Cristianismos de esquerda na América Latina / Revista Brasileira de História das Religiões / 2018

Ao longo da segunda metade do século XX, algo radicalmente novo aconteceu no campo religioso latino-americano. Na medida em que se aceleravam os processos de diversificação cultural e transformação política do continente, emergiu no seio das igrejas cristãs um renovado compromisso ético com a transformação das estruturas vigentes e com a superação da dependência e das desigualdades sociais. Na Teologia e nas Ciências Sociais, a força proveniente desses Cristianismos de esquerda passou a ser tomada como fator decisivo para o sucesso de processos revolucionários, para a luta pela retomada da democracia e para implantação de governos populares com projetos alternativos à hegemonia do capital e ao modelo da felicidade pelo consumo.

Nas primeiras décadas do novo século, mesmo depois de tantas ofensivas neoconservadoras – do Vaticano e da nova configuração das igrejas (neo)pentecostais – ecos desses “outros jeitos de ser cristãos” se fazem presentes nos movimentos de católicos e evangélicos na periferia, na luta de padres, pastores e seus fiéis pelo respeito aos direitos humanos e, mais recentemente, na sinalização do Papa Francisco à importância da crítica radical da “idolatria do dinheiro e do perverso sistema econômico atual, responsável ao mesmo tempo pela extensão da pobreza e pela destruição da natureza”.

Tendo em vista esse panorama, buscamos, de modo geral, com este dossiê, enfocar as aproximações entre cristãos e socialistas, marxistas, anarquistas, enfim um amplo conjunto de atores referenciados teórica e politicamente às esquerdas, bem como as suas repercussões no campo das práticas e representações religiosas ou do seu engajamento em movimentos contestatórios da ordem social vigente. Mais antigas entre os protestantes, essas afinidades surgiram no campo católico, paradoxalmente, como sugere Michel Löwy, a partir de finais do oitocentos, quando a Igreja, depois da amarga “condenação dos princípios liberais e da sociedade moderna (…) pareceu aceitar o advento do capitalismo e do Estado moderno como fatos irreversíveis”. Nascia aí um “catolicismo social” que abriu possibilidades para as críticas (às vezes minuciosas, radicais e profundas) produzidas por grupos que, embora minoritários, tornaram-se muito significativos nos ambientes religiosos europeus.

Na América Latina, a identificação das elites eclesiásticas com as forças do Estado e com projetos coloniais manteve por muito tempo encobertas as vozes de missionários que abraçaram, desde muito cedo, as culturas locais. Na medida em que se multiplicaram as revoltas, convulsões e promessas revolucionárias, figuras do clero emergiam (no presente e no passado), rompendo os silêncios impostos pela violência dos processos de evangelização do continente. Nesse ambiente, os projetos de formação de uma intelligentsia cristã abriram brechas para novas experiências que fundiam referências europeias (como no caso dos padres operários e da economia humanista) com os desafios urgentes e um tanto dramáticos do ter-ceiro mundo. Não à toa Löwy destaca que “no momento em que Fidel Castro, Che Guevara e seus camaradas entraram marchando em Havana, em Roma, João XXIII publicava a primeira convocação para a reunião do Concílio”.

Surgida de “baixo para cima” – nos “movimentos laicos (e alguns do clero), ativos entre a juventude estudantil e nas comunidades” mais carentes – essa fermentação espiritual não tardou a sensibilizar os setores eclesiásticos mais atentos à vida cotidiana de suas igrejas locais e a parcelas importantes do clero regular, “que muitas vezes estavam na vanguarda da nova prática e do novo pensamento teológico”. Nos anos que se sucedem ao Vaticano II, os desafios da sua recepção impuseram organizações de um novo tipo, algumas delas empenhadas na leitura sociorreligiosa do continente, com finalidades pastorais; outras engajadas em processos radicais de transformação da América Latina e cujo caso mais conhecido é o de Camilo Torres, que foi da militância popular à luta armada na Colômbia.

Os novos modelos de vida religiosa, a fundação de institutos que assumiam claramente os métodos das Ciências Humanas e Sociais para compreender a realidade, a criação de uma Teologia da Libertação, a aposta em reescrever a história da Igreja no continente do ponto de vista dos pobres e a proposição de um modelo comunitário alternativo à sociedade paroquial tornaram-se respostas às demandas dos padres conciliares, aprofundadas nas décadas seguintes pelos bispos latino-americanos nas conferências episcopais de Medellín (1968) e Puebla (1979). Conforme descreve Enrique Dussel, um tempo eivado de esperança e sangue, no qual a utopia de uma sociedade igualitária se viu contrastada pelo assalto totalitário dos poderes políticos e os projetos de Igrejas transformadoras se chocaram com a força do aparato burocrático das instituições.

Na impossibilidade de tratar toda a complexidade desses processos, oferecemos aos leitores da Revista Brasileira de História das Religiões um conjunto de abordagens ricas e instigantes, que casam, como era nosso propósito inicial, vários enfoques interpretativos e referencias teórico-metodológicos, produzindo um rico panorama de questões importantes sobre os diferentes cristianismos e as distintas esquerdas.

Abrindo a chamada temática, está o texto de Alex Villas Boas e Ernesto Lazaro Sienna, intitulado “Catolicismo social europeu, rerum novarum e primazia do reino de Deus nas origens do catolicismo de esquerda na América Latina”. Nele, os autores traçam o panorama social e eclesial das revoluções, o impacto do avanço do capital sobre os ambientes católicos e a conformação de uma doutrina social da Igreja que respondesse à deterioração das condições sociais da classe operária. Além de apresentar um panorama das ordens e congregações religiosas do período, e suas personagens que deram corpo aos empreendimentos da Igreja nesse período, o artigo suscita a discussão acerca das noções teológicas e políticas já presentes nos escritos do papa Leão XIII e se desdobram, nas décadas seguintes, dando “origem ao que pode ser entendido como catolicismo de esquerda, terreno fértil para o desdobramento das Teologias da Libertação do século XX.”

Tema caro aos estudos do catolicismo no Brasil, as tensas relações políticas entre Igreja e Estado acaba por ocupar um lugar central na maioria dos textos deste dossiê. Alessandro Rodrigues Rocha, por exemplo, contextualiza a emergência do Cristianismo de Libertação durante os anos de repressão política no Brasil e nos oferece um quadro das transformações no posicionamento do episcopado acerca da ditadura e de seus projetos. Discute ainda a emergência de organismos como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o projeto das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) como formas de resistência à violência e aos arbítrios do Estado em associação com o capital.

“A dimensão política da Teologia Protestante da Libertação” é explorada em toda a sua riqueza por Claudio de Oliveira Ribeiro, que retoma as raízes do diálogo entre teólogos católicos e o movimento ecumênico na revista Cristianismo y Sociedade, no Igreja e Sociedade na América Latina (ISAL) e, mais tarde, no Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI, hoje Koinonia Presença Ecumênica e Serviço). Contemplando os trabalhos de Rubem Alves e Richard Shaull, o autor nos desaconselha a tomar “a publicação de obras como marco fundante da Teologia da Libertação. Isto seria uma negação de seu próprio princípio metodológico, o de partir das experiências práticas concretas. O foco teológico latino-americano são as ações e as experiências no contexto de libertação social e política e as vivências eclesiais renovadoras que foram experimentadas” e, embora menos conhecidas, essas estão disseminadas nas igrejas protestantes do período. Um dos aspectos relevantes do texto é a discussão que apresenta sobre o ecumenismo em seu caráter político, colocando ênfase naquilo que “a doutrina divide, mas o serviço une”, segundo as palavras do teólogo metodista uruguaio Julio de Santa Ana. O autor nos apresenta ainda um rol de importantes teólogos da libertação protestantes na América Latina, suas ênfases teológicas no ecumenismo, “na primazia da graça, na vida em comunidade e nas tensões entre instituição e movimento, em geral frutos do princípio profético valorizado na teologia protestante”. No conjunto, a imagem fornecida é de uma produção teológica bastante comprometida com a “sustentabilidade da vida, com a solidariedade humana, com as formas de inclusão social, de cidadania e de respeito à pluralidade religiosa, com o exercício dos direitos humanos e com a integridade da criação”. Como propõe Ribeiro, “uma profunda e desafiadora aventura espiritual”.

Na mesma perspectiva – da aventura de fé – Marcos Roberto Brito dos Santos narra em seu artigo a luta do padre e teólogo belga José Comblin para permanecer no Brasil, desenvolvendo suas atividades intelectuais e pastorais, tendo em vista o processo de expulsão movido contra ele pelos militares no início dos anos 1970. Na realidade, o autor percorre caminhos mais largos, elucidando aspectos do anticomunismo católico alimentado por grupos conservadores durante a ditadura, o trabalho de espionagem do governo sobre os padres estrangeiros e também as articulações entre os setores mais “progressistas” para respaldar a ação transformadora dessa parcela do clero.

Em “‘Uma leitura Marxista das conclusões de Medellín’: problemas conceituaissemânticos nas relações Igreja-Estado no Brasil (1970-1971), Sérgio Ricardo Coutinho discute os diálogos truncados entre líderes católicos e agentes da ditadura acerca das recepções no Brasil do documento final da II Conferência Geral do Episcopado LatinoAmericano. Partindo da história dos conceitos de Reinhardt Koselleck, o autor nos apresenta as diferentes interpretações de Medellín trazidas à Comissão Bipartite e expressas em reuniões (como Seminário de Estudos “Missão da Igreja e transformação da sociedade brasileira”) e documentos (como “Exemplo de uma leitura marxista das conclusões de Medellín”). Não raro, retomar as oposições dos que viam o texto eivado de “jargão comunista” e linguagem subversiva contra os que o pensavam como manifestação de uma “doutrina integrada, ampla e coerente do desenvolvimento” ajuda a compreender os motivos pelos quais o documento foi olhado “com muita desconfiança por boa parte do episcopado brasileiro e latino-americano, mas acolhido de forma entusiástica pelo jovem clero e organizações laicais”. Para o autor, “receber Medellín de forma entusiasmada era correr sérios riscos diante da conjuntura política da época.

Duas trajetórias de conversão e engajamento em uma ação religiosa transformadora nos são oferecidos por Iraneidson Santos Costa, em “Pedro Gondra y Pedro Plá: dois cristãos a serviço dos pobres da América Latina”. O artigo narra, de maneira cruzada, as vidas religiosas do jesuíta Pedro Arrupe y Gondra e do bispo claretiano Pedro Maria Casaldáliga i Plá. O primeiro é basco e o segundo, catalão. Ambos flertaram com o fascismo e o anticomunismo nas suas juventudes e se sensibilizaram mais tarde com as dores da gente pobre espalhada pelas periferias da terra. Na opinião do autor, isso consolidou em ambos o “ideal de pobreza evangélica (…) como a base da radical opção missionária. Ao que tudo indica, sem se conhecerem pessoalmente, os “dois Pedros” colaboraram grandemente com a igreja latino-americana: Arrupe viajando todo o continente e participando de Medellín (1968) e Puebla (1979); Casaldáliga atuando de maneira vigorosa em defesa dos povos do Xingu, em São Félix do Araguaia.

Finalizando o dossiê, Leonardo Gonçalves de Alvarenga e Nelson Lellis discutem como os conservadorismos religiosos na Bolívia interagem com a figura política de Evo Morales, evidenciando um Cristianismos cujas identidades estão em disputa. O artigo toca questões complexas e delicadas, como a evolução do movimento neopentecostal no país, qual a implicação do art. 88 do Novo Código de Sistema Penal para a sociedade religiosa na Bolívia (?) em que medida a capitalismo e teologia da prosperidade (presentes no pentecostalismo) estão impactando sobre os indígenas (?) e como as igrejas voltadas para mobilização social (mais inclinadas à orientação de esquerda na política) se interpõem neste processo? Para responde-las os autores lançam mão da discussão de Manuel Castells sobre identidade, “que é pensada como construção social que ocorre sempre dentro de um contexto marcado pelas relações de poder”. Assim, a reação às propostas de modificação na legislação encaminhadas por Morales pode ser lida como tensão inerente às sucessivas ondas missionárias que chegam ao país desde o processo de colonização e às disputas recentes de um campo religioso cada vez mais plural. Esta seria certamente uma das questões mais atuais da relação entre cristãos de esquerda (e de direita) no continente.

Este volume da Revista traz ainda um rico debate teórico-conceitual e metodológico, bem como abordagens temáticas que evidenciam a proficuidade e complexidade do estudo do religioso. Em seus artigos livres temas instigantes nos impulsionam à reflexão. Boa leitura!

Fábio Py – Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), com estágio sanduíche no Centre d Études Interdisciplinaires dês Facts Religieux (CEIFR) do Centre National de la Recherche Sientifique (CNRS) da École des Hautes em Sciences Sociales (EHSS). Tem pós-doutorado em Políticas Sociais na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, onde é professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais. E-mail: [email protected]

Diego Omar da Silveira – Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Professor do curso da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). E-mail: [email protected]


PY, Fábio; SILVEIRA, Diego Omar da. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.11, n.32, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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