“Cultura, Modernidade, Cidades” / Tempos históricos / 2016

Em “Marcovaldo ou as estações na cidade”, Ítalo Calvino (1997) [3] convidava os leitores a entrar no universo cômico e dolorido de Marcovaldo, sujeito que experenciava uma estranha relação com a cidade: “semáforos”, “buzinas”, “vitrines”, “letreiros luminosos” ou “cartazes” não detinham a sua atenção; mas uma “folha amarelando num ramo”, “uma pena que se deixasse prender numa telha”, o “buraco de cupim numa mesa” ou a “casca de figo se desfazendo na calçada” jamais escapavam ao seu olhar e crivo.

Por meio desta forma peculiar de apreender o “real”, Marcovaldo buscava “decifrar” a cidade (e até “encontrar-se”) em meio às transformações do mundo moderno. Era como se, para conhecer melhor e com maior complexidade, as múltiplas experiências da cidade, fosse preciso distanciar-se delas, a ponto de, no limite, deixar entrever (revelar?) a “artificialidade”, as “normatizações”, as “convenções”, as “tensões”, os “conflitos” e o “caos” inerentes a vida urbana…

Paradoxalmente, nada mais “familiar” aos olhos de Marcovaldo do que a necessidade de experenciar a cidade ao avesso (o amor pela natureza) ou, como diria Walter Benjamin – na senda do materialismo dialético de Marx – por meio do “estranhamento”, o que, neste caso, colocaria aos sujeitos modernos o objetivo de “varrer a história a contrapelo”.

Este foi, em grande medida, o intento que moveu os organizadores do dossiê e os autores dos artigos abaixo apresentados.

Em “A crônica urbana de São Paulo pela luneta invertida do historiador (1910- 1922)” – singela homenagem ao historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014) – Elias Thomé Saliba convida o leitor a adentrar ao universo irreverente e humorístico de um conjunto de cronistas paulistas (Juó Bananére, Iago Joé, Silvio Floreal, Galeão Coutinho, dentre outros) que, por diferentes perspectivas, procuraram representar o processo histórico de urbanização na capital paulista durante a Primeira República. Tratam-se, segundo Saliba, de registros históricos pouco conhecidos e de grande valia para os estudos de cultura urbana, posto que ofuscados pela “metropolização” de São Paulo e a hegemonia do movimento modernista de 1922.

Significativo também para as reflexões sobre cultura, modernidade e experiências urbanas é o tema da medicina e da saúde pública, com destaque para uma visada específica: o incipiente processo de “medicalização” social na cidade entre o último quartel do século XIX e a primeira metade do século XX. É esta a proposta central do artigo “Medicina casera, remedios y curanderos en los inicios de la medicalización de la ciudad moderna. Buenos Aires, 1870-1940”, de Diego Armus, que, ao focalizar a capital argentina, analisa as contradições e os impasses da ciência médica e seus agentes oficiais diante da presença de formas híbridas de medicalização, representadas nos jornais da época pela ação de “curandeiros” e “charlatães”.

De volta ao território brasileiro, mas igualmente preocupada em debruçar-se sobre as interfaces entre cidade, modernidade, modernização e saúde pública, temos o artigo “Santos – porto-cidade: modernização, saneamento e viagem”, de Maria Izilda Santos de Matos. A historiadora busca analisar as transformações e tensões urbanas vividas em Santos – as epidemias e a reforma do porto, as relações entre saneamento e modernização, os projetos urbanísticos – tendo por eixo problematizador as narrativas sobre a cidade existentes nos relatos deixados por viajantes de diferentes nacionalidades que estiveram na cidade portuária paulista, entre a segunda metade do século XIX e as décadas iniciais do século XX, de modo a compreender, de acordo com a autora, os “olhares” e as “representações” sobre a cidade de Santos.

Ainda nos domínios dos projetos de modernização urbana em cidades-capitais brasileiras, temos o artigo de Fabiano Quadros Rückert intitulado “Porto Alegre e o problema das “materias fecaes”: o serviço de asseio público e a construção da primeira rede de esgoto na capital do Rio Grande do Sul (1879-1912)”. O objetivo do autor é o de explorar os projetos de saneamento e salubridade urbana na capital sul rio-grandense levados a cabo pelo poder público municipal – com especial atenção para os serviços de coleta e descarte dos materiais fecais – por meio de dois “marcos” de intervenção pelas autoridades públicas (prefeitos, vereadores, médicos, engenheiros): o serviço de Asseio Público, em 1879, e a construção da primeira rede de esgoto, em 1912.

No Sul do país, nos tempos das charqueadas, além dos projetos de modernização e saneamento um outro estudo procurou focalizar as transformações sociais e urbanas por intermédio da (re)produção das riquezas numa localidade específica durante o Brasil Imperial: é o caso do artigo ““Entre ricos e pobres””: desigualdade econômica, diversidade ocupacional e estratificação social no Brasil oitocentista: uma análise da cidade de Pelotas-RS (1850-1890)”, de Jonas Moreira Vargas. Como o próprio autor alude, tomando Pelotas como eixo norteador de seu texto, ele procura deslindar a diversidade profissional e a estrutura social de uma cidade (e uma população) que se urbanizava, enquanto mote de análise de um processo articulado de concentração de riquezas e de desigualdades sócio-econômicas.

A então capital do Império, Rio de Janeiro, experienciou processo histórico de modernização urbana que incidiu não apenas sobre os espaços públicos e privados, como, notadamente, nos hábitos, comportamentos e sujeitos considerados “indesejados” que perambulavam por suas ruas. Este último “alvo” é o mote principal do artigo de Monique de Silveira Gonçalves, em “Pelas ruas da cidade: mendicidade, vadiagem e loucura na Corte Imperial (1850-1889)”, que analisa uma das faces perversas deste processo: as práticas violentas e excludentes do Estado e da opinião pública (jornais) de reprimir e ocultar “mendigos”, “loucos” e “vadios” das ruas da cidade em defesa de uma “ordem urbana” ancorada em discursos médicos, com o objetivo de afastá-los da cena pública.

Os projetos de modernização da cidade do Rio de Janeiro nos tempos do Império envolveram também estratégias de regulação e controle do poder público sobre o comércio local. Um dos “problemas” apontados pelas autoridades municipais era a presença das negras quitandeiras, mulheres escravas ou livres, que vendiam gêneros alimentícios pelas áreas públicas do Rio. Tal “problema”, entretanto, desdobrou-se em disputas e conflitos litigiosos pela ocupação destas áreas entre o poder público e a comunidade negra. Esse é o objetivo do artigo de Fernando Vieira de Freitas, “As negras quitandeiras no Rio de Janeiro do século XIX pré-republicano: modernização urbana e conflito em torno do pequeno comércio de rua”, ao abarcar as relações entre modernidade e conflitos na capital imperial.

Com o enfoque na história de africanos e afrodescendentes no Brasil e, em particular, em Curitiba, Paraná, a contar do final da abolição da escravatura, o artigo de Joseli Maria Nunes Mendonça, “Escravidão, africanos e afrodescendentes na “cidade mais europeia do Brasil”: identidade, memória e história pública”, tem por objetivo central desconstruir narrativas sobre a identidade e a memória regional que ocultaram a presença e a participação da população africana / afro-brasileira na produção de outras histórias que também guardam sentido de pertencimento à história regional do Paraná. Para sustentar seu objeto de análise, a autora apropria-se das contribuições teóricas e metodológicas da vertente historiográfica denominada “História Pública”, visando apresentar uma concepção mais democrática de identidade e memória.

Para finalizar, Antônio Gilberto Ramos Nogueira e André Aguiar Nogueira em “Patrimônio cultural do litoral de Fortaleza: os desafios da pesquisa histórica” promovem reflexões metodológicas e discutem experiências sobre tradições e sociabilidades urbanas constituintes do patrimônio cultural de Fortaleza / CE. Partindo do uso e análise de entrevistas, os autores buscam inventariar “práticas culturais e representações sociais”, bem como “lugares”, “memórias” e “personagens” identificados ao processo de modernização do litoral, que fazem parte da história e da memória do lugar – caso das “comunidades praianas” e dos “trabalhadores do mar”, formados por pescadores, portuários, meretrizes, operários, surfistas, pequenos comerciantes e trabalhadores informais.

Entendendo que o eixo temático deste dossiê atravessa, por diferentes caminhos e perspectivas, os textos aqui apresentados, e que neles podemos reconhecer um conjunto de estudos que procuram “varrer a contrapelo” as diversas experiências de modernidade urbana para apreendê-las e interpretá-las com outros olhos – como os de Marcovaldo, que “estranho à cidade, é o cidadão por excelência” – é que convidamos os leitores a dividir conosco a “estranha familiaridade” de viver a (e na) cidade.

Uma ótima leitura!

Notas

3. A primeira edição italiana da obra é de 1963

Humberto Perinelli Neto – Docente do IBILCE / Unesp / São José do Rio Preto e do Programa Multidisciplinar Interunidades de Pós-Graduação Strictu Sensu “Ensino e Processos Formativos” (UNESP São José do Rio Preto / Ilha Solteira e Jaboticabal). E-mail: [email protected].

Rodrigo Ribeiro Paziani – 2 Docente dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus de Marechal Candido Rondon. E-mail: [email protected].

Os Organizadores


PERINELLI NETO, Humberto; PAZIANI, Rodrigo Ribeiro. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.20, n.1, 2016. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê