Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval | A. C. L. F. da Silva

O MEDIEVO OCIDENTAL A PARTIR DE CONCEITOS COMO GÊNERO, SANTIDADE E MEMÓRIA E EM DIFERENTES ABORDAGENS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

Introdução

Segundo informa em sua apresentação, o livro Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval, publicado em 2018, foi o resultado do projeto “A construção medieval da memória de santos venerados na cidade do Rio de Janeiro: uma análise a partir da categoria gênero” coordenado pela Profa. Dra. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva. Tal iniciativa privilegiou a articulação entre atividades de ensino, pesquisa e extensão, com enfoque especial na temática mendicante do século XIII, a partir das categorias gênero, santidade e memória.

Decorrente de tal proposta, a publicação é uma coletânea de resultados de pesquisas de colaborados do referido projeto e vinculados ao Programa de Estudos Medievais (PEM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), totalizando dezessete capítulos. Pelo número de materiais, a apresentação esmiuçadora de cada um dos capítulos tornaria a resenha exaustiva, sem esgotá-los. Nossa proposta é, portanto, sintetizar o tema eleito por cada autor, a documentação utilizada, a abordagem teóricometodológica explícita e/ou implícita em sua redação e suas principais conclusões.

Por fim, como nossas últimas considerações, apresentamos algumas considerações sobre outros pontos de aproximação entre os capítulos, para além dos já anunciados no título e na introdução da obra.

Dezessete abordagens sobre gênero, santidade e memória no medievo ocidental

O primeiro capítulo, escrito por Flora Gusmão Martins, “Considerações sobre o culto aos santos mártires no reino visigodo dos séculos VI e VII” apresenta uma revisão sobre o modelo de santidade martirial da Alta Idade Média, considerando especificamente seu desdobramento no contexto ibérico dos séculos VI e VII.

O texto de F. G. Martins enfatiza a relação entre mártires e heróis da antiguidade e suas possíveis correlações. São priorizados, ainda, três modelos de santidade em tal contexto: o mártir, o bispo e o asceta. Para construir sua argumentação, a autora apresenta as aproximações e os distanciamentos das conceituações realizadas por autores como Andrade, Castillo Maldonado, Souza, Vauchez, Moss, Brown, Bowersock, entre outros, sem desconsiderar as leituras contemporâneas dos eventos, como as apresentadas por Isidoro de Sevilha (século VII).

A diretora e autora do livro, Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, em seu capítulo “A Ordem Dominicana na Legenda Beati Petri Gundisalvi”, apresentou um estudo sobre o documento que trata da vida do dominicano Pedro González, também conhecido como São Telmo, que teria vivido no século XIII. Como objeto explícito da sua análise, foram destacadas às referências à Ordem Dominicana na Legenda e suas possíveis relações com a forma de patrocínio utilizada na produção do referido texto.

Ao longo de seu estudo, a autora apresenta a tradição manuscrita da Legenda Beati Petri Gundisalvi, sua transmissão, as edições existentes do documento, uma do século XVIII e outra do XXI, e a ausência de análises aprofundadas pela historiografia. Para além das hipóteses levantadas a respeito da datação e da autoria do documento, A. C. L. F. Silva argumenta que a análise sistemática das referências institucionais indica que a obra teve por objetivo enaltecer a figura de Pedro González, e não da Ordem Dominicana, o que implica que esta não estaria envolvida no patrocínio de sua redação.

Analisando a Legenda Áurea, Laís Luz de Carvalho escreve o estudo “„A comemoração das almas‟ da Legenda Áurea: solidariedade entre vivos e os mortos do purgatório”. A autora utiliza o legendário dominicano para analisar todas as referências às relações entre vivos e mortos presentes no capítulo “A Comemoração das Almas”, da Legenda Áurea, com o objetivo de entender a dinâmica de solidariedade que era incentivada pela Igreja de Roma.

A partir do método de Análise da Narrativa, foram enfatizados os pecados e as penas atribuídos aos pecadores em anedotas exemplarizantes. O estudo leva em consideração o contexto do surgimento do Purgatório e das Ordens Mendicantes, os quais perpassam as questões atreladas ao documento. Nesse sentido, L. L. Carvalho sistematiza em categorias desenvolvidas para a pesquisa todas as 16 exempla, a partir da identificação dos personagens e de onde são, das suas penas e seus pecados e dos tipos de vínculos estabelecidos entre os vivos e os mortos. A autora conclui que o Purgatório permite a crença na redenção para laicos e citadinos e que a obra tem por um dos seus objetivos incentivar a solidariedade entre vivos e mortos na comunidade cristã.

Com uma proposta metodológica que privilegia a Análise da Avaliação de Laurance Bardin, o capítulo de André Rocha de Carvalho, “A representação dos imperadores da dinastia Staufen na Vida de São Pelágio da Legenda Áurea: aplicando a Análise de Avaliação”, busca identificar as abordagens apologéticas e depreciativas sobre a representação dos imperadores da dinastia Staufen, atribuindo valores em gradações numéricas para que os discursos sejam considerados positivos ou negativos. Para a categoria de representação, o autor fez usa do conceito estabelecido por Roger Chartier.

R. Carvalho parte do pressuposto que A Vida de São Pelágio transmite uma imagem dos imperadores marcada pelos interesses do autor, da ordem dominicana e da Igreja Romana. Nesse sentido, os governantes são representados como tiranos, traidores e pecadores, com o objetivo de defender a autoridade e superioridade do poder papal frente ao poder imperial. Simultaneamente, serve de ferramenta de propaganda para a Cristandade no contexto reformador.

Retornado aos debates de santidade, mas privilegiando um recorte detido nos séculos XII e XIII, a autora Ana Paula Lopes Pereira apresentou o capítulo “Maria d‟Oignies (1213) e Clara de Assis (1253): dois exemplos de santidade laica nos Prólogos de Jacques de Vitry (1160/80-1240) e Thomas de Celano (1200-1260)”.

Em tal estudo a santidade passa a ser analisada considerando os aspectos urbanos da Idade Média Central. O texto privilegia o exame de duas hagiografias de mulheres em perspectiva comparada, buscando as semelhanças nos processos iniciais do movimento beguinal e franciscano. Em tal estudo, A. P. L Pereira busca compreender o culto e a perseguição a Maria d‟Oignies, bem como o enquadramento das beguinas, contrapondo comparativamente, com o culto e a canonização de Clara de Assis. Como ponto de confluências, os dois movimentos dos quais as hagiografias são decorrentes fazem parte das novas formas de piedade laica, do século XIII. A autora conclui que a mudança de geração entre Maria d‟Oignies e Clara de Assis e dos seus hagiógrafos demonstra o poder de enquadramento e endurecimento da Igreja Romana para o afastamento das novas formas de vida apostólica e mística.

Em uma sequência de análises sobre a santidade feminina, Andréa Reis Ferreira Torres apresenta o ensaio intitulado “Os atributos conferidos à santidade feminina em dois processos produzidos na Península Itálica no século XIII – uma comparação entre Clara de Assis e Guglielma de Milão”. Mais uma vez o comparativismo é privilegiado para traçar as aproximações e os distanciamentos entre os documentos de canonização e de processo inquisitorial, com especial ênfase nos atributos de santidade relacionados às mulheres.

Ambos os documentos, produzidos na Península Itálica do século XIII, são contemporâneos ao processo de fortalecimento papal, determinante para o endurecimento do controle e reconhecimento de santidade. A análise dos atributos de santidade realizado por A. R. F. Torres foi executada tendo como aporte teórico a categoria gênero, na interpretação sistematizada por Scott. Nesse sentido, para a autora do capítulo, a questão do gênero interferiu na construção dos modelos exemplares femininos para tal sociedade, principalmente considerando a questão da mentoria masculina ou a sua ausência nos mencionados documentos.

Pensando o aspecto social da santidade, o texto “A santidade em construção: revolvendo camadas para expor as instituições atuantes na canonização de Domingos de Gusmão (1233-1234), de Thiago de Azevedo Porto, reflete sobre a canonização de Domingos de Gusmão como um processo coletivo e complexo, em que tomam parte interesses de agentes sociais diversos, que incluíam a autoridade pontifícia. Para o autor, a santidade é uma formação post mortem, desconectada das escolhas em vida de Domingo, reconhecido como santo ainda no século XIII.

O processo de reconhecimento de santidade teria sido, portanto, resultado de uma construção coletiva, com rota não linear, com avanços e contradições, que devem ser entendidas levando em consideração processos que antecedem à canonização do dominicano. Dessa forma, torna-se possível compreender como foi organizada uma campanha para viabilizar o sucesso do processo de Domingo junto a Igreja Romana.

A santidade feminina a partir de processos inquisitoriais é abordada em um novo capítulo, intitulado “Considerações sobre as Almas Simples Aniquiladas e a condenação da beguina Marguerite Porete (1250-1310) e escrito por Danielle Mendes da Costa. Em seu texto a autora busca entender como a condenação por heresia de Marguerite Porete pode ter sido motivada pela interpretação da instituição eclesiástica de que as ideias defendidas pela beguina representavam uma ameaça ao poder da Igreja Romana.

M. Costa apresenta a produção documental de Marguerite Porete, sua temática e organização, as tentativas de silenciamento por parte da Igreja Romana, por meio dos inquisidores, e a chegada dos manuscritos até os dias de hoje. Do ponto de vista conjuntural, são apresentados o contexto pontifício do século XIII e o movimento beguinal e de espiritualidade feminina dos séculos XII e XIII. Nesse sentido, a autora conclui que a defesa de um caminho para a salvação que não estava atrelada à instituição eclesiástica foi interpretada como uma ameaça e uma concorrência e, portanto, destinada à repressão por ser considerada um desvio da ortodoxia, culminando na morte de sua propositora.

Em “A influência franciscana na cidade de Pádua: um estudo sobre a narrativa da pregação antoniana na Beati Antonii Vita Prima”, o autor Victor Mariano Camacho estabelece o estudo da pregação de Antônio de Lisboa, também conhecido como de Pádua, no contexto franciscano e urbano. O estudo privilegia os sacramentos e a influência da ordem nos contextos citadinos a partir da obra Beati Antonii Vita Prima, também conhecida como Legenda Assídua, que trata da vida do então conhecido como Fernando Martins de Bulhões.

M. Camacho apresenta brevemente os dados documentais como autoria, destinação da obra e organização textual. A ação pregadora de Antônio no ambiente urbano também é sistematizada, com especial enfoque para o décimo terceiro capítulo da hagiografia, com sua ação de modificação do espaço comunal, desde a prática da usura até a prostituição. A ação antoniana em Pádua foi interpretada pelo autor como uma reprodução da influência pastoral franciscana em alinhamento com as diretrizes centralizadoras de Igreja de Roma daquele período.

Dando sequência aos estudos franciscanos com ênfase na atuação de Antônio de Pádua/Lisboa, Jefferson Eduardo dos Santos Machado, autor do capítulo “Sacramentos da confissão no discurso franciscano do século XIII, a partir dos Sermões Antonianos”, destaca a o processo de institucionalização do movimento, com a aproximação dos Frades Menores do poder pontifício. Tal como o texto de Camacho, o aspecto sacramental é enfatizado, mas neste episódio, principalmente no que diz respeito à Reconciliação e à Confissão.

Segundo J. E. S. Machado, os Sermões Antonianos estavam organizados para serem utilizados de acordo com o calendário litúrgico, o qual não estava alinhado com o da Igreja Romana. A partir da análise dos sermões da Quaresma e a Confissão, o autor afirma que como um sacramento, a confissão tinha grande importância no discurso antoniano, sendo apontada como importante elemento para a salvação da alma. A confissão passou, portanto, a ser um elemento de vigilância para a Igreja Romana, em um contexto de fortalecimento e centralização do poder pontifício.

O século XIII também foi abordado a partir dos regastes neotestamentários, como a Epístola de Tiago, tema abordado por Gabriel Braz de Oliveira em “Uma alternativa de leitura sobre a pobreza medieval no Novo Testamento: a trajetória canônica da Epístola de Tiago”. O documento foi, portanto, retomado no âmbito do debate sobre os fundamentos da pobreza evangélica e mendicante. Mesmo no contexto de formação do cânon neotestamentário, a epístola passou por uma aceitação paulatina e marcada por diversas desconfianças das autoridades eclesiásticas, que foram contrapostas pela aceitação de outros personagens de grande influência, como Eusébio de Cesaréia, Atanásio, Jerônimo e Agostinho.

B. Oliveira dividiu sua investigação sobre o texto em partes, sendo elas: as características do documento, como as temáticas, a autoria e a datação; o conteúdo histórico hermenêutico, reunindo comentários realizados pela carta em diferentes momentos, principalmente pelos autores patrísticos, e; apresentação de uma leitura da pobreza na Epístola de Tiago, como crítica ao apreço pelo materialismo, que busca normalizar a segunda geração de cristãos.

Abordando também as leituras exegéticas realizadas no período medieval, o capítulo de “Espiritualidade e milenarismo na Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore (1135-1202)”, de autoria de Valtair Afonso Miranda, analisa os escritos de Joaquim de Fiore, a partir da ideia de que há um rompimento com a tradição agostiniana na História da Igreja, dando lugar a uma nova forma de espiritualidade. Na obra Expositio in Apocalypsim, Joaquim faz um comentário do Apocalipse de João, que foi analisada para este capítulo a partir dos aspectos da espiritualidade e do milenarismo.

Segundo, V. A. Miranda, o abade cisterciense preocupou-se em correlacionar todas os episódios do texto do apocalíptico com eventos históricos atrelados a História Eclesiástica, tanto em perspectiva linear quanto cíclica. Como monge beneditino da Ordem Cisterciense, Joaquim estava inserido nos movimentos reformadores que envolveram a sociedade ocidental dos séculos XII-XIII, e que foi apropriada pelo autor da exegese para ampliar os valores monásticos para a Cristandade. O apocalipticismo de Joaquim de Fiori, portanto, conjugou-se com o milenarismo que buscava a unidade e a transformação da ecclesia.

Analisando uma narrativa produzida em um mosteiro, Alinde Gadelha Kuhner, em “A Fundação de Santa Cruz de Coimbra de acordo com a Vita Tellamos Archidiaconi”, discute a promoção da legitimidade da fundação de Santa Cruz de Coimbra e a natureza tipológica da Vida de D. Telo. Segundo a autora, tal documento não é satisfatoriamente enquadrado como hagiografia e, por este motivo, a natureza do relato é debatida no seu estudo. De autoria conhecida, o documento foi produzido no referido mosteiro.

O questionamento de A. G. Kuhner sobre a classificação da narrativa como hagiográfica esteve baseada na importância atribuída ao protagonista por seu hagiógrafo, pela ausência de dados biográficos do hagiografado, sendo estes obliterados pelos dados referentes à fundação do mosteiro, fato que acontece em momento já avançado de sua vida. Reforçando tal argumento, a autora destaca que mesmo o relato sobra peregrinação de Telo para Terra Santa é fato menor se comparado a importância desta fundação para a narrativa. Em síntese, teria sido o papel do santo na construção do mosteiro e no reconhecimento do espaço pelo poder pontifício que o qualificou à posição de santo.

As análises de narrativas hagiográficas estão presentes também no capítulo “A construção da figura feminina na Vita Sancti Theotonii”, de autoria de Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira. A partir do estudo sistemático da obra Vita Sancti Theotinii, o autor buscou entender quais escolhas discursivas foram feitas para representar a figura feminina e porque o hagiógrafo optou por tais desígnios. Em um contexto de crescente relevância da castidade, a partir da reforma dos ideais religiosos dos séculos XI e XII, a figura da mulher estava associada, em algumas narrativas, como antítese da castidade e obstáculo para a santidade.

O ensaio de J. R. S. C. Oliveira buscou analisar duas passagens da Vita Sancti Theotonii a partir da construção da imagem da mulher como agente desviante. O modelo a ser seguido era, sem dúvida, a de Teotônio, principalmente para os outros religiosos. A castidade era uma demonstração da pureza corporal transformada em base para a vida religiosa. Por sua vez, as figuras femininas foram representadas de duas formas, segundo o autor do capítulo, como ferramenta de reforço de sua santidade e como agente de desvio e fonte de vigilância para os votos.

Analisando a tradição mariana, Guilherme Antunes Junior, em “A cantiga 26 e o romeiro pecador: gênero nas imagens e nos textos nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X”, reflete sobre as implicações políticas e culturais de um milagre que recai sobre um peregrino pecador. O documento em questão foi patrocinado pelo rei Afonso X e produzido como um conjunto de quatro manuscritos, no século XIII. Em representação semelhante à apresentada por J. R. S. C Oliveira, a figura feminina também aparece como elemento de desvio e de ameaça à castidade.

Antunes Junior entende que o texto poético e as imagens contidas na Cantiga constroem discursos sobre homens e mulheres e, portanto, podem ser analisadas a partir das relações de gênero, com seus papéis sociais e relações de poder. O autor utiliza o conceito proposta por Scott para interpretar tal documentação. As conclusões do autor dizem respeito às implicações políticas, que envolvem a cantiga e as tensões entre Afonso X e o clero compostelano, e às questões de gênero, que implicam à figura da mulher má no pecado do romeiro em seu texto, mas não nas ilustrações contidas na mesma obra. Em contrapartida, também é a figura feminina de Maria que garante a salvação do personagem desviado, antagonizando, desta forma, duas representações femininas polarizadas.

As interpretações eclesiásticas sobre o tema do casamento foram analisadas por Mariane Godoy da Costa Leal Ferreira em “Uniões entre Borgonha e Leão – Castela: os casamentos de Urraca e Raimundo (1091) e de Teresa e Henrique (1096)”, considerando o contexto ibérico do final do século XI. Nesse sentido, as alianças matrimoniais entre Borgonha e Leão-Castela já estavam em prática desde o início do século XI, mas a autora tem por objetivo demonstrar que os casamentos das filhas do rei castelhano-leonês Afonso VI, Urraca e Teresa, com Raimundo e Henrique, foram vantajosos politicamente para o reino, mas acabaram por afetar o contexto peninsular na passagem do XI para o XII séculos.

G. C. L. Ferreira analisa a crônica cartulário História Compostelana, escrita em Santiago de Compostela, no século XII, com o objetivo de valorizar a vida de Diego de Gelmírez, colocando o contexto político como um elemento secundário em sua narrativa. Os casamentos de Urraca e Teresa são apenas mencionados enquanto temas do interesse eclesiástico, como adultério e o papel das viúvas. A autora afirma ainda que, do ponto de vista político, tais casamentos e seus herdeiros teriam gerado uma crise sucessória em todo o contexto peninsular, uma vez que o discurso documental culpabiliza o comportamento sexual das rainhas, com o intuito de justificar a existência de tais conflitos.

Analisando as leis suntuárias de Múrcia sobre vestimentas e adornos, Thaiana Gomes Vieira encerra a obra coletiva com o capítulo “Consumo suntuário e a sociedade Murciana dos séculos XIII e XIV”, questionando o papel dado a aparência na sociedade urbana e as necessidades de normalização apresentadas no contexto dos séculos XIII e XIV. Como pressuposto que perpassa a pesquisa, a autora defende ser possível falar em “moda” para o período, sendo as vestimentas e os adornos formas de comunicação e identificação comuns às altas camadas da sociedade. É justamente por este papel social que surge, então, a necessidade de normalização e regulamentação.

G. Vieira chama atenção para as conturbações sócio-políticas de Múrcia no século XIV, bem como a ampliação pecuária, da produção têxtil e do comércio de produtos e materiais. Nesse sentido, tais aspectos não implicaram em uma desvalorização da moda ou da ostentação nas formas de vestir, comer e habitar. As normativas murcianas indicavam o que deveria ser utilizado pelos diferentes grupos sociais, não apenas por motivações econômicas, mas para a manutenção da hierarquia social, a partir de um código de aparência.

Considerações finais

As categorias de análise anunciadas tanto no título quanto na apresentação da obra podem ser observadas individual ou combinadamente nos dezessete capítulos. Em se tratando do tema da santidade, F. G. Martins, A. P. L. Pereira, A. R. F. Torres, T. A. Porto, tornaram o assunto um dos principais eixos de seus estudos. A partir da perspectiva de gênero, A. P. L. Pereira, A. R. F. Torres, D. M. Costa, J. R. S. C. Oliveira e G. Antunes Junior buscaram enfatizar a categoria nas análises documentais realizadas. Por fim, o último tema explicitamente anunciado, a memória, foi trabalhado em maior ou menor medida, nos capítulos de F. G. Martins, A. C. L. F. Silva, A. R. Carvalho, A. R. Oliveira, A. P. L. Pereira, A. R. F. Torres, T. A. Porto, V. M. Camacho, A. G. Kuhner, J. R. S. C. Oliveira, G. Antunes Junior e M. G. C. L. Ferreira.

Porém, estas podem ser consideradas apenas algumas das várias maneiras de perceber as correlações existentes entre os capítulos que compõem o livro. Do ponto de vista metodológico, o comparativismo possui grande destaque, o que pode ser justificado pela inserção e/ou status de egressos de muitos autores com o Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ. Os textos que utilizam implícita ou explicitamente tais aportes, seja na comparação de documentos, regiões, personagens, imagens e seus textos, diferentes interpretações de textos em novos contextos, dentre outras possibilidades, formam escritos por L. L. Carvalho, A. P. L. Pereira, A. R. F. Torres, G. B. Oliveira, V. A. Miranda, G. Antunes Junior e M. G. C. L. Ferreira.

Em uma avaliação de conjunto sobre a metodologia, as análises, em geral, foram exaustivas sobre um ou dois documentos, em contraposição a possibilidade de estudos temáticos generalistas e menos metódicos – que se utilizam, superficialmente ou não, de documentações numerosas e/ou pontuais para suas pesquisas – um dos benefícios que podem ser percebidos nas abordagens aqui apresentadas seria uma análise mais completa e complexa dos textos em conexão com os seus contextos. Tal aspecto, portanto, pode ser considerado mais um pressuposto metodológico do grupo.

O livro Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval é um produto derivado de um nítido esforço coletivo de pesquisadores medievalistas brasileiros, que contribuem para a divulgação científica das ciências humanas e dos projetos de articulação de ensino, pesquisa e extensão realizados na cidade do Rio de Janeiro.

Juliana Salgado Raffaeli – Doutora PEM-PPGHC-UFRJ/ Docente UNIRIO-CEDERJ-UAB. E-mail: [email protected] ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2196-922X


SILVA, A. C. L. F. da (Dir.). Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval. Rio de Janeiro: Programa de Estudos Medievais, 2018. Resenha de: RAFFAELI, Juliana Salgado. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.19, n.2, p. 272- 282, 2019. Acessar publicação original [DR]