Apresentação – Os cristãos e a política no Brasil contemporâneo: laicidade em disputa, Estado em colapso, religião em efervescência | Fábio Py, Emerson Sena da Silveira, Marcos Vinicius Reis Freitas

Apresentação – Os cristãos e a política no Brasil contemporâneo: laicidade em disputa, Estado em colapso, religião em efervescência | Fábio Py, Emerson Sena da Silveira, Marcos Vinicius Reis Freitas | Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v. 13, n.39, 2021.

Os cristãos e a política no Brasil contemporâneo: laicidade em disputa, Estado em colapso, religião em efervescência / Revista Brasileira de História das Religiões / 2021

O presente dossiê teve contribuição de treze excelentes textos que nos ajudam a contribuir a atuação intercessão entre cristãos e a política brasileira mais recente. Pode-se dizer que política e religião a cada momento, a cada nova configuração governamental se relacionam de forma distintas tal como narram Judith Butler e Gayatri Spivak (2007) sobre a arena dos diferentes estados nacionais. Agora, nos diferentes estados acaba que se tornou em alguns aspectos, caracterizado pelo questionamento da laicidade por seus atravessamentos.

1 A laicidade e o esboço de suas formas

Assim, uma questão da hora que se coloca sobre as desventuras de religião e política é sobre o aparato caraterizado como “laicidade” no âmbito dos Estados, sobretudo, nas questões da abstenção da religião. Esse sentido e grau de abstenção envolve no âmbito da sociedade uma infinidade de “embates de interpretações envolvidos sobretudo nos nichos promotores e suas diferentes apreensões religiosas” (RICOEUR, 1995, p.313). Esse curto-circuito de intensos conflitos foram apontados em linhas gerais em importante entrevista de Paul Ricoeur de 1995 – um dos raros textos que tratou dessa topografia teórico-social.

A definição de laicidade, as conexões de religião e política no âmbito dos Estados, é primeiro uma variável da conjuntura da gestão governamental do estado. Paul Ricoeur (1995) admite sobre isso que a noção de laicidade é diferente no Egito, na França, Portugal, Gabão e Inglaterra, nisso se alinha com teóricos com Nicos Poullantzas (1976), Judith Butler e Gayatri Spivak (2007) que a interpelação nos estados é uma variável local dependente de cada história social da religião oficial e do conjunto de forças hegemônicas. Por exemplo, Poullantzas (1976) indica que a Inglaterra respeita seu processo de laicidade respaldando os conflitos religiosos internos, mesmo assumindo, a partir a figura da rainha como liderança rainha e dirigente anglicanismo. A laicidade inglesa é descrita por Christian Smith (2003) vai designar de aberta para experiencias de fé, mesmo dando a primazia para o cristianismo de Westminster.

De igual forma Smith (2003) escreve sobre a França emergida no ambiente da Revolução Francesa, prorrogou um critério de laicidade, de retirada de símbolos e expressões religiosas dentro dos gabinetes até o ano de 2018. Por isso, Smith (2003) vai chamar o estado francês de “fechado” as discussões, diálogos e embates das expressões de fé. A partir de 2013, com uma série de campanhas e levantes mulçumanos e de migrantes acarretou na revisão da noção francesa de abolição de símbolos religiosos, até porque ocorriam cobranças das populações mulçumanas por conta das rezas diárias que se fazem na direção de Meca. Essa revisão de décadas da laicidade francesa se deu como uma série de acusações das populações emigradas que se referiram “o racionalismo europeu como racista” (PORTIER, 2019).

2 Laicidade no âmbito da sociedade

A noção de laicidade brasileira é ligada a laicidade portuguesa, uma forma mista das operações dos ambientes ingleses e franceses. Por isso Smith (2003) utiliza a expressão laicidades “mistas”, o que se torna mais desafiadora para as análises, pois admite internamente duplicidades de narrativas e aparentes contradições de argumentos.

Só por isso, afirma-se a importância desta edição da Revista Brasileira de Histórias das Religiões/ANPUH, com a discussão sobre cristãos e política em tempos difíceis.

Ao olhar mais o panorama da sociedade, ainda que sobre as sinalizações dos teóricos franceses, Phillip Portier (2011, p.190-195) indica-se que exista “há a laicidade do Estado, que pode ser referida com uma palavra: abstenção, com conotações restritiva e negativa”. O “Estado laico deve assumir papel de neutralidade em relação à religião e, consequentemente, às instituições religiosas” (PORTIER, 2011, p.195). Logo, seus representantes e estatutos não deveriam privilegiar ou posicionar-se de maneira agressiva em relação a nenhuma manifestação religiosa, o que para Paul Ricoeur (1995) esse caminho seria de uma espécie de “agnosticismo estatal”. Nesse sintagma a separação entre Estado e religião não implica simples ignorância de um em relação ao outro, mas, “há o intento de delimitar de maneira adequada o papel de cada um, de maneira que a religião seja reconhecida pelo Estado como entidade, com regimentos, registro e estatuto público, submetida às leis que regem os demais grupos e agremiações sociais” (RICOEUR, 1997, p.81).

Em termos jurídicos as instituições religiosas não têm o poder centralizador, configurando-se como mais uma associação dentre as outras, portanto, a religião não é “todo o estado, mas parte dele” (PORTIER, 2011, p.196). Paul Ricoeur (1995 p. 181), está convencido de que este conceito de laicização se mostra mais normativo do que efetivo, quando diz: “creio que é preciso ter mais sentido histórico e menos ideológico, para abordar os problemas ligados à laicidade”. O que se quer esmiuçar: os diversos Estados-nação, a partir de sua formação histórica peculiar, há mobilizações próprias sobre as religiões e as instituições estatais.

Junto a esse conceito de laicidade existe outro mais dinâmico. Quando se analisa no âmbito da sociedade civil, a laicidade coloca-se como embate de posicionamentos distintos, como pluralidade e diversidade de perspectivas. Esses conflitos de posicionamentos pressupõe uma sociedade marcada pelo pluralismo de concepções de mundo, de crenças, de ideias, de ideologias, de interpretações e de convicções. Em uma sociedade marcada por esta diversidade, a laicidade assume caráter dinâmico em razão do campo de disputas que se instaura. Esse “conflito de interpretações” não tem por objetivo a harmonização, um consenso. Mas, antes, assume-se que, em muitas questões, a impossibilidade de um acordo é patente. O que não é negativo, desde que se preserve as partes em desacordo. O conflito das interpretações, desde que se preserve os atores e seus argumentos, é uma forma de preservação das liberdades e dos conjuntos.

3 Tensões e questões da laicidade em disputa no Brasil

No Brasil atual, em que cada vez mais se aumentam os atravessamentos entre religião e política, deve-se lembrar que os conflitos de interpretações religiosas são inerentes a formação do Estado republicano (1889) que se mantém neutro, ao menos oficialmente, em relação a instituições religiosas, ou então, deveria ser mantido. Com esses dados sobre religião e política no Brasil podemos vislumbrar incursões dos atores religiosos, em especial católicos e evangélicos, na construção de uma patrulha ideológica nos postos do Estado brasileiro e sua ocupação efetiva, e, todos os níveis, local, regional e federal e se espraiando pelos três poderes. Daí a importância desse dossiê, e sobretudo, que a laicidade brasileira não seja um conceito dado, fixo, mas se encontra em disputa.

É o que se pode perceber, quando o atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, afirmou em 2019 no maior evento evangélico do país, a Marcha para Jesus: “O país é laico, mas eu sou cristão”. Está ocorrendo um claro deslocamento da neutralidade do estado, e o se preservando as partes nos conflitos religiosos internos a nossa sociedade (PY, 2020). Por outro lado, isso sempre foi uma ponta de disputa, como por exemplo, com o advento do Estado de 1892, na primeira Carta Constitucional da República, tratou-se sobre a laicidade brasileira, e por conta dela o clero viram a necessidade de tentar “recatolicizar”, e passaram a investir nas novas instituições republicanas, buscando influenciar decisões políticas e sociais por meio da formação de uma elite intelectual católica (SILVEIRA, 2019).

Um dos marcos desse início e reação católica foi a promulgação, em 1916, da Carta Pastoral de Dom Sebastião Leme, arcebispo de Olinda e Recife, tornou-se, mais tarde, arcebispo e cardeal do Rio de Janeiro pelas mãos do Papa Pio XI (SILVEIRA, 2019). A Carta Pastoral fazia parte de um momento que se delineava desde a origem da República Brasileira, quando a Igreja Católica reuniu suas forças para consolidar reformas internas, como o recrutamento de novos membros estrangeiros para as ordens religiosas, a criação de novas dioceses e a consolidação de um discurso e de uma ação mais homogêneos (SILVEIRA, 2019). Assim, o dossiê apresentará uma série de reflexões teóricas e de objetos empíricos, construtos de seus autores e autoras, na forma de treze artigos que brindam os leitores e pesquisadores dos temas do Brasil contemporâneo.

4 Os artigos do dossiê

Logo em seguida, o trabalho intitulado “Pela “família tradicional”: campanha de candidatos evangélicos para a ALEP nas eleições de 2018”, escrito pelos pesquisadores Frank Antonio Mezzomo, Lucas Alves da Silva, Cristina Satiê de Oliveira Pátaro, discutem a partir do material de campanha (coletado nas redes sociais e sites) de alguns candidatos a deputados estaduais no estado do Paraná, seus posicionamentos políticos. Os temas centrais encontrados em geral foram: a defesa da escola sem partido, a luta contra a ideologia de gênero, e debates sobre a reprodução da vida. A preocupação destes candidatos é em geral com temas religiosos e morais.

A pesquisadora-docente Dora Deise Stephan Moreira contribui com o artigo denominado “A trajetória de Marcelo Crivella: de cantor gospel a prefeito da segunda maior cidade brasileira em 2016”. O texto discute as ações adotadas pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), para eleger inicialmente para o cargo de senador o bispo licenciado Marcelo Crivella, e depois, ao cargo a prefeitura do Rio de Janeiro que foi eleito em 2012. A dança entre a imagem religiosa e a imagem política se complexifica e é utilizada por Crivella de forma instrumental, ao sabor das circunstâncias políticas-eleitorais. Em todas as campanhas disputadas por Marcelo Crivella houve a vinculação da sua imagem com o projeto Nordeste. Projeto este desenvolvido pela IURD para fins sociais. Percebeu-se a associação do referido político com a questão midiática, assistencial, religiosa e moralista.

O próximo texto a ser apresentado e de autoria do docente da Universidade do Estado do Pará Saulo Baptista. O título do seu trabalho é “Os Evangélicos e o Processo Republicano Brasileiro”. No início do seu trabalho, o autor faz uma recapitulação histórica da chegada dos protestantes em terras brasileiras e sua presença pública em contraponto a hegemonia católica. Logo em seguida, contextualiza o surgimento e o desenvolvimento dos pentecostais e dos neopentecostais na política brasileira. O texto termina com uma eximia reflexão a respeito da presença dos evangélicos na atual conjuntura política nacional.

O docente Aldimar Jacinto Duarte e Seabra Vinicius contribuem com este número com o texto chamado “O campo político e o campo religioso a partir dos jovens ligados a International Fellowship of Evangelical Students (IFES) na América Latina”. Muito interessante a reflexão desenvolvida a respeito da postura, aparentemente, apolítica do grupo do IFES. Para chegar a esta conclusão foram aplicados questionário via Google-Forms em vinte países da América Latina, obtendo 228 respostas. A análise dos dados foi feita a partir dos conceitos da teoria de Pierre Bourdieu. Tal grupo é majoritariamente formado por jovens universitários.

Os pesquisadores Ricardo Ramos Shiota e Michelli de Souza Possmozer escreveram o texto denominado “O Brasil cristão da Frente Parlamentar Evangélica: luta pela hegemonia e revolução passiva”, que discute a partir das informações contidas no Facebook da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), criada em abril de 2019. Sabemos que a FPE é entusiasta apoiadora do governo Jair Bolsonaro (sem partido), sobretudo pelo alinhamento ideológico na defesa das pautas de costume ou morais, fundamentalismo religioso e defesa de postura vinculadas aos expecto ideológico de extrema direita. Foram analisadas 209 publicações, entre 01 de abril e 31 de outubro de 2019. A teoria escolhida para analisar os dados foram os conceitos desenvolvidos por Gramsci.

Os autores Cézar de Alencar Arnaut de Toledo e William Robson Cazavechia adotaram como título do texto, “As Formas de Adaptabilidade do Neopentecostalismo Brasileiro à Mídia” e discutem a presença do conservadorismo religioso neopentecostal na mídia brasileira. Historicamente os evangélicos tiveram concessão de rádio, tv, criaram páginas de internet, e o uso das redes sociais com o intuito de posicionarem a respeito dos mais variados temas nacionais na perspectiva do fundamentalismo cristão. O texto é instigante e nos mostra como a mídia é bem trabalhada por este grupo religioso no Brasil.

O texto publicado foi de autoria dos autores Fabio Lanza, Luiz Ernesto Guimarães, José Neves Jr. e Raíssa Rodrigues, cujo título é “Engajamento político e Renovação Carismática Católica em Londrina-PR (2014-2016)”. O texto discute os posicionamentos políticos dos grupos católicos carismáticos (RCC) na cidade de Londrina inteiro de São Paulo. A partir de visitas de campo e entrevistas semiestruturadas, os autores conseguiram perceber a visão de mundo das lideranças deste universo religioso sobre o atual momento político brasileiro, Em geral, os representantes ou postulantes da RCC a cargo para o poder legislativa ou executivo, defendem pautas conservadoras, são fundamentalistas religiosos e benefícios institucionais para organismos de inspiração carismática católica e outros segmentos da Igreja Católica no Brasil.

Ao discutir o governo Bolsonaro na relação religião e política, a união entre católicos e evangélicos tem evidenciado de forma rotineira. O texto “Entre a articulação e a desproporcionalidade: relações do Governo Bolsonaro com as forças conservadoras católicas e evangélicas” escrito por Marcelo Ayres Camurça Lima e Paulo Victor Zaquieu-Higino tenta compreender se esta aproximação pode ser caracterizada como uma ação ecumênica de extrema-direita, num contramovimento do que no passado caracterizou as tentativas de aproximação entre os diferentes grupos cristãos em torno, por exemplo, da Teologia da Libertação e das lutas sociais na América Latina. Uma forte indagação é feita e discutida ao longo do texto: nessa trama religioso-política de extrema-direita, o catolicismo estaria sendo “eclipsado” e o pentecostalismo destacado? Não tenha dúvida que o atual governo aciona a religião para fundamentar suas ações e visões de mundo na política.

O próximo trabalho a ser apresentado traz como título “Guerras culturais e a relação entre religião e política no Brasil contemporâneo” escrito pelos pesquisadores Roberto Dutra e Karine Pessôa. O texto versa da presença da moralidade na política, provocada pela religião nas eleições de 2018. Os autores recorrem as categorias da sociologia política sistêmica de Niklas Luhmann para analisar o fenômeno religião e política na eleição referida.

O artigo chamado “A ‘governabilidade’ petista” escrito pela pesquisadora Amanda Mendonça é bem interessante e supre lacuna na literatura a cerca religião e política, que versa sobre a relação do Partido dos Trabalhadores (PT) com os pentecostais e os católicos, no período que esteve à frente da presidência do Brasil. A autora mostra que evangélicos e católicos uniram-se em torno da defesa de pautas conservadoras e, ainda que dando alguma sustentação político-partidária, causaram conflitos com a gestão petistas por entenderem que a “essência” do governo era contrária ao seu ideário religioso. Por outro lado, os governos petistas ofereceram alianças, cargos e apoio direto e indireto – subvenção de comunidades terapêuticas religiosas para o tratamento de drogadições, concessões de rádio e TV por exemplo – aos grupos cristãos em nome da governabilidade, essa geringonça feita de modos heteróclitos e que em 2018 entrou em um novo patamar de crise.

Os pesquisadores do campo das relações internacionais Anna Carletti e Fábio Nobre com o texto intitulado “A Religião Global no contexto da pandemia de Covid-19 e as implicações político-religiosas no Brasil”, nos mostra como líderes religiosos no Brasil e no mundo reagiram a pandemia Covid-19. Os pesquisadores André Ricardo de Souza e Breno Minelli Batista contribuem com o trabalho intitulado “Os efeitos políticos no Brasil dos sete anos iniciais do Papa Francisco”, tentando compreender as relações políticas e religiosas do Papa Francisco com o governo Jair Bolsonaro (sem partido). Sabemos que o Papa Francisco assume o papado em 2013, logo após, a renúncia do atual Papa Emérito Papa Bento XVI.

E por fim, o docente Graham McGeoch com o trabalho “Field Notes from Brazil: We don’t believe in Democracy”, faz uma interessante reflexão da presença dos elementos religiosos na atual conjuntura política brasileira, elegendo a eleição e o governo Bolsonaro como tema de análise. Daí, extraímos algumas perguntas: Que tipo de democracia é esta que temos e o porquê ela se enredou em uma trama político-religiosa de extrema-direita? É possível acreditar nesse tipo de democracia? E, por fim, que outra democracia podemos sonhar para sairmos uma relação disfuncional, inflamada e perversa entre cristianismo reacionário e política estatal (um estado de sítio) que a democracia liberal-representativa permitiu vir à luz.

Referências

BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri. Who sings the Nation-State? Language, Politics, Belonging. New York: Seagull. 2007

POULANTZAS, Nicos (Org.), La Crise de l’État. Paris : Presses Universitaires de France, 1979.

PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020.

RICOEUR, Paul. Phenomenology and the social sciences. In: KOREBAUM, M. (Org.). Annals of Phenomenological Sociology, Ohio: Wright State University, 1977.

RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações. Ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978.

RICOEUR, P. Leituras 1. Em torno ao Político. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

SMITH, Christian. The secular revolution: power, interests, and conflict in the secularization of American public life. Berkeley: University of California Press, 2003.

SILVEIRA, Emerson. J. S. Padres conservadores em armas: o discurso público da guerra cultural entre católicos. Reflexão, PUCCAMPINAS, v. 43, 2019, p. 289-309.

Fábio Py – Professor do Programa de Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Riveiro. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7634-8615.

Emerson Sena da Silveira –  Doutor em Ciência da Religião, antropólogo, professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5407-596X.

Marcos Vinicius Reis Freitas – Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Docente do Curso de Pós-Graduação em História Social pela UNIFAP, Docente do Curso de Pós-Graduação em Ensino de História (PROFHISTORIA). (CEPRES-UNIFAP/CNPq). E-mail para contato: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0380-3007.


PY, Fábio; SILVEIRA, Emerson Sena da; FREITAS, Marcos Reis. Apresentação – Os cristãos e a política no Brasil contemporâneo: laicidade em disputa, Estado em colapso, religião em efervescência. Revista Brasileira de História das Religiões. Marigá, v.13, n.39, p.5-12, jan. / abr. 2021. Acessar publicação original [IF].

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Religião e política no mundo contemporâneo / Revista Brasileira de História das Religiões / 2020

Os cristãos e a política no Brasil contemporâneo: laicidade em disputa, Estado em colapso, religião em efervescência

O presente dossiê teve contribuição de treze excelentes textos que nos ajudam a contribuir a atuação intercessão entre cristãos e a política brasileira mais recente. Pode-se dizer que política e religião a cada momento, a cada nova configuração governamental se relacionam de forma distintas tal como narram Judith Butler e Gayatri Spivak (2007) sobre a arena dos diferentes estados nacionais. Agora, nos diferentes estados acaba que se tornou em alguns aspectos, caracterizado pelo questionamento da laicidade por seus atravessamentos.

1 A laicidade e o esboço de suas formas

Assim, uma questão da hora que se coloca sobre as desventuras de religião e política é sobre o aparato caraterizado como “laicidade” no âmbito dos Estados, sobretudo, nas questões da abstenção da religião. Esse sentido e grau de abstenção envolve no âmbito da sociedade uma infinidade de “embates de interpretações envolvidos sobretudo nos nichos promotores e suas diferentes apreensões religiosas” (RICOEUR, 1995, p.313). Esse curto-circuito de intensos conflitos foram apontados em linhas gerais em importante entrevista de Paul Ricoeur de 1995 – um dos raros textos que tratou dessa topografia teórico-social.

A definição de laicidade, as conexões de religião e política no âmbito dos Estados, é primeiro uma variável da conjuntura da gestão governamental do estado. Paul Ricoeur (1995) admite sobre isso que a noção de laicidade é diferente no Egito, na França, Portugal, Gabão e Inglaterra, nisso se alinha com teóricos com Nicos Poullantzas (1976), Judith Butler e Gayatri Spivak (2007) que a interpelação nos estados é uma variável local dependente de cada história social da religião oficial e do conjunto de forças hegemônicas. Por exemplo, Poullantzas (1976) indica que a Inglaterra respeita seu processo de laicidade respaldando os conflitos religiosos internos, mesmo assumindo, a partir a figura da rainha como liderança rainha e dirigente anglicanismo. A laicidade inglesa é descrita por Christian Smith (2003) vai designar de aberta para experiencias de fé, mesmo dando a primazia para o cristianismo de Westminster.

De igual forma Smith (2003) escreve sobre a França emergida no ambiente da Revolução Francesa, prorrogou um critério de laicidade, de retirada de símbolos e expressões religiosas dentro dos gabinetes até o ano de 2018. Por isso, Smith (2003) vai chamar o estado francês de “fechado” as discussões, diálogos e embates das expressões de fé. A partir de 2013, com uma série de campanhas e levantes mulçumanos e de migrantes acarretou na revisão da noção francesa de abolição de símbolos religiosos, até porque ocorriam cobranças das populações mulçumanas por conta das rezas diárias que se fazem na direção de Meca. Essa revisão de décadas da laicidade francesa se deu como uma série de acusações das populações emigradas que se referiram “o racionalismo europeu como racista” (PORTIER, 2019).

2 Laicidade no âmbito da sociedade

A noção de laicidade brasileira é ligada a laicidade portuguesa, uma forma mista das operações dos ambientes ingleses e franceses. Por isso Smith (2003) utiliza a expressão laicidades “mistas”, o que se torna mais desafiadora para as análises, pois admite internamente duplicidades de narrativas e aparentes contradições de argumentos. Revista Brasileira de História das Religiões. Só por isso, afirma-se a importância desta edição da Revista Brasileira de Histórias das Religiões / ANPUH, com a discussão sobre cristãos e política em tempos difíceis.

Ao olhar mais o panorama da sociedade, ainda que sobre as sinalizações dos teóricos franceses, Phillip Portier (2011, p.190-195) indica-se que exista “há a laicidade do Estado, que pode ser referida com uma palavra: abstenção, com conotações restritiva e negativa”. O “Estado laico deve assumir papel de neutralidade em relação à religião e, consequentemente, às instituições religiosas” (PORTIER, 2011, p.195). Logo, seus representantes e estatutos não deveriam privilegiar ou posicionar-se de maneira agressiva em relação a nenhuma manifestação religiosa, o que para Paul Ricoeur (1995) esse caminho seria de uma espécie de “agnosticismo estatal”. Nesse sintagma a separação entre Estado e religião não implica simples ignorância de um em relação ao outro, mas, “há o intento de delimitar de maneira adequada o papel de cada um, de maneira que a religião seja reconhecida pelo Estado como entidade, com regimentos, registro e estatuto público, submetida às leis que regem os demais grupos e agremiações sociais” (RICOEUR, 1997, p.81).

Em termos jurídicos as instituições religiosas não têm o poder centralizador, configurando-se como mais uma associação dentre as outras, portanto, a religião não é “todo o estado, mas parte dele” (PORTIER, 2011, p.196). Paul Ricoeur (1995 p. 181), está convencido de que este conceito de laicização se mostra mais normativo do que efetivo, quando diz: “creio que é preciso ter mais sentido histórico e menos ideológico, para abordar os problemas ligados à laicidade”. O que se quer esmiuçar: os diversos Estados-nação, a partir de sua formação histórica peculiar, há mobilizações próprias sobre as religiões e as instituições estatais.

Junto a esse conceito de laicidade existe outro mais dinâmico. Quando se analisa no âmbito da sociedade civil, a laicidade coloca-se como embate de posicionamentos distintos, como pluralidade e diversidade de perspectivas. Esses conflitos de posicionamentos pressupõe uma sociedade marcada pelo pluralismo de concepções de mundo, de crenças, de ideias, de ideologias, de interpretações e de convicções. Em uma sociedade marcada por esta diversidade, a laicidade assume caráter dinâmico em razão do campo de disputas que se instaura. Esse “conflito de interpretações” não tem por objetivo a harmonização, um consenso. Mas, antes, assume-se que, em muitas questões, a impossibilidade de um acordo é patente. O que não é negativo, desde que se preserve as partes em desacordo. O conflito das interpretações, desde que se preserve os atores e seus argumentos, é uma forma de preservação das liberdades e dos conjuntos.

3 Tensões e questões da laicidade em disputa no Brasil

No Brasil atual, em que cada vez mais se aumentam os atravessamentos entre religião e política, deve-se lembrar que os conflitos de interpretações religiosas são inerentes a formação do Estado republicano (1889) que se mantém neutro, ao menos oficialmente, em relação a instituições religiosas, ou então, deveria ser mantido. Com esses dados sobre religião e política no Brasil podemos vislumbrar incursões dos atores religiosos, em especial católicos e evangélicos, na construção de uma patrulha ideológica nos postos do Estado brasileiro e sua ocupação efetiva, e, todos os níveis, local, regional e federal e se espraiando pelos três poderes. Daí a importância desse dossiê, e sobretudo, que a laicidade brasileira não seja um conceito dado, fixo, mas se encontra em disputa.

É o que se pode perceber, quando o atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, afirmou em 2019 no maior evento evangélico do país, a Marcha para Jesus: “O país é laico, mas eu sou cristão”. Está ocorrendo um claro deslocamento da neutralidade do estado, e o se preservando as partes nos conflitos religiosos internos a nossa sociedade (PY, 2020). Por outro lado, isso sempre foi uma ponta de disputa, como por exemplo, com o advento do Estado de 1892, na primeira Carta Constitucional da República, tratou-se sobre a laicidade brasileira, e por conta dela o clero viram a necessidade de tentar “recatolicizar”, e passaram a investir nas novas instituições republicanas, buscando influenciar decisões políticas e sociais por meio da formação de uma elite intelectual católica (SILVEIRA, 2019).

Um dos marcos desse início e reação católica foi a promulgação, em 1916, da Carta Pastoral de Dom Sebastião Leme, arcebispo de Olinda e Recife, tornou-se, mais tarde, arcebispo e cardeal do Rio de Janeiro pelas mãos do Papa Pio XI (SILVEIRA, 2019). A Carta Pastoral fazia parte de um momento que se delineava desde a origem da República Brasileira, quando a Igreja Católica reuniu suas forças para consolidar reformas internas, como o recrutamento de novos membros estrangeiros para as ordens religiosas, a criação de novas dioceses e a consolidação de um discurso e de uma ação mais homogêneos (SILVEIRA, 2019). Assim, o dossiê apresentará uma série de reflexões teóricas e de objetos empíricos, construtos de seus autores e autoras, na forma de treze artigos que brindam os leitores e pesquisadores dos temas do Brasil contemporâneo.

4 Os artigos do dossiê

Logo em seguida, o trabalho intitulado “Pela “família tradicional”: campanha de candidatos evangélicos para a ALEP nas eleições de 2018”, escrito pelos pesquisadores Frank Antonio Mezzomo, Lucas Alves da Silva, Cristina Satiê de Oliveira Pátaro, discutem a partir do material de campanha (coletado nas redes sociais e sites) de alguns candidatos a deputados estaduais no estado do Paraná, seus posicionamentos políticos. Os temas centrais encontrados em geral foram: a defesa da escola sem partido, a luta contra a ideologia de gênero, e debates sobre a reprodução da vida. A preocupação destes candidatos é em geral com temas religiosos e morais.

A pesquisadora-docente Dora Deise Stephan Moreira contribui com o artigo denominado “A trajetória de Marcelo Crivella: de cantor gospel a prefeito da segunda maior cidade brasileira em 2016”. O texto discute as ações adotadas pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), para eleger inicialmente para o cargo de senador o bispo licenciado Marcelo Crivella, e depois, ao cargo a prefeitura do Rio de Janeiro que foi eleito em 2012. A dança entre a imagem religiosa e a imagem política se complexifica e é utilizada por Crivella de forma instrumental, ao sabor das circunstâncias políticas-eleitorais. Em todas as campanhas disputadas por Marcelo Crivella houve a vinculação da sua imagem com o projeto Nordeste. Projeto este desenvolvido pela IURD para fins sociais. Percebeu-se a associação do referido político com a questão midiática, assistencial, religiosa e moralista.

O próximo texto a ser apresentado e de autoria do docente da Universidade do Estado do Pará Saulo Baptista. O título do seu trabalho é “Os Evangélicos e o Processo Republicano Brasileiro”. No início do seu trabalho, o autor faz uma recapitulação histórica da chegada dos protestantes em terras brasileiras e sua presença pública em contraponto a hegemonia católica. Logo em seguida, contextualiza o surgimento e o desenvolvimento dos pentecostais e dos neopentecostais na política brasileira. O texto termina com uma eximia reflexão a respeito da presença dos evangélicos na atual conjuntura política nacional.

O docente Aldimar Jacinto Duarte e Seabra Vinicius contribuem com este número com o texto chamado “O campo político e o campo religioso a partir dos jovens ligados a International Fellowship of Evangelical Students (IFES) na América Latina”. Muito interessante a reflexão desenvolvida a respeito da postura, aparentemente, apolítica do grupo do IFES. Para chegar a esta conclusão foram aplicados questionário via GoogleForms em vinte países da América Latina, obtendo 228 respostas. A análise dos dados foi feita a partir dos conceitos da teoria de Pierre Bourdieu. Tal grupo é majoritariamente formado por jovens universitários.

Os pesquisadores Ricardo Ramos Shiota e Michelli de Souza Possmozer escreveram o texto denominado “O Brasil cristão da Frente Parlamentar Evangélica: luta pela hegemonia e revolução passiva”, que discute a partir das informações contidas no Facebook da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), criada em abril de 2019. Sabemos que a FPE é entusiasta apoiadora do governo Jair Bolsonaro (sem partido), sobretudo pelo alinhamento ideológico na defesa das pautas de costume ou morais, fundamentalismo religioso e defesa de postura vinculadas aos expecto ideológico de extrema direita. Foram analisadas 209 publicações, entre 01 de abril e 31 de outubro de 2019. A teoria escolhida para analisar os dados foram os conceitos desenvolvidos por Gramsci.

Os autores Cézar de Alencar Arnaut de Toledo e William Robson Cazavechia adotaram como título do texto, “As Formas de Adaptabilidade do Neopentecostalismo Brasileiro à Mídia” e discutem a presença do conservadorismo religioso neopentecostal na mídia brasileira. Historicamente os evangélicos tiveram concessão de rádio, tv, criaram páginas de internet, e o uso das redes sociais com o intuito de posicionarem a respeito dos mais variados temas nacionais na perspectiva do fundamentalismo cristão. O texto é instigante e nos mostra como a mídia é bem trabalhada por este grupo religioso no Brasil.

O texto publicado foi de autoria dos autores Fabio Lanza, Luiz Ernesto Guimarães, José Neves Jr. e Raíssa Rodrigues, cujo título é “Engajamento político e Renovação Carismática Católica em Londrina-PR (2014-2016)”. O texto discute os posicionamentos políticos dos grupos católicos carismáticos (RCC) na cidade de Londrina inteiro de São Paulo. A partir de visitas de campo e entrevistas semiestruturadas, os autores conseguiram perceber a visão de mundo das lideranças deste universo religioso sobre o atual momento político brasileiro, Em geral, os representantes ou postulantes da RCC a cargo para o poder legislativa ou executivo, defendem pautas conservadoras, são fundamentalistas religiosos e benefícios institucionais para organismos de inspiração carismática católica e outros segmentos da Igreja Católica no Brasil.

Ao discutir o governo Bolsonaro na relação religião e política, a união entre católicos e evangélicos tem evidenciado de forma rotineira. O texto “Entre a articulação e a desproporcionalidade: relações do Governo Bolsonaro com as forças conservadoras católicas e evangélicas” escrito por Marcelo Ayres Camurça Lima e Paulo Victor Zaquieu-Higino tenta compreender se esta aproximação pode ser caracterizada como uma ação ecumênica de extrema-direita, num contramovimento do que no passado caracterizou as tentativas de aproximação entre os diferentes grupos cristãos em torno, por exemplo, da Teologia da Libertação e das lutas sociais na América Latina. Uma forte indagação é feita e discutida ao longo do texto: nessa trama religioso-política de extrema-direita, o catolicismo estaria sendo “eclipsado” e o pentecostalismo destacado? Não tenha dúvida que o atual governo aciona a religião para fundamentar suas ações e visões de mundo na política.

O próximo trabalho a ser apresentado traz como título “Guerras culturais e a relação entre religião e política no Brasil contemporâneo” escrito pelos pesquisadores Roberto Dutra e Karine Pessôa. O texto versa da presença da moralidade na política, provocada pela religião nas eleições de 2018. Os autores recorrem as categorias da sociologia política sistêmica de Niklas Luhmann para analisar o fenômeno religião e política na eleição referida.

O artigo chamado “A ‘governabilidade’ petista” escrito pela pesquisadora Amanda Mendonça é bem interessante e supre lacuna na literatura a cerca religião e política, que versa sobre a relação do Partido dos Trabalhadores (PT) com os pentecostais e os católicos, no período que esteve à frente da presidência do Brasil. A autora mostra que evangélicos e católicos uniram-se em torno da defesa de pautas conservadoras e, ainda que dando alguma sustentação político-partidária, causaram conflitos com a gestão petistas por entenderem que a “essência” do governo era contrária ao seu ideário religioso. Por outro lado, os governos petistas ofereceram alianças, cargos e apoio direto e indireto – subvenção de comunidades terapêuticas religiosas para o tratamento de drogadições, concessões de rádio e TV por exemplo – aos grupos cristãos em nome da governabilidade, essa geringonça feita de modos heteróclitos e que em 2018 entrou em um novo patamar de crise.

Os pesquisadores do campo das relações internacionais Anna Carletti e Fábio Nobre com o texto intitulado “A Religião Global no contexto da pandemia de Covid-19 e as implicações político-religiosas no Brasil”, nos mostra como líderes religiosos no Brasil e no mundo reagiram a pandemia Covid-19. Os pesquisadores André Ricardo de Souza e Breno Minelli Batista contribuem com o trabalho intitulado “Os efeitos políticos no Brasil dos sete anos iniciais do Papa Francisco”, tentando compreender as relações políticas e religiosas do Papa Francisco com o governo Jair Bolsonaro (sem partido). Sabemos que o Papa Francisco assume o papado em 2013, logo após, a renúncia do atual Papa Emérito Papa Bento XVI.

E por fim, o docente Graham McGeoch com o trabalho “Field Notes from Brazil: We don’t believe in Democracy”, faz uma interessante reflexão da presença dos elementos religiosos na atual conjuntura política brasileira, elegendo a eleição e o governo Bolsonaro como tema de análise. Daí, extraímos algumas perguntas: Que tipo de democracia é esta que temos e o porquê ela se enredou em uma trama político-religiosa de extrema-direita? É possível acreditar nesse tipo de democracia? E, por fim, que outra democracia podemos sonhar para sairmos uma relação disfuncional, inflamada e perversa entre cristianismo reacionário e política estatal (um estado de sítio) que a democracia liberal-representativa permitiu vir à luz.

Referências

BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri. Who sings the Nation-State? Language, Politics, Belonging. New York: Seagull. 2007.

POULANTZAS, Nicos (Org.), La Crise de l’État. Paris : Presses Universitaires de France, 1979.

PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020.

RICOEUR, Paul. Phenomenology and the social sciences. In: KOREBAUM, M. (Org.). Annals of Phenomenological Sociology, Ohio: Wright State University, 1977.

RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações. Ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978.

RICOEUR, P. Leituras 1. Em torno ao Político. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

SMITH, Christian. The secular revolution: power, interests, and conflict in the secularization of American public life. Berkeley: University of California Press, 2003.

SILVEIRA, Emerson. J. S. Padres conservadores em armas: o discurso público da guerra cultural entre católicos. Reflexão, PUCCAMPINAS, v. 43, 2019, p. 289-309.

Fábio Py – Professor do Programa de Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. E-mail: [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-7634-8615

Emerson Sena da Silveira – Doutor em Ciência da Religião, antropólogo, professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG. E-mail: [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-5407-596X

Marcos Vinicius Reis Freitas – Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Docente do Curso de Pós-Graduação em História Social pela UNIFAP, Docente do Curso de Pós-Graduação em Ensino de História (PROFHISTORIA). (CEPRES-UNIFAP / CNPq). E-mail: [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-0380-3007


PY, Fábio; SILVEIRA, Emerson Sena da; FREITAS, Marcos Vinicius Reis. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.13, n.39, jan. / abr. 2020. Acessar publicação original [DR]

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Cristianismos de esquerda na América Latina / Revista Brasileira de História das Religiões / 2018

Ao longo da segunda metade do século XX, algo radicalmente novo aconteceu no campo religioso latino-americano. Na medida em que se aceleravam os processos de diversificação cultural e transformação política do continente, emergiu no seio das igrejas cristãs um renovado compromisso ético com a transformação das estruturas vigentes e com a superação da dependência e das desigualdades sociais. Na Teologia e nas Ciências Sociais, a força proveniente desses Cristianismos de esquerda passou a ser tomada como fator decisivo para o sucesso de processos revolucionários, para a luta pela retomada da democracia e para implantação de governos populares com projetos alternativos à hegemonia do capital e ao modelo da felicidade pelo consumo.

Nas primeiras décadas do novo século, mesmo depois de tantas ofensivas neoconservadoras – do Vaticano e da nova configuração das igrejas (neo)pentecostais – ecos desses “outros jeitos de ser cristãos” se fazem presentes nos movimentos de católicos e evangélicos na periferia, na luta de padres, pastores e seus fiéis pelo respeito aos direitos humanos e, mais recentemente, na sinalização do Papa Francisco à importância da crítica radical da “idolatria do dinheiro e do perverso sistema econômico atual, responsável ao mesmo tempo pela extensão da pobreza e pela destruição da natureza”.

Tendo em vista esse panorama, buscamos, de modo geral, com este dossiê, enfocar as aproximações entre cristãos e socialistas, marxistas, anarquistas, enfim um amplo conjunto de atores referenciados teórica e politicamente às esquerdas, bem como as suas repercussões no campo das práticas e representações religiosas ou do seu engajamento em movimentos contestatórios da ordem social vigente. Mais antigas entre os protestantes, essas afinidades surgiram no campo católico, paradoxalmente, como sugere Michel Löwy, a partir de finais do oitocentos, quando a Igreja, depois da amarga “condenação dos princípios liberais e da sociedade moderna (…) pareceu aceitar o advento do capitalismo e do Estado moderno como fatos irreversíveis”. Nascia aí um “catolicismo social” que abriu possibilidades para as críticas (às vezes minuciosas, radicais e profundas) produzidas por grupos que, embora minoritários, tornaram-se muito significativos nos ambientes religiosos europeus.

Na América Latina, a identificação das elites eclesiásticas com as forças do Estado e com projetos coloniais manteve por muito tempo encobertas as vozes de missionários que abraçaram, desde muito cedo, as culturas locais. Na medida em que se multiplicaram as revoltas, convulsões e promessas revolucionárias, figuras do clero emergiam (no presente e no passado), rompendo os silêncios impostos pela violência dos processos de evangelização do continente. Nesse ambiente, os projetos de formação de uma intelligentsia cristã abriram brechas para novas experiências que fundiam referências europeias (como no caso dos padres operários e da economia humanista) com os desafios urgentes e um tanto dramáticos do ter-ceiro mundo. Não à toa Löwy destaca que “no momento em que Fidel Castro, Che Guevara e seus camaradas entraram marchando em Havana, em Roma, João XXIII publicava a primeira convocação para a reunião do Concílio”.

Surgida de “baixo para cima” – nos “movimentos laicos (e alguns do clero), ativos entre a juventude estudantil e nas comunidades” mais carentes – essa fermentação espiritual não tardou a sensibilizar os setores eclesiásticos mais atentos à vida cotidiana de suas igrejas locais e a parcelas importantes do clero regular, “que muitas vezes estavam na vanguarda da nova prática e do novo pensamento teológico”. Nos anos que se sucedem ao Vaticano II, os desafios da sua recepção impuseram organizações de um novo tipo, algumas delas empenhadas na leitura sociorreligiosa do continente, com finalidades pastorais; outras engajadas em processos radicais de transformação da América Latina e cujo caso mais conhecido é o de Camilo Torres, que foi da militância popular à luta armada na Colômbia.

Os novos modelos de vida religiosa, a fundação de institutos que assumiam claramente os métodos das Ciências Humanas e Sociais para compreender a realidade, a criação de uma Teologia da Libertação, a aposta em reescrever a história da Igreja no continente do ponto de vista dos pobres e a proposição de um modelo comunitário alternativo à sociedade paroquial tornaram-se respostas às demandas dos padres conciliares, aprofundadas nas décadas seguintes pelos bispos latino-americanos nas conferências episcopais de Medellín (1968) e Puebla (1979). Conforme descreve Enrique Dussel, um tempo eivado de esperança e sangue, no qual a utopia de uma sociedade igualitária se viu contrastada pelo assalto totalitário dos poderes políticos e os projetos de Igrejas transformadoras se chocaram com a força do aparato burocrático das instituições.

Na impossibilidade de tratar toda a complexidade desses processos, oferecemos aos leitores da Revista Brasileira de História das Religiões um conjunto de abordagens ricas e instigantes, que casam, como era nosso propósito inicial, vários enfoques interpretativos e referencias teórico-metodológicos, produzindo um rico panorama de questões importantes sobre os diferentes cristianismos e as distintas esquerdas.

Abrindo a chamada temática, está o texto de Alex Villas Boas e Ernesto Lazaro Sienna, intitulado “Catolicismo social europeu, rerum novarum e primazia do reino de Deus nas origens do catolicismo de esquerda na América Latina”. Nele, os autores traçam o panorama social e eclesial das revoluções, o impacto do avanço do capital sobre os ambientes católicos e a conformação de uma doutrina social da Igreja que respondesse à deterioração das condições sociais da classe operária. Além de apresentar um panorama das ordens e congregações religiosas do período, e suas personagens que deram corpo aos empreendimentos da Igreja nesse período, o artigo suscita a discussão acerca das noções teológicas e políticas já presentes nos escritos do papa Leão XIII e se desdobram, nas décadas seguintes, dando “origem ao que pode ser entendido como catolicismo de esquerda, terreno fértil para o desdobramento das Teologias da Libertação do século XX.”

Tema caro aos estudos do catolicismo no Brasil, as tensas relações políticas entre Igreja e Estado acaba por ocupar um lugar central na maioria dos textos deste dossiê. Alessandro Rodrigues Rocha, por exemplo, contextualiza a emergência do Cristianismo de Libertação durante os anos de repressão política no Brasil e nos oferece um quadro das transformações no posicionamento do episcopado acerca da ditadura e de seus projetos. Discute ainda a emergência de organismos como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o projeto das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) como formas de resistência à violência e aos arbítrios do Estado em associação com o capital.

“A dimensão política da Teologia Protestante da Libertação” é explorada em toda a sua riqueza por Claudio de Oliveira Ribeiro, que retoma as raízes do diálogo entre teólogos católicos e o movimento ecumênico na revista Cristianismo y Sociedade, no Igreja e Sociedade na América Latina (ISAL) e, mais tarde, no Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI, hoje Koinonia Presença Ecumênica e Serviço). Contemplando os trabalhos de Rubem Alves e Richard Shaull, o autor nos desaconselha a tomar “a publicação de obras como marco fundante da Teologia da Libertação. Isto seria uma negação de seu próprio princípio metodológico, o de partir das experiências práticas concretas. O foco teológico latino-americano são as ações e as experiências no contexto de libertação social e política e as vivências eclesiais renovadoras que foram experimentadas” e, embora menos conhecidas, essas estão disseminadas nas igrejas protestantes do período. Um dos aspectos relevantes do texto é a discussão que apresenta sobre o ecumenismo em seu caráter político, colocando ênfase naquilo que “a doutrina divide, mas o serviço une”, segundo as palavras do teólogo metodista uruguaio Julio de Santa Ana. O autor nos apresenta ainda um rol de importantes teólogos da libertação protestantes na América Latina, suas ênfases teológicas no ecumenismo, “na primazia da graça, na vida em comunidade e nas tensões entre instituição e movimento, em geral frutos do princípio profético valorizado na teologia protestante”. No conjunto, a imagem fornecida é de uma produção teológica bastante comprometida com a “sustentabilidade da vida, com a solidariedade humana, com as formas de inclusão social, de cidadania e de respeito à pluralidade religiosa, com o exercício dos direitos humanos e com a integridade da criação”. Como propõe Ribeiro, “uma profunda e desafiadora aventura espiritual”.

Na mesma perspectiva – da aventura de fé – Marcos Roberto Brito dos Santos narra em seu artigo a luta do padre e teólogo belga José Comblin para permanecer no Brasil, desenvolvendo suas atividades intelectuais e pastorais, tendo em vista o processo de expulsão movido contra ele pelos militares no início dos anos 1970. Na realidade, o autor percorre caminhos mais largos, elucidando aspectos do anticomunismo católico alimentado por grupos conservadores durante a ditadura, o trabalho de espionagem do governo sobre os padres estrangeiros e também as articulações entre os setores mais “progressistas” para respaldar a ação transformadora dessa parcela do clero.

Em “‘Uma leitura Marxista das conclusões de Medellín’: problemas conceituaissemânticos nas relações Igreja-Estado no Brasil (1970-1971), Sérgio Ricardo Coutinho discute os diálogos truncados entre líderes católicos e agentes da ditadura acerca das recepções no Brasil do documento final da II Conferência Geral do Episcopado LatinoAmericano. Partindo da história dos conceitos de Reinhardt Koselleck, o autor nos apresenta as diferentes interpretações de Medellín trazidas à Comissão Bipartite e expressas em reuniões (como Seminário de Estudos “Missão da Igreja e transformação da sociedade brasileira”) e documentos (como “Exemplo de uma leitura marxista das conclusões de Medellín”). Não raro, retomar as oposições dos que viam o texto eivado de “jargão comunista” e linguagem subversiva contra os que o pensavam como manifestação de uma “doutrina integrada, ampla e coerente do desenvolvimento” ajuda a compreender os motivos pelos quais o documento foi olhado “com muita desconfiança por boa parte do episcopado brasileiro e latino-americano, mas acolhido de forma entusiástica pelo jovem clero e organizações laicais”. Para o autor, “receber Medellín de forma entusiasmada era correr sérios riscos diante da conjuntura política da época.

Duas trajetórias de conversão e engajamento em uma ação religiosa transformadora nos são oferecidos por Iraneidson Santos Costa, em “Pedro Gondra y Pedro Plá: dois cristãos a serviço dos pobres da América Latina”. O artigo narra, de maneira cruzada, as vidas religiosas do jesuíta Pedro Arrupe y Gondra e do bispo claretiano Pedro Maria Casaldáliga i Plá. O primeiro é basco e o segundo, catalão. Ambos flertaram com o fascismo e o anticomunismo nas suas juventudes e se sensibilizaram mais tarde com as dores da gente pobre espalhada pelas periferias da terra. Na opinião do autor, isso consolidou em ambos o “ideal de pobreza evangélica (…) como a base da radical opção missionária. Ao que tudo indica, sem se conhecerem pessoalmente, os “dois Pedros” colaboraram grandemente com a igreja latino-americana: Arrupe viajando todo o continente e participando de Medellín (1968) e Puebla (1979); Casaldáliga atuando de maneira vigorosa em defesa dos povos do Xingu, em São Félix do Araguaia.

Finalizando o dossiê, Leonardo Gonçalves de Alvarenga e Nelson Lellis discutem como os conservadorismos religiosos na Bolívia interagem com a figura política de Evo Morales, evidenciando um Cristianismos cujas identidades estão em disputa. O artigo toca questões complexas e delicadas, como a evolução do movimento neopentecostal no país, qual a implicação do art. 88 do Novo Código de Sistema Penal para a sociedade religiosa na Bolívia (?) em que medida a capitalismo e teologia da prosperidade (presentes no pentecostalismo) estão impactando sobre os indígenas (?) e como as igrejas voltadas para mobilização social (mais inclinadas à orientação de esquerda na política) se interpõem neste processo? Para responde-las os autores lançam mão da discussão de Manuel Castells sobre identidade, “que é pensada como construção social que ocorre sempre dentro de um contexto marcado pelas relações de poder”. Assim, a reação às propostas de modificação na legislação encaminhadas por Morales pode ser lida como tensão inerente às sucessivas ondas missionárias que chegam ao país desde o processo de colonização e às disputas recentes de um campo religioso cada vez mais plural. Esta seria certamente uma das questões mais atuais da relação entre cristãos de esquerda (e de direita) no continente.

Este volume da Revista traz ainda um rico debate teórico-conceitual e metodológico, bem como abordagens temáticas que evidenciam a proficuidade e complexidade do estudo do religioso. Em seus artigos livres temas instigantes nos impulsionam à reflexão. Boa leitura!

Fábio Py – Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), com estágio sanduíche no Centre d Études Interdisciplinaires dês Facts Religieux (CEIFR) do Centre National de la Recherche Sientifique (CNRS) da École des Hautes em Sciences Sociales (EHSS). Tem pós-doutorado em Políticas Sociais na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, onde é professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais. E-mail: [email protected]

Diego Omar da Silveira – Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Professor do curso da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). E-mail: [email protected]


PY, Fábio; SILVEIRA, Diego Omar da. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.11, n.32, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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