Cultura e Poder: O golpe de 1964- 40 anos depois (II) / Projeto História / 2004

Cultura – Poder: O golpe de 1964- 40 anos depois (II) / Projeto História / 2004

Neste tomo 2 da Revista Projeto História, que ora se apresenta, com a justa homenagem ao cientista político e historiador René Armand Dreifuss, autor de obra seminal intitulada 1964: a conquista do estado, desenvolvemos o III Encontro de Estudos de Realidade Nacional, que o Programa de Estudos Pós-Graduados em História estimulou e organizou em fins de março e princípios de abril de 2004. As contribuições desenvolvidas no Encontro mais aquelas recebidas configuram esta edição temática.

A Revista Projeto História reúne expressivos artigos que sobrevoam assuntos variegados e aqui pontualmente apresentados. Recebe atenção a reflexão acerca das lutas sociais no campo brasileiro que incitaram os grandes proprietários rurais a se mobilizarem para o complô contra João Goulart, o presidente democraticamente eleito. Campos de disputas, também no historiográfico, destacam-se a história das Ligas Camponesas de Francisco Julião, a atuação dos comunistas na mobilização dos lavradores rurais, a atuação dos camponeses no Centro-Sul. A rica história das lutas sociais na região da Alta Mogiana, Noroeste de São Paulo, no pré-64. No interior desse vasto painel, destacam-se a resistência armada no sul do Pará, em 1972, e as concepções militaristas de nossa esquerda comunista. Traçam-se as formas de atuação e de organização específicas na articulação das lutas no campo e na cidade. No seguimento dos fracionamentos no V Congresso do PCB, em 1960, a formação da dissidência já comportava uma duplicidade de concepções, seja na preparação, organização e desencadeamento da resistência armada, seja nas organizações legais. No plano cultural, estudos analisam a literatura de cordel, o “folheto epitáfio” com a isotimia e a assimilação do articulador do golpe, o morto pranteado que aparece como “vulto” nacional, general Castello Branco, no seu leito de morte. Interrogam-se as funções das representações políticas nos folhetos populares. O conspirador visto como o salvador das “garras do anticristo”. Os poetas populares justificam ideologicamente os atos autoritários do presidente como promotores de bem comum à nação.

Na esfera artística, examinam-se peças teatrais, como Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra, que atuaram na crítica, refletindo sobre as invasões holandesas, para servir de crítica às formas de dominação reinantes. As experiências estéticas de Glauber Rocha são revisitadas num texto instigante que explora o “cinema-verdade” do documentário, todavia, recheado de estratégias de agressão e do grotesco alegórico. Detém-se nas conexões entre Maranhão 66 e a obra-prima Terra em Transe (1967), percebendo a articulação entre história, política e ficção.

Este número da Projeto História também congrega inúmeras pesquisas de nosso mestrado e doutorado, as que estão em vias de se completar ou aquelas já defendidas em nosso programa, abrigando contribuições de outras instituições e de fora do nosso estado. Podemos sumariar, para não nos alongarmos em demasia, algumas delas, como a questão do terrorismo oficial e da rede de estruturas e equipamentos da repressão; a questão da anistia da perspectiva dos jogos de afetos, dos direitos humanos e das associações da sociedade civil que com sua luta criativa souberam penetrar no coração do regime. O papel da Igreja católica, abrigo e eficácia na denúncia do arbítrio e da barbárie, dos massacres transformados em “banalizações do mal”. No plano da cultura, importantes temas se apresentam, com destaque para resistência cultural, no plano artístico. Questão complexa e de difícil tratamento, mas vital para a compreensão das ditaduras latino-americanas, alinham-se pesquisas sobre a Operación Condor.

Reafirmando as críticas inscritas no tomo 1: por esta engrenagem monstruosa e seus resultados, é legítimo se perguntar sobre a responsabilidade da guerra suja. Os crimes cometidos são, independentemente dos espaços nacionais onde foram praticados, crimes de lesa humanidade. Assim como ocorreu com as Mães da Praça de Maio, em Buenos Aires, que mantêm a memória sempre viva, não para repor perdas do passado, mas porque representam a continuidade da luta pela “memória do futuro”; em nosso país, as responsabilidades pelos desaparecidos, crimes, seqüestros, esquartejamentos, torturas ficaram novamente impunes. A impunidade é a nossa marca registrada. Reconhece-se que houve abusos e atos arbitrários; no entanto, extinta a máquina, com ela desapareceram os agentes da repressão, e com eles, o esquecimento e o silêncio de seus atos, mandantes e inspiradores. O cinismo dominante afirma que nossa ditadura foi “branda”. Há que rebater, no entanto, graças a coragem das famílias, do grupo “Tortura Nunca Mais”, de historiadores e combatentes, que continuam a pesquisar, a denunciar e a refazer as contas acerca do número de mortos e desaparecidos. Há que acrescentar, aos 386 até aqui constatados, aproximadamente mais de um milhar de trabalhadores do campo exterminados.

As conseqüências dos atos bárbaros e arbitrários se misturaram à violência caseira do cotidiano: a prática cotidiana da tortura – comum nas cadeias brasileiras – torna-se, com os esquadrões da morte, com os aparelhos do Estado, uma prática institucionalizada. Um tipo de prática de extorsão, de ascensão social rápida, de enriquecimento ilícito nos meios policiais, de prostituição e jogatinas à luz do dia, vão se juntar à prática suja e indigna dos empresários no financiamento da repressão oficial.

A divulgação recente de várias fotos montadas e falsificadas, do jornalista Vladimir Herzog – numa delas, nu e em posição desesperada e humilhante, e noutra, com uma mulher ao lado –, só comprovam como os órgãos de repressão se valeram de todos os meios para intimidar, amordaçar, amedrontar, punir, eliminar.

Uma “Nota” afrontosa do Centro de Comunicação Social do Exército, publicada na Folha de S. Paulo, dia 19 de outubro de 2004, tentava justificar os seus “métodos” na luta contra a “subversão”. Nela se faz a apologia dos atos criminosos e, invertendo os próprios fatos, responsabiliza a oposição por se fechar ao diálogo. A facção durista sustenta que “as medidas tomadas pelas Forças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas”. Ao revés do esperado, não houve responsabilizações; pior, o posicionamento contrário de José Viegas Filho, o ministro da Defesa, custou-lhe caro, sendo destituído pelo governo dito de esquerda e popular, que atendeu às reivindicações dos chefes militares. A partir de então, a pressão pela abertura dos arquivos da ditadura foi realimentada ainda que o general Francisco Roberto de Albuquerque tenha salientado que o Exército não possuía mais nenhum documento sobre a guerrilha do Araguaia. A ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), de sua parte, diz ter aproximadamente 4 milhões de documentos da ditadura militar.

No Chile, a 10 de novembro, o presidente Ricardo Lagos divulgava relatório com mais de 35 mil testemunhos de vítimas de tortura sob a ditadura de Augusto Pinochet (1973-90). “Quantos países se atreveram a olhar com profundidade sua própria história? Quantos países se atreveram a chegar ao fundo do que ocorreu? O Chile se atreve”, declarou o presidente chileno. Ao contrário da atitude regressiva e covarde do governo brasileiro, o comandante-em-chefe do Exército, general Juan Emilio Cheyre, reconheceu a monstruosidade praticada pelas Forças Armadas de seu país no arbítrio e desumanidade dos atos cometidos. Como escreveu o jornalista Jânio de Freitas, a 19 de dezembro, à página A 13, de 19 de dezembro de 2004, “A participação de militares brasileiros na Operação Condor está razoavelmente conhecida. Mas as Forças Armadas brasileiras deram contribuição importante ao golpe de estado no Uruguai e tiveram participações comprometedoras no golpe de Pinochet. […] As razões para a recusa à abertura de arquivos são muito maiores do que a solidariedade por espírito de corporação.”

Não custa repetir a rigorosa síntese acerca dos momentos significativos da ditadura militar, que o historiador Nelson Werneck Sodré fez, à época dos trinta anos do golpe, e, com isso, nós fechamos essa apresentação: “O movimento vitorioso em abril de 1964 foi uma ditadura anunciada, longamente anunciada, amadurecida ao longo dos anos da guerra fria. Estabelecida, desenvolveu-se em três etapas: a inicial, até o AI-5; a intermediária, do AI-5 à chamada distensão; o final, da distensão à derrocada. Note-se: a ditadura não foi deposta, daria lugar a profundas modificações na estrutura do regime. Tendo sido extinta pelos seus próprios gestores, pela impossibilidade em continuá-la como desejavam, transferiu à fase seguinte, à chamada distensão, todos os seus problemas, todas as suas mazelas, à carga de suas características de atraso. […] Não, por acaso, tornou normal e usual o que o nazi-fascismo estabelecera de mais torpe, com o exílio, o banimento, a prisão, a tortura, a privação dos direitos elementares, a insegurança do indivíduo, a destruição cultural e, para culminar, o assassínio estabelecido como processo comum e o seqüestro e desaparecimento dos adversários como norma costumeira. A ditadura foi o crime erigido em lei. Muitas das suas torpezas foram herdadas pelo que veio depois e por isso continuamos a nos debater com os mesmo problemas de trinta anos atrás. Isso prova que só o emprego da força da violência, sob todas as suas formas, pode impedir a sociedade brasileira de alcançar a vitória daquelas reformas estruturais de que o nosso povo tanto necessita. E merece”[1]. 40 anos depois, a tragédia brasileira parece continuar…

Nota

1. SODRÉ. Nelson Werneck. “1964: A Ditadura Anunciada”. In: Golpe de 64. Porto Alegre: Universidade Estadual de Porto Alegre, 1994, p. 10.

Antonio Pedro Tota

Antonio Rago Filho

Editores científicos

Dezembro de 2004


TOTA, Antonio Pedro; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.29, n.2, 2004.  Acessar publicação original [DR]

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