O Livro de Anaximandro. O mais antigo tratado geográfico conhecido – HEIDEL (RA)

HEIDEL, William A. O Livro de Anaximandro. O mais antigo tratado geográfico conhecido. Tradução, apresentação e apêndices de Katsuko Koike; 1ª Ed. Mogi Mirim/SP: Ixtlan, 2011.Resenha de: CORNELLI, Gabriele. Revista Archai, Brasília, n.8, p.143-144, jan., 2012.

A  tradução para o português do artigo de  William Heidel,  Anaximander’s Book, the Earliest  Known Geographical Treatise  (1921) representa  uma contribuição de interesse para o estudo dos  Pré-socráticos. Apesar de já circularem no espaço literário brasileiro alguns trabalhos de relevo sobre os primórdios do pensamento grego, poucos foram os livros editados que trataram de modo específico sobre Anaximandro de Mileto. O helenista americano William Heidel (1968-1941) não procurou  nesse texto discutir a antiga metafísica jônica,  da qual os filósofos de Mileto seriam os primeiros representantes. Seu objetivo, ao invés disso, foi  investigar questões muitas vezes negligenciadas  pela literatura especializada, como por exemplo, a relação da obra de Anaximandro com seu mapa do mundo, ou a natureza desse pretenso escrito. Os  testemunhos sobre o milésio lançam indícios de que seu livro era mais que um mero tratado de filosofia, física ou astronomia, pois deveria conter também assuntos geográficos e históricos supostamente  ligados ao mapa. A tradição doxográfica a partir  de Teofrasto foi responsável por moldar a figura  histórica de Anaximandro como filósofo puro. Mas se todos estiveram substancialmente dependentes dos trabalhos de Aristóteles acerca dos Pré-socráticos, é compreensível que a prioridade da análise recaísse sobre o saber cosmológico concebido pelos antigos physiologoi, como Anaximandro.

O alegado “livro”do milésio é considerado um dos primeiros escritos em prosa da Grécia, e sem dúvida, uma das mais influentes obras da Antiguidade. Sua publicação, ocorrida por meados do século VI a.C., serviu de referência para uma série de escritos posteriores sobre o mundo físico e cosmologia. Mas Heidel decide seguir outro roteiro, em sua pesquisa, com base na informação de que Anaximandro produzira um mapa do mundo conhecido, um relógio de sol e uma esfera celeste. Ao estudar a tradição histórico-geográfica presente em antigos autores  das épocas alexandrina e romana, como Eratóstenes, Estrabão e Agatêmero, além de outras fontes mais antigas, como Hecateu de Mileto e Éforo, ele procurou revelar outros aspectos importantes da  personalidade e da obra do milésio. A tradição bibliográfica tardia, a exemplo da que consta no léxico Suda, confere alguns títulos que no mínimo fornece- riam o escopo da obra que circulou na Antiguidade ligada ao nome de Anaximandro (pp. 13-51). Em  outra parte, o autor avalia o pretenso conteúdo do livro, negando que ele não consistira em um típico escrito de filosofia, mas basicamente continha dados histórico-geográficos segundo exigiria a construção de seu mapa da Terra (pp.51-68). Por fim, Heidel  busca provar a linha histórico-geográfica da obra  aprofundando-se na tradição geográfica alexandrina, ao largo da doxografia oficial de Teofrasto em diante (pp.68-80). Como conclusão, é dito que o livro  de Anaximandro não narrava ou explicava apenas  a cosmologia da Terra e os principais fenômenos  naturais. Para Heidel não há como encobrir o viés histórico da obra, que apresentava basicamente a descrição de povos e terras conhecidos do Mediterrâneo, como fará Hecateu uma geração depois. Outra contribuição importante neste volume está  nos dois apêndices finais (p.83 e p.125), que não apenas comentam o artigo de Heidel, mas também discutem as notícias e a bibliografia mais recentes sobre a figura histórica de Anaximandro e de sua  obra, incluindo uma vistoria nos dados arqueológicos do sítio de Mileto relacionados com seu ilustre cidadão. Katsuzo Koike, tradutor do artigo e autor dos apêndices, atualmente é bolsista da CAPES, e doutorando em Estudos Clássicos na Universidade  de Coimbra, Portugal.

Gabriele Cornelli – Professor da Universidade de Brasília. E-Mail: [email protected]

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Um Paradigma no Céu: Platão político, de Aristóteles ao século XX – VEGETTI (RA)

VEGETTI, Mario. Um Paradigma no Céu: Platão político, de Aristóteles ao século XX. São Paulo: Annablume, 2010. Resenha de: COSTA, Thiago Rodrigo de Oliveira; CORNELLI, Gabriele. O grau zero da hermenêutica platônica. Revista Archai, Brasília, n.6, p.139-141, jan., 2011.

Com esta obra madura de um dos maiores comentadores de Platão, Mario Vegetti, o acervo da literatura sobre a interpretação platônica em língua portuguesa ganha uma pedra fundamental de comparação e um alento novo. Mario Vegetti, organizador de um  monumental comentário da República, publicado em sete volumes pela editora Bibliopolis (1996- 2007) e autor da já celebre L’etica degli antichi (Bari, Laterza, 1989), entre outras obras de referência, dedica-se na presente obra, traduzida e publicada na Coleção Archai, à história da interpretação do Platão político “de Aristóteles até os nossos dias”. Com uma calma apresentação dos argumentos e um ritmo delicadamente marcado, o “Platão político “1  de Mario Vegetti (p. 25-42) emerge em meio a uma pluralidade de paradigmas 2 que de uma maneira ou de outra estabelecem uma relação com o discurso de Platão. Esta relação se constitui no interior de um  tópos  determinado do texto platônico e a partir de uma posição particular do leitor em relação ao  tópos  daquele texto. A conjugação do  tópos  e da posição do leitor em relação ao mesmo determinará uma perspectiva, e é a partir desta perspectiva, no interior de um dado paradigma do leitor, que se produzirá uma imagem, leitura ou tradução de Platão, ou no presente caso, do  Platão político.

O problema que opera como “pano de fundo”no livro de Vegetti é aquele de como estabelecer uma relação com o texto platônico que não possa ser reduzida à imagem do texto que a própria relação produz. Em outras palavras, é possível  ler  Platão? No confronto com este problema Vegetti teve de enfrentar a pluralidade de leituras, imagens, ou traduções de Platão e, consequentemente, de paradigmas a estas subjacentes.

Para Vegetti toda esta pluralidade de leituras que, na modernidade, vão do “teórico do ‘ideal’ com Kant e, ao invés, um teórico da ‘realidade substancial’ com Hegel”(p. 275) ao “Platão liberal e socialista com Grote, Pölhmann e Natorp, bolchevique com Russell, fascista ou comunista com Crossman, nazi e racista com Hildebrandt e Günther, totalitário com Popper, democrático em certas versões americanas”(ibidem), não constituem um erro hermenêutico a ser devidamente denunciado. Todas elas de algum modo se constituíram numa relação com o próprio texto de Platão, e não poderiam ter emergido se de alguma maneira o texto de Platão não as possibilitasse. O primeiro desafio é então lidar com o horizonte virtual aberto pelo texto ele mesmo. Permanece “o fato de a fluidez das situações discursivas nas quais os traços se acham inseridos  autorizar  uma  pluralidade  de interpretações possíveis”(p. 272).

Para Vegetti é o contrário do erro, em sentido estrito, que se encontra em jogo. Toda essa pluralidade de leituras de Aristóteles aos leitores do século XX nos permite enxergar “algo”do texto primeiro, “algo”daquele texto sobre o qual o comentário se exerce. E é esse “algo”, evidenciado pelas leituras efetuadas pelos comentadores, que interessa ao hermeneuta e ao historiador; interessa não tanto pelo que ele possa vir a dizer propriamente do texto primeiro, mas sobretudo pelo que ele pode mostrar da própria relação que o comentário efetua com o texto comentado. E é esta a relação que vegetti percorrerá ao longo de seu livro. 3

A polissemia estrutural dos textos platônicos, e a relativa autonomia da tradução dos três diálogos especificamente políticos, ajudam a explicar a amplitude da gama de interpretações  legitimamente possíveis, e estes, por sua vez, contribuem para melhor compreender a forma constitutiva irredutível do “fazer filosofia”por parte de Platão (p. 274). 4

Por outro lado é porque o texto segundo, ou o comentário, estabelece uma relação com o texto primeiro, o texto comentado, que ele pode ser  utilizado  também  como  uma  chave hermenêutica. Esta chave não abre efetivamente o “pensamento”de um autor, ela acessa um universo incorpóreo de discurso aberto pelo autor e que está em relação com o sentido do discurso efetivamente grafado pelo autor.

Daí porque o erro, propriamente dito, deva ser procurado em outro lugar. E este é mais um lugar fenomenológico que hermenêutico. É uma certa disposição  que o comentário estabelece em relação ao texto comentado que constitui o erro propriamente. Consistindo esta disposição em um intuito  de esgotar toda a superfície do  tópos  do texto primeiro. Tal pretensão é aparentemente satisfeita na medida em que o comentário percorra a série de enunciados (termo a termo) que constituem o  tópos  analisado. Contudo Vegetti nos mostra, em seu livro, que esta série pode ser percorrida por diversos paradigmas e de múltiplas formas, dentre as quais a leitura operada por este ou aquele comentário é apenas uma de muitas, uma de uma pluralidade possível. 5  Este é, por exemplo, o cerne de sua crítica a Hegel (p. 82) que ao comentar a  República a desloca do seu domínio próprio (que é um lugar de alteridade, ou o lugar do Outro) para aquele concernente ao seu (próprio, de Hegel) entendimento da filosofia (pp. 73-82). O erro das leituras se encontra na pretensão que instituem de abarcar por completo uma série aberta ao infinito. Quando Hegel, dentre outros, identificam no texto primeiro  um certo  sentido, eles excluem simultaneamente todos os  outros  sentidos abertos pelo texto primeiro, e o texto segundo passa a edificar e solidificar a imagem do primeiro, o que poderia não ocorrer, mas que em geral ocorre, quando Hegel escreve que o objetivo da República é das  griechische  Staatsleben,  ou  o Staatsorganismus, que Platão é intérprete do  “Geist vivo nele como no  Volk da Grécia ”,  da “substância ética do povo”como “todo vivo orgânico [ eine lebendig organische Ganz ] ”, ele inscreve o pensamento político de Platão, mesmo independentemente das suas intenções, numa rede conceitual que condicionará por muito tempo quer a sua interpretação, quer a gama de avaliações contrapostas (p. 82).

Se cada comentário, ao recortar um certo tópos a partir de uma posição particular no interior de um paradigma, estabelece uma relação com o texto primeiro evidenciando nele um certo número de elementos e de relações, então é tudo isso que se perde quando um texto de segunda ordem específico recusa os demais em favor próprio.

Mas Vegetti nos mostrará ainda um outro aspecto deste problema que o faz cunhar o conceito de “grau zero da hermenêutica”(p. 32) e que também participará decisivamente da articulação subterrânea de seu livro.

O comentário, ou texto de segunda ordem, não apenas evidencia, ou faz emergir, como afirmamos anteriormente, um certo número de elementos e relações do texto primeiro. O comentário também é responsável por promover a visibilidade de uma articulação específica entre os elementos que destaca do texto primeiro. Esta articulação longe de ser apenas a reatualização da articulação própria do texto comentado, ainda que jogue com aquela, é responsável pela construção de uma transversal entre os paradigmas primeiro e segundo. 6  E esta transversal é uma das condições de possibilidade do comentário, e o que poderia vir a ser esta transversal senão, em certo sentido, uma tradução?

Mas o que pode ser esta tradução transversal senão um modo de interação dos dois textos que não se identifica com eles mas que efetua entre eles uma articulação? Mario Vegetti nos mostrou que esta transversal tem sido constituída, pela crítica do Platão político desde a antiguidade, pelos modos da: 1. alegoria (p. 62); 2. metáfora (pp. 62, 209, 211 e 237); 3. utopia (pp. 64, 194, 201, 205-7 e 257ss); 4. ironia (pp. 64, 194, 207, 209-11, 216 e 218); 5. comédia (p. 211-2) e 6. ficção (p. 263).

Todos estes modos de interação realizam uma operação sutil: deslocar a verdade do discurso platônico para o discurso que o comenta. Platão, nos dirá Vegetti, “parece demasiado importante para a autoconsciência da tradição intelectual e política Ocidental”(p. 275). A verdade de Platão, dado o conjunto das estratégias de assimilação, está “fora dele”(p. 276), se encontra, muito antes, “nas posições da modernidade”(ibidem). São elas que a colocam em jogo, a validam, a legitimam ou não. Em todo caso o Outro é silenciado pela tradução operada pela transversal; e se lhe ocorre permitir o pronunciamento é apenas para que esse discurso seja recolhido, e devidamente neutralizado pelo comentário. Trata- se, dirá Vegetti, de uma “estratégia de neutralização”(p. 275) do discurso platônico em sua “diferença  radical”(p. 277), na “distância “(ibidem) relativa que mantem de nós. O projeto hermenêutico de Vegetti supõe, pelo contrário, que “distanciar Platão é, talvez, o melhor modo para o tornar mais uma vez interessante”(p. 283), “‘bom para pensar’ também as questões do nosso presente”(p. 277).

Notas

  1. Expressão com a qual Vegetti reúne uma série de discursos de caráter político na obra de Platão.
  2. Vegetti ao se referir aos discursos dos comentadores de Platão, em particular daqueles que comentaram os aspectos políticos da obra de Platão, usará a expressão ‘paradigma’ para se referir ao horizonte a partir do qual os comentadores assimilam o discurso platônico de uma determinada maneira. Por exemplo, o paradigma de Kant é seu idealismo que atua na constituição da sua leitura de Platão (Ver VEGETTI, 2010, p. 67-73).
  3. Vegetti propõe, penso, um certo projeto hermenêutico no qual o pensamento filosófico, no nosso caso o de Platão, “não pode ser reduzido [grifo meu] a um sistema unívoco de significados”(p. 273).
  4. Grifo nosso.
  5. “É certo, todavia, que cada decisão demasiado drástica que reduza [grifo meu] a filosofia de Platão ao quadro de uma opção exegética exclusiva corre o risco de ser viciada por um preconceito do intérprete”(p. 272).

Thiago Rodrigo de Oliveira Costa – Mestrando pela Universidade de Brasília em História da Filosofia Antiga e Medieval, membro da Cátedra UNESCO Archai: as origens do pensamento ocidental da Universidade de Brasília, orientando do professor Gabriele Cornelli, coordenador da Cátedra UNESCO  Archai, e membro do grupo  Episteria  da Universidade de Brasília.

Gabriele Cornelli – Coordenador da Cátedra UNESCO Archai: as origens do pensamento ocidental  da Universidade de Brasília; Docente e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da mesma Universidade; Secretário da Sociedade Brasileira de Platonistas e Presidente Eleito da International Plato Society.

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