Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval | A. C. L. F. da Silva

O MEDIEVO OCIDENTAL A PARTIR DE CONCEITOS COMO GÊNERO, SANTIDADE E MEMÓRIA E EM DIFERENTES ABORDAGENS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

Introdução

Segundo informa em sua apresentação, o livro Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval, publicado em 2018, foi o resultado do projeto “A construção medieval da memória de santos venerados na cidade do Rio de Janeiro: uma análise a partir da categoria gênero” coordenado pela Profa. Dra. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva. Tal iniciativa privilegiou a articulação entre atividades de ensino, pesquisa e extensão, com enfoque especial na temática mendicante do século XIII, a partir das categorias gênero, santidade e memória.

Decorrente de tal proposta, a publicação é uma coletânea de resultados de pesquisas de colaborados do referido projeto e vinculados ao Programa de Estudos Medievais (PEM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), totalizando dezessete capítulos. Pelo número de materiais, a apresentação esmiuçadora de cada um dos capítulos tornaria a resenha exaustiva, sem esgotá-los. Nossa proposta é, portanto, sintetizar o tema eleito por cada autor, a documentação utilizada, a abordagem teóricometodológica explícita e/ou implícita em sua redação e suas principais conclusões.

Por fim, como nossas últimas considerações, apresentamos algumas considerações sobre outros pontos de aproximação entre os capítulos, para além dos já anunciados no título e na introdução da obra.

Dezessete abordagens sobre gênero, santidade e memória no medievo ocidental

O primeiro capítulo, escrito por Flora Gusmão Martins, “Considerações sobre o culto aos santos mártires no reino visigodo dos séculos VI e VII” apresenta uma revisão sobre o modelo de santidade martirial da Alta Idade Média, considerando especificamente seu desdobramento no contexto ibérico dos séculos VI e VII.

O texto de F. G. Martins enfatiza a relação entre mártires e heróis da antiguidade e suas possíveis correlações. São priorizados, ainda, três modelos de santidade em tal contexto: o mártir, o bispo e o asceta. Para construir sua argumentação, a autora apresenta as aproximações e os distanciamentos das conceituações realizadas por autores como Andrade, Castillo Maldonado, Souza, Vauchez, Moss, Brown, Bowersock, entre outros, sem desconsiderar as leituras contemporâneas dos eventos, como as apresentadas por Isidoro de Sevilha (século VII).

A diretora e autora do livro, Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, em seu capítulo “A Ordem Dominicana na Legenda Beati Petri Gundisalvi”, apresentou um estudo sobre o documento que trata da vida do dominicano Pedro González, também conhecido como São Telmo, que teria vivido no século XIII. Como objeto explícito da sua análise, foram destacadas às referências à Ordem Dominicana na Legenda e suas possíveis relações com a forma de patrocínio utilizada na produção do referido texto.

Ao longo de seu estudo, a autora apresenta a tradição manuscrita da Legenda Beati Petri Gundisalvi, sua transmissão, as edições existentes do documento, uma do século XVIII e outra do XXI, e a ausência de análises aprofundadas pela historiografia. Para além das hipóteses levantadas a respeito da datação e da autoria do documento, A. C. L. F. Silva argumenta que a análise sistemática das referências institucionais indica que a obra teve por objetivo enaltecer a figura de Pedro González, e não da Ordem Dominicana, o que implica que esta não estaria envolvida no patrocínio de sua redação.

Analisando a Legenda Áurea, Laís Luz de Carvalho escreve o estudo “„A comemoração das almas‟ da Legenda Áurea: solidariedade entre vivos e os mortos do purgatório”. A autora utiliza o legendário dominicano para analisar todas as referências às relações entre vivos e mortos presentes no capítulo “A Comemoração das Almas”, da Legenda Áurea, com o objetivo de entender a dinâmica de solidariedade que era incentivada pela Igreja de Roma.

A partir do método de Análise da Narrativa, foram enfatizados os pecados e as penas atribuídos aos pecadores em anedotas exemplarizantes. O estudo leva em consideração o contexto do surgimento do Purgatório e das Ordens Mendicantes, os quais perpassam as questões atreladas ao documento. Nesse sentido, L. L. Carvalho sistematiza em categorias desenvolvidas para a pesquisa todas as 16 exempla, a partir da identificação dos personagens e de onde são, das suas penas e seus pecados e dos tipos de vínculos estabelecidos entre os vivos e os mortos. A autora conclui que o Purgatório permite a crença na redenção para laicos e citadinos e que a obra tem por um dos seus objetivos incentivar a solidariedade entre vivos e mortos na comunidade cristã.

Com uma proposta metodológica que privilegia a Análise da Avaliação de Laurance Bardin, o capítulo de André Rocha de Carvalho, “A representação dos imperadores da dinastia Staufen na Vida de São Pelágio da Legenda Áurea: aplicando a Análise de Avaliação”, busca identificar as abordagens apologéticas e depreciativas sobre a representação dos imperadores da dinastia Staufen, atribuindo valores em gradações numéricas para que os discursos sejam considerados positivos ou negativos. Para a categoria de representação, o autor fez usa do conceito estabelecido por Roger Chartier.

R. Carvalho parte do pressuposto que A Vida de São Pelágio transmite uma imagem dos imperadores marcada pelos interesses do autor, da ordem dominicana e da Igreja Romana. Nesse sentido, os governantes são representados como tiranos, traidores e pecadores, com o objetivo de defender a autoridade e superioridade do poder papal frente ao poder imperial. Simultaneamente, serve de ferramenta de propaganda para a Cristandade no contexto reformador.

Retornado aos debates de santidade, mas privilegiando um recorte detido nos séculos XII e XIII, a autora Ana Paula Lopes Pereira apresentou o capítulo “Maria d‟Oignies (1213) e Clara de Assis (1253): dois exemplos de santidade laica nos Prólogos de Jacques de Vitry (1160/80-1240) e Thomas de Celano (1200-1260)”.

Em tal estudo a santidade passa a ser analisada considerando os aspectos urbanos da Idade Média Central. O texto privilegia o exame de duas hagiografias de mulheres em perspectiva comparada, buscando as semelhanças nos processos iniciais do movimento beguinal e franciscano. Em tal estudo, A. P. L Pereira busca compreender o culto e a perseguição a Maria d‟Oignies, bem como o enquadramento das beguinas, contrapondo comparativamente, com o culto e a canonização de Clara de Assis. Como ponto de confluências, os dois movimentos dos quais as hagiografias são decorrentes fazem parte das novas formas de piedade laica, do século XIII. A autora conclui que a mudança de geração entre Maria d‟Oignies e Clara de Assis e dos seus hagiógrafos demonstra o poder de enquadramento e endurecimento da Igreja Romana para o afastamento das novas formas de vida apostólica e mística.

Em uma sequência de análises sobre a santidade feminina, Andréa Reis Ferreira Torres apresenta o ensaio intitulado “Os atributos conferidos à santidade feminina em dois processos produzidos na Península Itálica no século XIII – uma comparação entre Clara de Assis e Guglielma de Milão”. Mais uma vez o comparativismo é privilegiado para traçar as aproximações e os distanciamentos entre os documentos de canonização e de processo inquisitorial, com especial ênfase nos atributos de santidade relacionados às mulheres.

Ambos os documentos, produzidos na Península Itálica do século XIII, são contemporâneos ao processo de fortalecimento papal, determinante para o endurecimento do controle e reconhecimento de santidade. A análise dos atributos de santidade realizado por A. R. F. Torres foi executada tendo como aporte teórico a categoria gênero, na interpretação sistematizada por Scott. Nesse sentido, para a autora do capítulo, a questão do gênero interferiu na construção dos modelos exemplares femininos para tal sociedade, principalmente considerando a questão da mentoria masculina ou a sua ausência nos mencionados documentos.

Pensando o aspecto social da santidade, o texto “A santidade em construção: revolvendo camadas para expor as instituições atuantes na canonização de Domingos de Gusmão (1233-1234), de Thiago de Azevedo Porto, reflete sobre a canonização de Domingos de Gusmão como um processo coletivo e complexo, em que tomam parte interesses de agentes sociais diversos, que incluíam a autoridade pontifícia. Para o autor, a santidade é uma formação post mortem, desconectada das escolhas em vida de Domingo, reconhecido como santo ainda no século XIII.

O processo de reconhecimento de santidade teria sido, portanto, resultado de uma construção coletiva, com rota não linear, com avanços e contradições, que devem ser entendidas levando em consideração processos que antecedem à canonização do dominicano. Dessa forma, torna-se possível compreender como foi organizada uma campanha para viabilizar o sucesso do processo de Domingo junto a Igreja Romana.

A santidade feminina a partir de processos inquisitoriais é abordada em um novo capítulo, intitulado “Considerações sobre as Almas Simples Aniquiladas e a condenação da beguina Marguerite Porete (1250-1310) e escrito por Danielle Mendes da Costa. Em seu texto a autora busca entender como a condenação por heresia de Marguerite Porete pode ter sido motivada pela interpretação da instituição eclesiástica de que as ideias defendidas pela beguina representavam uma ameaça ao poder da Igreja Romana.

M. Costa apresenta a produção documental de Marguerite Porete, sua temática e organização, as tentativas de silenciamento por parte da Igreja Romana, por meio dos inquisidores, e a chegada dos manuscritos até os dias de hoje. Do ponto de vista conjuntural, são apresentados o contexto pontifício do século XIII e o movimento beguinal e de espiritualidade feminina dos séculos XII e XIII. Nesse sentido, a autora conclui que a defesa de um caminho para a salvação que não estava atrelada à instituição eclesiástica foi interpretada como uma ameaça e uma concorrência e, portanto, destinada à repressão por ser considerada um desvio da ortodoxia, culminando na morte de sua propositora.

Em “A influência franciscana na cidade de Pádua: um estudo sobre a narrativa da pregação antoniana na Beati Antonii Vita Prima”, o autor Victor Mariano Camacho estabelece o estudo da pregação de Antônio de Lisboa, também conhecido como de Pádua, no contexto franciscano e urbano. O estudo privilegia os sacramentos e a influência da ordem nos contextos citadinos a partir da obra Beati Antonii Vita Prima, também conhecida como Legenda Assídua, que trata da vida do então conhecido como Fernando Martins de Bulhões.

M. Camacho apresenta brevemente os dados documentais como autoria, destinação da obra e organização textual. A ação pregadora de Antônio no ambiente urbano também é sistematizada, com especial enfoque para o décimo terceiro capítulo da hagiografia, com sua ação de modificação do espaço comunal, desde a prática da usura até a prostituição. A ação antoniana em Pádua foi interpretada pelo autor como uma reprodução da influência pastoral franciscana em alinhamento com as diretrizes centralizadoras de Igreja de Roma daquele período.

Dando sequência aos estudos franciscanos com ênfase na atuação de Antônio de Pádua/Lisboa, Jefferson Eduardo dos Santos Machado, autor do capítulo “Sacramentos da confissão no discurso franciscano do século XIII, a partir dos Sermões Antonianos”, destaca a o processo de institucionalização do movimento, com a aproximação dos Frades Menores do poder pontifício. Tal como o texto de Camacho, o aspecto sacramental é enfatizado, mas neste episódio, principalmente no que diz respeito à Reconciliação e à Confissão.

Segundo J. E. S. Machado, os Sermões Antonianos estavam organizados para serem utilizados de acordo com o calendário litúrgico, o qual não estava alinhado com o da Igreja Romana. A partir da análise dos sermões da Quaresma e a Confissão, o autor afirma que como um sacramento, a confissão tinha grande importância no discurso antoniano, sendo apontada como importante elemento para a salvação da alma. A confissão passou, portanto, a ser um elemento de vigilância para a Igreja Romana, em um contexto de fortalecimento e centralização do poder pontifício.

O século XIII também foi abordado a partir dos regastes neotestamentários, como a Epístola de Tiago, tema abordado por Gabriel Braz de Oliveira em “Uma alternativa de leitura sobre a pobreza medieval no Novo Testamento: a trajetória canônica da Epístola de Tiago”. O documento foi, portanto, retomado no âmbito do debate sobre os fundamentos da pobreza evangélica e mendicante. Mesmo no contexto de formação do cânon neotestamentário, a epístola passou por uma aceitação paulatina e marcada por diversas desconfianças das autoridades eclesiásticas, que foram contrapostas pela aceitação de outros personagens de grande influência, como Eusébio de Cesaréia, Atanásio, Jerônimo e Agostinho.

B. Oliveira dividiu sua investigação sobre o texto em partes, sendo elas: as características do documento, como as temáticas, a autoria e a datação; o conteúdo histórico hermenêutico, reunindo comentários realizados pela carta em diferentes momentos, principalmente pelos autores patrísticos, e; apresentação de uma leitura da pobreza na Epístola de Tiago, como crítica ao apreço pelo materialismo, que busca normalizar a segunda geração de cristãos.

Abordando também as leituras exegéticas realizadas no período medieval, o capítulo de “Espiritualidade e milenarismo na Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore (1135-1202)”, de autoria de Valtair Afonso Miranda, analisa os escritos de Joaquim de Fiore, a partir da ideia de que há um rompimento com a tradição agostiniana na História da Igreja, dando lugar a uma nova forma de espiritualidade. Na obra Expositio in Apocalypsim, Joaquim faz um comentário do Apocalipse de João, que foi analisada para este capítulo a partir dos aspectos da espiritualidade e do milenarismo.

Segundo, V. A. Miranda, o abade cisterciense preocupou-se em correlacionar todas os episódios do texto do apocalíptico com eventos históricos atrelados a História Eclesiástica, tanto em perspectiva linear quanto cíclica. Como monge beneditino da Ordem Cisterciense, Joaquim estava inserido nos movimentos reformadores que envolveram a sociedade ocidental dos séculos XII-XIII, e que foi apropriada pelo autor da exegese para ampliar os valores monásticos para a Cristandade. O apocalipticismo de Joaquim de Fiori, portanto, conjugou-se com o milenarismo que buscava a unidade e a transformação da ecclesia.

Analisando uma narrativa produzida em um mosteiro, Alinde Gadelha Kuhner, em “A Fundação de Santa Cruz de Coimbra de acordo com a Vita Tellamos Archidiaconi”, discute a promoção da legitimidade da fundação de Santa Cruz de Coimbra e a natureza tipológica da Vida de D. Telo. Segundo a autora, tal documento não é satisfatoriamente enquadrado como hagiografia e, por este motivo, a natureza do relato é debatida no seu estudo. De autoria conhecida, o documento foi produzido no referido mosteiro.

O questionamento de A. G. Kuhner sobre a classificação da narrativa como hagiográfica esteve baseada na importância atribuída ao protagonista por seu hagiógrafo, pela ausência de dados biográficos do hagiografado, sendo estes obliterados pelos dados referentes à fundação do mosteiro, fato que acontece em momento já avançado de sua vida. Reforçando tal argumento, a autora destaca que mesmo o relato sobra peregrinação de Telo para Terra Santa é fato menor se comparado a importância desta fundação para a narrativa. Em síntese, teria sido o papel do santo na construção do mosteiro e no reconhecimento do espaço pelo poder pontifício que o qualificou à posição de santo.

As análises de narrativas hagiográficas estão presentes também no capítulo “A construção da figura feminina na Vita Sancti Theotonii”, de autoria de Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira. A partir do estudo sistemático da obra Vita Sancti Theotinii, o autor buscou entender quais escolhas discursivas foram feitas para representar a figura feminina e porque o hagiógrafo optou por tais desígnios. Em um contexto de crescente relevância da castidade, a partir da reforma dos ideais religiosos dos séculos XI e XII, a figura da mulher estava associada, em algumas narrativas, como antítese da castidade e obstáculo para a santidade.

O ensaio de J. R. S. C. Oliveira buscou analisar duas passagens da Vita Sancti Theotonii a partir da construção da imagem da mulher como agente desviante. O modelo a ser seguido era, sem dúvida, a de Teotônio, principalmente para os outros religiosos. A castidade era uma demonstração da pureza corporal transformada em base para a vida religiosa. Por sua vez, as figuras femininas foram representadas de duas formas, segundo o autor do capítulo, como ferramenta de reforço de sua santidade e como agente de desvio e fonte de vigilância para os votos.

Analisando a tradição mariana, Guilherme Antunes Junior, em “A cantiga 26 e o romeiro pecador: gênero nas imagens e nos textos nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X”, reflete sobre as implicações políticas e culturais de um milagre que recai sobre um peregrino pecador. O documento em questão foi patrocinado pelo rei Afonso X e produzido como um conjunto de quatro manuscritos, no século XIII. Em representação semelhante à apresentada por J. R. S. C Oliveira, a figura feminina também aparece como elemento de desvio e de ameaça à castidade.

Antunes Junior entende que o texto poético e as imagens contidas na Cantiga constroem discursos sobre homens e mulheres e, portanto, podem ser analisadas a partir das relações de gênero, com seus papéis sociais e relações de poder. O autor utiliza o conceito proposta por Scott para interpretar tal documentação. As conclusões do autor dizem respeito às implicações políticas, que envolvem a cantiga e as tensões entre Afonso X e o clero compostelano, e às questões de gênero, que implicam à figura da mulher má no pecado do romeiro em seu texto, mas não nas ilustrações contidas na mesma obra. Em contrapartida, também é a figura feminina de Maria que garante a salvação do personagem desviado, antagonizando, desta forma, duas representações femininas polarizadas.

As interpretações eclesiásticas sobre o tema do casamento foram analisadas por Mariane Godoy da Costa Leal Ferreira em “Uniões entre Borgonha e Leão – Castela: os casamentos de Urraca e Raimundo (1091) e de Teresa e Henrique (1096)”, considerando o contexto ibérico do final do século XI. Nesse sentido, as alianças matrimoniais entre Borgonha e Leão-Castela já estavam em prática desde o início do século XI, mas a autora tem por objetivo demonstrar que os casamentos das filhas do rei castelhano-leonês Afonso VI, Urraca e Teresa, com Raimundo e Henrique, foram vantajosos politicamente para o reino, mas acabaram por afetar o contexto peninsular na passagem do XI para o XII séculos.

G. C. L. Ferreira analisa a crônica cartulário História Compostelana, escrita em Santiago de Compostela, no século XII, com o objetivo de valorizar a vida de Diego de Gelmírez, colocando o contexto político como um elemento secundário em sua narrativa. Os casamentos de Urraca e Teresa são apenas mencionados enquanto temas do interesse eclesiástico, como adultério e o papel das viúvas. A autora afirma ainda que, do ponto de vista político, tais casamentos e seus herdeiros teriam gerado uma crise sucessória em todo o contexto peninsular, uma vez que o discurso documental culpabiliza o comportamento sexual das rainhas, com o intuito de justificar a existência de tais conflitos.

Analisando as leis suntuárias de Múrcia sobre vestimentas e adornos, Thaiana Gomes Vieira encerra a obra coletiva com o capítulo “Consumo suntuário e a sociedade Murciana dos séculos XIII e XIV”, questionando o papel dado a aparência na sociedade urbana e as necessidades de normalização apresentadas no contexto dos séculos XIII e XIV. Como pressuposto que perpassa a pesquisa, a autora defende ser possível falar em “moda” para o período, sendo as vestimentas e os adornos formas de comunicação e identificação comuns às altas camadas da sociedade. É justamente por este papel social que surge, então, a necessidade de normalização e regulamentação.

G. Vieira chama atenção para as conturbações sócio-políticas de Múrcia no século XIV, bem como a ampliação pecuária, da produção têxtil e do comércio de produtos e materiais. Nesse sentido, tais aspectos não implicaram em uma desvalorização da moda ou da ostentação nas formas de vestir, comer e habitar. As normativas murcianas indicavam o que deveria ser utilizado pelos diferentes grupos sociais, não apenas por motivações econômicas, mas para a manutenção da hierarquia social, a partir de um código de aparência.

Considerações finais

As categorias de análise anunciadas tanto no título quanto na apresentação da obra podem ser observadas individual ou combinadamente nos dezessete capítulos. Em se tratando do tema da santidade, F. G. Martins, A. P. L. Pereira, A. R. F. Torres, T. A. Porto, tornaram o assunto um dos principais eixos de seus estudos. A partir da perspectiva de gênero, A. P. L. Pereira, A. R. F. Torres, D. M. Costa, J. R. S. C. Oliveira e G. Antunes Junior buscaram enfatizar a categoria nas análises documentais realizadas. Por fim, o último tema explicitamente anunciado, a memória, foi trabalhado em maior ou menor medida, nos capítulos de F. G. Martins, A. C. L. F. Silva, A. R. Carvalho, A. R. Oliveira, A. P. L. Pereira, A. R. F. Torres, T. A. Porto, V. M. Camacho, A. G. Kuhner, J. R. S. C. Oliveira, G. Antunes Junior e M. G. C. L. Ferreira.

Porém, estas podem ser consideradas apenas algumas das várias maneiras de perceber as correlações existentes entre os capítulos que compõem o livro. Do ponto de vista metodológico, o comparativismo possui grande destaque, o que pode ser justificado pela inserção e/ou status de egressos de muitos autores com o Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ. Os textos que utilizam implícita ou explicitamente tais aportes, seja na comparação de documentos, regiões, personagens, imagens e seus textos, diferentes interpretações de textos em novos contextos, dentre outras possibilidades, formam escritos por L. L. Carvalho, A. P. L. Pereira, A. R. F. Torres, G. B. Oliveira, V. A. Miranda, G. Antunes Junior e M. G. C. L. Ferreira.

Em uma avaliação de conjunto sobre a metodologia, as análises, em geral, foram exaustivas sobre um ou dois documentos, em contraposição a possibilidade de estudos temáticos generalistas e menos metódicos – que se utilizam, superficialmente ou não, de documentações numerosas e/ou pontuais para suas pesquisas – um dos benefícios que podem ser percebidos nas abordagens aqui apresentadas seria uma análise mais completa e complexa dos textos em conexão com os seus contextos. Tal aspecto, portanto, pode ser considerado mais um pressuposto metodológico do grupo.

O livro Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval é um produto derivado de um nítido esforço coletivo de pesquisadores medievalistas brasileiros, que contribuem para a divulgação científica das ciências humanas e dos projetos de articulação de ensino, pesquisa e extensão realizados na cidade do Rio de Janeiro.

Juliana Salgado Raffaeli – Doutora PEM-PPGHC-UFRJ/ Docente UNIRIO-CEDERJ-UAB. E-mail: [email protected] ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2196-922X


SILVA, A. C. L. F. da (Dir.). Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval. Rio de Janeiro: Programa de Estudos Medievais, 2018. Resenha de: RAFFAELI, Juliana Salgado. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.19, n.2, p. 272- 282, 2019. Acessar publicação original [DR]

Mártires, confessores e virgens. O culto aos santos no Ocidente Medieval | Andréia Silva, C. L. Frazão da

Diferentes perspectivas, abordagens e aspectos da santidade na Idade Média

O livro é uma iniciativa de vários professores doutores ligados ao Programa de Estudos Medievais da UFRJ, organizado por Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva e Leila Rodrigues da Silva. Após o prefácio que apresenta a obra, escrito pelo Prof. Dr. Ronaldo Amaral da UFMS, seguem cinco capítulos, cada um com de cerca de 30 páginas, que abordam por diferentes perspectivas e recortes espaço-temporais a temática da santidade na Idade Média. Ainda estão inclusas as Referências, informações sobre a Documentação consultada, Sugestões de Leitura e dados sobre a trajetória intelectual dos Autores do livro.

O capítulo inicial do livro, “Mártires na Antiguidade e na Idade Média”, escrito por Valtair Afonso Miranda, tem como questão central o fenômeno histórico do martírio, pensando para quem os relatos foram produzidos e a que interesses atendiam com essas representações do sofrimento e da morte. Para dar conta desse questionamento, o autor analisou a tradição cristã do martírio em suas diferentes manifestações nas comunidades cristãs antigas e medievais.

Desde sua origem etimológica, afirmou Miranda, o “mártir” era tanto aquele que deveria ser lembrado quanto quem possuía o conhecimento de algo e poderia apresentar seu testemunho. Nesse sentido, um dos primeiros documentos do cristianismo a descrever a morte de um cristão foi o “Martírio de Policarpo”. Segundo o autor, o texto já apresentava o “mártir” como a própria testemunha que morria em grande sofrimento. Para o segundo século, o termo já indicava sofrimento e/ou a morte de alguém que era, especificamente, seguidor do movimento de Jesus.

Miranda retomou diversas referências anteriores ao martírio cristão para demonstrar que, tanto no judaísmo quanto no Império Romano, a imagem de morte por um ideal já estava bem consolidada. Associada a isso, a própria morte de Jesus foi uma referência essencial para a construção do conceito de martírio, motivado pelas expectativas messiânicas, que atrelavam o perdão da humanidade a uma morte dolorosa e violenta do salvador. Uma terceira referência foi construída pelo Apocalipse de João, que promoveu a ideia de martírio como etapa necessária para o Juízo Final. Dessa forma, um dos modos dos fieis participarem da instauração do reino messiânico era por meio da morte violenta. “As mortes cristãs, quando ritualizadas segundo o modelo do mártir, eram eficientes instrumentos de propaganda para o cristianismo numa sociedade que aprendera a respeitar quem sabia morrer” (p. 42).

Após o fim das perseguições aos cristãos, não eram mais encontradas essas formas de morrer em nome da crença. O autor ressaltou, então, os aspectos principais do martírio espiritual, que assumiu o lugar do sofrimento pela tortura e a morte violenta dos períodos anteriores. Esse martírio poderia ser qualquer situação de desconforto, inclusive físico, praticado de forma voluntária e que não levava a morte. Poderiam ser realizados em casas religiosas, dentro do matrimônio, em solidão ou no exílio. Os monges comumente passaram a ser vistos como os “novos heróis” do cristianismo. De modo geral, o “martírio espiritual” era um conceito fluído, que se adaptou para explicar situações diferentes de sofrimento.

Contudo, durante a Idade Média Central, por conta de uma nova onda de propagação de heresias, martírios – no sentido inicial da concepção cristã – voltam a ocorrer e novos mártires – como Tomás Becket e os cinco franciscanos mortos no Marrocos – rapidamente passam a ser cultuados com fervor. Em vista disso, Miranda afirmou, nas suas conclusões, que era de suma importância para a construção das novas comunidades religiosas definir quem era o seu herói. Isto era “um exercício de poder, poder esse que define limites identitários, esclarece alteridade, reforças práticas e crenças religiosas, gera papéis sociais, legitima governos, socializa visões de mundo” (p. 54).

No segundo capítulo “Monges e literatura hagiográfica no Início da Idade Média”, Leila Rodrigues da Silva desenvolveu sua análise com dois objetivos principais. No primeiro, tratou da História do monacato desde suas origens orientais até os seus desdobramentos nos reinos romano-germânicos, ou seja, a partir do século IV e com especial atenção aos séculos VI e VII. No segundo, a autora associou a apresentação da tipologia documental das hagiografias com a análise dos estudos de caso de monges de três regiões, a saber: Bento de Núrsia da Península Itálica, Frutuoso de Braga da Península Hispânica e Amando de Maastricht das Gálias. Os relatos hagiográficos dos três monges expressavam o anseio geral de cristianização dos seus períodos e manifestavam a importância da construção e multiplicação de comunidades monásticas para a efetivação destas ambições.

A respeito do monacato, Rodrigues da Silva apresentou as principais hipóteses produzidas sobre a motivação inicial para tal movimento ascético no contexto do Império Romano do Oriente. Essas proposições se resumiam na ideia de que para entender a complexidade do fenômeno era necessário considerar tanto o anacoretismo como uma atitude de protesto – seja em relação ao aspecto religioso ou político – quanto uma decisão pessoal e moral do asceta. As duas formas principais de monacato que se originaram nesse contexto, o eremitismo e o cenobitismo, chegaram ao Ocidente sem que houvesse descontinuidade em relação à sua motivação original. Além disso, se associaram às formas ascéticas já praticadas localmente. Entre os séculos IV e VII, o movimento monástico foi vinculado ao episcopado, que se preocupou com a produção de regras comunitárias, normativas conciliares e a expansão da cristianização com atuação de monges nas áreas rurais.

A segunda preocupação de Rodrigues da Silva estava pautada em como a experiência monástica se expressava nos textos hagiográficos, buscando comparativamente as semelhanças e as especificidades nos três contextos eleitos. O primeiro monge analisado, Bento de Núrsia, ficou conhecido pela perspectiva de seu hagiógrafo, Gregório Magno. Segundo a narrativa, Bento teria origem em família abastada, com acesso à educação em Roma. Sua experiência religiosa incluiu um período de isolamento, disputas com os demônios, destruição de ídolos, construção de doze mosteiros, produção de uma regra e preparação de outros monges – destacando nessas obras o papel das virtudes da obediência e da humildade. O segundo hagiografado, Frutuoso de Braga, foi apresentado por um anônimo. Seu narrador indicou uma intensa participação eclesiástica e política: ele teria produzido duas regras monásticas, participado de concílios, trocado correspondências com reis e bispos e assumido duas dioceses. O monge-bispo seria totalmente dedicado à vida monástica, valorizando suas características ascéticas orientais – como o desejo pela peregrinação e a necessidade de isolamento -, fundando novas casas e promovendo o monacato de modo geral. O terceiro e último monge anunciado por uma hagiografia, Amando de Maastricht, foi relatado anonimamente. Além dessa narrativa, esteve referenciado em cartas trocadas com Martinho I, bispo de Roma. Após um período de isolamento ascético de quinze anos, sua característica monástica mais marcante foi a atividade missionária desempenhada em diversas regiões dos reinos merovíngios. Também foi sagrado bispo por sua associação com a monarquia e o episcopado local.

A autora concluiu que, comparativamente, o monacato ocidental visto a partir das narrativas hagiográficas dos reinos romano-germânicos não configurou uma contestação veemente à instituição eclesiástica. A perspectiva eremítica marcou a trajetória inicial dos monges destacados da hierarquia eclesiástica, se concretizando como um “ideal desejado”.

Passando ao terceiro capítulo “Santos e episcopado na Península Ibérica”, Paulo Duarte Silva partiu das proposições historiográficas de Peter Brown, que superou a dicotomia estabelecida sobre as documentações hagiográficas – reforçando ou rejeitando a santidade dos protagonistas – e permitiu o estudo do contato dos “eclesiásticos seculares” com outros grupos religiosos. Segundo Duarte Silva, estudiosos recentes contestaram as fronteiras entre os cuidados episcopais e o pretenso isolamento monástico. O episcopado se desenvolveu como função eclesiástica, desde o século I até as mudanças na organização e na estrutura promovidas pela aproximação do Império Romano e a ecclesia. Do ponto de vista Ocidental, o autor chamou atenção de que gradualmente as aspirações aristocráticas aos cargos eclesiásticos se aprofundaram, sendo acompanhadas pelo interesse de adesão ao monasticismo. Na Alta Idade Média, predominava o monacato beneditino. Como consequência, a partir dos séculos X e XII, consolidaram-se as ordens beneditinas de Cluny e Cister. Para a Idade Média Central surgiram novas demandas de religiosidade, que deram grande destaque às ordens mendicantes – de franciscanos e dominicanos.

Duarte Silva teve por objetivo analisar as relações entre o cursus episcopal e as ordens religiosas de bispos-santos cristãos. Partindo do recorte temporal da Alta Idade Média até a Idade Média Central, dedicou-se a análise de bispos e cônegos, especificamente que tivessem atuado na Península Ibérica. Para viabilizar a comparação, o especialista estabeleceu eixos de análise como: a trajetória institucional na fundação de mosteiros e conventos, a participação de concílios e as relações assumidas com as autoridades monárquicas. Para tanto, elegeu oito figuras de bispos considerados santos e dentro dessas especificações: Martinho de Braga (520-580); Isidoro de Sevilha (560-636); Rosendo de Celanova (907-977); Ato de Oda/Valpuesta (m. 1044); Olegário de Tarragona (1060-1137); Bernardo Calvo (1180-1243); Agno de Saragoça (1190-1260), e; Berengário de Peralta (1200-1256).

O terceiro capítulo apresentou como conclusão que, desde a Alta Idade Média, a grandiosidade dedicada à memória dos clérigos oriundos do monacato demonstrou o interesse eclesiástico em organizar, adequar e submeter a vida monástica às decisões episcopais e conciliares. Nesse sentido, surgiram novas possibilidades de consagração pública, promovendo e organizando a santidade ibérica. Com o passar dos séculos foi possível observar um processo de expansão do modelo monástico beneditino, a partir do Norte da Península Ibérica em detrimento da tradição visigótica. Gradativamente, a santidade também foi atribuída a bispos relacionados aos cônegos e aos mendicantes. Em suma, Duarte Silva afirmou que as trajetórias dos bispos santos peninsulares possuíam diversos eixos de continuidade – origem nobiliárquica, estadia em mosteiros ou em conventos, apoio das monarquias e participação dos personagens em concílios – enquanto simultaneamente era permeado por características de ruptura. Ou seja, “a santidade é histórica, e por isso, embora admita elementos comuns, deve der associada a diferentes contextos políticos e religiosos” (p. 113).

Em “As ordens mendicantes e a santidade na Idade Média”, o quarto capítulo do livro, a autora Carolina Coelho Fortes traça a relação entre os fenômenos da santidade e do surgimento das ordens mendicantes, surgidas a partir do século XIII. Para isso, o capítulo foi dividido em cinco partes: a santidade no Medievo, surgimento e formação das ordens mendicantes, a santidade mendicante, Francisco de Assis e Domingo de Gusmão.

Na primeira parte, de maneira muito densa e completa, foi apontado o que era necessário para ser considerado santo na Idade Média e quais os perfis de pessoas cultuadas conforme o Medievo avançava. Assim, embora as hagiografias apontassem que seria impossível tornar-se santo – porque a santidade começava a se manifestar desde a mais tenra idade e continuamente ao longo da vida e após a morte – a autora demonstrou o contrário. Ela destacou que é possível considerar as múltiplas dimensões da temática e abordá-la nas perspectivas espiritual, teológica, religiosa, social, institucional e política. A visibilidade, a materialidade, a corporeidade, o serviço prestado à comunidade, os sacríficos, dores e renúncias, o combate ao mal, os milagres e a esperança de redenção trazida para a comunidade, tudo isso está na lista de topoi hagiográficos que ao mesmo tempo promovia a difusão e o reconhecimento (eclesiástico ou não) da santidade, segundo Fortes. E por isso, a santidade deveria ser entendida como “uma construção social, um ideal que se desenvolveu historicamente” porque “tipos diferentes de pessoas eram percebidos como santos pelas comunidades cristãs durante períodos distintos” (p. 102).

Ainda na Antiguidade, o primeiro tipo teria sido composto por mártires e, sem que seu culto fosse eclipsado pelos modelos posteriores, durante a Idade Média juntaram-se a eles: os bispos, os ascetas, os nobres que conseguiam altos cargos na hierarquia eclesiástica, os leigos nas cidades, os mendicantes, os penitentes, a Virgem Maria e, finalmente, os leigos. A autora fez considerações que relacionam os elementos da tipologia já descrita com os diferentes contextos históricos – da Antiguidade Tardia até a fins do Medievo, passando pela Alta Idade Média e Idade Média Central – ou seja, uma duração de aproximadamente 1000 anos. Neste interim, Fortes destacou o impacto da criação dos processos de canonização, no século XIII, no controle da santidade pelo papado, bem como isto contribuiu para a “humanização” ou “popularização” da santidade. Este último fator fez das personagens santas cada vez mais conhecidas, familiares e inspiradoras de uma devoção mais afetuosa do que referencial (p. 125).

Ao tratar das ordens mendicantes, a autora fez uma síntese de como as transformações ocorridas no Ocidente, desde o século XI, possibilitaram o seu surgimento. E então, o texto abordou alguns pontos entrecruzados a este respeito principalmente da Ordem dos Frades Menores – franciscanos – e da Ordem dos Pregadores – dominicanos, a saber: como normatizar as ordens mendicantes foi útil para a consolidação da cúria papal; como franciscanos e dominicanos lidaram com o delicado e controverso voto de pobreza; como a produção hagiográfica sobre Francisco de Assis e Domingos de Gusmão promoveu ao mesmo tempo o culto destes fundadores, a institucionalização de ambas as ordens e estabilizou as relações das mesmas com Roma, além de criar modelos de frades e freiras a serem seguidos. As diferenças entre as duas ordens também ficam claras porque a autora as apresentou comparativamente. Embora a pobreza, a pregação, a obediência, os estudos, a presença de leigos e de clérigos nos quadros das ordens e o combate aos inimigos da fé fossem questões importantes para ambas, a ênfase dada a cada uma destas temáticas foi bem distinta e pautada pelos objetivos dos fundadores – e dos seus sucessores – e os ambientes onde cada uma delas atuava.

Nas partes que se seguem do capítulo, Fortes analisou e demonstrou, mais uma vez por meio das comparações entre as ordens e seus fundadores, como os processos de canonização estavam intrinsecamente conectados com a santidade mendicante e, portanto, com o culto a Francisco de Assis e a Domingos de Gusmão. Foram levantados argumentos quantitativos e relações com o contexto histórico, bem como exemplificações constantes de como funcionava uma canonização no século XIII, e como os casos de Francisco e Domingos são excepcionais, principalmente por causa da sua celeridade e impulso papal direto. Contudo, nas considerações finais, Fortes fez questão de frisar que a compreensão do fenômeno da santidade encontra-se situada em algum lugar entre as aspirações centralizadoras papais e as demandas da religiosidade leiga do período, que seguiam a efervescência filosófica, educacional, econômica e social do século XIII.

No quinto e último capítulo, “Mulheres e santidade na Idade Média”, Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva estabeleceu como objetivo “destacar, a partir das singularidades da biografia e culto das personagens, a sobrevivência e a complexidade do fenômeno da santidade feminina por todo o Medievo” (p. 150). Deste modo, as personagens referidas são mulheres que viveram entre os séculos V e XIII e que receberam variadas formas de reconhecimento público de santidade.

As motivações da autora para tal empresa foram duas ressalvas e dois pressupostos. A primeira ressalva inicia o capítulo, pois segundo Sofia Boesch Gajano, em um verbete do Dicionário Temático do Ocidente Medieval, o número de mulheres consideradas santas teria aumentado no século XIII. Porém, Frazão da Silva apontou que é necessário não superestimar este crescimento. A autora citou como base de sustentação os dados das pesquisas clássicas de André Vauchez sobre o tema e ainda os resultados do projeto coletivo de pesquisa Hagiografia e História: um estudo comparativo da santidade, desenvolvido no âmbito do Programa de Estudos Medievais da UFRJ. A segunda ressalva é que o fenômeno da santidade feminina se tornou mais diversificado e expressivo na Idade Média Central. Porém não foi uma inovação do período, já que uma quantidade significativa de santas cultuadas pelos medievais já eram veneradas desde a Antiguidade.

Os pressupostos da autora são de caráter historiográfico. A autora adverte que a sua concepção de santidade não é essencialista e que ela leva em conta também as expectativas e interesses daqueles que promovem os cultos. Mais importante para o entendimento do capítulo é a conceituação de biografia que ela apresenta: “um exercício que busca compreender os laços, nem sempre diretos ou simples, que ligam uma pessoa ao momento histórico em que viveu” (p. 150).

Assim, após as observações introdutórias, segue uma lista, em ordem cronológica, de pequenas biografias de mulheres consideradas santas – com ou sem reconhecimento de Roma. Em cada uma delas, a autora faz questão de mencionar como o culto de uma santa foi retomado na Idade Média, no caso das santas da Antiguidade, ou como o culto perdurou para além do Medievo, no caso das devoções iniciadas neste período. E ainda, quais são as fontes escritas que nos informam sobre as personagens, tendo elas sendo produzidas pelas próprias ou por terceiros. A lista é longa e fica evidente que o intuito da autora é apresentar personagens as mais diversas possíveis entre si, apesar das muitas semelhanças entre elas.

Santa Escolástica, monja exemplar da Península Itálica, que teria vivido entre os séculos V e VI, e irmã de São Bento, o criador da regra de vida beneditina para os monges. Santa Radegunda, uma rainha piedosa de ascendência germânica da Alta Idade Média, que se recolheu a um mosteiro. Santa Valpurga, outra dama da nobreza e abadessa que viveu nas Ilhas Britânicas, no século VIII. Santa Oria, jovem que tinha sonhos e visões e foi “emparedada” (modalidade de religiosa totalmente reclusa), em Castela, no século XI. A próxima da lista é mais famosa ainda pelas suas visões, pela sua trajetória institucional eclesiástica e pelos seus escritos. Considerada doutora da Igreja, viveu na região da atual Alemanha, no século XI, trata-se de Santa Hildegarda de Bingen. Santa Clara de Assis, filha de nobres da cidade de Úmbria, na Itália, do século XIII, a primeira franciscana e fundadora do ramo feminino da Ordem dos Frades Menores. E, por fim, Santa Guglielma, nascida na Boêmia, no século XIII, possivelmente também uma princesa, que faleceu na Itália próxima a abadia de Chiaravalle. O caso de Guglielma é um dos mais singulares, porque inicialmente ela foi cultuada por um grupo local de seguidores, mas posteriormente foi condenada pela Inquisição.

Nas considerações finais do capítulo, a autora nos apresenta uma lista muito maior de nomes que poderiam ter sido citados, o que nos permite ter uma dimensão da sua primeira conclusão: mesmo que a mulher fosse vista como débil em vários sentidos no pensamento hegemônico medieval, isto não impediu que houvesse um grande número de personagens femininas consideradas dignas de devoção pelos medievais. Também não seria possível traçar um perfil único para a santidade feminina medieval. Novos tipos de personagens vão sendo incorporadas ao rol das veneradas e, apesar da constância da vida religiosa na biografia de todas, cada uma delas seguiu passos bem diferentes nestes caminhos. Sendo assim, mais uma vez fica claro como o fenômeno da santidade não é estático, é histórico e profundamente conectado com as conjunturas, anseios sociais e relações de poder (p. 181).

Destacam-se a clareza da redação ao longo de todo o livro e a preocupação em explicitar os objetivos e metodologias das pesquisas realizadas – bem como a coerência de se manter fiel ao que foi proposto. Os capítulos dialogam entre si e evitam repetições, porém sem deixar de mencionar o que for importante para o entendimento das questões analisadas. Desta forma, o livro cumpre duas funções. Apresentar um trabalho amplo e atualizado para aqueles que desejam iniciar o estudo do culto aos santos no Ocidente Medieval, podendo assim fazer bom uso da leitura completa do livro. Ou ainda, para aqueles que já se estão se aprofundando em alguma das temáticas específicas, ler um dos capítulos possibilita o conhecimento de abordagens novas, variadas e críticas.

Juliana Salgado Raffaeli – Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada, UFRJ. E-mail: [email protected]

Thalles Braga Rezende Lins da Silva – Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada, UFRJ. E-mail: [email protected]


SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da; SILVA, Leila Rodrigues da Silva. Mártires, confessores e virgens. O culto aos santos no Ocidente Medieval. Petrópolis: Vozes, 2016. Resenha de: RAFFAELI, Juliana Salgado; SILVA, Thalles Braga Rezende Lins da. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.1, p. 255- 261, 2017. Acessar publicação original [DR]