artificial de cenas inspiradas em um semiárido sergipano que consome apenas energia eólica e solar.

Vocês podem estimular os estudantes a criarem estratégias para convencer os colegas sobre as qualidades estéticas da sua narrativa mediante comparação com narrativas canônicas do romantismo ou do concretismo poético.

Vocês podem, por fim, estimular os estudantes a alternarem o local (Sergipe/Santa Catarina) ou o tempo (Século XIX/Século XXI) para testarem seus conhecimentos sobre identidade étnica e a relação povo negro/trabalho livre.

Como vimos, todos os conceitos da Figura 1 fornecem pistas para o planejamento de uma aula ou de sequências de aulas. Eles podem ensejar a produção de uma aula, figurar como um momento didático, uma intervenção tópica (conhecimentos prévios/avaliação) ou uma habilidade a ser explorada no plano.

Podem também ganhar aulas específicas. Em dada situação, é possível, por exemplo, dar a conhecer aos alunos o que significa processo criativo, levando historiadores, filósofos, geógrafos e sociólogos à sala de aula para relatar como algumas ideias emergem e/ou são descartadas no seu trabalho, como são desenvolvidas, avaliadas e posteriormente acolhidas junto à comunidade acadêmica.

Podem também convidá-los a assistir vídeos sobre história de ideias artísticas, religiosas, científicas, jurídicas, construindo uma espécie de “prosopografia das ideias”.

Podem, por fim, fazer visitas a ateliês de artistas e artesãos ou simplesmente estimular os estudantes a lerem introduções de obras onde os militantes sociais, blogueiros ou influencers experimentaram contextos de inovação.


IV. TRAÇANDO PONTES – SISTEMATIZAÇÃO

Nesta aula 14, tentamos persuadi-los a planejarem atividades que desenvolvam o pensamento criativo junto aos estudantes apresentando-o em interação com o pensamento crítico (aula 13). Tentamos convencê-los também que os dois extremos são condenáveis: o pensamento criativo como fruto da genialidade e do talento extraordinário e, portanto, não ensinado, e o pensamento crítico como algo a ser atingido por qualquer pessoa em qualquer lugar e situação.

Não há determinantes isolados para a criatividade, tampouco critério universal para considerar uma ação ou produto como mediana ou altamente criativos. Mas é necessário ter consciência da importância e estarmos preparados para discutir e aplicar critérios de validação da criatividade entre os estudantes, em todas os componentes curriculares do Ensino Médio.


DANDO AS MÃOS – ATIVIDADE DE INTERAÇÃO

Dando as mãos

Encerrando as nossas atividades de hoje, convido vocês identificarem iniciativas criativas de atividades interdisciplinares realizadas na sua escola, nos últimos dois anos, sob os aspectos da originalidade, da utilidade e do assentimento da maioria dos professores.

Partilhem relatos sobre as atividades criativas aqui no fórum.

Para ampliar o conhecimento

Você pode ampliar seu conhecimento sobre o assunto consultando estratégias para o trabalho destinado aos estudantes com deficiência visual (Anexo 2) e estudantes com deficiência auditiva (Anexo 3).


IMERGINDO – ATIVIDADE REFLEXIVA E AVALIATIVA

O que você consegue (ou não) mudar em si mesmo – Luiz Alberto Hanns () | Imagem: Casa do Saber

Iniciamos esta aula, convidando vocês a refletirem sobre iniciativas de auxiliar às pessoas a desenvolverem sua criatividade mediante dicas conselhos simplórios de caráter universalizante.

Agora, convidamos vocês a refletirem sobre suas próprias práticas e listarem três procedimentos que efetivamente podem potencializar dimensões criativas dos estudantes e, em seguida, três hábitos de ensino correlatos que vocês pensam ser passíveis de mudança em curto espaço de tempo.

Poste aqui o resultado da sua autocrítica.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEGHETTO, Ronald a. Creativity in teaching. In: KAUFMAN, James C.; GLAVEANU, Vlad P.; BAER, John. The Cambridge handbook of creatividy across domains. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. P.549-565.

CORBALLIS, Michael C. Laterality and creativity: a false trail? In: JUNG, Rex E.; VARTANIAN, Oshin (Ed.). The Cambridge handbook of the Neuroscience f Crativity. Cambridge: Cambridge Univrsity Press, 2018. p.50-57.

FLAHERTY, Alice W. Homeostasis and the control of creative drive. In: JUNG, Rex E.; VARTANIAN, Oshin (Ed.). The Cambridge handbook of the Neuroscience f Crativity. Cambridge: Cambridge Univrsity Press, 2018. p.19-49.

HOFFMANN, Jessica D.; HILLS, Elinor. The development and enhncement of adolescent creativity. In.: RUSS, Sandra W.; HOFFMANN, Jessica D.; KAUFMAN, James C. (Ed). The Cambridge handmook of lifespan development of creatividy. Cambridge: Cambridge University Press, 2022. p.139-158.

JUNG, Rex E.; VARTANIAN, Oshin (Ed.). The Cambridge handbook of the Neuroscience f Crativity. Cambridge: Cambridge Univrsity Press, 2018.

KAUFMAN, James C.; STERNBERG, Robert J. The Cambridge handbook of creativity. 2ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.

KNELLER, F. George. Arte e ciência da criatividade. 11ed. São Paulo: IBRASA, 1978.

LUBART, Tood. Psicologia da criatividade. Porto Alegre: Artmed, 2003.

MIDDLETON, Howard. Education for creativity in an era of accountability in Australia. In: SHIU, Eric. (Ed.). Creativity research. An inter-disciplinary and multi- disciplinary research handbook. New York: Routledge, 2014. p.291-312.

NEVES FILHO, Hernando Borges. Criatividade: suas origens e produtos sob uma perspectiva comportamental. Fortaleza: Imagine Publicações, 2018.

RUSTLER, Florian. Thinking tools for creativity and innovation. Zürich: Midas Managemnt Verlag AG, 2017. Translated from the German by Andrew Schlademan.

STERNBERG, Robert. Creativity as a habit. In: TAN, Al-Girl (Ed.). Creativity – A handbook for teachers. New Jersey: World Scientific, 2007. p.3-25.

YOUNG, Toby. Exploring creative research methodologies in the Humanities. In: MARTIN, Lee; WILSON, Nick (Ed.). The Palgrave handbok of creativity at work. London: Palgrave Mcmillan, 2018. p.203-222.


Para citar este texto

FREITAS, Itamar.  Modelagem de conhecimento no ensino e na aprendizagem do pensamento criativo: Aula 14 da formação continuada para professores da Secretaria de Estado da Educação de Sergipe, promovida pela Fundação Getúlio Vargas, em 14 de julho de 2023. Resenha Crítica, 14 jul. 2023. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/a-cursos/modelagem-de-conhecimento-no-ensino-e-na-aprendizagem-do-pensamento-criativo/>.

Modelagem de conhecimento no ensino e na aprendizagem do pensamento crítico

Criticar Imagem Maringa Manchete Pensamento criativo
Criticar | Imagem: Maringá Manchete

 

I. APRESENTAÇÃO

Nas aulas 09, 10, 11 e 12, refletimos sobre formas de identificação, valoração e estratégias de ensino em História da África, dos africanos, dos afro-brasileiros e dos povos indígenas.

Nessas aulas 13 e 14, encerramos o nosso curso discutindo subsídios para explorar o pensamento crítico e o pensamento criativo em sala de aula, junto aos estudantes do Ensino Médio (EM), empregando como conteúdo substantivo a matéria prescrita no Currículo de Sergipe (CS) para o ensino das Ciências Humanas Sociais e Aplicadas (CHSA).

Sejam bem-vindos, novamente!


II. OBJETIVOS

  • Dar a conhecer definições de pensamento crítico.
  • Justificar o ensino do pensamento crítico nas CHSA.
  • Conhecer padrões do pensamento crítico.
  • Exemplificar atividades básicas para o ensino do pensamento crítico.

III. ENCONTRANDO PISTAS

Giovana Maimoni (2021) | Imagem: GM

Qual o sentido empregado por Giovana Maimoni na declaração “As pessoas vão te criticar”?

Quantas vezes você usou a expressão nos últimos três dias? O que há de correto e incorreto nesse sentido empregado pela esteticista, quando aplicado a situações de ensino-aprendizagem na escolarização básica?

Escreva um texto argumentativo de até 10 linhas e partilhe conosco a sua reflexão.


IV. EMBARCANDO – CONTEÚDOS PRINCIPAIS

1. Pensamento crítico e Pensamento criativo no Currículo de Sergipe

As expressões “pensamento crítico” e “pensamento criativo”, bem como as variações nos mesmos campos semânticos (criticidade e criatividade) estão presentes em várias situações do CS.

Nos Cadernos e no Currículo, pensamento crítico é algo que se mobiliza, que se promove pelos professores e, ainda, que se aplica socialmente pelos alunos.

Contudo, no dispositivo local, não há definição para a expressão, razão pela qual ela aparece de modo repetitivo: pensamento crítico + argumentação e pensamento crítico + pensamento reflexivo. Ela também aparece como como um valor (junto à “autoestima”, ao “protagonismo” e à “autonomia”) e como uma habilidade, predominantemente, associada à “criatividade”.

Com a expressão “pensamento criativo” o emprego é semelhante. Ele é algo que se desenvolve, algo que se introjeta na mente do aluno, apresentado na forma de princípio, habilidade (junto à imaginação, raciocínio) e valor (junto à autoestima, empatia, responsabilidade e autonomia). Também aqui, dominantemente, criatividade faz par com criticidade, embora essa criticidade não esteja definida nos dispositivos locais.

Há, porém, uma diferença de emprego no CS, no que diz respeito ao papel das duas categorias na arquitetura do currículo. Enquanto o pensamento crítico/criticidade atravessa os documentos indiscriminadamente, o pensamento criativo/criatividade assume o papel de um Eixo Estruturante (EE) das “Atividades Integradoras (AI), na forma genérica de “processos criativos” e na forma detalhada de “habilidades relacionadas ao pensar e fazer criativo” (Santos; Soares, 2022, p.35). Mais uma vez, tiramos proveito dessa ausência de definição para sugerir a definição que melhor atende à nossa demanda.


2. Definições de Pensamento crítico

Literal e etimologicamente, pensamento crítico (PC) significa raciocínio separador (do certo e errado, do verdadeiro e falso, do bom e do ruim).

De modo bem geral e bastante especulativo, em períodos nos quais percebemos vicejar o descrédito moral, epistêmico ou ético – as fake News são um sintoma –, a expressão (em semântica do grego antigo) é revigorada e a literatura especializada emerge mais uma vez.

No Brasil e nos seus modelos científicos e econômicos, a Europa e os EUA, os livros sobre o pensar criticamente abundam nas prateleiras e nos portais, veiculando um sentido bem diferente daquele apresentado no vídeo com o qual abrimos esta aula (falar mal).

Nos livros de abordagem genérica e introdutória, os significados para PC são divergentes em seus elementos concretos, embora convirjam quando organizamos as semelhanças em tipos-ideais. Assim, para Ciuni Canale e Frigerio Tuzet (2022, p.23), PC é conjunto de habilidades (reconhecer, avaliar e elaborar bons argumentos).

Em consequência, pensar criticamente é raciocinar com critérios para evitar erros (limitações cognitivas e contextuais-emoções/vieses psicológicos) e detectar falácias que interferem (provocam erro/irracionalidade) nos atos de fazer escolhas, tomar decisões, adotar estratégias e perseguir metas (p.37).

Jonathan Haber segue a mesma linha, declarando que o PC, idealmente, é o raciocínio provido por um conjunto conhecimentos, habilidades, hábitos e predisposições. Mas não há consenso no meio educacional, onde os autores mobilizam diferentes fundamentos disciplinares.


3. Fundamentos e padrões do pensamento crítico

Em geral, especialistas na matéria se dividem entre os conceitos e habilidades típicas da Lógica (causalidade/evidências), da Retórica e da Psicologia (das Decisões e Cognitiva) para fundamentar o emprego do PC.

Tais variações, contudo, pouco interferem nas estratégias de como desenvolver o PC ou como ensinar a PC entre escolares e universitários. Importa que os alunos desenvolvam essas habilidades e que nós professores nos tornemos também pensadores críticos.

Quadro 1. Duas perspectivas não divergentes para o ensino do pensamento crítico
Perspectiva de Jonathan Haber (2020)
Damiano Canale e outros (2022)
Desenvolver habilidades lógicas
Usar ferramentas e habilidades da Lógica
Compreender os preconceitos que afetam nosso raciocínio
Formar o hábito de refletir e de controlar esses preconceitos
Conhecer os tipos e as causas dos erros de raciocínio
Conhecer a estrutura, os tipos e as funções de um argumento
Conhecer as estratégias para identificar um argumento ruim (a invalidade e a fraqueza)
Conhecer as estratégias para identificar e construir um bom (contra) argumento (o teor de verdade ou a plausibilidade)
Combater argumentos ruins (denunciar falácias, raciocínio circular, fornecer contraexemplos etc.)
Dominar estratégias de construção de bons argumentos dedutivos, indutivos e abdutivos
Produzido pelo autor a partir de: Haber (2020) e Canale et al (2022).

Quanto aos padrões do PC, a convergência é ainda maior. A expressão escrita ou imagética de um PC seria considerada qualitativamente aceitável se o argumento principal contemplasse alguns dos requisitos na figura 1.

Pensamento critico Imagem1 Pensamento criativo

No texto em anexo, vocês encontram uma definição e um questionário adequado a cada uma dessas qualidades que podem servir à preparação das atividades e à eleição de critérios de avaliação do trabalho dos estudantes.

No ensino das CHSA, orientados pelo CS, temos um largo espectro de possibilidades de aplicação dessas estratégias, a fim de cumprir as metas prescritas do EM. Eles podem nos ajudar a oferecer à sociedade (as instituições epistêmicas das quais tratamos na aula 3) cidadãos capazes de discernir fato de opinião, correção e erro, verdade epistêmica e falsidade, as habilidades do pensamento crítico.

Assim, é importante lembrar q o pensamento crítico não apenas deve atravessar nas sequências didáticas que exploram a compreensão de conceitos, fatos e princípios, a resolução de problemas da vida prática (ver aulas 6, 7 e 8). Na verdade, eles estruturam os próprios esquemas de validação partilhados pela Matemática, Filosofia, História entre outras disciplinas que compõem o currículo do EM.

O PC desenvolve no estudante o hábito de raciocinar como cientista (com método), de reconhecer, avaliar e elaborar bons argumentos e, principalmente, de compreender os argumentos e crenças dos outros e defender seus pontos de vista racional e democraticamente (Haber, 2020, p.36; Canale, 2022, p.22, 34). Assim, nós professores devemos fazer os estudantes compreenderem que:

  • a maioria das afirmações e negações que comunicamos na esfera pública recebem o nome de argumento;
  • um argumento é composto por duas ou mais premissas;
  • premissas são compostas por sentenças que fornecem uma conclusão e as evidências da conclusão;
  • as sentenças devem comunicar declarações verdadeiras, falsas ou abertas.

Reforma do Ensino Médio | Imagem: CaduManhães.

É necessário convencê-los também de que o pensamento crítico não frequenta a maior parte do nosso cotidiano. Ele difere da paródia que nos diverte, como expressa no vídeo acima.

Ele é reivindicado para comunicar descobertas, reivindicar direitos, denunciar violações de direitos e tomar decisões bem-informadas em situações nas quais o exercício da democracia representativa é requerida e, principalmente, filtrar informações que circulam na grande mídia e nas redes sociais.


4. Estratégias básicas para o desenvolvimento do pensamento crítico

Vejamos algumas estratégias de desenvolvimento do pensamento crítico apresentadas por Canale, aproveitáveis em sequências didáticas de caráter multi e interdisciplinar para o ensino das CHSA.

“A culpa é do Tite que não deixou Neymar bater o pênalti” (2022) | Imagem: Os donos da bola

A situação comunicativa vai ditar a natureza do exemplo, ou seja, vocês podem empregar fatos do cotidiano político ou esportivo nacional (como no vídeo acima) ou questões prescritas nos currículos estadual e nacional.

Em ambos os casos, uma boa meta imediata é combater o habito de fazer declarações incompletas e encerrar um debate que poderia ser profícuo, como nesse diálogo abaixo:

Estudante A – “Eu sou contrário à prática do aborto.”

Estudante B – “Por que você é contra?”

Estudante A – “Ora, porque eu sou contra, e pronto!”

Esse tipo de comportamento pode ser modificado com a aprendizagem sobre a estrutura e função dos argumentos, identificação de falácias e atribuição de valor dos argumentos.

4.1. Identificar e exemplificar um argumento

Inicialmente, vocês podem auxiliar os estudantes a identificar a estrutura básica de um argumento (conclusão/evidência), destacando os operadores argumentativos, como exposto no quadro 2.

Quadro 2. Exemplos de argumento e de análise de argumento
Falar de feudalismo é evocar, em primeiro lugar, o sistema econômico tradicional de um mundo dominado pela economia rural. A população rural constituía 85% dos franceses em 1 789, e a conjuntura econômica mantinha-se sob a dependência opressiva do ritmo da escassez e das crises de subsistência. (Vovelle, 2012, p.6).
Conclusão – “Falar de feudalismo é evocar, em primeiro lugar, o sistema econômico tradicional de um mundo dominado pela economia rural.”
Evidência 1 – “A população rural constituía 85% dos franceses em 1 789…”.
Evidência 2 – “a conjuntura econômica mantinha-se sob a dependência opressiva do ritmo da escassez e das crises de subsistência.”

4.2. Identificar falácias

Em um segundo momento, vocês podem auxiliar os alunos a identificarem falácias. Etimologicamente, falácia significa: “Engano, trapaça, manha”. Nos dicionários de sinônimos é concebida como “afirmação inverídica”, “inverdade” e “falsidade” (Houaiss, sd.).

Nos manuais de epistemologia, contudo, falácias são definidas como erro de raciocínio por relevância e erro de raciocínio por evidência insuficiente.

Há quase duas dezenas de tipos de falácias. Seguem dois exemplos no quadro 3.

Quadro 3. Exemplos de falácias de relevância e falácia de evidência insuficiente
Falácia de relevância
·        Argumento – Sérgio Camargo está capacitado para assumir a Fundação Palmares. Ele tem pele negra.
·        Conclusão – Sérgio Camargo está capacitado para assumir a Fundação Palmares.
·        Evidência irrelevante – Ele tem pele negra.
Falácia de evidência insuficiente
 ·        Argumento – O simples fato de ter participado do governo Jair Bolsonaro já desqualifica qualquer declaração de Sérgio Camargo sobre cotas raciais.
·        Conclusão – Declarações de Sérgio Camargo sobre cotas raciais não merecem crédito.
·       Evidência insuficiente – Sérgio Camargo participou do governo Jair Bolsonaro.

4.3. Avaliar argumentos representando as premissas e conclusões na forma de paráfrase

Regis Tadeu x Tati Quebra-Barraco em 3 momentos (2013) | Imagem: Canal AntiFunk

Por fim, vocês podem ampliar o pensamento crítico dos alunos, ensinando-os a avaliar argumentos, partindo de uma tipologia de falácias aplicada a textos escritos e textos falados (como praticado no vídeo acima).

Os passos são simples: 1. selecionar o parágrafo ou o conjunto de parágrafos que contém o argumento a ser analisado; 2. grifar (ou circular) as premissas e as enumerar; 3. reescrever declaração de conclusão e declaração de evidência com suas próprias palavras; 4. Atribuir valor (criticar) a relação lógica entre a declaração de conclusão e a declaração de evidência, como demonstrado no quadro 4.

Quadro 3. Exemplos de avaliação de argumento mediante paráfrase
Vejam que absurdo o que diz este anúncio na Internet: “a Oficina de Inverno foi criada em Teresina para acompanhar os mamutes viajantes em suas aventuras em destinos de viagem durante a estação mais gelada (e amada!). Com a loja física da Oficina de Inverno na capital piauiense, você pode comprar roupas de frio em Teresina-PI de maneira bastante cômoda e com muita variedade.” Essa é a propaganda mais mentirosa que eu já vi. Será um meme? Frio em Teresina? Meu Deus! Todos sabem o Nordeste inteiro é um lugar quente e que o estado do Piauí é talvez o que registra as temperaturas mais altas o ano inteiro.
Conclusão por paráfrase – O anúncio é fake News. Roupas de frio não tem comércio no Piauí.
Evidência (1) por paráfrase – O Nordeste é quente.
Evidência (2) por paráfrase – O Piauí é quente.
Avaliação – Argumento que apresenta erro de raciocínio por insuficiência de evidência sobre a impossibilidade de comercializar roupas de frio em Teresina/PI.

As sugestões em termos de identificação e avaliação de argumentos apresentadas nesta aula são detalhadas em anexo, onde vocês encontrarão quatro planos de aula-modelo que podem ser reprogramados livremente em várias situações requeridas pelo ensino das CHSA, em companhia do ensino de Matemática e Língua Portuguesa, por exemplo.


V. TRAÇANDO PONTES – SISTEMATIZAÇÃO

Nesta aula 13, tentamos convencê-los de que o pensamento crítico é uma habilidade transversal e básica a todos os componentes curriculares das CHSA. Ele ajuda a criar hábitos de tomar decisões racionais e de conviver democraticamente em sociedade.

Com essa função, o pensamento crítico é uma ferramenta intelectual para os estudantes compreenderem as declarações do outro, avaliarem essas declarações, criarem declarações lógicas com evidências fortes e relevantes para viabilizar o aprendizado disciplinar e tomar decisões na vida prática.


VI. DANDO AS MÃOS – ATIVIDADE DE INTERAÇÃO

Dando as mãos

Encerrando as nossas atividades de hoje, convido vocês identificarem argumentos falaciosos nos livros didáticos ou em outros recursos empregados rotineiramente no seu domínio profissional. Listem as falácias, partilhem entre os colegas, construindo um “inventário de erros a não serem reproduzidos”, empregáveis por todos a partir de agora.

Partilhem as falácias aqui no fórum.

Para ampliar o conhecimento

Como anunciamos no curso desta aula, você pode ampliar seu conhecimento sobre o assunto consultando os textos em anexo.


VII. IMERGINDO – ATIVIDADE REFLEXIVA E AVALIATIVA

No início desta aula, provocamos vocês a refletirem sobre os usos da palavra crítica, partindo da seguinte declaração: “As pessoas vão te criticar”. Concebendo a crítica como a ação de atribuir valor, fundamentado em um critério, convido vocês a produzirem uma crítica de filme ou série da sua predileção e poste um vídeo aqui.

Você não precisa se demorar tanto quanto o personagem do vídeo acima. Se fizer um texto de até 200 palavras, contendo o nome do filme/série e do diretor, três linhas de sinopse, uma linha sobre o critério da avaliação, três linhas sobre os pontos positivos e mais três linhas sobre pontos negativos, já terão feito um bom script para podcast ou vídeo.

Poste aqui o resultado da sua crítica de arte.

VIII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASSHAM, Gregory; IRWIN, William; NARDONE, Henry; WALLACE, James M. Critica thinking – A student’s Introduction. 7ed. New York: 2023.

CANALE, Ciuni; TUZET, Frigerio. Critical thinking – An introduction. Milano: EGEA, 2021.

HABER, Jonathan. Critical thinking. Cambridge: MIT Press, 2020.

NOSICH, Gerald. Critical writing: A guide to writing a paper using the concepts and procsses of critical thinking. Lanham: Rowman & Littlefield, 2022.

SANTOS, Isabela Silva dos; SOARES, Mariana Fátima Muniz (Org.) Caderno Complementar: Estudo Orientado. Aracaju: Secretaria de Estado da Educação do Esporte  e da Cultura, sd.

SANTOS, Isabela Silva dos; SOARES, Mariana Fátima Muniz (Org.) Currículo de Sergipe: Integrar e construir – Ensino Médio. Aracaju: Secretaria de Estado da Educação do Esporte  e da Cultura, 2022.

VOVELLE, Michel. A Revolução Francesa (1780-1799). São Paulo: Unesp, 2012.


Para citar este texto

FREITAS, Itamar.  Modelagem de conhecimento no ensino e na aprendizagem do pensamento crítico: Aula 13 da formação continuada para professores da Secretaria de Estado da Educação de Sergipe, promovida pela Fundação Getúlio Vargas, em 14 de julho de 2023. Resenha Crítica, 14 jul. 2023. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/a-cursos/modelagem-de-conhecimento-no-ensino-e-na-aprendizagem-do-pensamento-critico/>.

Critérios lógicos e retóricos para avaliação de resenhas acadêmicas

The work of the critic comic ar 650433 Imagem IFIAMidjourney jun. 2023 Pensamento criativo
The work of the critic. comic –ar 650:433 | Imagem: IF/IA/Midjourney (jun. 2023)

 

Colegas, boa tarde!

Hoje vamos discutir critérios para avaliar resenhas acadêmicas, dentro do princípio de que um avaliador criterioso é também um potencial escritor criterioso.

Os critérios de avaliação de textos acadêmicos podem ser tipificados de forma varia. Um dos marcos definidores é a sua proveniência. Nesta direção, temos, por exemplo, critérios provenientes da lógica, critérios da retórica e critérios provenientes da epistemologia de domínio histórico (que somam elementos dos dois primeiros).

Os critérios provenientes da epistemologia do domínio histórico são o objeto da aula 3. Para aprofundamento e a rememoração sobre a historicidade da epistemologia histórica como lógica, clique aqui.

Nesta aula, nosso objetivo é apresentar definições e regras lógicas e retóricas que possibilitem a você avaliar uma resenha acadêmica, próximo aos padrões exigidos pela revista Crítica Historiográfica.


1. Pensamento crítico e argumento

Os critérios de avaliação de resenha que reunimos aqui são buscados em textos de Lógica e Retórica que têm por objeto de conhecimento o “pensar criticamente” ou o “pensamento crítico”.

Os critérios mobilizados com fins de pensamento crítico, quando respeitados, legitimam os argumentos dos resenhistas.

Várias das definições de pensamento em circulação (limitados às referências listadas ao final da aula) são fundadas na ideia de pensamento isento de erros, sob parâmetros mais gerais de verdade exigida pela ciência moderna.

Assim, pensar criticamente é a ação de raciocinar com método, como um cientista. (Haber, 2020, p.36). Pensar criticamente é mobilizar padrões de habilidades mentais superiores (Bassham, 2022, p.23).

Além de convergirem nas habilidades mentais exigidas, estudiosos do pensamento crítico reforçam a ideia de que o raciocinar criticamente é útil à compreensão de argumentos e crenças, à crítica de argumentos e crenças e ao desenvolvimento e defesa de argumentos e crenças (Canale, 2022, p.22, 34).

Por fim, especialistas em pensar criticamente definem um argumento como uma uma declaração justificada mediante razões, ou seja, uma declaração composta por duas ou mais premissas, como neste exemplo: “Os patriotas do 8 de janeiro devem ser presos porque atentaram contra o regime democrático de direito [Declaração]. Eles estavam uniformizados em verde e amarelo, planejaram as ações autoritárias, viajaram dois dias antes em caravanas de ônibus e depredaram as sedes dos poderes executivo, legislativo e judiciário [Evidências].”

As premissas são realizadas por sentenças. A primeira sentença fornece um juízo racional [Patriotas devem ser presos porque atentaram contra a democracia]. A segunda fornece prova/apoio [Planejaram ações autoritárias e depredaram as sedes dos poderes republicanos].

As sentenças devem funcionar como: afirmações, negações, comandos acompanhados por um julgamento ou perguntas retóricas acompanhadas por julgamento. As sentenças, por fim, podem comunicar declarações verdadeiras, falsas ou abertas.

  • Exemplo de sentença afirmativa verdadeira: “Bolsonaro está no Brasil. “
  • Exemplo de sentença afirmativa falsa: “Bolsonaro está morto”.
  • Exemplo de sentença negativa verdadeira: “Bolsonaro não é mais o presidente da República”.
  • Exemplo de sentença negativa falsa: “Bolsonaro nunca impediu a vacinação contra a Covid 19”.
  • Exemplo de questão retórica: “Você deveria parar de defender Gilberto Uchoa. Não percebe que ele participou dos atos antidemocráticos em frente ao Quartel do 28 BC?”
  • Exemplo de sentença que expressa comando: “Pare de defender o dono da Havan: conspiradores contra as eleições presidenciais não merecem o respeito de cidadãos, como você.”
  • Exemplo de declaração aberta: “Deus não existe”.

2. Habilidades e obstáculos do pensamento crítico

Algumas das principais habilidades do pensamento crítico são, por si mesmas, padrões para a criação e a avaliação dos argumentos anunciados em resenhas. O reconhecimento e o desenvolvimento dessas habilidades, bem como dos obstáculos ao pensamento crítico fazem do avaliador de resenhas e do resenhista um potencial pensador crítico.

Nesse aspecto também a literatura é convergente. Em geral, autores listam qualidades do pensador crítico, com as que se seguem:

  • Clareza – distinção do problema enfrentado, das alternativas e das vantagens e desvantagens de cada alternativa de resolução do problema.
  • Precisão – uso de informação verdadeira na construção do argumento.
  • Relevância – reconhecimento do que é pertinente/importante na argumentação.
  • Consistência lógica – pensamento e comunicação coerente de coisas verdadeiras.
  • Consistência prática – comunicação e ação coerentes.
  • Correção lógica – pensamento ou comunicação com coerência entre a premissa de conclusão e a premissa de evidência.
  • Completude – profundidade na busca, análise e interpretação dos dados e comunicação das conclusões.
  • Justiça – comportamento imparcial (tratamento de pontos de vista e dos casos iguais com isonomia).

Já vimos que o pensamento crítico é benéfico à sociedade e ao cidadão. Ele auxilia a compreensão do argumento do outro, a crítica do argumento do outro e a construção de argumento para comunicarmos nossos interesses e posicionamentos.

Entretanto, diversas barreiras impedem que esse modo de pensar criterioso seja maioria na sociedade. (Bassham et al, 2023, p.37). Entre os obstáculos do pensamento crítico estão:

  • Egocentrismo – predisposição para medir toda a realidade a partir dos próprios valores.
  • Sociocentrismo – predisposição para medir toda a realidade a partir do pensamento do seu grupo, resultando em viés de grupo (nação, religião etc. superior às demais), tribalismo (lealdade) e conformismo (comportamento de rebanho).
  • Suposições injustificadas – predisposição de classificar algo como certo (estereótipo) sem lançar mão de evidências.
  • Relativismo – predisposição para tomar a verdade ou o comportamento como questão de opinião individual (subjetivismo epistêmico e subjetivismo moral) ou de opinião social ou cultural (relativismo cultural e relativismo moral).
  • Pensamento positivo – predisposição para acreditar em algo porque lhe faz bem e não porque há evidências para tal.

Conhecidas as habilidades e os obstáculos do pensamento crítico, podemos concluir o tópico retirando um princípio de procedimento para o avaliador de resenhas acadêmicas. Ele deve identificar potenciais inibidores de raciocínio correto na escritura da obra, observando indícios da presença de egocentrismo, sociocentrismo, suposições injustificadas, relativismos e pensamento positivo.

Além disso, o avaliador de resenhas tem que estar habilitado a identificar e a jugar um texto sob o ponto de vista da sua clareza, precisão, relevância, consistência (lógica e prática), correção lógica, completude e justiça.


3. Conhecer e identificar falácias de relevância e falácias de evidência

A ação do avaliador de resenhas não se limita ao conhecimento ou a identificação de potenciais habilidades e impedimentos relacionados ao exercício do pensamento crítico. Ele deve dominar um corpo mínimo de definições e exemplos das principais proposições falaciosas que ele mesmo faz uso no seu dia adia.

Assim, a formação do avaliador de resenhas exige que ele avalie a sua própria forma de comunicar ideias, modifique as formas falaciosas de comunicar ideias e, em seguida, identifique as formas falaciosas com as quais os autores das obras resenhadas, eventualmente, comunicam suas ideias.

Etimologicamente, falácia significa: “Engano, trapaça, manha”. Nos dicionários de sinônimos é concebida como “qualidade do que é falaz; falsidade e definida em três modos: 1 afirmação inverídica; inverdade ‹não respondo a falácias nem a hipocrisias›; 2 fil. no aristotelismo, qualquer enunciado ou raciocínio falso que, entretanto, simula a veracidade; sofisma; 2.1 fil. na escolástica, termo usado para a caracterização do silogismo sofístico do aristotelismo, que consiste em um raciocínio verossímil, porém inverídico. (Houaiss, sd.).

Entre especialistas do pensamento crítico, “Uma falácia lógica – ou simplesmente falácia – é um argumento que contém um erro de raciocínio” (Bassham, 2022, p.215).

É possível tipificar as falácias mais comuns em dois grupos: falácias de relevância e falácias de evidência insuficiente.

3.1. Identificando falácias de relevância

Falácias de relevância “são erros de raciocínio que ocorrem porque as premissas são logicamente irrelevantes para a conclusão.” (Bassham, 2022, p.215).

Declarações relevantes são as que contam (as que são importantes), em geral, para o grupo de pessoas envolvidas na discussão: “Uma declaração é relevante para outra declaração se fornecer, pelo menos algum motivo para pensar que a segunda declaração é verdadeira ou falsa”, ou seja, se “fornece, pelo menos, alguma razão [positiva, negativa ou lógica] para pensar que a conclusão é verdadeira” (Bassham, 2022, p.215-216). 

3.1.1. Exemplos de declarações de relevância positiva

  • Antônia é aluna de Petrônio Domingues (P1). Petrônio Domingues somente orienta pesquisas sobre pós-abolicionismo (P2). Antônia investiga pós-abolicionismo (C). [Lógica]

A relevância positiva aqui reside na regra exclusiva imposta pela segunda premissa: Petrônio Domingues somente orienta pesquisas sobre pós-abolicionismo. Isso significa que todos os estudantes sob sua orientação, incluindo Antônia, necessariamente estão pesquisando pós-abolicionismo. Portanto, se Antônia é aluna de Petrônio Domingues, de acordo com a regra estabelecida na Premissa 2, ela estará inevitavelmente investigando o pós-abolicionismo. As premissas (P1 e P2) fornecem evidências que, sob essas condições, forçam a conclusão (C) a ser verdadeira, demonstrando a relevância positiva de maneira forte e lógica.

  • Antônia é aluna de Petrônio Domingues (P1). Petrônio Domingues é especialista em pós-abolicionismo (P2). Antônia investiga pós-abolicionismo (C). [Plausível]

A relevância positiva aqui está no fato de que, em geral, os alunos tendem a seguir a especialidade de seus orientadores. Então, se Antônia é aluna de Petrônio Domingues e ele é especialista em pós-abolicionismo, isso aumenta a probabilidade de Antônia estar investigando o pós-abolicionismo. Portanto, as premissas (P1 e P2) fornecem evidências que apoiam a conclusão (C), o que demonstra a sua relevância positiva.

3.1.2. Exemplo de declaração de relevância negativa

  • Antônia flerta com partidos racistas e xenófobos de extrema direita (P1). Ela possui todos os requisitos para se transformar em uma liderança do Movimento Negro Unificado do bairro Rosa Else (P2).

A relevância negativa aqui está no fato de que há uma contradição implícita entre as declarações. Os movimentos de direitos dos negros geralmente se opõem fortemente ao racismo e à xenofobia, princípios muitas vezes associados a partidos de extrema direita. Portanto, se Antônia flerta com tais partidos, isso enfraquece a probabilidade de ela ser vista como uma potencial liderança em um movimento que se opõe a tais princípios. Portanto, a primeira afirmação é negativamente relevante para a segunda, pois fornece informações que, se verdadeiras, tornam a segunda afirmação mais provável de ser falsa.

3.1.3. Exemplos de declarações de irrelevância lógica

  • Antônia é aluna de Petrônio Domingues, pesquisador do pós-abolicionismo (P1). Então, provavelmente, Antônia conhece todas as contradições comunicadas pelos pesquisadores que escrevem sobre a experiência dos negros no pós-abolição. (C).

A irrelevância lógica aqui está no fato de que, apesar de Antônia ser aluna de Petrônio Domingues, um especialista em pós-abolição (P1), isso não garante que ela conheça todas as contradições comunicadas pelos pesquisadores que escrevem sobre a experiência dos negros no pós-abolição (C). Apesar de o professor Petrônio Domingues ser um especialista em pós-abolição, e portanto Antônia ter algum grau de familiaridade com o campo, a conclusão de que ela conheça todas as contradições deste campo de estudo é um salto lógico grande demais baseado apenas nesta premissa. Há muitos outros fatores que podem afetar o nível de conhecimento de Antônia sobre as contradições no pós-abolição, como a profundidade dos seus estudos sob a orientação de Petrônio, o tempo que ela tem estudado o assunto, entre outros.

3.1.4. Falácias mais comuns

Agora que você conhece as declarações de relevância positiva, de relevância negativa e de irrelevância lógica, leia os tipos que se seguem e tente localizar no seu próprio discurso cotidiano alguns dos tipos mais frequentes de falácias lógicas.

Se você comete estes erros de raciocínio, está na hora de corrigi-los. Se você encontrar alguns desses erros durante a leitura da obra resenhada, deve anotar imediatamente, sob pena de abonar erros crassos em lógica.

  • “Veja só quem está falando!” (atacar o caráter do argumentador).
  • “Ela é a pessoa mais interessada!” (atacar o motivo do argumentador).
  • “Você não tem moral para falar…” (atacar a hipocrisia do argumentador).
  • “Erro maior cometeu fulano e ninguém reclamou…! (justificar um erro maior por outro menor).
  • “Você sabe com quem está falando?” (ameaçar o argumentador ou o ouvinte).
  • “Professor, tenha compaixão de nós!” (evocar piedade ao argumentador ou ao ouvinte).
  • “Todo mundo faz isso, porque só eu não posso?” (evocar o direito de ser aceito ou valorizado segundo a moda/onda).
  • “Você mesmo acabou de dizer que…” (deturpar a visão/fala do argumentador).
  • “Isso não é verdade, como eu acabo de provar! (desviar o foco com uma prova que não responde à questão inicial ou distrair o argumentador ou o público).
  • “É exatamente como eu entendo…” (usar o sentido de uma palavra quando o contexto demanda outro) e reafirmar a conclusão com palavras diferentes.

3.2. Identificando falácia de evidência insuficiente

Falácias de evidência insuficiente são “erros de raciocínio em que as premissas, embora relevantes para a conclusão, não fornecem evidências suficientes para a conclusão” (Bassham, 2022, p.250).

Entre mais de uma dezenas de falácias do tipo, os especialistas citam: declaração citada incorretamente; declaração citada fora do contexto; declaração que contradiz a opinião de especialistas; declaração sobre algo do qual não se conhecem os especialistas; declaração de algo explicitamente improvável e declaração de algo falso.

São também comuns as falácias do tipo:

  • Requisição inapropriada à autoridade (autoridade/testemunha não confiável), ou seja, de pessoa incompetente no assunto: “O professor Itamar Freitas afirmou que Clovis Moura é ambivalente em termos de critério de julgamento dos movimentos negros no Brasil pós abolição.”
  • Declaração tendenciosa (ou de testemunha tendenciosa) à mentira ou ao engano: “Não devemos permitir a demarcação o de terras para negros auto identificados como quilombolas porque tal política estimula a preguiça e reduz a produtividade do trabalho no campo.
  • Declaração imprecisa: “Antônia é negra. Ela adora a cultura hip-hop. (Testemunha imprecisa).
  • Declaração (ou declaração de pessoa) reconhecidamente não confiável: “cota racial, assim como várias ações puxadas pelo ‘movimento negro’, são meros programas partidários.” (Hélio Bolsonaro). 

Conclusão

Nesta aula, apresentamos categorias e procedimentos que podem capacitá-lo a avaliar uma obra e, em seguida, escrever uma resenha de modo crítico, ou seja, atribuindo valores a partir de critérios retóricos e lógicos que estão na base do pensamento crítico moderno.

Assim, no trabalho com resenhas devemos admitir que: 1. criticar é atribuir valor (I. Kant); 2. a crítica se exerce, dominantemente, sobre os argumentos do autor da obra resenhada (declaração + evidências); 3. os argumentos podem possuir declarações verdadeiras, falsas ou abertas; 4. Podem cometer falácias de relevância e falácias de evidência.

Apontar estes problemas nas resenhas de livro é uma jeito simples de contribuir com a formação de pesquisadores das humanidades alinhados aos princípios epistêmicos/éticos implantados pela ciência moderna, nos últimos quatro séculos, e que regem a pesquisa acadêmica universitária, no caso brasileiro, desde o início do século XX.

Referências

BASSHAM, Gregory; IRWIN, William; NARDONE, Henry; WALLACE, James M. Critica thinking – A student’s Introduction. 7ed. New York: 2023.

CANALE, Ciuni; TUZET, Frigerio. Critical thinking – An introduction. Milano: EGEA, 2021.

HABER, Jonathan. Critical thinking. Cambridge: MIT Press, 2020. 


Para citar este texto:

FREITAS, Itamar. Critérios lógicos e retóricos para avaliação de resenhas acadêmicas. Resenha Crítica. 15 jun. 2023. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/todas-as-categorias/criterios-logicos-e-retoricos-para-avaliacao-de-resenhas-academicas/>.

Contribuição à Crítica da Historiografia Revisionista | Carlos Zacarias de Sena Júnior, Demian Bezerra de Melo e Gilberto Grassi Calil

Dando continuidade ao projeto iniciado em 2014 com a publicação de A miséria da historiografia, organizado por Demian Bezerra de Melo, (MELO, 2014), o livro ora resenhado objetiva escrutinar as implicações sociais da historiografia revisionista, especialmente, a brasileira. A hipótese geral que atravessa todos os artigos reunidos no livro vincula-se à posição de que os desdobramentos teóricos e historiográficos do revisionismo possuem relações diretas com as disputas políticas cotidianas.

Valendo-nos de um rápido exemplo sobre essas relações, o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, em ocasião do evento que tratava dos “30 anos da Constituição Federal de 1988”, na Faculdade de Direito da USP, e após a polêmica nomeação do general da reserva Fernando Azevedo e Silva para assessorá-lo na presidência do STF, alegou que os desdobramentos político-militares de 1964 não são entendidos por ele como “golpe” ou “revolução”, mas como “movimento de 1964”, buscando responsabilizar tanto o suposto “radicalismo” de esquerda como o de direita como os verdadeiros motivadores da ação militar daquele período. Pata tais afirmações, dizia estar embasado na obra do historiador Daniel Aarão Reis Filho (TERRA, 2018), cujas produções mais emblemáticas e polêmicas estão circunscritas na temática revisionista. Muito embora o referido historiador da Universidade Federal Fluminense (UFF) tenha negado de forma veemente as relações entre a sua produção e a fala de Toffoli, o conjunto de sua obra retém significados que possibilitam interpretações análogas. Leia Mais

Critique et architecture. Un état des lieux contemporain | Hélène Jannière || La Matérialité de l’architecture | Antoine Picon

Em tempo de confinamento, podendo sentir satisfação ao menos de viver entre livros e de exercer um “métier de inteligência” (1), volto-me para obras publicadas recentemente enviadas por colegas amigos, que se acumulam sobre a mesa de trabalho, e seleciono duas em que os autores procuram pensar a arquitetura, ainda que por caminhos de reflexão diversos. Refiro-me aos livros de: Antoine Picon, La matérialité de l’architecture, publicado em 2018, que em breve sairá em versão ampliada em inglês pela University of Minnesotta Press, e ao de Hélène Jannière, Critique et architecture. Un état des lieux contemporain, publicado no final de 2019. Uma leitura mais atenta evidencia que a erudição da narrativa é comum a ambos, o que me permite juntá-los nessa resenha, levantando alguns pontos da novidade e complexidade histórico-teórica do primeiro, e da densidade historiográfica e crítica do segundo. Leia Mais

Dramatização dos corpos: arte contemporânea e crítica feminista no Brasil e na Argentina – TVARDOVSKAS (HU)

TVARDOVSKAS, L.S. Dramatização dos corpos: arte contemporânea e crítica feminista no Brasil e na Argentina. São Paulo: Intermeios, 2015. 488 p. Resenha de: RIBEIRO JÚNIOR, Benedito Inácio. História, gênero e feminismo: arte e práticas de liberdade no Brasil e na Argentina. História Unisinos 22(2):320-325, Maio/Agosto 2018.

Com mais de dez artigos publicados versando sobre os temas feminismo, gênero, arte e história, Luana Saturnino Tvardovskas traz a público os frutos colhidos na sua pesquisa de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Unicamp, sob a orientação de Margareth Rago.2 A obra, intensa nas reflexões e no peso, contempla a produção artística das brasileiras Rosana Paulino, Ana Miguel e Cristina Salgado e das argentinas Silvia Gai, Claudia Contreras e Nicola Costantino. Atravessando e historiando os caminhos de “[…] verdades cáusticas, de saberes menosprezados e de vozes inauditas” (Tvardovskas, 2015, p. 430) de tais artistas, a historiadora costura perspectivas historiográficas sobre mulheres, gênero e feminismos aos conceitos e práticas políticas e de pensamento de intelectuais como Michel Foucault, Judith Butler, Rosi Braidotti, André Malraux, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Margareth Rago, Norma Telles, Suely Rolnik, Tânia Navarro-Swain, Nelly Richard e Leonor Arfuch. O que garante a qualidade dessa urdidura é um apurado trabalho de análise das obras e das trajetórias das artistas e uma escrita politizada, afetada e afetuosa.

Comprometida com o assunto – arte, história e feminismo –e com a orientação de Rago desde a graduação, Tvardovskas privilegiou pensar estilísticas da existência e produções artísticas a partir do ferramental teórico-político- -metodológico feminista em sua trajetória como historiadora. Sua dissertação de mestrado é exemplo disso: defendida em 2008, Figurações feministas na arte contemporânea: Márcia X., Fernanda Magalhães e Rosângela Rennó, ela analisa instalações, performances e objetos artisticamente construídos com o objetivo que questionar verdades instituídas em relação à sexualidade, ao corpo feminino e à subjetividade (Tvardovskas, 2008).

Voltando à obra, esta foi defendida como tese de doutorado em 2013 e revista para ser publicada como livro em 2015. O livro foi dividido em cinco capítulos e em duas partes. Junto com a introdução, o primeiro capítulo –“Um museu imaginário feminista: histórias da arte e feminismos, diálogos possíveis” – está separado das duas partes do livro. A primeira parte – intitulada Brasil– contém os capítulos 2 e 3. No primeiro deles, “De ousadias discretas e manobras radicais: mulheres artistas no Brasil”, a reflexão sobre a produção de mulheres na arte brasileira a partir de 1970 e do movimento feminista toma lugar, ao mesmo tempo que a temática de gênero é discutida em relação aos contextos curatoriais e aos estudos acadêmicos. Já o terceiro capítulo, que recebeu o nome de “Potência desconstrutiva: Rosana Paulino, Ana Miguel e Cristina Salgado”, é escrito a partir do estudo das produções e trajetórias artísticas das três brasileiras investigadas por Tvardovskas. Argentina, como é denominada a segunda parte do livro, é composta pelos quarto e quinto capítulos, respectivamente intitulados “Cuerpos aflictos: arte e gênero na Argentina contemporânea” e “Memórias insatisfeitas: Silvia Gai, Claudia Contrerase Nicola Costantino”. Assim, a segunda parte da obra obedece à organização feita pela autora na sua primeira parte, pois os capítulos são organizados com o intuito de evidenciar as discussões sobre as artes e os feminismos nos seus contextos nacionais e, em seguida, verticalizar a análise abordando as artistas separadamente. O primeiro deles relaciona os temas da arte, política e gênero na Argentina contemporânea, trazendo reflexões acerca do período ditatorial e de abertura política e sobre a crítica de arte no país. No seu quinto e último capítulo, a obra interpreta as imagens plásticas produzidas por Gai, Contreras e Costantino.

No início do seu primeiro capítulo, Tvardovskas esclarece que seu trabalho buscará uma conjunção entre crítica cultural e História para abordar as poéticas visuais das artistas que são seu objeto de estudo. O intuito da autora é problematizar a partir de um olhar feminista essas estéticas femininas, partindo da hipótese de que tais produções “[…] anunciam novas possibilidades de intervenções na cultura”, e, inspirada em Walter Benjamim, questiona se elas podem ser “[…] compreendidas como espaços de resistência ao empobrecimento ético, político e subjetivo atual” (Tvardovskas, 2015, p. 37).

Nessa esteira, a autora vai situando os seus referenciais para a discussão de suas artistas-objeto: chama para a conversa Michel Foucault e Judith Butler para questionar a naturalidade dos corpos, percebendo-os a partir daí como produtos de discursos sobre o sexo. Interessa-se pelo conceito foucaultiano de parrhesia, que seria uma experiência antiga greco-romana construída a partir do cuidado de si e dos outros, buscando a afirmação de uma existência bela, libertária e ética. Desse modo, a opressão feminina vivenciada em seus corpos, a negação de seus desejos e a renúncia de si seriam terrenos de desconstrução de mulheres artistas que buscam em suas próprias vidas a matéria de seu trabalho. Logo, a autora situa as produções das seis artistas analisadas nessa convergência teórico-política.

Ainda no primeiro capítulo, preocupa-se em pensar a crítica feminista sobre as artes visuais, pontuando as concepções de arte e história da arte no Brasil, na América Latina, na Europa e nos Estados Unidos. Assim, Tvardovskas evidencia as condições históricas que excluíram as mulheres da história da arte ocidental. A partir de autoras como Griselda Pollock, Linda Nochlin, Rozsika Parker, Whitney Chadwick, para citar apenas algumas, a autora expõe que nos séculos XVIII e XIX as mulheres foram impedidas de pintar os gêneros tidos como maiores, entre eles os nus, sendo-lhes permitido apenas o estudo da natureza morta, do retrato e da paisagem. Também a ordem burguesa, no mesmo período, afastou ainda mais o conceito de artista da identidade das mulheres, com a redução delas ao papel reprodutivo e ao lar. No século XX, as concepções de originalidade e genialidade foram quase sempre atribuídas aos homens, assim como as mulheres foram banidas da história do modernismo. Embasada por reflexões que desconstroem as bases da História da Arte, bem como da própria disciplina histórica, Tvardovskas aponta para a compreensão da História que não se vê mais como discurso neutro ou universal como importante passo para a compreensão das mulheres, artistas ou não, como sujeitos históricos, concluindo que “[…] a história enquanto enunciado verdadeiro e absoluto não serve ao feminismo” (Tvardovskas, 2015, p. 61). O primeiro capítulo se encerra com uma crítica à pretensão de compreender uma periodização para a crítica de arte feminista latino-americana que coincida com a efervescência desses temas na Europa e nos Estados Unidos, iniciada a partir dos anos 1970. Os regimes ditatoriais que se deram no nosso continente na segunda metade do século XX ritmaram de outro modo o movimento feminista e seus efeitos no campo artístico, e, de acordo com a autora, apenas depois dos momentos de abertura política o feminismo impactou de forma mais efetiva a indústria cultural e as artes em geral. Por esse desenvolvimento mais tardio, Tvardovskas afirma que não houve no Brasil uma revisão dos cânones artísticos ou uma rememoração de nomes de mulheres em outros períodos históricos, como ocorreu nos países de língua inglesa. Assim, a partir de uma vontade de evidenciar perspectivas feministas e seus locais na arte latino-americana, Tvardovskas inicia suas análises.

O segundo capítulo se encarrega da discussão sobre as mulheres na arte brasileira e também introduz pequenas biografias de Ana Miguel, Rosana Paulino e Cristina Salgado, bem como apresenta seus estilos e materiais de trabalho. Insere, dessa forma, a produção e carreiras das três artistas na fase de abertura do regime militar, na década de 1980, caracterizada pela euforia por novas possibilidades artísticas e políticas. A história política do Brasil, do movimento feminista, das artistas-objeto e de outros artistas brasileiros é enfocada no estudo, gerando um panorama crítico das condições históricas que caracterizaram a arte e os trabalhos de Miguel, Paulino e Salgado. Com o fim da ditadura, Tvardovskas percebe como os movimentos sociais foram fortalecidos e, dentre eles, o feminismo. Isso levou as mulheres a se imporem mais abertamente como sujeitos políticos e atuarem criticamente em áreas como produção cultural, academia e no poder legislativo, repensando a cidadania, os corpos, o gênero, a sexualidade feminina e seus papéis de mães, esposas e filhas. Os anos 90 vão se caracterizar, então, por uma maior interação das obras de mulheres na desconstrução do imaginário misógino brasileiro, resultado do fim dos governos autoritários e da visibilidade conquistada pelos movimentos feministas.

Duas informações são importantes para entender o engajamento necessário às artistas mulheres para fazer arte no Brasil. Primeira: a entrada das mulheres nas instituições de educação artística no Brasil enfrentou grandes dificuldades, percebidas pela autora até finais do século XIX, já que apenas em 1892 foi concedido o acesso às mulheres ao ensino superior, como na Academia Nacional de Belas Artes. Outra informação buscada por Tvardovskas é a questão de grandes nomes femininos do modernismo brasileiro. Amparada nos resultados de sua própria dissertação e nas pesquisas de Marilda Ionta, a autora entende que o grande reconhecimento de Tarsila do Amaral e de Anita Malfatti estabelece a importância das mulheres na arte nacional e, ao mesmo tempo, sugere-se que não haveria distinções entre homens e mulheres nesse campo: “Criou-se a representação na mídia e na historiografia de que a presença dessas duas artistas confirmava que no Brasil não existiam problemas de gênero no território artístico” (Tvardovskas, 2015, p. 96).

Na seção final do capítulo 2, a autora dá visibilidade à maneira pela qual a discussão de gênero veio tomando lugar nas artes visuais brasileiras, percorrendo catálogos de exposições, obras analisadas, exposições organizadas com o intuito de divulgar a arte de mulheres no país, concluindo que tais discussões serviram para deslocar conceitos e valores, questionando as naturalizações que envolvem a arte brasileira, as mulheres e a domesticidade. Tvardovskas conclui que a arte contemporânea abriu espaços de liberdade e de questionamento de normas e, por isso, pode ser compreendida pela ideia foucaultiana de estética da existência.

Ao iniciar o terceiro capítulo, Tvardovskas esclarece que fará uma leitura feminista das produções dessas autoras – que nem sempre entendem suas obras ou a si mesmas como feministas –, conjugando autobiografia e política para compreender seu objeto de pesquisa. Desse modo, as três artistas brasileiras e seus trabalhos são percebidos desde suas questões cotidianas e “marcas vividas”, mesclando aspectos culturais e sociais para a “[…] busca de caminhos diferenciados para a constituição das subjetividades na atualidade” (Tvardovskas, 2015, p. 114).

Em decorrência disso, nas narrativas pós-estruturalistas e feministas, como defende a obra, autorretrato foge às narrativas tradicionais de uma constituição de um eu verdadeiro. No caso das artistas mulheres, o uso de temas e materiais íntimos, cotidianos e domésticos serviria, segundo suas perspectivas de gênero, para negociar, reagir e inverter os ditames da feminilidade “[…] e da identidade ‘Mulher’, constituindo imagens muito surpreendentes de si mesmas” (Tvardovskas, 2015, p. 11). Não seria a autobiografia individualista, branca, ocidental, masculina e universal, mas, em nome da pluralidade, apostas na ressignificação e intensificação das experiências vividas.

Assim, obras como a instalação My bed, da inglesa Tracey Emin, trazem uma interrogação sobre os limites entre público e privado, na qual a cama, objeto íntimo, pode despertar questionamentos sobre a vida em sociedade. Salgado, Paulino e Miguel seriam exemplos dessa arte que conjuga elementos autobiográficos, íntimos e privados ao mundo político e público. Rosana Paulino3 tematizará em suas obras as questões de gênero e etnicidade: questiona modelos de comportamento e corpo a ela destinados historicamente, “[…] marcando sua arte com ‘traços de revolta’” (Tvardovskas, 2015, p. 139). Uma das obras analisadas em Dramatização dos corpos é a impactante Bastidores (2013), em que seis fotos de mulheres negras são expostas em bastidores de costura com suas bocas, testas, olhos ou gargantas costurados grosseiramente com linha escura.

Paulino, em entrevista colhida por Tvardovskas, afirma que a obra reúne memórias familiares aos problemas coletivos. A historiadora entende que do espaço íntimo de Paulino emerge uma crítica atroz à sexualização e silenciamento das mulheres negras, mas também conexões com o passado escravista brasileiro. Nessa esteira, sendo mulher negra, tendo passado pela experiência ainda na infância da pobreza, do racismo e do sexismo, Paulino se vale dessas experiências subjetivas em grande parte do seu trabalho: ressignificando práticas cotidianas femininas como o costurar, o tecer, o bordar, gera posicionamentos e reflexões sobre as práticas violentas que caminham juntas às vivências femininas e negras. Guiada por Deleuze e Guattari, a autora vê nessa artista e suas criações espaços abertos a devires e desterritorializações identitárias sobre as mulheres; e, inspirada em Foucault, lê as mesmas imagens como a “coragem da verdade”, numa implicação ética na qual Paulino fala francamente da escravidão.

Em Ana Miguel4 é possível ver as associações do feminino com aranhas e fiandeiras, bem como personagens de contos de fadas como Rapunzel. Recorrendo aos materiais e às técnicas comumente ligados ao feminino, como a linha, a cama e o crochê, Ana Miguel gera afeto e incômodo na sua obra I love you. A descrição e as camadas de sentido que recobrem a obra são pensadas por Tvardovskas a partir de referências clássicas, como o mito de Aracne, da influência do pensamento psicanalítico na obra de Miguel e as questões envolvendo o corpo feminino. A autora percebe que a sua instalação Um livro para Rapunzel (2003), assim como suas teias de crochê, caracterizam-se como modos de deslocar naturalizações sobre o feminino. A infância é pensada também, ao lado da instalação supracitada, com a exposição Pensando a pequena sereia, “a matéria é o que deseja minha alma” (1990), como lugar de repensar a subjetivação das meninas.

Por fim, Miguel tem seu trabalho Ninhohumano (2008) estudado por Tvardovskas: trata-se de uma intervenção urbana feita em conjunto com Claudia Herz, na qual as duas habitam por dias uma árvore no aterro do Flamengo (RJ). Para Tvardovskas, a intervenção força os limites entre o jardim público e o espaço privado da casa: desloca as divisões estabelecidas entre público e privado, entre locais habitáveis e não habitáveis. Assim, Miguel revela uma multiplicidade de sentidos sobre o humano, o feminino e a infância, repensando o corpo e o desejo para uma “potência feminina criativa”.

A última brasileira abordada no livro é Cristina Salgado.5 Esta se volta para o corpo feminino com a intenção de romper com significados cristalizados por meio de torções, fraturas, rompimentos, dobras e incisões, representando esculturas de corpos impossíveis e problematizando a questão da nudez (Tvardovskas, 2015). Também envolvida em temáticas que cruzam estética e psicanálise, os corpos esculpidos por Salgado são plasmados às paredes e objetos de decoração, com inchaços e torções se fazendo evidentes. De acordo com Tvardovskas, a estratégia já vinha sendo usada por outras artistas surrealistas como crítica à domesticidade feminina.

Em sua instalação Grande nua na poltrona vermelha, composta em 2009 e com direta associação com Grande nu no sofá vermelho (1929), de Pablo Picasso, o corpo de uma mulher se derrama pelo espaço, excedendo as proporções humanas, mas rostos, mãos e pés dão caráter humano ao emaranhado de dobras e torções. O nu para a artista mulher torna-se uma presença e uma ausência que, nas palavras de Tvardovskas, significa o corpo nu feminino sempre em evidência em obras de arte, mas criadas e vistas por olhares masculinos. Ao contrário, Salgado o deforma e o recria: a sua mulher nua se derrama aspirando buscar outras formas de entender o feminino, o corpo, a arte e as próprias maneiras de conceber nosso olhar sobre o mundo, inventando o feminino como dobras não localizáveis, numa leitura deleuziana.

A segunda parte da obra se inicia no quarto capítulo, que tem como objetivo entender as nuances das relações entre arte e gênero na Argentina contemporânea. Como fez ao tratar do Brasil, a obra pensa a história política recente naquele país como terreno fértil para as artes em geral: a violência, a tortura, os desaparecimentos e os assassinatos vividos no período ditatorial (1966-1973) fazem surgir um luto simbólico nas expressões estéticas, e as artistas argentinas analisadas não escapam a essa problemática. Traçando um panorama da história da arte argentina, Tvardovskas aponta para as omissões das quais as artistas mulheres foram vítimas. Assim como aconteceu no Brasil com Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, artistas mulheres que atingiram certo reconhecimento na Argentina, como Lola Mora e Marta Minujín, têm suas trajetórias usadas para mascarar o silenciamento das poéticas visuais femininas e a inexistência de interesse sobre as obras das demais artistas.

Tvardovskas afirma que em meados da década de 1980 tem-se a inserção de prismas de gênero na arte argentina: depois da ditadura, numa realidade econômica e social deteriorada, a cena underground refletiu acerca dos corpos e suas sexualidades “fora da ordem”. Já em 1986, a exposição Mitominas I acolhe obras de mulheres que se perguntavam acerca dos mitos que as construíam enquanto mulheres, e, dois anos depois, a exposição Mitominas II. Los limites de la sangre fará alusão à violência política na Argentina, à AIDS e à violência de gênero.

Para pensar as relações entre arte e gênero na Argentina, a historiadora relembra os parâmetros que consideraram certas manifestações artísticas como “arte política” na década de 1960: em confronto com a ditadura, artistas se dedicavam a tecer críticas ao poder e às estruturas macropolíticas. A partir dos anos 80, Tvardovskas reconhece um fortalecimento e maior visibilidade dos movimentos sociais, mas o foco da crítica dos artistas não é mais somente o estado. Assim, artistas militantes que discutiam os novos impasses sociais, diferentes dos anos 60, foram tachados de despolitizados e frívolos, pois baseariam seus trabalhos em temas muito subjetivos, como o corpo e a sexualidade. Por isso, suas obras acabaram sendo pejorativamente denominadas de “arte rosa”, “arte light” e “arte gay”.

Por seu turno, o último capítulo de Dramatização dos corpos coloca os trabalhos das argentinas Silvia Gai, Claudia Contreras e Nicola Costantino sob a perspectiva dos estudos feministas. Tvardovskas encontra como eixo tematizador dos trabalhos dessas artistas as questões relacionadas ao corpo, grande sensibilidade e uma crítica forte à história do seu país. Assim, as três artistas-objeto enfatizam em suas criações a memória como prática ativa no presente e lugar de reflexão política. Silvia Gai6 começa seus trabalhos com técnicas têxteis em meados dos anos 90, tecendo órgãos humanos em crochês de formato tridimensional, aplicando-lhes um banho de água e açúcar que lhes garante uma estrutura firme, como se vê na sua série de órgãos Donaciones, de 1997. Esses trabalhos levam à reflexão sobre a enfermidade e a fragilidade dos corpos: pequenos tumores, más-formações e lacerações se alastram por seus trabalhos. As reflexões acerca do HIV, que preocupou a argentina desde os anos 80, da mesma maneira emergem em suas obras. Também há trabalhos da artista que se dão em almofadas e aventais, objetos do uso cotidiano e doméstico. Tvardovskas os entende por uma perspectiva feminista, pois Silvia Gai “[…] explicita os enunciados sociais que tradicionalmente restringem as mulheres à domesticidade, em nome de uma suposta ‘ordem biológica’” (Tvardovskas, 2015, p. 320). É possível ver a criação de corpos sensíveis à percepção, de uma maneira muito diferente daquela expressa pelos invasivos discursos médicos e cirúrgicos. As linhas e redes formadas pelos seus trabalhos igualmente aludem às interpretações feministas, podendo sugerir a criação cultural de órgãos, tecidos e corpos.

Já Claudia Contreras7 usa materiais e técnicas de criação muitas vezes tachadas como menores e atribuídas às mulheres, confrontando acidamente a história do último século, em especial os genocídios e a ditadura em seu país. Os problemas que inundam a Argentina na década de 1990, como as mazelas do neoliberalismo e o empobrecimento massivo da população, suscitam na arte de Contreras questões a serem tratadas, bem como os desaparecimentos políticos da ditadura militar, numa tentativa de reconstruir o passado de forma crítica, questionando discursos oficiais e os problemas da memória e do esquecimento. Em reconstruções do mapa argentino, ela expõe corpos atacados e agredidos, como nas obras Argentina Corazóne Columna vertebral, ambas de 1994-1995. Já a série Cita envenenada (2001), “[…] remete à prisão de militantes políticos pela polícia, por meio do descobrimento de esconderijos e encontros marcados, associada, portanto, à traição” (Tvardovskas, 2015, p. 375). Nesse sentido, Contreras utiliza um objeto cotidiano, banal, como uma xícara, e nele expõe dentes humanos, estabelecendo uma relação entre os micropodores que perpassam nossos cotidianos e revelam violências e impactos sobre nossos corpos. Os trabalhos que nem sempre se mostram como críticas feministas – como, à primeira vista, pode parecer Cita envenenada – podem ser lidos numa perspectiva feminista, uma vez que, para Tvardovskas, conceitos como corpo, desejo, cotidiano e poder são postulados pelas discussões de mulheres interessadas na transformação da realidade social e cultural.

Nicola Costantino8 encerra as análises de Dramatização dos corpos, mostrando o olhar ácido sobre a cultura argentina e as convenções de moda, do feminino e da maternidade presente nos trabalhos dessa artista. Assim como Contreras e Gai, Costantino é entendida por Tvardovskas como uma daquelas artistas que utilizam a água como elemento sofredor e matéria de desespero, o que pode ser visto na obra Ofelia, Muertede Nicola Nº II.9 A maternidade, a cozinha, o envelhecimento e a beleza feminina são constantemente questionados pelas corrosivas obras de Nicola Costantino, o que fica claro nos seus trabalhos de inkjetprint, como nas impactantes Nicola costurera (2008), Madonna (2007) e Savon de corps (2003). Em Nicola Alada, de 2010, a imagem de si é usada para refletir acerca do corpo, o imaginário sobre a mulher e a violência histórica. Seu autorretrato como Vênus na frente de uma enorme carcaça bovina pendurada causa uma mordaz contradição entre o ideal da imagem feminina e a violência causada ao olhar espectador pela carne animal exposta. O corpo animal entrecruzado ao corpo de Vênus nos faz perceber, segundo Tvardovskas, o sofrimento possível em um corpo, em especial o das mulheres.

Passando à conclusão, Tvardovskas entende as obras das seis artistas estudadas como práticas fluidas e em constante reelaboração e como exercícios de reconstrução de si e da cultura no seu entorno: as produções de Salgado, Paulino, Miguel, Gai, Contreras e Costantino ampliam nossas formas de perceber o feminino e as ex não hierárquicas e não binárias. A autobiografia, o corpo, o espaço privado se constituem como espaços possíveis de repensar a memória e com potência criativa e libertária. Não há um sentido feminista essencial, pretendido pelas autoras ou fixo na análise de Tvardovskas; muito pelo contrário, a autora deixa explícita a intenção de lançar um olhar histórico e feminista sobre as obras estudadas. Durante toda a sua análise, por meio da crítica de suas fontes, das obras e das mulheres estudadas, reescreve um passado sobre a arte muitas vezes negligenciado, afirmando abertamente a sua leitura sobre elas: “Não se trata, assim, de uma simples invenção de sentidos inexistentes, mas de uma lente necessária para um olhar social que parece não conseguir enxergar com acuidade seus contínuos processos de apagamento das diferenças” (Tvardovskas, 2015, p. 380). Uma leitura mais que necessária nos tristes tempos vivenciados pela cultura e arte brasileiras, quando se olha, por exemplo, para as recentes polêmicas acerca do cancelamento da exposição QueerMuseu (Folha de S. Paulo, 2017) e em torno da performance La bête, acusada de pedofilia (Carta Capital, 2017). Dramatização dos corpos se torna leitura obrigatória num ambiente em que a arte que discute gênero, cultura LGBT, o corpo e o desejo é cada vez mais vítima de discursos censores e intolerantes.

Referências

CARTA CAPITAL. 2017. Museu de SP é acusado de pedofilia e rebate: performance não tem conteúdo erótico. Disponível em: https:// www.cartacapital.com.br/sociedade/museu-de-sp-e-acusado-de- -pedofilia-e-rebate-performance-nao-tem-conteudo-erotico. 29 set. Acesso em: 31/10/2017.

FOLHA DE S. PAULO.2017. Após protesto, mostra com temática LGBT em Porto Alegre é cancelada. Disponível em: http:// www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/09/1917269-apos-protesto- mostra-com-tematica-lgbt-em-porto-alegre-e-cancelada. shtml. 10 fev. Acesso em: 31/10/2017.

TVARDOVSKAS, L.S. 2008. Figurações feministas na arte contemporânea: Márcia X., Fernanda Magalhães e Rosângela Rennó. Campinas, SP. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 223 p.

TVARDOVSKAS, L.S.2013. Dramatização dos corpos: arte contemporânea de mulheres no Brasil e na Argentina. Campinas, SP. Tese de Doutoramento. Universidade Estadual de Campinas, 370 p.

TVARDOVSKAS, L.S.2017. Currículo da Plataforma Lattes. Brasília. Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv. do?id=K4594129J5. Acesso em: 09/05/2017.

Notas

2 Esses dados foram consultados no Currículo Lattes de Luana Saturnino Tvardvoskas. Ver na lista de referências Tvardovskas (2017).

3 Nascida em 1967, é gravadora e especialista em gravura pelo London Print Studio e possui doutorado em Artes Plásticas pela ECA/USP. Todas as informações biográficas das artistas foram encontradas na própria obra de Luana Tvardovskas (2015).

4 Nascida em 1962, gravadora e escultora, estudou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ) e Filosofia Contemporânea e Antropologia na Universidade Federal Fluminense e na Universidade de Brasília.

5 Pintora, desenhista e escultora. Nasceu em 1957, estudou desenho, pintura e litografia na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde se tornou professora. É doutora em Linguagens Visuais pela UFRJ e professora da UERJ e da PUC-RJ.

6 Nascida em Buenos Aires em 1959, é uma escultora que trabalha com crochês e bordados, dialogando com práticas têxteis.

7 Nasceu em 1956, também em Buenos Aires. Trabalha com colagem, costura, paródia, desenhos, pinturas, bordados, objetos, fotografias e animação digital. Estudou na Escuela Nacional de Bellas Artes de Quilmes, na Escuela Nacional de Bellas Artes Manuel Belgrano e na Escuela Superior de Bellas Artes Ernesto de la Cárcova. Também estudou em Madri.

8 Nascida em Rosário, em 1964, tem sido bastante comentada no circuito latino-americano contemporâneo, trabalhando com autorretratos, esculturas, embalsamamento de animais, imitações de pele humana, performances, vídeos e instalações. Formou-se na Escola de Artes Plásticas da Universidad de Rosario e embalsamamento e mumificação de animais no Museo Nacional de Ciencias Naturales de Rosario.

9 A água possui esse lugar na produção dessas três artistas e no imaginário argentino contemporâneo pelas memórias da ditadura militar, já que eram comuns os voos nos quais militares jogavam militantes políticos no mar e no Río de la Plata.

Benedito Inácio Ribeiro Junior – Doutorando em História na Universidade Estadual Paulista (UNESP) em Assis. Professor Assistente I na Faculdade de Administração de Santa Cruz do Rio Pardo da Organização Aparecido Pimentel de Educação e Cultura. Praça Dr. Pedro Cesar Sampaio, 31, Centro, 198000-000, Santa Cruz do Rio Pardo, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

História da América Latina / Maria Ligia Prado

O espaço reservado à história da América Latina em editoras de livros didáticos e acadêmicos – assim como da África – tem se ampliado no decorrer dos últimos anos. Parte do resultado deve-se ao empenho de professores-pesquisadores dessa área, que têm empreendido inúmeros esforços para que os brasileiros conheçam melhor os fatos, personagens e processos que compõem a rica narrativa histórica dessa região tão complexa e diversificada em termos tanto geográficos quanto culturais. Embora essa realidade esteja se configurando, ainda é perceptível a ausência de trabalhos que sejam, além de acessíveis a públicos distintos, também, confiáveis, sob o ponto de vista histórico, teórico e metodológico.

A obra História da América Latina é parte integrante da Coleção “História na Universidade”. A larga experiência de pesquisa e de ensino na área de História da América de suas autoras, Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino Soares, ambas, docentes-pesquisadoras da Universidade de São Paulo, confere legitimidade ao trabalho. Dividido em doze capítulos a publicação é composta por um panorama amplo de temas, privilegiando aqueles mais recorrentes nos cursos de graduação de História, na disciplina de América Latina.

Respeitando os protocolos próprios do ofício do historiador – leitura crítica das fontes, conhecimento sólido da bibliografia e emprego das ferramentas teóricas e metodológicas (p.9) –, as pesquisadoras demonstram cautelas necessárias na análise das conjunturas históricas e ações dos múltiplos sujeitos ali tratados. Distanciam-se, por exemplo, de armadilhas traiçoeiras, como dividir personagens em dois campos opostos e simplistas, que oscilam entre a “heroicização” e a “demonização”.

O leitor não encontrará análises e discussões metodológicas sobre as múltiplas fontes citadas – não é a proposta. Contudo, ao tratarem sobre os temas, fazem frequentes referências a romances, textos de imprensa, filmes, ensaios, memórias, cartas, imagens (pinturas, fotos), músicas e filmes que foram explorados – de forma crítica e aprofundada – por elas e/ou outros historiadores, noutros trabalhos nos quais se debruçaram sobre grandes questões da América Latina, analisando tais documentações. Algumas dessas pesquisas são relacionadas, no fim da obra, como indicações de leituras.

Prado e Soares fazem questão de ressaltar a dificuldade e, ao mesmo tempo, a urgência da ênfase às especificidades no trato das histórias dos países latino-americanos. Dessa forma, ao tratarem das temáticas, embora busquem estabelecer conexões entre os respectivos contextos históricos, contemplando experiências que transcenderam fronteiras nacionais, demonstram sérias preocupações em marcar as diferenças que caracterizaram a história de cada Estado nacional. Frente à impossibilidade de abordarem todos os temas e países de forma equânime, optaram por alguns enfoques com o formato “box”, de modo que certos temas e trajetórias biográficas foram analisados separadamente. Alguns deles: as independências do Haiti, do México e de Cuba; Reforma Universitária de Córdoba, de 1918; escravidão na América Espanhola; os conflitos políticos na região do Rio da Prata; a guerra entre México e Estados Unidos, a Guerra no Pacífico e suas implicações e um recorte biográfico de Eva Perón.

Sobre o Brasil, “parte da América Latina” – como gostam de sublinhar –, pode-se afirmar que não foi tomado como alvo de reflexões específicas. No entanto, as pesquisadoras traçaram uma narrativa paralela, travando aproximações com os demais países, desde o processo de colonização ibérica, as lutas por independências políticas, a formação dos Estados nacionais, chegando até o século XX, com assuntos ligados às Ditaduras Civis-Militares.

Optaram por iniciar o texto historicizando a denominação “América Latina”. Ali, já fica evidenciado o quanto a origem e difusão do termo trouxeram, no seu bojo, variados interesses – externos e internos – que estiveram presentes no tabuleiro das pelejas políticas e ideológicas. São colocadas em discussão as apropriações e manipulações do conceito bem como as disputas envolvendo interesses expansionistas, considerando os campos de atuação e influência por parte da Europa – naquele momento, França, em especial. Merece atenção a vertente mais recente, que considera que “[…] a denominação não foi imposta, mas cunhada e adotada conscientemente pelos latino-americanos, a partir de suas próprias reivindicações […].” (p. 9)

Ao abrirem o livro com o tema das identidades, tão caro aos pesquisadores da área, a América Latina é apresentada como um cenário marcado por complexas estratégias da parte de atores e interesses em disputa que se travaram (e se travam) no cenário geopolítico e cultural. Textos ensaísticos clássicos, bastante conhecidos por estudiosos da área são mencionados, com o intuito de dar uma dimensão do quanto a região tem uma história vibrante, além de mostrar os embates identitários em jogo. Entre outros, Nuestra América, do cubano José Martí, Carta de Jamaica, do venezuelano Simon Bolívar ou Ariel, do uruguaio Enrique Rodó.

As Independências Latino-americanas, um dos “grandes temas” de América, mereceu destaque e a análise considerou as dificuldades inerentes à difícil arte da conciliação de interesses, as disputas e visões divergentes de líderes políticos e grupos sociais que compuseram a trama que marcou o longo e complexo trajeto de luta. Não foi omitido o registro dos sentimentos díspares de líderes que, como Simón Bolívar ou Bernardo de Monteagudo conviveram com esperanças e desencantos ao longo do processo.

A “guerra” de símbolos, a construção de representações e discursos identitários, em disputa pelos sujeitos históricos, também estiveram presentes no momento da formação dos Estados nacionais, processo longo, marcado por inúmeros avanços e recuos na história de cada um dos povos da região. Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino Soares deixam evidenciado, na escrita, o quanto o processo envolveu embates de forças antagônicas que evidenciaram dissensos regionais articulados em torno de duas forças principais: Liberais e Conservadores ou, no caso argentino, “Unitários” e “Federalistas”. Cada um dos grupos é bem examinado, de forma que o leitor possa entender os seus horizontes políticos e as razões de suas disputas.

O tema da “Modernidade” perpassa alguns capítulos, sendo entrelaçado, especialmente, com a temática da identidade nacional. Ao abordarem-no, não negligenciam as necessárias distinções entre conceitos relacionados (modernização e modernismos). No campo da Educação, enfatizam projetos culturais colocados em prática pelos governantes, em associação com artistas e intelectuais. Com campanhas de alfabetização e outras ações, eles buscavam “elevar” o nível cultural e técnico de grupos subalternos, preparando-os para as necessidades e exigências da “modernidade”. A leitura de artistas e intelectuais frente aos esforços de governantes e elites econômicas para engendrarem a modernização, não passou ao largo da análise. Seja quando esses artistas se referiam às mudanças, dando conotações positivas ou quando se manifestaram, denunciando os custos sociais e humanos que as inovações técnicas, o “desenvolvimento” alteraram as relações de grupos com a terra e com o trabalho.

Sobre o papel da Igreja Católica no imbricado jogo das questões políticas, em vez de simplesmente reforçarem a atuação da instituição ao lado de grupos conservadores que desejaram, desde a Colonização, a manutenção do status quo de grupos dominantes, bem como de antigos privilégios e prerrogativas assegurados a ela (educação, posse de terras), Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino exploraram as complexidades do papel desempenhado pela instituição, no contexto latino-americano. Ressaltam, claro, que sendo a Igreja altamente hierarquizada esteve, em inúmeros contextos, ao lado de grupos dominantes, usando de ideologias religiosas para dissuadir os rebeldes. No entanto, lembram que figuras atreladas ao universo religioso nem sempre estiveram do lado conservador, mas se destacaram em momentos importantes, como nas lutas pela Independência, atuando ao lado dos “rebeldes”, abraçando causas sociais de movimentos populares. Casos emblemáticos foram os curas Miguel Hidalgo e José María Morelos, que lideraram o primeiro movimento pró-emancipação do México em relação à Espanha, em 1810. A rebelião alimentou esperanças, ao proclamar o fim da escravidão negra, o fim do pagamento de tributos indígenas e propor a distribuição de terras – inclusive da Igreja –, contando, assim, com a adesão de indígenas e camponeses. Pela radicalidade contida no movimento, nessa fase inicial, logo foi sufocado e seus líderes executados.

Ao contemplarem numerosos temas, explorando um amplo recorte cronológico que foi do século XVI – marco do processo colonizador – até o século XX, incluíram múltiplos atores sociais que participaram dos eventos citados e narrados. Além dos “grandes vultos”, que se tornaram conhecidos pela liderança exercida nos movimentos políticos, outros sujeitos e suas formas de ações foram contempladas pelas autoras: soldados anônimos, intelectuais, negros, mulheres, indígenas, camponeses e operários. Vale ressaltar que não foram esquecidas as diversas formas com as quais aqueles que ocuparam o poder – no plano interno e externo –, em fases distintas da História, lidaram com as demandas dos grupos reivindicantes. Assim como em determinados momentos esses grupos não se privaram de usar a força para reprimirem duramente as demandas, em outras circunstâncias, viram-se obrigados a ceder, fazendo uso do diálogo e das negociações, desenhando, assim, novas configurações nas relações de poder.

Conceitos como “caudilhos” e “populismo”, usualmente utilizados erroneamente em determinados textos e contextos relacionados à América Latina, não compõem o repertório da escrita da obra. Este último, por exemplo, tão recorrente em segmentos da imprensa quando se referem a algumas lideranças latino-americanas, foi evitado pelas autoras, por entenderem-no “demasiadamente genérico, eclipsando as particularidades nacionais” (p. 131). Em vez disso, optaram por tratar de “políticas de massas”, discutindo ações de lideranças carismáticas de alguns países latino-americanos (anos 1940 e 1950), que se mostraram capazes de manter a ordem, num período em que as classes populares lutavam por ganhar espaço no cenário político e exigiam reformas. Sob a égide do Estado, uma série de mudanças ocorreram e as formas de ações desses governantes variaram entre reformas que concederam direitos sociais, propaganda, cooptação e, também, repressões.

Dois movimentos revolucionários ocorridos na América Latina, no século XX, mereceram maior atenção em História da América Latina: a Revolução Mexicana e a Cubana. Em comum, o fato de imprimirem novos contornos na ordem estabelecida, tanto no plano interno, quanto externo. A do México, por ter sido a primeira do século, antes mesmo que a Russa, ocorrida em 1917, quase uma década após a da América. Também, por seus desdobramentos políticos, culturais e sociais, envolvendo novas configurações nas relações de gênero, leis de reforma agrária, nacionalizações de bancos e empresas estrangeiras. A de Cuba, além de alguns desses aspectos, pelas consequências produzidas no cenário latino-americano. Uma delas e a mais crítica, por tornar-se símbolo de luta contra o imperialismo norte-americano. Sob o temor de que outras nações latino-americanas seguissem o “mau” exemplo cubano, redundou no apoio do “irmão do Norte”, os Estados Unidos, na implantação das ditaduras.

A partir dos anos 1960, tempos de “Guerra Fria”, quando duas ideologias dominantes provocavam polarizações no globo, os países da América Latina coincidiram no compartilhamento de experiências políticas de regimes autoritários. Com intervalos maiores ou menores e com distintos graus de repressão, guardam feridas abertas em diversos países, inclusive no Brasil. Não mais são denominadas simplesmente como “militares”, mas “civis-militares”, posto que, sabidamente, contaram com o apoio da parte significativa de forças conservadoras da sociedade civil – empresários, imprensa, Igreja, cidadãos comuns. São apresentadas, na obra, como resposta ao alto grau de mobilização de alguns setores em países latino-americanos naquele momento: sindicatos, partidos de esquerda, ligas camponesas, guerrilhas indígenas ou movimentos estudantis. Chile, Nicarágua, Peru, Paraguai, Argentina, Brasil, Uruguai, Bolívia, El Salvador são contemplados nessa questão, ressaltando-se as especificidades de cada caso.

“Cultura e Política”, além de ser abordagem presente durante todo o livro é, também, o título do último capítulo. A imagem da “Orquestra Sinfônica Simón Bolívar”, composta por 180 músicos venezuelanos que tocaram na Sala São Paulo, em 2013, foi a estratégia utilizada para encerrar a obra, focando a América Latina Contemporânea. O resultado visto na apresentação em São Paulo teve sua origem em 1975, por meio da iniciativa de um musicista-economista que, como outras iniciativas colocadas em prática na América Latina, ao longo do século XX, buscou difundir acesso gratuito à cultura – nesse caso, educação musical – promovendo inclusão social e cultural a jovens e crianças provenientes de meios populacionais carentes.

A música como intervenção social foi motivo para reflexões, colocando a ênfase do capítulo sobre a Nueva Canción, movimento artístico e político que articulou nomes da música de alguns países no engajamento de oposição aos governos militares, nos anos 1960 e 1970. O pano de fundo serviu para evidenciar o quanto, em diversos momentos e contextos, a circulação de ideias e o compartilhamento de experiências contribuíram para que latino-americanos se articulassem em utopias e perspectivas de transformações sociais e políticas.

O contexto latino-americano das últimas décadas, marcado por cenários de ascensão de mulheres ao andar mais alto da política; a chegada ao poder de governos “progressistas” em alguns países, avanços sociais e, por sua vez, numa perspectiva ainda mais recente, as reações de grupos conservadores às mudanças colocadas em prática; a apresentação de possibilidades de recomposição das relações de Cuba com os Estados Unidos são fatos que conferem à obra uma relevância ainda maior, já que os leitores terão condições de compreender melhor o diálogo entre passado e presente.

História da América Latina atende, portanto, às expectativas e necessidades de um público bastante amplo – acadêmico ou não. Aos “iniciantes”, o prazer da leitura de uma obra na qual poderão embarcar no horizonte histórico (político e cultural) latino-americano, conduzidos pela experiência de duas pesquisadoras sérias que decidiram compartilhar parte do seu fascínio por essa região do globo. Aos “iniciados”, a satisfação de terem contato com uma narrativa histórica livre de voluntarismos e anacronismos, comuns a algumas obras que, essencialmente comprometidas com o aspecto comercial, são lançadas no mercado editorial vendendo-se como “guias”, isto é, como promotoras de um suposto e ilusório contato com a “verdadeira” história da América Latina. Sem tais pretensões, a obra resenhada cumpre a função de atender a estudantes e professores que queiram e necessitem acesso a abordagens e interpretações fundamentadas, oferecendo importante contribuição no que concerne à construção do conhecimento histórico crítico.

Romilda Costa Motta – Doutora pela Universidade de São Paulo. Professora do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP-SP). São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].


PRADO, Maria Ligia; SOARES, Gabriela Pellegrino. História da América Latina. São Paulo: Contexto, 2014. 206p. Resenha de: MOTTA, Romilda Costa. A História da América Latina sob perspectiva crítica. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.21, p.285-290, 2016. Acessar publicação original. [IF].

Testimony: a philosophical study – COADY (SY)

COADY, C. A. J. Testimony: a philosophical study. Oxford: Clarendon Press, 1992. Resenha de: SILVA, Robson de Oliveira. Synesis, Petrópolis, v. 6, n. 1, p. 245-247, jan./jun., 2014.

Um dos méritos da filosofia praticada na segunda metade do século XX é a retomada de questões importantes na história do pensamento, sob luz nova. Alguns autores proporcionaram uma renovação da abordagem acerca da filosofia prática, por meio da colaboração significativa de Manfred Riedel. Igualmente foi reabilitada a perspectiva acerca do papel dos preconceitos no edifício do saber, graças à reflexão de Hans-Georg Gadamer. Com esse mesmo espírito, o conceito de testemunho, que tem sido objeto de reflexões desde a crítica de David Hume, tornou-se tema de disputa de parte da comunidade científica especializada. Por este motivo, é pertinente esclarecer a amplitude da crítica que o pensamento moderno levantou contra esse conceito, além de averiguar se ainda é possível sustentá-la.

O livro de C. A. J. Coady, Testimony: a philosophical study, ainda inédito no Brasil, é importante para o movimento de reabilitação do valor epistêmico do testemunho. O problema destacado pelo autor, que percorre os últimos decênios de disputas epistêmicas, poderia ser bem resumido na seguinte questão: o conhecimento humano possui outras fontes para sua constituição, além de sensibilidade, memória e razão? A tradição moderna, capitaneada por Hume, tende a diminuir a importância do testemunho na produção do conhecimento, privilegiando as fontes epistêmicas internas ao sujeito. Nesta obra, o autor quer ocupar-se do papel fundamental que o testemunho possui enquanto fonte confiável de conteúdos epistêmicos.

A obra está dividida, materialmente, em cinco seções, cada qual com suas subseções. No entanto, o conjunto revela, formalmente, duas grandes partes. Na primeira, que reúne as quatro primeiras seções, o autor apresenta a problemática do testemunho, definindo-a e introduzindo o leitor na história do conceito, com suas armadilhas e possíveis soluções. Coady não deixa de lado nem pequenos, nem grandes autores que trataram do assunto. Vai desde os clássicos, passando pelos medievais e dedica-se especialmente ao que chamou “fundamentalismo escocês” (Scottish Fundamentalism), indicação evidente a David Hume. Ele introduz também a referência a um autor menos conhecido, mas de importância na discussão: Thomas Reid. A segunda parte do livro possui uma abordagem mais prática e trata de demonstrar como a noção de testemunho é utilizada em quatro disciplinas, desmitificando o discurso sobre a incapacidade de o conceito de testemunho fundamentar qualquer tipo de conhecimento científico: história, matemática, psicologia e ciências jurídicas são, ainda hoje, lugares próprios para o testemunho e seus conceitos derivados, como a autoridade.

No que concerne às questões teóricas, a obra de Coady pode ser apresentada como uma recente grande tentativa de defesa da comunidade científica, por meio da crítica ao individualismo epistêmico. Segundo o autor, a rejeição do conhecimento que se alcança a partir do trabalho de outros favorece a postura individualista em relação à epistemologia, o que seria uma posição equivocada, maximamente em se tratando das ciências da natureza. A importância dada à liberdade de pesquisa e ao ensino de conteúdos científicos (noção de autonomous knower), citada por Coady, superestima o aspecto autônomo da prática científica, além de minimizar os condicionamentos que a experiência revela. As ciências da natureza apontam reiteradamente para a necessidade da busca em comunidade, o que vai de encontro ao espírito moderno, que privilegia o sujeito. A expressão conceitual autonomous knower aponta para a atitude de absoluta independência epistêmica do pesquisador em relação a qualquer ponto referencial, seja ele uma instituição ou outro pesquisador. Independência que, segundo Coady, jamais acontece concretamente na ciência.

Sob esta perspectiva míope quanto à ciência in fieri, Coady sugere a reabilitação da noção de testemunho como fonte de conhecimento, destacando que esse conceito em nada diminui a importância da autonomia na busca científica. Com efeito, a autonomia cognitiva nada perde com a aceitação de que o processo epistêmico apoia-se, em muito, na labuta de outros que vieram antes. Além disso, o autor lembra que o aspecto mais importante da autonomia não é seu viés epistêmico, praticamente impossível de ser erradicado. No que concerne à autonomia, o que não se pode perder de vista, segundo o autor, é sua abordagem ética. A falta de autonomia e isenção ética do cientista é o que coloca a prática científica sob olhar de suspeição e não a consciência de que seus trabalhos e estudos dependem de conhecimentos anteriores aos que ele pretende defender.

O livro de C. A. J. Coady evidencia os limites do pensamento de inspiração moderna. A aplicação dos princípios da filosofia moderna nas ciências naturais – especialmente a ideia de autonomia – promove um paulatino enclausuramento do pesquisador, em detrimento da comunidade científica. Por outro lado, é evidente, a reflexão acerca do papel do testemunho expande suas influências para além das ciências naturais. Outras disciplinas se beneficiam com a valorização do testemunho como fonte de conhecimento epistêmico. Um ponto controverso do livro talvez seja a fundamentação do testemunho. O que dá justificação e garante a capacidade epistêmica do testemunho é a autoridade, que empresta sua confiabilidade aos conhecimentos transmitidos por ele. No entanto, a justificação epistêmica não pode ter outro fundamento que a metafísica, com o risco de cometer petição de princípio. É o ser quem garante os conteúdos testemunhados pela autoridade e não ela mesma. Embora se possa discutir esse ponto ou outro, o livro é interessante para quem pretende compreender como acontece a prática científica.

Referência

COADY, C. A. J. Testimony: a philosophical study. Oxford: Clarendon Press, 1992.

Robson de Oliveira Silva – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil. Pós-doutorando na Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Curriculum Vitae: http://lattes.cnpq.br/7150038239237488. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

La República en Guerra. Contra Franco, Hitler, Mussolini y la hostilidad britânica – VIÑAS (H-Unesp)

VIÑAS, Ángel. La República en Guerra. Contra Franco, Hitler, Mussolini y la hostilidad britânica. Barcelona: Crítica, 2012. 406p. Resenha de: AVILA, Carlos Federico Domínguez. História [Unesp] v.31 no.2 Franca July/Dec. 2012.

O livro de Ángel Viñas é uma síntese de 40 anos de pesquisas sobre a traumática guerra civil espanhola (1936-1939). Após décadas de estudos, investigações e publicações em numerosos países, Viñas entrega aos leitores – especialistas e leigos – uma obra de notável valor intelectual, de altíssima consistência teórico-metodológica e de exemplar transcendência historiográfica.

A guerra civil espanhola foi um dos acontecimentos mais dramáticos do século XX, em particular, e da história contemporânea, em geral. Seu impacto e desdobramentos ainda provocam debates e polêmicas no cotidiano do povo espanhol – eis os casos da recente exoneração do juiz Baltazar Garzón ou da questão separatista da Catalunha – e das dezenas de milhares de espanhóis e descendentes que, logo após a derrota da República, tiveram que se exilar em outros países e continentes, especialmente na França e no México.

A obra de Viñas é particularmente convincente ao estudar a dimensão exógena do conflito – afinal, trata-se de livro de história das relações internacionais. Ao longo de mais de 400 páginas, o historiador espanhol explora documentalmente as convergências e divergências entre as principais potências com vínculos e interesses do devir daquela conflagração. A esse respeito, cumpre mencionar que o livro aborda detalhadamente as percepções, as prioridades e as políticas instituídas pela Alemanha de Hitler, pela Itália de Mussolini, pelo Portugal de Salazar, pela União Soviética de Stalin, pela França de Blum, pelo Reino Unido de Baldwin e de Chamberlain e, em menor medida, também pelos Estados Unidos de Roosevelt e pelo México de Cárdenas. Evidentemente, Berlim, Roma e Lisboa apoiaram de forma alta e crescente o esforço bélico do lado franquista; Moscou e, modestamente, Paris ajudaram o lado republicano-democrático. Outrossim, o livro questiona duramente a atitude ambivalente e, finalmente, favorável ao franquismo, do governo inglês.

A dimensão endógena da guerra civil espanhola é explorada de forma menos intensa. Mesmo assim, personalidades e organizações políticas, sociais e militares de diferentes orientações ideológicas são discutidas com propriedade e equilíbrio. Lembremos que o conflito espanhol foi particularmente complexo ao envolver atores com uma imensa e polarizada diversidade de propostas e alternativas, inclusive os seguintes: socialistas, republicanos, comunistas, falangistas, monarquistas, anarquistas, ruralistas, integristas católicos, regionalistas (catalães e bascos), e militaristas.

E da interconexão das dimensões endógena e exógena da guerra civil surge, vale reiterar, uma obra paradigmática. Em outras palavras, o livro de Viñas é uma obra magistral, e seus resultados são mais que satisfatórios.

Na conta dos aspectos problemáticos ou negativos, mencionem-se fundamentalmente algumas ponderações excessivamente desdenhosas que o autor do livro utiliza para criticar as publicações de autores pós-franquistas. Salvo melhor interpretação, essa tentativa de caçoar ou denegrir o trabalho alheio – mesmo quando se trata de publicações acadêmicas de desafetos – acaba sendo um despropósito.

Em conclusão, a obra de Ángel Viñas é sumamente importante, inclusive para os autores brasileiros. Em consequência, fazemos votos de que esse livro seja eventualmente traduzido para o português. E que sua leitura incentive novas pesquisas de historiadores brasileiros sobre um assunto de grande relevância e, a meu ver, pouco investigado nos arquivos do País.

Carlos Federico Domínguez Avila – Doutor em História das Relações Internacionais, Docente do Mestrado em Ciência Política do Centro Universitário Unieuro e do Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília – UNICEUB.

Caricatura y poder político. Crítica, censura y represión en la ciudad de México, 1876-1888 – GANTÚS (H-Unesp)

GANTÚS, Fausta. Caricatura y poder político. Crítica, censura y represión en la ciudad de México, 1876-1888. Ciudad de México: El Colégio de México, 2009, 441 p. Resenha de COSTA, Alexandre Andrade da. Caricatura y poder político. Crítica, censura y represión en la ciudad de México, 1876-1888. História [Unesp] v.30 no.1 Franca Jan./June 2011.

O renovado interesse dos historiadores no que concerne ao estudo das imagens, tema que ganhou novo ânimo devido à transformação ocorrida no campo historiográfico a partir dos anos 1970 e 1980, torna a leitura desta obra, ainda não traduzida, mais que oportuna. Os estudos culturais que, a partir de então, tomaram as diferentes formas de mídia não mais como mecanismo de comprovação de teses previamente estabelecidas mas, principalmente, como fonte primária que poderia contribuir para a compreensão das formas de atuação dos distintos grupos no espaço público, encontraram na iconografia um manancial de problemáticas e questionamentos.

A imprensa, diferentemente do que ocorreu no Brasil, onde só foi permitida no século XIX, esteve presente na história do México desde o século XVI. Todavia, as primeiras caricaturas, tema central do livro, surgiram somente na primeira metade do século XIX, por volta de 1847. A partir de então, elas foram utilizadas pelos diversos periódicos que circulavam na capital, ora para reforçar, ora para minar o poder estabelecido.

A preocupação precípua da autora nas páginas iniciais é explicar a periodicidade e a especificidade do objeto por ela analisado: as caricaturas. No que se refere à primeira questão, o livro trata da imprensa durante a etapa tuxtepecana, de 1876 a 1888, marcada pela chegada do general Porfírio Díaz ao poder.

Fausta Gantús apresenta, no que concerne à singularidade do gênero estudado, uma elaborada apreensão do que significa trabalhar com uma fonte complexa como a caricatura. De acordo com a autora,

[…] la caricatura es aquí un documento fundamental, cuya lectura y desciframiento permite entender la época en estudio observando las dinámicas de los enfrentamientos facciosos por el usufructo del poder y el papel que desempeñaba la prensa como parte de la estrategia de esas luchas entre grupos rivales; igualmente, es un recurso que permite descubrir la forma en que se generaban determinados imaginarios en torno de ciertas personalidades del momento. Asimismo, desde la sátira y el humor, posibilita el análisis de los discursos oficiales y contestarios y el develamiento de los intríngulis políticos (p. 19).

O livro é dividido em sete capítulos, sendo o último reservado às conclusões. No primeiro deles, La caricatura política en la prensa periódica de la Ciudad de México 1876-1888, Gantús insere o leitor nos debates políticos que mobilizaram intelectuais e caricaturistas na luta por um projeto de poder e de país que se utilizaram da imagem para forjar realidades com o fim de produzir e controlar os imaginários coletivos.

Uma questão fundamental discutida pela professora do Instituto de Investigaciones Dr. José María Luis Mora/México é a recepção desse material pela opinião pública mexicana, assunto problemático nos estudos de história da imprensa em virtude da falta de dados que comprovem como os indivíduos liam ou reagiam a determinados textos ou imagens. As caricaturas demandavam, para serem compreendidas, certo conhecimento das personagens envolvidas e ainda de questões relacionadas ao campo político, à cultura e à sociedade em geral.

Partindo dessa premissa, Gantús atribui dois prováveis níveis de leitura da referida iconografia a partir do capital cultural do leitor: o primeiro era composto por pessoas que se fixavam no sentido imediato da imagem, mais simplista; enquanto o segundo, compunha-se daqueles esclarecidos e engajados, que apreendiam as sutilezas e as mensagens implícitas que a imagem trazia a partir de sua visão de mundo.

No segundo capítulo, intitulado Los caricaturistas: trazos que dibujan filias y fobias, a autora discute o papel dos responsáveis pela criação dos desenhos que tinham por objetivo forjar realidades. Os caricaturistas mexicanos do século XIX eram homens de pouco dinheiro, sem reconhecimento social (diferentemente do que ocorria com os outros profissionais que trabalhavam em periódicos) que, compondo um grupo heterogêneo, tinham os traços determinados pelos proprietários dos órgãos aos quais se associavam. A autora elencou os nomes do “seleto grupo de engenhosas armas” (p. 106) e seus respectivos periódicos o que denota a preocupação em traçar um perfil do local de onde publicavam e de seus temas diletos.

Entre os citados, Gantús confere destaque a Daniel Cabrera, responsável pelas maiores críticas a Porfírio Díaz e preso inúmeras vezes, como consequência. Ele assinava suas obras com o pseudônimo Fígaro e, assim como o restante dos caricaturistas que tinham na figura presidencial seu principal tema, dedicou-se a dissecar as relações da cúpula do poder mexicano nesse início da profissionalização da profissão.

A relação entre o poder, os símbolos que o constituem e os governantes foi a temática discorrida no capítulo três, De la proclama tuxtepecana a la idea del ‘hombre necesario’. La construcción de imaginarios a través de la caricatura política. A autora utilizou os conceitos de Maurice Agulhon para demonstrar que diferentemente dos símbolos que conferiam poder e status aos goverantes, “[…] la caricatura se vale de los mismos recursos que avalan al poder pero para enfrentarlo y cuestionarlo”, (p.150).

As análises dos significados conferidos à cadeira presidencial, objeto de desejo, e da espada do general Porfírio Díaz, símbolo polissêmico, constituem o cerne do capítulo no qual Gantús descreve as caricaturas com um rigor metodológico substancial demonstrando como elas serviram aos críticos do governo porfirista. Uma vez na presidência, ao suceder Lerdo de Tejada, Díaz foi mostrado pelos caricaturistas como

[…] una persona de escaso brillo intelectual y un usurpador ambicioso; o lo que es lo mismo como un hombre ignorante, en algunos casos casi se le representaba como un tonto, y un tirano y así se le pintaba de manera franca y explícita (p. 190).

A Constituição do México não permitia a reeleição, projeto pelo qual Díaz se batera antes da chegada ao poder. Assim, uma vez concluído seu mandato, o general tratou de afiançar a candidatura de um aliado no intuito de que este último lhe devolvesse a cadeira, no quadriênio posterior. Esse aliado foi Manuel Gonzáles, “su compadre” (p. 195) que deu continuidade às políticas repressoras ao campo jornalístico.

Intitulado Las políticas de Lerdo, Díaz y Gonzalez en torno a la prensa, o quarto capítulo denota o esforço da autora em tecer uma análise comparativa dos governos dos três presidentes mexicanos no que se relaciona às mídias e às práticas repressoras. A partir dessa diretiva, Fausta Gantús conclui que havia uma permanência de disposições contrárias à liberdade de expressão iniciadas com Lerdo de Tejada, que enviou à prisão inúmeros jornalistas, e teve como corolário as sanções aplicadas por Díaz, que em um só dia emitiu ordens para que fossem presos redatores de sete publicações diferentes.

O governo ainda estimulou a criação de outros periódicos que combatessem os da oposição propugnando que a imprensa se combate a partir da própria imprensa, além de impedir que os dissidentes tivessem acesso ao papel, praxe no que se referia às relações entre a mídia impressa e o poder.

As ações governamentais regulatórias são demarcadas no capítulo cinco, Los marcos legal y jurídico para la instrumentación de una política de censura. El triunfo del gobierno sobre la prensa, no qual Gantús delineia que medidas foram implementadas e de onde elas emanaram. O governo mobilizou sua força na Câmara e no Senado para, sob o manto da legalidade, remover os obstáculos que o impedia de obter o comando da (in)formação da população mexicana.

Ambas as casas, pilares do regime democrático, concordaram em modificar um ponto específico do sétimo artigo da Constituição que sustentava a liberdade de expressão. A principal alteração ocorreu nas garantias que os acusados detinham quando sujeitos a um processo: ao invés de haver um foro próprio para os supostos delitos, a emenda de Díaz propunha que eles fossem julgados por tribunais comuns. Ainda no governo de Manuel Gonzáles, o projeto foi aprovado.

Quando Porfírio Díaz retornou ao poder, os mecanismos de censura estavam já instalados e seu papel foi o de impor aos inimigos a força da lei. Vários periódicos deixaram de circular vítimas da “psicologia”, mote das explanações propostas no penúltimo capítulo, ‘La psicología’ o la revancha de la prensa con caricaturas. Entre el recurso legal represivo y la estrategia contestataria, 1885-1888. Nele, há a discussão sobre o destacado papel que os juízes teriam no que se referia à repressão aos crimes de imprensa. De acordo com a autora,

Con base en el análisis de los alegatos legales, podemos definir a la función psicológica como la facultad que dejaba al arbitrio de los jueces la estimación de posibles motivaciones e intenciones que pudieran primar detrás de determinados actos y, en circunstancias particulares, conferirles carácter delictivo (p. 337).

Ao atuar dessa maneira, o juiz seria capaz de ‘captar una realidad más profunda’ (p. 347), uma vez que, ao submeter o periódico, o texto ou a caricatura, que eram, em si, as evidências dos crimes, ele inferiria as intenções dos autores num processo que Gantús compara ao descrito por Carlo Ginzburg quando este autor trata do paradigma indiciário e da busca por sinais, rastros, fios que remeteriam o leitor atento ao detalhe perdido.

Não obstante as tentativas de coerção, Gantús recordou que a caricatura cumpriu seu papel. Por meio dos trabalhos dos artistas do traço, a autora

[…] encontró los espacios para elaborar un discurso de cuestionamiento que hiciera frente a las políticas gubernamentales tendientes a censurar y limitar la libertad de imprenta, cobijadas al amparo de un marco legal y jurídico que permitía la represión sin menoscabar la legitimidad del régimen (p. 383).

Nas Reflexiones finales, a autora retoma as premissas essenciais que discutiu ao longo da obra, a saber: a metodologia de trabalho com as fontes iconográficas, a relação conturbada entre a imprensa e o governo mexicano. A despeito das emendas constitucionais e das violências que emanavam do poder Executivo, as críticas se fizeram presentes durante todo o governo de Díaz o que evidencia que as tentativas de instalar um regime que controle totalmente a mídia, apesar de recorrente na América Latina, é natimorta: sempre há resistências.

Este livro, em virtude das brilhantes ilações advindas da interpretação das caricaturas, da rigorosa sistematização das diversificadas fontes apresentadas em tabelas e gráficos e da pertinente bibliografia que serve de esteio às análises, contribui de maneira efetiva para o debate acerca das fontes iconográficas em história dialogando com distintas abordagens que se vinculam, concomitantemente, à História Política e à História Cultural.

Alexandre Andrade da Costa – Doutorando em História – Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Avenida Dom Antônio, 2100 Parque Universitário 19806-900 – Assis, SP – Brasil. E-mail: [email protected].

Giorgio Agamben: Poetry, philosophy, criticism / Alberto Pucheu

Ao se debruçar sobre o conjunto da obra de um dos maiores críticos literários da atualidade, o italiano Giorgio Agamben, Alberto Pucheu Neto, nessa monumental obra, esclarece e perscruta as sendas do processo de criação artística entre a relação que envolve a poética e sua imbricada conjunção com a filosofia, sem olvidar de como a crítica no mundo ocidental construiu seu arcabouço a partir da linguagem, do texto como elemento semântico e sintagmático de explicação do mundo, à medida que a razão instrumental ora recorria à poesia, ora se distanciava dela, enquanto mecanismo compungido de expiação do sentimento de descoberta do cosmos.

Essa é uma das razões pelas quais o pensamento filosófico e teórico do século XIX caracterizou-se pela invenção de uma escrita poético-teórica, ou seja, o processo de designação de uma linguagem responsável até pela própria criação dos sentidos, dando conta de uma explicação causal das coisas. Giorgio Agamben denuncia a separação ocidental entre filosofia e poesia. O que no princípio nasceu imbricado com os gregos, aos poucos se deslindava para uma ruptura da qual a poesia cada vez mais ficava resguardada não como mecanismo de elucidação do não revelado, mas como manifestação isolada de seus criadores, os poetas, como se suas conjunções expostas sob forma poética não contivessem em si um processo de exposição, até mesmo da linguagem. Para tanto, a crítica pode ser poesia e a poesia, crítica, segundo Pucheu, porque a suposta dicotomização entre ambas dificulta a compreensão de como a crítica, nasce a partir da poesia, instrumentalizando sua interpretação, assim como a crítica ao desvendar as filigranas da poesia, é, em sua essência, também poesia, estabelecendo intermediação, paralelismo, imbricação.

Para Alberto Pucheu, Giorgio Agamben aposta numa reconciliação de uma “teoria nela mesma literária”, a fim de encontrar a unidade da palavra despedaçada. A aposta reside em (PUCHEU, 2010, p. 20).

Lidar com a filosofia, a literatura e seus entornos interventivos a partir da busca incansável por uma nova modalidade de escrita, que reconcilie o cindido ocidental em um novo destino, é o projeto perseguido por Giorgio Agamben desde a primeira página de abertura de seu primeiro livro, quando assume a herança nietzschiniana de uma anunciada reversão de Kant.

A estética tornou-se um elemento da própria configuração instrumental da reflexão desgastada da própria arte. Propôs-se a ser maior que o ato da criação, de desapego às forças internas da criação para medir a transmissão e valor da obra. Ora, a obra não se resume ao seu resultado impresso, aquilo de que a crítica e a estética tentam dar conta, já que cada vez que se “retira um livro da estante para ler, outro livro, desse mesmo livro, permanece lá, para sempre invisível, para sempre ilegível”, na asserção do escritor egípcio Edmond Jabés, segundo Pucheu (2010, p. 56); afinal, toda obra escrita é apenas um prelúdio de uma obra ausente.

Outro problema colocado pela teoria literária do século XIX é a difícil desvinculação entre poesia e prosa — uma análise acurada da obra de Euclides da Cunha dá conta disso, afinal, as estruturas poéticas comportam diferenças de uma prosa que se proveu de elementos poéticos ao longo da história como estância criadora de sua narração, posto que a prosa contém em si elementos de sonoridade.

A sonoridade existente no processo de hibridização da prosa está contida em estâncias como a Versura do enjambement, ou como diria o próprio autor (PUCHEU, 2010, p. 76): A versura é o momento exato em que ela própria, enquanto disjunção, dá passagem e nascimento à articulação necessária dos versos. Assim, a versura do enjambement, fazendo a palavra retornar à sua origem criadora, manifesta a ideia do verso e, não menos, a ideia de linguagem: confundindo-se com ela, o poema, como um de seus lugares privilegiados, se fende em duas movimentações vazadas, a mostrar as duas forças intrínsecas a ele e a ela.

Ao evidenciar as diferenças entre poesia e história e poesia e cinema, o autor não se propõe a destacar a importância desta primeira em detrimento de qualquer outra forma de linguagem, expressão ou explicação do mundo; ao contrário, os mecanismos de legibilidade de linguagens como a histórica e a cinemática, ao se colocarem por vezes como não poesia, é que perdem sua força inextrincável não de explicação, mas de expiação dos sentidos, ou seja, aquilo que não pode ser explicado nem tudo pode ser explicado – deve ser intuído pelos sentidos, sorvido, consumido, compungido. Desta feita, Pucheu recorre à alusão feita pelo cineasta Abbas Kiarostami, que, afastando cinema de literatura e aproximando-a da poesia, se nega a aceitar um cinema que conte tudo, que explique didaticamente o sentido das coisas, que conte histórias. Para Abbas, a incompreensão faz parte da essência da poesia. O cinema deveria fazer a mesma coisa.

E quanto à história? Essa, por seu turno, no afã e desiderato de “explicar” tudo, ao ter se abastado da poesia e da literatura no século XIX, perdeu a sua força criadora, sua capacidade de imbricar-se nos mecanismos da existência humana pela dinamicidade da vida, por aquilo que, ainda que não realizado no plano do real vivido, nem por isso deixou de existir, tal como o livro que, tirado da prateleira, continuou a existir como preâmbulo de outro livro ainda não escrito. A história também se faz daquilo que se sentiu, daquele que se desejou, mesmo não efetivado no plano das relações objetivas.

Por essa razão é que Pucheu, no seu último e quarto ensaio, mostra as intrínsecas relações entre poesia e filosofia, mostrando como poetar e filosofar está carregado de sentidos e de uma captura da ou das existências. Para o autor, segundo o italiano Giorgio Agamben, “na busca de acesso a uma autêntica compreensão do problema da significação, o que está em jogo é a reflexão ocidental sobre o significar ou a linguagem. Entender esta questão é entender a necessidade de filosofar” (PUCHEU, 2010, p. 119).

Não à toa o autor culmina sua obra citando Hegel na sua explanação sobre o enigma na arte egípcia os diferentes níveis do simbolismo na arte, a superação das artes por outras artes, e o esforço de Édipo em decifrar o enigma da esfinge, ou seja, libertar a Grécia do que “ainda possuía de egípcio”, ou, “a vitória do humano sobre a naturalidade da animalidade presente na figura da Esfinge”, pletora vontade potente do herói civilizador moderno.

Giorgio Agamben e Alberto Pucheu Neto são interseccionais. O pensamento dos dois se funde nessa obra reveladora de como a trajetória de um pensamento instrumental ocidental pode levar a existência humana a um aprisionamento de um tipo de linguagem. Ser interseccional é romper com a atomização dos sentidos, com o encaixotar das formas de expressão, é perceber o mundo através das suas múltiplas formas sem encerrá-las em seus sentidos estanques, é enxergar o que de filosofia existe na poesia e o que de poesia contém a substância filosófica, é retornar para casa, para quando homens e mulheres se preocupavam em existir desvelando os mistérios, e não meramente afirmar que até os mistérios são criações da linguagem, como se antes da linguagem existisse o nada.

A poesia e a filosofia não são turistas, são viajantes. O turista quer chegar ao seu destino de qualquer forma, ele quer chegar. O viajante está preocupado com o caminhar, com o processo. Ele se descobre no percurso.

José Henrique de Paula Borralho – Universidade Estadual do Maranhão – EMA São Luís, Maranhão – Brasil. E-mail: [email protected].


PUCHEU, Alberto. Giorgio Agamben: Poetry, philosophy, criticism. Rio de Najeiro: Beco do Azougue, 2010. 168, p. Resenha de: BORRALHO, José Henrique de Paula. Outros Tempos, São Luís, v.8, n.11, p.341-344, 2011. Acessar publicação original. [IF].

 

A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica – REPA (C-FA)

REPA, Luiz. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008. Resenha de: MATTOS, Fernando Costa. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.15 Jan./Jun., 2010

A transformação da filosofia em Jürgen Habermas, de Luiz Repa, é um livro que anuncia no título o seu escopo mais geral: analisar as transformações por que passa, ao longo da obra de Habermas, a compreensão que este tem da filosofia. E o subtítulo, por seu turno – os papéis de reconstrução, interpretação e crítica –, indica desde logo as principais balizas desse caminho de transformação: essas três noções-chave, que se vão incorporando gradativamente ao conceito habermasiano, permitirão compreender o lugar da filosofia em seu pensamento, até pelo menos o final da década de 1990.

Com isso, Repa poderá chamar a atenção do leitor – e este é talvez um dos grandes méritos de seu livro – para a centralidade que a filosofia assume na obra do filósofo Habermas, tornando a princípio insustentáveis as acusações segundo as quais o “sociólogo” Habermas reduziria a filosofia a um mero apêndice das ciências sociais.1

Não há de ser fortuito, por sinal, que Luiz Repa inicie seu livro com uma citação d’ O discurso filosófico da modernidade em que Habermas se reporta à oposição kantiana entre os conceitos acadêmico e mundano de filosofia 2 : é um ótimo ponto de partida para quem quer explicar a posição filosófica habermasiana em termos propriamente filosóficos, extraídos daquele que seria, embora sem ter a consciência disso (segundo Habermas), o inaugurador do discurso filosófico da modernidade. A noção de “diagnóstico de época”, por exemplo, desde o princípio tão cara à teoria crítica, se deixaria explicar em associação com tal conceito mundano de filosofia, estando já em Kant, pois, a percepção da necessidade, colocada para todo filósofo autenticamente moderno (ou contemporâneo), de “filosofar” com os olhos voltados ao “mundo”, i.e. à sociedade humana em sua inscrição espácio-temporal. De outro lado, o conceito acadêmico de filosofia seguiria denotando a filosofia enquanto especialidade universitária, a qual pendeu cada vez mais, com o passar do tempo, a um estudo da história da filosofia que, embora rigoroso, tenderia a mostrar-se descompassado em relação ao momento presente.3

Essa menção inicial a Kant não tem por objetivo, evidentemente, o perfilamento de Habermas no pelotão dos filósofos modernos e contemporâneos, como se ele fosse apenas mais um sistema de pensamento. O que o impede de cair nessa armadilha é a outra filiação decisiva, mencionada por Luiz Repa na sequência: a tradição hegelo-marxista de crítica da ideologia, segundo a qual o papel da filosofia é essencialmente crítico, negativo, e não positivo.4 É certo que ela se pauta por um “interesse emancipatório” que já nos anos 1960 Habermas opunha aos interesses técnico (próprio das ciências da natureza) e prático (próprio das assim chamadas ciências do espírito), 5 mas esse, digamos, princípio regulativo só se deixa realizar na medida em que a filosofia se constitua por oposição aos discursos positivos que bloqueiam a possibilidade da emancipação.

Ao fazê-lo, porém – e aqui se mostra aquele que é, talvez, o grande paradoxo de toda filosofia após Hegel –, a filosofia não pode (como pareceu querer Adorno) ficar na mera negatividade: ela tem de construir, ou na verdade reconstruir, os padrões normativos racionais que, na realidade efetiva das transformações sociais, apresentaram-se associados à luta pela emancipação. Não é ao filósofo, nesse sentido, que cabe ditar, positiva e soberanamente (tal como faziam os filósofos clássicos), qual o caminho a seguir; é a própria sociedade quem deve indicá-lo, a partir de conflitos concretos em que os aspectos comunicativos da racionalidade buscam afirmar-se contra os meramente instrumentais.

Assim, a nova função do filósofo está ligada à capacidade de identificar, nessa reconstrução que faz da sociedade moderna, tanto os potenciais emancipatórios como os obstáculos que se apresentem à sua realização. Para identificá-los, contudo, ele necessita do instrumental teórico oferecido pelas ciências que, por meio de pesquisas empíricas, permitem tornar muito mais preciso aquele “olhar para o mundo” de que já o velho Kant nos falava e que, na tradução contemporânea, passou a denominar-se com frequência um “diagnóstico de época”. É por este viés, com efeito, que Luiz Repa nos permite compreender, com razoável clareza, a nada simples relação entre filosofia e ciência no pensamento habermasiano: o tal trabalho reconstrutivo que é agora exigido do filósofo passa tanto (1) pela identificação dos pressupostos normativos que, sob a forma de pretensões universalistas, constituem a base das lutas concretas pela emancipação (“reconstrução horizontal”) como (2) pela demonstração de como esses mesmos pressupostos puderam constituir-se sob condições empíricas (“reconstrução vertical”).

Nas palavras do próprio autor,

com a idéia de uma divisão de trabalho ‘não exclusivista’ entre filosofia e ciência, as reconstruções vertical e horizontal se implicam, de modo que, para a filosofia, resulta a possibilidade de se apoiar em estudos empíricos para o estabelecimento de suas pretensões de validade. Ou seja, articula-se uma concepção falibilista para as reconstruções filosóficas, a qual é contraposta a toda ideia de fundamentação última.6

De certo modo, estão dados aí os dois aspectos mais gerais do desafio teórico colocado para Habermas e, por extensão, para Luiz Repa na reconstrução do percurso trilhado pelo filósofo: a possibilidade de um apoio na empiria e o distanciamento das fundamentações últimas. São essas duas exigências, com efeito, que pautam tanto o diálogo de Habermas com seus críticos como as transformações conceituais com que ele responde a essas críticas: deixando de lado uma compreensão da filosofia como crítica da ideologia e da ciência – vista então como ideológica, na esteira da tradição marxista frankfurtiana 7 –, Habermas se verá forçado a ampliar a sua concepção de racionalidade, nos anos 1970, para dar conta dos potenciais emancipatórios que, segundo permitiam notar as ciências sociais de base empírica, estariam contidos no interior da própria evolução do sistema capitalista, da ciência e da técnica 8 – uma carência de seu pensamento para que críticos como Bubner haviam apontado.9 Em seguida, a presença de elementos ainda muito fortes, do ponto de vista da fundamentação filosófica, no interior da compreensão nascente de uma racionalidade – elementos como a “comunidade ideal de fala”, duramente criticada por Wellmer –, acabaria por conduzir Habermas a mitigar ao máximo os “elementos horizontais” de sua filosofia, falando de um “transcendental fraco” para contrapor-se a Karl-Otto Apel.10 E a sensível dificuldade de efetivar tal mitigação, por seu turno, acabaria por levá-lo a sofisticar ao máximo aquela relação entre as reconstruções horizontal e vertical dos pressupostos normativos da linguagem – linguagem cujo protagonismo, em função da influência da filosofia analítica, iria acentuar-se cada vez mais.

É na reconstituição desses deslocamentos habermasianos, assim, que Luiz Repa constrói o seu próprio percurso, alinhando os capítulos do livro aos sucessivos períodos e temas por que passou a compreensão habermasiana da filosofia e de sua relação com a ciência.11 Da “filosofia como crítica da ciência” (capítulo 1) à “filosofia como interpretação mediadora” (capítulo 4), passando por “um conceito complexo de racionalidade” (capítulo 2) e pela “filosofia como ciência reconstrutiva” (capítulo 3), somos levados a acompanhar e, em razoável medida, a compreender tanto as referidas transformações como a permanência de certos ideais metodológicos e o gradativo estabelecimento – basicamente, dos anos 1960 aos 80 – de uma posição a eles mais conforme: deixando para trás toda pretensão veritativa de um discurso filosófico positivo, quiçá capaz de fundamentar os pressupostos teóricos extraídos da linguagem por meio da reconstrução vertical, Habermas passaria a enfatizar o caráter falibilista de seu próprio discurso reconstrutivo, o qual buscaria equilibrar-se sempre entre os pontos de vista descritivo e normativo com vistas à elaboração de uma compreensão efetivamente crítica das sociedades modernas, pluralistas e pósindustriais.12

De certo modo, é essa a resposta tardia de Habermas à grande dificuldade da filosofia desde meados do século XIX (“somos contemporâneos dos jovens hegelianos”, diz ele na resposta a Henrich 13 ): entre o dogmatismo subjetivista com que ainda Kant, segundo ele, pretenderia acessar se não o mundo, pelo menos as estruturas últimas do sujeito transcendental, e o relativismo antirracionalista que sobretudo a partir de Nietzsche identificaria toda racionalidade à dominação, o transcendentalismo falibilista de sua filosofia reconstrutiva, maximamente ancorado nos movimentos sociais, de um lado (as tendências emancipatórias inscritas na própria efetividade), e nas pesquisas empíricas, de outro (as contribuições decisivas das ciências sociais ao novo discurso filosófico), permitiria resolver em nova chave o velho desafio kantiano de sair do dogmatismo sem cair no ceticismo (absoluto). Afinal, seria possível falar em pressupostos normativos sem conservar os fardos metafísicos da filosofia da subjetividade, e sem ceder inteiramente o terreno aos positivistas dogmáticos que, desconfiados de todo e qualquer pressuposto não verificável, enterrariam de vez as esperanças da filosofia.14

A saída é engenhosa, e o livro de Luiz Repa, bastante persuasivo. Não obstante, há questões que parecem teimar em persistir. Que o seu falibilismo, por exemplo, guarde estreito parentesco com a solução dada por Kant às idéias da razão e ao juízo reflexionante, é algo que o próprio Habermas não hesitaria em admitir. Ora! A depender da leitura que fizermos de Kant, contudo – enfatizando os elementos regulativos em detrimento dos constitutivos –, pode ser que a diferença se torne tão pequena que sejamos levados a questionar o alcance dessa aparente revolução copernicana a que Habermas, inspirado no modelo kuhniano de história da ciência, dá o pomposo nome de uma “mudança de paradigma”.15

É também discutível, nesse mesmo sentido, se a nova metafísica pretendida por Kant – e que, como se sabe, está longe de resumir-se à analítica transcendental – encaixa-se no conceito de metafísica que Habermas acredita ter sido ultrapassado no “pensamento pós-metafísico”.16 Se tivermos em vista as reflexões de Kant nos Prolegômenos, por exemplo, em que ele se põe a considerar o que será da metafísica no futuro, salta aos olhos o caráter meramente problemático e hipotético – leia-se falibilista – de uma série das ideias que serão centrais a esse novo saber. Note-se que também aqui não se trata de questionar a engenhosidade da solução habermasiana, mas apenas o seu grau de novidade e transformação paradigmática: a depender de como interpretemos o conceito de metafísica no cenário pós-kantiano, o que Habermas faz é radicalizar a problematicidade que desde o princípio marca esse conceito.17

Isso, de qualquer modo, se estiver correto o peso dado por Luiz Repa à filosofia, por meio dos conceitos de reconstrução, interpretação e crítica, no interior do pensamento de Habermas.

Pois caso se reduzisse esse peso, como querem alguns, haveria o risco nada pequeno, apontado também por Dieter Henrich, de a filosofia ver-se engolida pelas ciências sociais empíricas e contaminada pelo positivismo destas últimas. Mas neste ponto parece acertada a insistência de Repa em assinalar a “dependência recíproca” em que Habermas enxerga as relações entre a filosofia e as ciências:

Quanto mais houver uma cooperação feliz entre ciência e filosofia, tanto mais poderemos, na esfera do discurso teórico, ter razões para aceitar – ainda que por enquanto – propostas teóricas fortemente universalistas. O que surge não é, entretanto, uma dependência da filosofia em relação à ciência, mas uma “dependência recíproca”, uma vez que as ciências reconstrutivas de tipo experimental (…) precisam, por sua vez, das abordagens reconstrutivas filosóficas como uma espécie de medida de processos evolutivos.18

Resta saber, naturalmente, se de fato funcionam assim, em regime de “cooperação feliz”, as relações entre as ciências e a sua “ex-mãe”. Antes disso, porém, é preciso entender melhor o modo como o próprio Habermas as enxerga. E o livro de Luiz Repa, quanto a isso, nos indica certamente um bom caminho.

Notas

1.Entre tais acusações, valeria destacar aquela que é feita por Dieter Henrich no artigo “O que é metafísica? O que é modernidade? Doze teses contra Jürgen Habermas”. in: Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n. 14, p 83-117, jul.-dez,.2009.

  1. REPA, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008, p. 13.

3 Idem, ibidem.

4 Idem, p. 15.

5 Idem, p. 14.

6.Idem, p. 17.

  1. Idem, pp. 76 e ss.
  2. Idem, pp. 85 e ss.
  3. Idem, p. 71 (nota 151).

10.Idem, p. 166 e ss.

11 Cf. idem, p. 229.

12 Idem, p. 175.

13 HABERMAS, J. “Retorno à metafísica – uma recensão”. In: _____. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002 (2ª.ed.), p. 269.

14 REPA, L.A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica, p. 217 e ss.

  1. É o que faz Dieter Henrich em “O que é metafísica? O que é modernidade”?”. Henrich, D. “O que é metafísica? O que é modernidade?”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n. 14, p. 101-3.
  2. Cf. HABERMAS, J.Pensamento pós-metafísico, p. 14-5.
  3. Cf. =ies, C. Der Sinn der Sinnfrage. Metaphysische Reflexionen auf kantianischer Grundlage. Munique: Alber, 2008, pp. 58-65.
  4. REPA, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica, p. 177

Fernando Costa Mattos – Doutor em filosofia pela USP, desenvolve atualmente pesquisa de pós-doutorado, com bolsa da FAPESP, junto ao Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP.

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Cinismo e Falência da Crítica – SAFATLE (FU)

SAFATLE, V. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. Resenha de: ROCHA, Rubens José da. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.3, p.345-347, set./dez., 2009.

Dialética Cínica

Hegel, Weber, Adorno, Lacan, Lyotard, Deleuze, Searle, Sloterdijk, Agamben e Zizek são alguns contrapontos teóricos que permitem a Vladimir Safatle compor, no livro Cinismo e Falência da Crítica, um vasto campo de coordenadas históricas para validar a tese sobre o cinismo como “categoria adequada” para análise de “formas hegemônicas de vida na fase atual do capitalismo”. A passagem abaixo exprime claramente a estratégia de argumentação presente nos seis ensaios que compõem o livro:

Partindo da noção de forma de vida como conjunto de sistemas de ordenamento e justificação de processos de interação social nas esferas do trabalho, do desejo e da linguagem, este livro procura insistir na convergência de mutações profundas que ocorrem nos modos de socialização do desejo, assim como nos modos de reprodução material da vida e de constituição de critérios de funcionamento e crítica da linguagem (Safatle, 2008, p.201).

O primeiro ensaio, Dialética, Ironia, Cinismo, propõe um recenseamento da crítica de Hegel à ironia romântica e aos modos de interversão cínica da lei, sugerindo um encaminhamento dialético para a tese central sobre o cinismo. De acordo com Vladimir, a racionalidade cínica deixa transparecer uma estrutura pautada pela estabilização da passagem incessante da norma para a infração, criando um estado de anomia que Hegel define como interversão da lei social (Umschlagen).1 A estabilização desse estado de anomia permite aos agentes sociais legitimar a ação cínica de maneira explicitamente contraditória com o seu fim, como se a norma que a regula portasse em si mesma, no momento de sua aplicação, o elemento transgressivo que a nega. Uma contradição que dá origem à flexibilidade identitária das formas de vida hegemônicas nas sociedades de consumo, capaz de dissolver perversamente os conflitos gerados pela lógica capitalista.

Em virtude desta contradição, o segundo ensaio, Was Ist Zynismus, mostra a pertinência da fórmula cínica de Sloterdijk “eles sabem o que fazem, e continuam a fazê-lo” (Safatle, 2008, p.69). Invertendo a fórmula de Marx, “eles não sabem, mas o fazem”, a fórmula cínica aponta para a obsolescência de categorias como reificação e alienação da falsa consciência, quando se trata de compreender os processos de racionalização nas sociedades de consumo. Esta obsolescência se deve ao fato de a contradição legitimada do comportamento cínico já não implicar, como supõe a fórmula de Marx, o desconhecimento do princípio objetivo que orienta a ação social. Tanto o princípio objetivo quanto o sentido da ação são transparentes à racionalidade cínica, embora esta negue voluntariamente o princípio que a orienta. Esta consciência da contradição é o que permite definir a ideologia cínica, não imediatamente pelo que se pensa, mas antes pelo o que se faz:

Poderíamos aqui concordar com Slavoj Zizek e afirmar que tudo isso só demonstra como a fórmula cínica ignora que o desconhecimento ideológico não está na dimensão do “saber” da consciência, mas na estruturação das condições de significação da práxis, ou seja, na dimensão do “fazer” (Safatle, 2008, p.83).

No terceiro ensaio, Sobre um Riso que não reconcilia, o cinismo aparece sob a forma da identificação irônica ou do humor, isto é, como figura da ação social que constrói seus padrões de racionalidade com base em um pretenso poder de aniquilamento da lei. Observa-se aqui um esforço de articular as formas de identificação social, os modos de ironização do sentido no ato de enunciação e a torção performativa do sentido pela ação. A articulação entre estas três esferas, que refletem a relação entre trabalho, linguagem e desejo, será retomada ao longo de todo o livro até o clímax do penúltimo ensaio, Sexo, Simulacro e Políticas da Paródia. Assim como as identificações irônicas, a ironização do sentido é um sintoma específico do que, numa dimensão social mais ampla, aparece como polimorfismo da crítica, transformada em falsos atos de perversão da lei social.

Analogamente à racionalidade cínica, o modelo clássico de crítica é considerado um exemplo de “ideologia que pode funcionar exatamente por não se tomar a sério” (Safatle, 2008, p.100). A crítica não conseguiria escapar à lógica performativa da contradição cínica pelo fato de esta já supor, como dispositivo interno de legitimação, a transparência da inadequação entre a práxis e o princípio que a fundamenta. Portanto, ao integrar o dispositivo de legitimação da racionalidade cínica, a busca da crítica pela transparência da totalidade dos mecanismos de produção do sentido, que tem por objetivo apontar para o erro, a ilusão ou a insinceridade da intenção, confrontando-a com a ação ou com os atos de fala que supostamente a enunciam, deixaria de cumprir a promessa de transformar as estruturas sociais, impedindo seus agentes de formular uma saída para o impasse criado pelo estado de anomia social.

Dialética, Weber e Lacan

No primeiro ensaio da segunda parte, Por Uma Crítica da Economia Libidinal, Vladimir propõe um novo recenseamento, desta vez a fi m de ressignificar a dimensão social de alguns conceitos-chave da teoria das pulsões de Freud. Em linhas gerais, o autor apresenta aqui uma teoria social de dupla orientação, Adorno e Lacan, que procura mostrar como a validação material do consumo desarticula tanto os dispositivos ideológicos da ética do trabalho (Weber), como os imperativos repressivos fundamentados na figura do supereu paterno (Freud), cedendo lugar a uma nova figura da ação social, que Lacan define como supereu materno. Ao conjugar-se com a plasticidade da forma mercadoria, o supereu materno regula, através de uma ética do gozo, as expectativas de satisfação do desejo nas sociedades de consumo, determinando as formas de racionalidade que se colocam a serviço de uma lógica de administração do desejo. O autor defende, a partir daí, que, aliada à ética do gozo, a interversão cínica transformou-se “na verdadeira mola propulsora da economia libidinal da sociedade de consumo” (Safatle, 2008, p.128). Este passo teórico permite-lhe descrever as principais mudanças estruturais que, a partir da década de 1920, desencadearam a transformação dos padrões de racionalidade que orientam os modos de socialização do desejo.

Assim, essa ironização absoluta dos modos de vida com sua lógica de autonomização da aparência nada mais é do que a posição subjetiva que internalizou a desvinculação geral entre imperativo de gozo e conteúdos normativos privilegiados a essa nova figura social do supereu (Safatle, 2008, p.134).

No último ensaio, o cinismo aparece como sintoma do esgotamento da autoprodução crítica da cultura. Ao ignorar que a natureza contraditória da racionalidade cínica já não supõe a adequação da intenção ao valor ou à norma, mas se alimenta da própria impossibilidade de adequação, como modo de legitimação de suas práticas discursivas, o modelo clássico de crítica esgotaria também seu poder de orientar as exigências de racionalidade no campo da produção estética. Aplicada às formas de fetichização do desejo, a crítica camufla a contradição legitimada da racionalidade cínica que, mesmo nos momentos mais sublimes de transgressão, como na música de Arnold Schoenberg, não é capaz de abandonar completamente os valores supostamente aniquilados, como o demonstrará mais tarde a reincidência do sistema tonal na flexibilidade paródica de John Adams e Thomas Adès.

Notas

1 “Action itself is this inversion (Verkehrung) of what was known into its contrary, into what is; it turns the law of character and knowledge into the law of their opposite [Umschlagen], with which the former is bound up in the essence of the substance” (Hegel, 2008, p.667).

Referências

HEGEL, G.W. 2008. The Phenomenology of Spirit. Disponível em: http://web.mac. com/titpaul/Site/Phenomenology_of_Spirit_page.html, acesso em: 09/12/2009.

Rubens José da Rocha – IFAC-UFOP. Ouro Preto, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

Historiografia contemporânea em perspectiva crítica | Jurandir Malerba e Carlos Aguirre Rojas

Apresentar os caminhos do pensamento histórico e de sua escrita no século XX. Esta é a proposta da obra aqui resenhada. Obviamente, o século XIX não pode ser deixado de lado, pois dele procede a matriz historicista, metódica, cientificista que transformou a história numa área acadêmica. Como demonstram diversos capítulos do próprio livro, essa matriz foi universalizada conjuntamente com a expansão da cultura ocidental européia.

Uma das grandes contribuições dos organizadores foi, todavia, demonstrar campos historiográficos muito além do eixo europeu. Ele está presente, claro, nos artigos sobre a recente movimentação historiográfica na França pós-crise dos Annales, no excelente texto acerca da historiografia alemã, nas análises da micro-história italiana, do pensamento histórico espanhol e lusitano. Mas há também estudos sobre as novas tendências da historiografia russa e, especialmente, uma destacada ênfase na produção latino-americana. Em outras palavras, em que pese a influência européia sobre as outras regiões, ela, a Europa, se torna provicializada no decorrer da leitura. Leia Mais

Historiografia contemporânea em perspectiva crítica | Jurandir Malerba

Apresentar os caminhos do pensamento histórico e de sua escrita no século XX. Esta é a proposta da obra aqui resenhada. Obviamente, o século XIX não pode ser deixado de lado, pois dele procede a matriz historicista, metódica, cientificista que transformou a história numa área acadêmica. Como demonstram diversos capítulos do próprio livro, essa matriz foi universalizada conjuntamente com a expansão da cultura ocidental européia.

Uma das grandes contribuições dos organizadores foi, todavia, demonstrar campos historiográficos muito além do eixo europeu. Ele está presente, claro, nos artigos sobre a recente movimentação historiográfica na França pós-crise dos Annales, no excelente texto acerca da historiografia alemã, nas análises da micro-história italiana, do pensamento histórico espanhol e lusitano. Mas há também estudos sobre as novas tendências da historiografia russa e, especialmente, uma destacada ênfase na produção latino-americana. Em outras palavras, em que pese a influência européia sobre as outras regiões, ela, a Europa, se torna provicializada no decorrer da leitura. Leia Mais

Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês – KOSELLECK (RBH)

KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução de Luciana Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. Resenha de: MAGALHÃES, Marionilde Dias Brepohl de. Revista Brasileira História, São Paulo, v.21, n.42, 2001.

Obra de fundamental importância para o conhecimento da dinâmica interna do Iluminismo e da gênese do mundo burguês, Crítica e crise, publicada na Alemanha em 1953, é traduzida somente agora em língua portuguesa. Pretendendo desvendar a natureza do mundo contemporâneo, a obra pode ser lida também como importante contributo à Teoria da História.

Koselleck propõe-se a demonstrar como a Filosofia da História, produção intelectual elaborada no século XVIII, não apenas justificou a ascensão da burguesia, como também inaugurou uma nova percepção do mundo, do mundo em crise, algo que se estende desde a Revolução Francesa até a Guerra Fria. Esta percepção do mundo é elaborada através da Filosofia da História, que cria a prospectiva utópica.

Nesta tese, o autor procurará associar análises relevantes da produção intelectual do XVIII, sem fazer, contudo, uma História das Idéias (Geistgeschichte). O movimento das idéias lhe interessa apenas na medida em que desvele o incidente político. Interessam-lhe menos as genealogias ou as formas do pensamento organizado, e mais sua evidência política.

Seu tema versa sobre os filósofos das Luzes antes da revolução, seus atos e pensamentos, independentemente de serem eles pensadores eruditos ou meros autores de panfletos anônimos. Interessa-lhe destacar seus denominadores comuns: a abordagem heurística, que visa a elucidar a ligação entre a utópica filosofia da história e a revolução desencadeada em 1789, que reside na conexão pressuposta entre crítica e crise (p. 13).

Segundo ele, a conjuntura a partir da qual surgiram as Luzes não explica as mudanças ocorridas no século XVIII. O que mudou foram as circunstâncias: o Estado estava se enfraquecendo na França, e por isso, em que pese o monarca continuar a decidir soberanamente, ele pareceu submeter-se às Luzes. No entanto, o Estado Absolutista permanece intacto até a Revolução Francesa1.

A crítica dos iluministas provocou a crise na medida em que o senso político lhes escapava. O espírito burguês do século XVIII transformou a História em um processo. Ao soerguerem como que um tribunal da razão, as Luzes passam a chamar às falas a Teologia, a História, a Arte, o Direito, o Estado e a Política. E, interessante, os filósofos das Luzes aplicaram o método divino à história (condenação/salvação). Submete-se o plano da salvação divina às Luzes.

Neste processo de secularização, o plano da salvação se torna o plano do futuro, moralmente justo e conforme a razão. Mas a moral (ética cristã secularizada) é estrangeira à realidade dada, e vê na ordem política uma determinação heteronômica que embaraça sua autonomia. Por isso, a salvação secularizada (doravante concebida como progresso) só pode se concretizar no futuro, pois a crítica é impotente diante das instituições estabelecidas. Por isso a história se reveste de uma perspectiva utópica.

Dois fatos importantes marcaram o início e o fim do Absolutismo: as guerras religiosas e a Revolução Francesa.

Na França, onde o Estado consegue muito cedo subjugar as guerras religiosas por meio de uma ação racional (pela política, porquanto o Estado logra eliminar todas as demais instituições autônomas em seu favor), constrói-se, de forma mais evidente, a doutrina da razão de Estado.

A razão de Estado pressupõe que a política pode ser tratada fora das considerações morais. Esta se desenha pela percepção de que as guerras religiosas são fruto da intolerância e da liberdade do povo para escolher entre esta ou aquela verdade moral.

Para que a paz seja estabelecida faz-se necessário, pois, que o soberano suprima a liberdade do povo em nome da própria paz.

Barclay2, já em 1605, confrontou o monarca com a seguinte alternativa:

Ou restituis a liberdade ao povo, ou lhe assegureis a paz interior, pela qual o povo sacrificou sua liberdade (…) Se o monarca admitisse oposição, sem dívida se libertaria de responsabilidades, mas carregaria a culpa por todas as agitações que nascessem da intolerância (…) ou fazia que todos se curvassem ou ninguém se submeteria (p. 22).

Mas não há, nestes escritos, a idéia de perda total da liberdade. A liberdade deve ser vivenciada no mundo interior. Nesta esfera, é o indivíduo mesmo que se julga, no refúgio de seu eu. Já o seu eu exterior é julgado pelos que dominam. Quem quer externar o que sua consciência diz, morrerá. Logo, a consciência é algoz de si mesma, pois é ela quem provoca a guerra religiosa.

Esta distinção entre vida exterior e vida interior faz com que se rompa a relação responsabilidade/ culpabilidade, constitutiva da consciência. Os súditos não tinham mais responsabilidade, apenas culpabilidade. A responsabilidade passou a ser apanágio do soberano.

Entretanto, para que o soberano domine, necessário se faz agir com eficácia: não lograr manter a paz é o limite de seu próprio poder. Por isto, necessita acumular poder, elaborar regras e jogos que só ele conhece e que não podem ser conquistados pela moral.

As guerras religiosas influenciaram decisivamente a Teoria Política de Hobbes. Ele funda uma antropologia individualista, ao afirmar serem para o homem bem problemáticos os vínculos sociais, políticos e religiosos, pois ele tende, inexoravelmente, ao apetite e à fuga, ao desejo e ao medo. Trata-se, pois, de uma teoria da guerra civil, donde se justifica a importância do Estado: o Estado de guerra pertence à natureza humana; a paz só existe enquanto esperança e desejo… (p. 27). Já a razão não precisa da moral, pois substitui a moral na política, porque a moral é definida pela religião, e como há muitas religiões, os valores se conflitam. Afinal, quando os presbiterianos e independentes evocam a graça teológica, trata-se apenas da expressão de sua paixão (p. 29).

A pretensão das seitas, para Hobbes, de julgar entre o bem e o mal, não leva à paz, mas é fonte do próprio mal. Isto se deve não apenas à vontade de poder que atiça a guerra civil, mas também à referência a uma consciência que não tem apoio exterior. A consciência moral não é causa da paz, mas da guerra.

Ao separar consciência e ação, Hobbes introduz o Estado sob o aspecto de instância, que exclui a moral de suas repercussões políticas, pois o interesse público e o ato de legislar do soberano são a autoridade e não a verdade. E submete também o Direito ao Estado, porquanto o Direito, por sua vez, está ligado aos interesses sociais e esperanças religiosas. Por esta razão, também o Direito tem de se sujeitar à autoridade do rei.

O Estado torna-se então o Deus mortal. Mais do que isto: torna-se um automaton, a grande máquina (p. 33). Ele assegura, protege, prolonga a vida dos homens. Mas como mortal, ele pode se esfacelar e fazer a sociedade cair no estado da natureza — o que levaria a uma nova guerra civil. Portanto, o Estado tem de fazer de tudo para assegurar a obediência de todos.

É a partir desta clivagem que o homem se parte em dois, uma metade privada e a outra pública, e suas convicções passam a ser vivenciadas no secreto — in secret free.

A dicotomia entre homem simples e homem público é constitutiva da gênese do segredo. As Luzes dilatarão pouco a pouco o foro interior da convicção, mas toda a pretensão ao que revelava domínio do Estado ficava necessariamente envelopada com o véu do sagrado.

A neutralização da consciência pela política favorece a secularização da moral. Mas o arrefecer da religiosidade é fatal para o Estado, porque os temas tradicionais vão ser reeditados de forma secularizada. Quando se esquece as origens do Estado (guerra civil), a razão de Estado aparece como imoral por excelência. Com o fim das guerras de religião, o Estado será portanto encarado como uma pessoa moral que, independentemente da Constituição (católica ou protestante), Monarquia ou República, vê-se face a face com outros Estados. Neste território, a um só tempo existencial e político, os filósofos das Luzes debruçam-se sobre si mesmos. Seu ponto de partida é o foro interior, que vai se dilatando até que se crie como que um segundo espaço público. Gradativamente, esta dilatação atingirá o próprio Estado.

Para John Locke, que viveu num país em que o parlamento já exercia bastante influência sobre o Estado, há três sortes de leis:

A Lei divina, que regulamenta o que é pecado e o que é dever (The divine law the mesure of sin and duty); a Lei civil, que regulamenta o crime e a inocência (The civil law the mesure of crimes and innocence), ou seja, a lei do Estado, ligada à coerção cuja tarefa consiste em proteger o cidadão; em terceiro lugar, a lei especificamente moral, que arbitra sobre o vício ou a virtude, que é revelada pela opinião pública (p. 50).

Uma vez que não é autorizada pelo Estado, a opinião pública só existia secularmente nos clubes, cafés e salões, onde as pessoas transitavam e emitiam seus juízos — não legislavam diretamente, mas a força de seu julgamento autônomo residia na censura, donde a necessidade de publicizá-la.

É neste contexto que se compreende o movimento intelectual de Locke que, ao interpretar a lei filosófica como opinião pública, investe politicamente no foro interior da consciência humana — subordinada por Hobbes à política do Estado. Para Locke, as ações públicas não devem estar submetidas apenas ao Estado. Por isto, ele trespassa a restrição existente no Absolutismo, porquanto a moral não se limita ao eu interior, mas afronta o Estado.

Quem decide? Instância moral dos cidadãos ou a política do Estado? Ou os dois em conjunto? A lei moral não pode exercer poder, mas sim influência política indireta.

Neste círculo (da crítica) encontrar-se-ão os burgueses arrivistas, os protestantes perseguidos, os sábios, eclesiásticos progressistas, militares de alta patente, magistrados, atores que constroem um segundo domínio, compreendido por Koselleck como o reino da crítica.

A estratégia deste novo domínio público (que é ao mesmo tempo privado) é semelhante à dos maçons, que pretendiam traçar planos racionais para a felicidade da vida social. Afinal, os maçons mesclam poderes místicos da igreja e polícia secreta do Estado, ao que associam ainda um terceiro poder — a censura.

No reino da crítica, ainda não se pretende destruir o Estado; quer-se viver como iguais entre si, à parte do Estado, sem hierarquias. O segredo é a garantia de sua proteção: A liberdade secreta se torna o segredo da liberdade. A outra função do segredo é a de propiciar a coesão entre os irmãos. Nasce aí uma nova elite, denominada humanidade, que sente ser seu dever servir a este novo mundo.

A quem eles obedeciam? Ao desconhecido, pois o seu superior era invisível. Logo, quem detinha mais segredos sobre as organizações, detinha mais poder.

Os maçons, aos seus próprios olhos, queriam fazer o bem, mas encontravam obstáculos, quais fossem: a divisão do mundo entre homens e Estados divergentes, a hierarquia social e as religiões em conflito.

Por esses motivos, a crítica permanecia obediente ao Estado, devendo os progressistas limitarem-se ao espírito das ciências3.

No entanto, à medida que a crítica da razão torna todos iguais, inclusive o soberano, ela reduz todos os homens à condição de cidadãos. E se todo cidadão é igual, todo poder é abuso de poder, e o rei absolutista é um usurpador.

Por outro lado, tanto quanto o rei, os críticos transformam-se em tiranos de sua própria argumentação, ou seja, têm de ser igualmente criticados. Para Kant, no reino da crítica com seus segredos, a política pareceu retomar as funções do Estado com seus arcanos. Não é mais a crítica que se substrai do Estado; ela quer estender seu reino tão soberanamente, que são os Estados e as Igrejas que parecem fechar-se diante do julgamento da crítica, para se submeterem a ela. A crítica adquire tanta segurança que chega a tachar o Estado e a Igreja de hipócritas. Se o Estado não se submete à razão crítica, ele só tem direito a um respeito dissimulado. Em síntese, o politicum da crítica não se caracteriza pelo falado, mas por separar o Estado de seu reino.

O dualismo entre o reino da moral e o reino da política permitiu abrir um horizonte apolítico (ser a favor ou contra), primeiramente contra as religiões, e gradativamente contra o Estado. Graças a este pensamento dualista, a nova elite adquiriu uma consciência de si original, a saber, um grupo de pessoas que como representantes e como educadores de uma nova sociedade tomam posição dizendo não ao Estado Absolutista e à Igreja.

No momento em que as Luzes negam o Estado Absolutista, a história fica em aberto e, assim, se enuncia a crise4.

Na Alemanha, observa-se clara percepção da tensão entre moral e política, o que deveria provocar a cisão entre Estado e sociedade5. Todavia, nesta região, a burguesia é fraca e minoritária, logo, as sociedades secretas são ferrenhamente perseguidas e colocadas fora da lei. Diz-se delas que são um Estado dentro do Estado, que se trata de uma conspiração jesuítico-maçônica, acima dos Estados soberanos, para destruí-los, a eles e às igrejas. O que os incita a pensar nestes pequenos grupos como tão poderosos, com uma força catastrófica? A Filosofia da História, vista como grande ameaça, pois iria substituir a religião pela moral.

Os maçons, segundo Leibniz,

aparecem no lugar de Deus. Assim como Deus só age de maneira oculta, fornece ser, força, vida e razão sem deixar-se perceber, os irmãos das lojas também têm que encobrir seu segredo, pois na opacidade de seus planos reside a bondade, a sabedoria e o sucesso do grande projeto (p. 115).

Para Leibniz, os maçons queriam abolir o Estado, sem violência, simplesmente minando-o gradativamente.

Ainda, a Filosofia da História, para Leibniz, legitima a arte moral e produz o homem novo, deus na terra que quer dirigir a história (p. 116), mas não o fará pela violência, e sim pela vontade.

Göchhausen, um militar prussiano, maçon, mas lacaio do rei, assim denuncia os iluministas:

A razão, aparentemente, irá criar um território sem fronteiras e instaurar a era da frugalidade espiritual, física e política no país de fria abstração; mas, de fato, só haveria duas condições toleráveis: a classe que governa e a classe que é governada (p. 119).

Dadas estas perseguições, a revolução não se desenlaça na Alemanha, mas na França. Neste país, a crise se inicia com Turgot, Ministro de Estado oriundo das Luzes, censor moral que entra na cena pública. Para conter a revolução, defendia ser necessário criar-se um Estado cesarista, com um espaço para os liberais. Colocava-se contra os parlamentos e contra o rei.

Turgot, como Hobbes, defendia o Absolutismo esclarecido. Logo, o rei só tinha legitimidade quando suas leis se assentassem no direito moral, sem o que perderia sua autoridade. Ao operar uma divisão dualista entre a moral e a política, Turgot elide

a questão concreta de saber onde e como o direito moral e o poder coincidem, o que equivale a uma forma política de uma ordem moral de Estado… Se para os absolutistas a subordinação da moral à política era o princípio de ordem que colocou um fim à guerra civil e impediu que ela se reacendesse, para Turgot, esse princípio transformou-se no facho que a inocentava, pois, para Turgot, submeter a consciência à política não é evitar a guerra civil, mas fomentá-la. Opor-se à voz da consciência é ser sempre injusto, é justificar a revolta e dar lugar ao tumulto (p. 125).

Com este reconhecimento, Turgot prepara a cena para a revolta.

Rousseau, o primeiro dos democratas modernos, apresenta-se com a seguinte questão: A condição de liberdade é que cada um só obedeça a si mesmo. O monarca não representa a vontade da sociedade, esta é representada pela vontade geral. Mas esta vontade geral, que é agora soberana, é entretanto invisível. Se todos são soberanos, a sociedade é estatizada. Mas esta totalidade racional só o é em aparência, pois cada cidadão só adquire liberdade quando participa da vontade geral, mas como homem ele não sabe quando e como seu eu interior coincide com esta vontade geral, pois o homem individual se engana, enquanto a vontade geral nunca pode se enganar.

Para não permitir o engano, impõe-se a correção das vontades, que é concretizada com a ditadura. A ditadura se diferencia do Absolutismo porque nela se integra o eu interior, e não apenas o eu exterior (ou seja, há que se transformar as ações em convicções). Para tanto, como nem todos os cidadãos conhecem a vontade geral, precisam de guias que criem a identidade entre a moral e a política — com vistas a mostrar o bom caminho. O reino da opinião pública de Rousseau se torna ideológico. O censor público transforma-se em chefe ideológico. Entretanto, ele não pode demonstrar que está mandando, ele tem de dissumular, como nas sociedades secretas.

A ditadura ideológica da virtude desaparece atrás da máscara da vontade geral. Mas porque é instável, impõe-se, ao lado da ideologia, o terror. Daí resulta a desagregação da ordem. Logo, a autoridade não é só ela imoral, mas transforma toda a sociedade em imoral, porque mesmo o homem esclarecido tem de ser hipócrita.

A inocência moral leva à desobediência, que leva à revolta, que resulta na guerra civil. A crise significa então o tribunal da moral, onde vencerá o despotismo ou a justiça.

Este paradigma pode ser evidenciado em Raynal — que enxerga na independência dos Estados Unidos a oposição entre velho e novo mundo; o velho, déspota, o novo, da inocência moral6. Quem triunfa naquele país é a verdade moral dos oprimidos. Ou seja, é com a guerra e com seus meios violentos que se inicia o tempo em que a virtude e o vício se separam. Raynal conclama à revolução em nome da Filosofia da História; crise e Filosofia da História estarão doravante intimamente ligadas.

Com estas constatações, Koselleck conclui que a incerteza da crise se identifica com a certeza do planejamento da história utópica. Esta provoca aquela, e vice-versa; as duas juntas perpetuam o processo que os intelectuais burgueses abriram contra o Estado Absolutista. A burguesia usurpa o poder com a má consciência de um moralista que crê que o sentido da história é o de tornar dispensável o poder. A utopia como resposta ao Absolutismo abre assim o processo dos Tempos Modernos. Porque, de resto, com Tom Paine, a vitória da revolta norte-americana deu-se pela verdade moral, e na França revolucionária, pela política…

Notas

1 Com esta afirmativa, o autor se afasta das interpretações que entendem as idéias como responsáveis pela revolução. Se elas o foram, não foram seus atores que estiveram à frente do movimento (p. 19 e ss.).

2 Humanista e jurista, Barclay tinha em vista o Estado Absolutista; suas idéias foram acompanhadas de perto por Richelieu.

3 A institucionalização da crítica se dá, num primeiro momento, de forma dissimulada, pelo e no teatro ou pela e na literatura. O resgate do drama tem este sentido, de oposição de forças diametralmente opostas: razão/ revelação, liberdade/ despotismo, natureza/ civilização, comércio/ guerra, moral/ política, decadência/ progresso, luz/ trevas.

4 Koselleck toma de empréstimo o termo crise, tal qual ele é empregado por Rousseau, como uma doença do corpo.

5 À época do Sturm und Drang (Tempestade e ímpeto), primeira fase do Romantismo, também compreendido como Romantismo Ilustrado.

6 Segundo Koselleck, em Raynal, a inocência moral deixa de ser pensada como antecessora no tempo do Absolutismo, e é projetada no presente, geograficamente — o oprimido dos Estados Unidos contra a Europa despótica.

Marionilde Dias Brepohl de Magalhães – Universidade Federal do Paraná

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