História, Literatura e Mito: viajantes europeus na América do Sul / Estudos Ibero-Americanos / 2012

Essa coletânea começou na cidade de Nantes, em 2009, quando surgiu a ideia de formar um grupo internacional, de caráter interdisciplinar, constituído por italianistas. A ideia foi levada adiante na Europa a partir das Universidades de Nantes e Groningen e, na América do Sul, através da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Naquela ocasião, em Nantes, realizava-se um primeiro Colóquio que discutia processos de emigração italiana. Era uma maneira formal para que estudiosos de vários países apresentassem e discutissem determinado tema. A troca de ideias entre os participantes do grupo foi sendo ampliada nos anos sucessivos e, em 2011, outro colóquio foi realizado, desta vez em Porto Alegre, quando os estudos estiveram concentrados em torno de relatos de viajantes como fontes à historiografia. Desde então, o contato permanente entre colegas de diferentes continentes permitiu que o presente livro fosse organizado com textos inéditos que também revelam, no Brasil, autores que se destacam em universidades estrangeiras. São textos que analisam diferentes olhares de viajantes, em narrativas que podem se transformar em fontes à História.

Não se trata de uma novidade temática, porque é muito antigo o uso de relatos de viajem como fontes à História. Mas a discussão sobre este uso da viagem como fonte passava por fase recessiva. Estava na hora de revisitar o assunto com outros olhos, ou seja, com os olhos do nosso presente, quando houve avanços metodológicos importantes.

Leed sublinha a importância da viagem lembrando as metáforas que suscita; em todas as latitudes essa viagem é um manancial de símbolos que podem exprimir a vida e a morte. Morte é passagem, passamento, enfim, mobilidade ou deslocamento para regiões desconhecidas. Vida é trajetória, caminho, peregrinação. Viagem, vida e morte são deslocamentos.[1]

Outro aspecto a justificar uma revisita ao tema tem a ver com o estranhamento ou distanciamento como forma de conhecer, questão que entra em debate na década de 1990, tendo como aporte fundamental o pensamento de Ginzburg. [2] O viajante, que é um estrangeiro, fornece inícios que fortalecem o paradigma ginzburguiano: tais indícios funcionam como chaves para o conhecimento de realidades. Leituras mais antigas de determinados relatos desprezaram, com frequência, minúsculas partes, por preservação de hábitos.

Ainda justificando esse retorno ao tema, lembra-se que metodologias de análise têm sido aperfeiçoadas em tempos recentes, sobretudo no âmbito da Comunicação, facilitando o trabalho de historiadores, sobretudo quando não desenvolvem formação em linguística, como é o caso dos profissionais sul-americanos. Dentre tais metodologias, destaca-se a Análise Textual Discursiva, definida como metodologia que envolve conjunto de técnicas de pesquisa, em abordagem interdisciplinar, tendo como primeiro objetivo buscar sentido ou sentidos no texto, produzir inferências.[3]

Portanto, a leitura proposta no presente volume é um convite para percorrer trajetórias de viajantes muitas vezes desconhecidos ou pouco conhecidos, à luz de novas interpretações, isto é, buscando outros significados na velha literatura de viagem, nos relatos daqueles que estranharam e que apontaram para o exótico. Essa leitura ajudará principalmente a estranhar. Trata-se de uma publicação que se tornou possível graças aos esforços realizados por dois sucessivos coordenadores do Programa de pós-graduação em História da PUCRS, Professores Doutores Helder Gordim da Silveira e Charles Monteiro, assim como pela permanente ajuda imprescindível de assessoria de Maria Cristina Fazzi Bortolini.

Os textos que compõem o volume foram analisados em termos de conteúdo e categorizados sob subtítulos que pressupõe algo em comum. No seu conjunto abordam, portanto, diferentes latitudes por diferentes ângulos, através das percepções de diferentes autores.

Assim, sob o título Olhares de Especialistas, Carla Monteiro de Souza aborda a narrativa do geógrafo norte-americano Alexander Hamilton Rice Jr (1875-1956) sobre a região do Rio Branco, descrevendo o território que viria a ser o estado brasileiro de Roraima, que visitou entre 1924 e 1925. Descrições do geógrafo italiano Agostino Codazzi sobre a Venezuela, publicadas entre 1840 e 1841, são assuntos de que tratará Maria Carmela D´Angelo. Os relatos do mineralogista e geólogo suíço Johann Von Tschudi sobre o Rio Grande do Sul, publicados em 1868, foram analisados por Martin Dreher.

A segunda parte trata das Palavras de Escritores e Jornalistas. Gabriella Romani analisa Edmondo De Amicis em Sull’Oceano (1889), livro de viagem que o autor dedicou ao tema da emigração italiana. Walter Zidarik detém-se nas cartas de Ercole Luigi Morselli à sua mãe, enviadas durante a longa viagem transoceânica que realizou, entre 1903 e 1904, quando ainda não era o escritor e dramaturgo de sucesso que viria a ser. Livros referentes a diversas viagens realizadas por SaintExupèry são analisados por Cláudia Musa Fay, na perspectiva da incipiente aviação nas décadas de 1920 e 1930. Autores-viajantes que escreveram sobre o Brasil em geral, em tempos bem diferentes, foram Friedrich Gerstäcker e Max Leclerc. A obra do primeiro, correspondente às primeiras décadas do século XIX, foi analisada por Gerson Roberto Neumann, enquanto Janete Silveira Abrão detém-se na obra de Leclerc, que corresponde aos primeiros anos do Brasil republicano.

Outra categoria estabelecida intitula-se Percepções de Músicos e Poetas. É iniciada por ensaio de Adriana Guarnieri Corazzol, trazendo ao texto memórias de músicos italianos sobre a América do Sul entre 1880 e 1920. Maria Lúcia Bastos Kern, concentra-se em dois livros do artista de vanguarda Joaquín Torres-García, escritos em 1939 e 1941, analisando percursos e particularidades dos lugares visitados entre o Velho e o Novo Mundo. Rosemary Fritsch Brum aborda “reverberações” da viagem que o futurista italiano Marinetti realizou à América Latina em 1926. Encerrando a terceira parte, Robert Ponge escreve sobre o poeta surrealista francês Benjamin Péret, que narrou o Brasil entre 1955 e 1956.

A quarta parte desse volume consiste Em Tempos de Colônia e de Reino Unido. Maria Izilda Matos analisa textos de cronistas de expedições que estiveram na Amazônia, recuperando as representações das Amazonas e do El Dorado. Paulo César Possamai analisa obras de viajantes sobre a Colônia do Sacramento, confluência entre os domínios portugueses no Brasil e os territórios espanhóis na região platina. Véra Lúcia Maciel Barroso analisa a crônica de Domingos José Marques Fernandes, enviada ao Príncipe Regente D. João, em 1804, onde expõe características do Rio Grande do Sul e propõe medidas a serem tomadas com relação ao território.

Uma quinta parte é constituída por Visões do Rio Grande do Sul. Valter Antonio Noal Filho disserta sobre os relatos do viajante milanês Enrico Ambauer, que visitou a Província em 1858. Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos detém-se na colônia, depois município de São Leopoldo, visitada e narrada por vários viajantes, entre1834 e 1906. Jaguarão, na fronteira com o Uruguai, é um dos objetos de escritos do missionário belga Thomas Aquinas Schoenaers, relacionados ao período em que esteve no Rio Grande do Sul, entre 1901 e 1904; nessas terras de fronteira concentrou-se a análise de Beatriz Ana Loner e Lorena Almeida Gill. No litoral do Rio Grande do Sul está o foco do ensaio desenvolvido por Marcos Antônio Witt, que aprofunda o estudo dos textos de três viajantes que, em tempos diferentes, transitaram pela região costeira do Oceano Atlântico no extremo sul do Brasil. Vania Beatriz Merlotti Herédia analisou cartas do Frei Bruno de Gillonay, escritas quando visitava as colônias italianas no Rio Grande do Sul, com a finalidade de verificar as condições de espiritualidade nessas colônias.

Trata-se De Palavras e de Viajantes Italianos na última parte do presente volume. Tais viajantes são pouco conhecidos no Brasil e uma das intenções dos autores foi divulgar-lhes. Carla Brandalise disserta sobre a reescrita de uma história latino-americana, no período fascista, onde deveria ser reconhecido o papel imprescindível do povo italiano na formação da América Latina e a autora demonstra que, para tanto, viajantes são enviados para conhecer e relatar o continente. Núncia Santoro de Constantino analisa escritos de alguns viajantes italianos sobre o Brasil, destacando suas opiniões a respeito da imigração no país. Rejane da Silva Penna recolhe impressões de viajantes italianos sobre mulheres brasileiras, demonstrando como tais impressões auxiliam na percepção do papel feminino na sociedade. Os relatos do antropólogo Stradelli e do oficial da marinha italiana Gregório Ronca, que visitaram a Amazônia, são objeto da análise de Vittorio Cappelli. Por fim, encerrando a coletânea, apresenta-se um ensaio de Bob de Jonge, a tratar das viagens de palavras italianas para o Brasil, trazidas na bagagem de viajantes, especialmente quando são imigrantes.

Acredita-se que, com essa publicação, tenha sido possível ir além de uma re-leitura de livros de viagem, gênero extremamente difuso durante o século XIX, para realizar a divulgação de obras de viajantes pouco conhecidos e até mesmo desconhecidos. Espera-se que o dossiê seja de agradável leitura e que acrescente ao conhecimento dos leitores.

Notas

1. Richard Leed. La mente del viaggiatore: Dall´Odissea al turismo globale. Bolonha: Il Mulino, 1992. p. 36

2. GINZBURG, Carlo. Occhiacci di legno: nove riflessioni sulla distanza. Milano: Feltrinelli, 1998.

3. Leia-se MORAES, Roque e GALIAZZI, Maria do Carmo. Análise textual discursiva. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007.

Núncia Santoro de Constantino – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Walter Zidaric – Université de Nantes – França

Organizadores


CONSTANTINO, Núncia Santoro de; ZIDARIC, Walter. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 38, supl., nove., 2012. Acessar publicação original [DR]

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