Golpe de 1964 e a Ditadura militar: Processos históricos e historiografia | História Revista | 2015

RC Destaque post 2 12 Golpe de 1964 e a Ditadura militar

É com muita satisfação que apresentamos o Dossiê que a História Revista publica neste número. Passados mais de 50 anos do Golpe de Estado de 1964 e da implantação da Ditadura Militar (1964‐1985) o debate sobre seu caráter e significado continua mais vivo do que nunca. Isto porque além da herança deixada por 21 anos de governos ditatoriais seguir muito presente na dinâmica econômico‐social e na estrutura política da sociedade brasileira atual, a disputa ideológica acerca do seu caráter e legado marca fortemente o debate político atual. E foi com o propósito de refletir sobre esses fatores que organizamos este Dossiê.

Os seis artigos que compõem o dossiê expressam, com grande êxito, resultados de pesquisas que jovens historiadores vêm desenvolvendo sobre o assunto, sobre particularidades institucionais de fundamental importância no período do golpe militar e na ditadura militar que se seguiu. Trata‐se, portanto, de modo inquestionável, de uma grande contribuição da História Revista para a reflexão historiográfica brasileira em seu público leitor especializado, assim como para com o público leitor em geral. Leia Mais

50 anos de golpe: arte, cultura e poder (Parte I) / Antíteses / 2015

No ano de 2014 o golpe de 1964 completou 50 anos. Se não houve motivo para comemorações também não houve (e não há) justificativa para menosprezá-lo como marco histórico. Fato é que no ano de 1964 deu-se início a uma ditadura que durou mais de duas décadas e cujas práticas são sentidas ainda nos dias de hoje. No entanto, 50 anos depois, o evento (e tudo que ele representa) vem se transformando numa oportunidade de examinar o fenômeno do autoritarismo e suas práticas, difundir as pesquisas sobre o regime militar, também expandi-las através de novas abordagens e fontes, tornando-as conhecidas de um maior número de interessados que, durante um longo período, esteve apartado dos espaços de discussão acerca dos rumos do país ou alijado do processo de construção democrática no Brasil.

Embora tenhamos inúmeras tipologias para abordá-la como, por exemplo, ditadura civil, militar e até empresarial, acenando para a participação de grupos de natureza diversa tanto na concretude do golpe quanto na consolidação do regime, muito pertinente se torna a definição do sociólogo Juan Linz que definiu os casos brasileiro e argentino e também o espanhol de Primo de Rivera e o português de Salazar como regimes autoritários de natureza burocrático-militares que, em linhas gerais, representa “uma coalização chefiada por oficiais e burocratas e por um baixo grau de participação política”, na qual se “falta uma ideologia e um partido de massa; existe frequentemente um partido único, que tende a restringir a participação; às vezes existe pluralismo político, mas sem disputa eleitoral livre” (BOBBIO; MATTEUCCI, PASQUINO, 2004, p.102).

Partido dessas definições gerais em torno do fenômeno do autoritarismo e a versão brasileira dele, podemos tomar a produção bibliográfica no contexto imediato ao golpe de 1964 e no período pós-regime militar como objeto de estudo, analisando os temas mais recorrentes em determinados momentos bem como o impacto dessa discussão no encaminhamento das pesquisas.

Nos primeiros anos do regime militar, de 1964 a 1968, não se sabia ao certo o que estava por vir e não haviam sido fechados os espaços de atuação política, ainda que neles não fosse mais tolerada a interação interclasses como outrora vinha sendo efetivada no plano da cultura por instituições como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), a União Nacional de Estudantes (UNE), o Centro Popular de Cultura (CPC), o Movimento de Cultura Popular (MCP), entre outros.

Paulatinamente, o regime militar expandiu suas práticas repressivas, utilizando-se da censura e repressão para coibir manifestações contestatórias da intelectualidade engajada que outrora buscaram a interação com as classes populares e outros extratos da sociedade e, naquele momento, encontravam-se restritos ao contato com as classes médias. Artistas e intelectuais, por sua vez, não se mantiveram passivos às decisões impostas de “cima para baixo” e se uniram em torno do projeto de consolidação da chamada resistência cultural.

Apesar das divergências vivenciadas por artistas e intelectuais no que concerne à construção de uma unidade em torno das reivindicações comuns, houve uma articulação efetiva deles no contexto pós-golpe e pré-AI-5, isto é, entre 1964 e 1968. As discussões anteriormente restritas à produção individual ou de grupos ganharam dimensões mais amplas e coordenadas durante o regime militar, o que podiam transitar de questões pontuais como a liberação de obras e a libertação de artistas até problemas mais complexos como a extinção da censura e um programa de subvenções.

A construção de uma unidade a partir do enfrentamento de um “inimigo comum”, não extinguiu os impasses teórico-políticos entre diferentes grupos. Isto porque a luta de uma intelectualidade contra o regime militar nunca se definiu por uma convivência pacífica entre integrantes da oposição. Como assinalou o editorial do periódico Arte em revista, num volume especial sobre teatro engajado de outubro de 1981, é necessário “relativizar a possível coerência que muitos querem enxergar numa atividade regida pela economia de mercado, pelos modismos artísticos, pelo jogo das influências externas, como as relações com o Estado, a censura, etc.” De qualquer forma, a atuação dos mecanismos de controle e do aparelho repressivo estimularam a convergência de opiniões divergentes em torno de reinvindicações comuns.

Assim durante pelo menos 10 anos, mais sintomaticamente entre 1968 e 1974, o regime militar, através de uma série de restrições, não só ignorou as principais demandas de artistas e intelectuais, sendo a liberdade de expressão a mais importante delas, como também os impediu de se comunicar com a sociedade brasileira, impondo-lhes a censura de peças teatrais, filmes, revistas, livros, jornais, publicidade, programas de rádio e televisão e também sujeitando-os a mecanismos de repressão como a perseguição, prisão, tortura e até morte de artistas e intelectuais.

Como se vê, este foi um período conturbado para artistas e intelectuais que não mais nutriam expectativas de unidade como outrora, dividindo-se cada vez mais. Diante do processo repressivo deixaram de lutar por questões mais amplas para reivindicar questões pontuais, transferiram a luta contra a censura das manifestações públicas para a esfera jurídica e, mais tarde, para o campo econômico, interiorizavam práticas de autocensura no processo de criação e também promoviam alianças táticas para enfrentar este estado de coisas.

Para se entender este embate de forças durante o regime militar (1964-1985), especificamente a partir de 1968 e durante a década de 1970, devemos ir além das interpretações consolidadas que propuseram dicotomias como resistência x cooptação como ocorreu com grande parte da literatura dos anos 1980 que analisou a produção artística e intelectual produzida durante os anos de censura e repressão; mais que isto, esta se insere num processo complexo e contraditório de projeção da cultura na vida nacional com o fechamento dos espaços tradicionais de atuação política, progressivamente a partir de 1968, que tinha como elemento catalisador as políticas culturais em seus múltiplos matizes como as de caráter proativa realizadas pelo Serviço Nacional de Teatro (SNT), a Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima (Embrafilme), entre outros, e as de natureza repressiva executadas pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), pelos Serviços de Censura de Diversões Públicas (SCDPs) e pela “supercensura” (NAPOLITANO, 2010, p.145 e 150).

Somente no contexto de abertura, o governo Geisel tentou uma aproximação a esses grupos permitindo-lhes expressar anseios reprimidos por longo tempo e convidando-os a participar da elaboração de políticas no âmbito do governo. Claro que isto não foi recebido com unanimidade por artistas e intelectuais, alguns consideraram a iniciativa uma oportunidade de subverter as estruturas por dentro ou, pelo menos, ver atendidas as reivindicações mais pontuais, outros viram nisto mais uma forma de cooptação adotada pelo governo militar e se colocaram contra ele e contra todos que, após longos anos de repressão e censura, aceitaram participar de planos do governo na área da cultura. Desse impasse, advém a rivalidade entre os artistas e intelectuais comunistas mais abertos à interlocução com o governo da abertura e o movimento da contracultura contrário a qualquer tipo de negociação.

Na década de 1980, mais especificamente no pós-1985, artistas e intelectuais buscaram entender o que havia acontecido nos 21 anos de regime militar e isto refletiu diretamente na produção bibliográfica e também nos debates públicos que se concentraram em apontar culpados pela passividade da oposição diante do golpe de 1964; não poupando críticas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e tudo que esteve direta ou indiretamente relacionado a ele, já mencionamos o ISEB, o CPC e o MCP, entre outros.

De meados dos anos 1980 até o fim do século, a ditadura enfim acabara, mas as feridas continuaram abertas… e os arquivos fechados. Durante 30 anos pelo menos, a construção historiográfica acerca do regime militar pautou-se pelas apropriações da memória e a propensão de se confundir com a história. De um lado, militares e aqueles que apoiaram o golpe e a ditadura (a alta cúpula da Igreja Católica, as associações representativas das classes dominantes, os meios de comunicação de grande porte, os partidos e políticos de caráter conservador) contavam a versão deles da história através de restrições plenas ao acesso a arquivos e mecanismos sofisticados de manipulação dos fatos, um dos mais significativos e até hoje confundido refere-se ao tratamento do movimento golpista como revolução ou  redentora (TOLEDO, 2014). De outro, grupos de oposição, nem sempre articulados entre si, colocavam-se como “alvos” do sistema cuja perseguição ostensiva dos agentes da ditadura justificou, em alguns casos, a adesão à luta armada (rural ou urbana). Em ambos os casos, porém de maneiras distintas, consideramos oportuna a observação de Jacques Le Goff acerca da memória coletiva, na qual se tornar “senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas” (LE GOFF, 1996, p.426) e isto aconteceu também aqui, durante e depois do regime militar, considerando obviamente as diferenças entre eles e seu poder de inserção social.

A memória, no entanto, não é algo concreto e definido, cuja produção e acabamento se realizaram no passado e cumpre transportá-los para o presente bem como preservá-la dos riscos de desgaste através da restauração integral dela nem se resume a um “pacote de recordações” também já previsto e acabado. Ao contrário, “é um processo permanente de construção e reconstrução” (MENESES, 1992, p.10).

Portanto, que memória e história não são termos convergentes, ainda que possam ser considerados fenômenos complementares. Enquanto a memória, filha do presente e tendo como objeto a mudança, “é formação de imagem necessária para os processos de constituição e reforço da identidade individual, coletiva e nacional”; a história, operação cognitiva, tem como referencial o passado e “é a forma intelectual de conhecimento”. Noutras palavras, a História não é o “duplo científico da memória” a qual, por sua vez, precisa ser tratada como objeto da história (Id. Ibid., p.14, 22-23).

Nessas disputas pela consagração da memória coletiva, as restrições de acesso aos documentos de época favoreceram a construção de memórias a partir de questões do presente, sobretudo do primeiro grupo que exercia plenos poderes e controle dos arquivos públicos, inclusive dos critérios de descarte deles, orientados não por técnicas arquivísticas e sim por demandas políticas. Daí resulta a importância de pesquisadores de áreas como o jornalismo, a história, a sociologia, a antropologia e a ciência política que tomam hoje a memória coletiva como objeto de pesquisa e transformam a luta pela democratização da memória social numa das prioridades das pesquisas em Ciências Humanas e, assim, trabalham para que “a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens” (LE GOFF, op. cit., p.477).

A produção intelectual e bibliográfica em torno daquele contexto histórico começou a sofrer alterações consideráveis na virada do século quando a sociedade brasileira já se encontrava mais preparada e sem as amarras do passado para discutir nosso passado recente, os arquivos públicos estavam sendo paulatinamente abertos e, através deles, os pesquisadores brasileiros (e não somente os brazilianistas) iniciaram um amplo processo de revisão historiográfica que não só desconstruiu teses cristalizadas no imaginário social  como também apresentou novas abordagens de temas tratados anteriormente pela historiografia oficial.

É exatamente nesse contexto que o dossiê se inscreve. Um momento em que a produção científica e acadêmica no campo das humanidades se volta para reconsiderar uma série de temas que hoje ganham um contorno mais claro e evidente, sobretudo quando se trata, por exemplo, da questão dos direitos humanos. Porque regimes autoritários não atingiram apenas seus opositores e detratores, mas desfiguraram radicalmente os conceitos de democracia e de sociedade civil. Aliás, muitos desses regimes – como foi o brasileiro – usaram da repressão e da violência para impor e proteger uma noção estéril de democracia e de sociedade. Por isso que os estudos, as investigações que ora emergem nesses 50 anos do golpe se apresentam como fundamentais para não somente capitular os eventos que fundaram diversos tipos de oposição ao regime, mas reconsiderar as narrativas e as representações que serviram de fundamento às resistências contra o autoritarismo.

Tanto é fato que cada vez mais pesquisas são elaboradas em torno do tema, que o número de artigos recebidos para esse dossiê ultrapassou todas as expectativas dos organizadores. O montante de material de excelente qualidade serviu para a elaboração de dois tomos da revista. O primeiro deles, intitulado “50 anos do golpe: arte, cultura e poder”, reúne artigos que abordam a produção cinematográfica, teatral, literária, musical, bem como a atuação de artistas e intelectuais na oposição ao regime militar. Publicou-se primeiro porque no conjunto de todos os artigos aprovados, esse tema foi aquele em que os trabalhos de revisão e edição foram concluídos mais cedo. O segundo tomo, intitulado “50 anos do golpe: memória, política e movimentos sociais”, aparece em seguida trazendo consigo um conjunto de artigos que abordam os aspectos comparativos entre as ditaduras do Cone Sul, a construção da memória política sobre a ditadura e o papel da sociedade civil na organização dos movimentos sociais pela abertura política.

Pela realização desse trabalho agradecemos aos autores que colaboraram com esse dossiê e tornaram a publicação possível. Da mesma forma, agradecemos aos pareceristas que emprestaram seu trabalho à Antíteses no processo de leitura e avaliação dos artigos recebidos. A Carolina Sobreira pelos trabalhos gráficos que ilustram as capas dos dois tomos da publicação.

A todos uma boa leitura!

Referências

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política – de A a J. 5. Ed. São Paulo: Imprensa Oficial, 2004. p. 102.

LE GOFF, Jacques. História e memória. 4. ed. Campinas: UNICAMP, 1996. p. 426.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra. A história, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 34, p. 9-23, 1992. p. 10.

NAPOLITANO, Marcos. “Vencer Satã só com orações”: políticas culturais e cultura de oposição no Brasil dos anos 1970. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (orgs.) A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 145 e 150.

TOLEDO, Caio. Quase 50 anos do golpe de 1964: nada a comemorar. Consultado na Internet em 6 jan. 2014: http: / / blogdaboitempo.com.br / 2013 / 03 / 30 / quase-50-anos-do-golpe-de-1964- nada-a-comemorar /

Miliandre Garcia

Rodrigo Czajka

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50 anos de golpe: arte, cultura e poder (Parte II) / Antíteses / 2015

Como parte complementar ao dossiê “50 anos do golpe: arte, cultura e poder”, publicado no primeiro semestre de 2015, chega a público este segundo tomo intitulado “50 anos do golpe: memória, política e movimentos sociais”. A publicação do dossiê em duas partes justifica-se por dois motivos essenciais: a) dividir as contribuições em dois grandes temas de pesquisa sobre a ditadura militar no Brasil; b) contemplar o maior número possível de artigos enviados à Antíteses para este dossiê, que recebeu uma quantidade substancial de colaborações.

Cumpre também constatar, com esse dossiê, que os estudos sobre ditadura militar no Brasil vêm ganhando gradativa repercussão nacional e internacional. Na última década os trabalhos de pesquisa sobre regimes autoritários têm se tornado atuais não apenas pela necessária, ainda que tardia, abertura de arquivos da repressão, mas também pelo modo como ecos do autoritarismo de outrora hoje, mais uma vez, recolonizam o imaginário social, provendo discursos pelo retorno do controle, da repressão, da militarização do sociedade que consagraria, por sua vez, a vitória por revanche de um certo tipo de nacionalismo caduco.

Vê-se hoje setores da sociedade brasileira, sobretudo aqueles comprometidos com a formação de uma opinião pública sobre os rumos da “vida nacional”, engajados às avessas com panelas estridentes em sacadas de edifícios, tornando esse espaço um camarote particular a partir do qual se constrói um falsa noção de democracia: é necessário, pois, participar daquilo que alguns meios de comunicação chamam de “festa democrática”, mesmo que essa festa barre a entrada daqueles que não estão a caráter ou que não foram simplesmente convidados.

Daí que iniciativas da Antíteses, tais como essa, promovem o debate e permitem uma contemporização dos estudos aqui publicados que, a rigor, não estão necessariamente situados há 50 anos. Pois, se a recorrência dos estudos dessa matiz ainda é verificada no ambiente acadêmico, é porque atual nunca deixou de ser o tema do autoritarismo. Mais que isso: é necessário entender como ele próprio se metamorfoseou em instituições, em movimentos, em indivíduos que hoje perfilam os antigos delírios autoritários de tempos sombrios.

Assim, o artigo que abre este segundo volume, “Recordar é vencer: as dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o regime militar brasileiro”, de Marcos Napolitano, propõe uma periodização inédita para analisar o processo de construção da memória do regime militar brasileiro. Partindo do princípio que a memória social e a experiência histórica de uma dada sociedade estão conectadas, o autor analisa a construção de uma “memória mutável” sobre o regime desde os anos 1970 até a primeira década do século XXI.

Florencia Lederman, com o artigo “La nación representada en los héroes. Las estrategias de legitimidad de las dictaduras de Brasil (1964-1985) y Argentina (1976-1983): visiones del tiempo y ejercicio del poder”, analisa como as ditaduras deste dois países se apropriaram dos heróis nacionais. Por serem estes protagonistas de “momentos fundantes” da nação, foram amplamente retomados pelos regimes em questão.

Em “O governo Geisel (1974-1979): o ápice da disputa pelo poder entre duros e moderados e sua expressão memorialista entre os militares”, Maria Gabriela da Silva Martins da Cunha Marinho e Sonale Diane Pastro de Oliveira analisam a disputa memorialista entre “duros” e “moderados” acerca da abertura política no Brasil (1974-1985).

Adrianna Setemy no artigo intitulado “Liberdade sob vigilância: um diálogo entre narrativas históricas sobre o exílio latino-americano no Cone Sul”, pretende, a partir da análise das singularidades, confluências e contradições que caracterizam os diferentes registros escritos sobre o exílio de brasileiros nos países do Cone Sul latinoamericano, promover um debate sobre a pluralidade de formas de narrar a saída indesejada do país de origem, a natureza desses diferentes registros históricos e a construção simbólica do exílio enquanto experiência traumática transcorrida fora das fronteiras nacionais.

Também discutindo a relação entre as ditaduras do Cone Sul, Hernán Ramírez, com artigo intitulado “Reflexiones acerca de las dictaduras del Cono Sur como proyectos refundacionales”, pretende evidenciar as ditaduras como eventos estruturais e não apenas simples conjunturas políticas, que repercutiram de forma profunda nas sociedade latino-americanas, não de modo homogêneo, e que ainda hoje se fazem sentir seus desdobramentos, ao ter remodelado aspectos sociais estruturais em diferentes nações da América Latina.

No texto seguinte, Agenor Sarraf Pacheco e Jaime Cuéller Velarde, analisam em “Silêncios da historiografia brasileira: o golpe civil-militar em experiências de pesquisa no Pará” as narrativas sobre a ditadura militar brasileira no Pará, levando em consideração que apesar das difíceis trajetórias que a nação e seus habitantes trilharam em distintas parte de seu território, a experiência dos longos tempos de regime de exceção na Amazônia ficou quase nas dobras das produções historiográficas nacionais.

Carla Brandalise e Marluza Marques Harres em “Brizola e os comunistas: os Comandos Nacionalistas na conjuntura do golpe civil-militar de 1964”, pretende circunscrever as divergências de concepção e ação entre Leonel de Moura Brizola e seus aliados na contraposição aos vinculados a Luiz Carlos Prestes no Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Em seu artigo intitulado “Formas de militancia en el Partido Comunista argentino durante la última dictadura militar (1976-1983)”, Natalia Casola analisa como a linha definida pelo PC durante a última década da ditadura militar na Argentina, o apelo a construir a “convergência cívico-militar”, se materializou nas diferentes frentes de militância e nas chamadas organizações de massas.

Discutir alguns usos de termos derivados do campo semântico da loucura quando o assunto é a ditadura civil-militar de 1964, analisar o funcionamento dos mecanismo de suspeição e propor uma análise do aparato repressivo ditatorial, do ponto de vista da paranoia, são alguns dos objetivos traçados por Daniel Faria, no artigo “Sob o signo da suspeita: as loucuras do poder ditatorial”.

Partindo para um conjunto de estudos com objetos mais específicos e pormenorizados, o artigo “Carlos Santos e os usos da ideologia da democracia racial na ditadura civil-militar brasileira”, de Arilson dos Santos Gomes visa conferir visibilidade ao protagonismo político negro no parlamento do Estado do Rio Grande do Sul no período da ditadura civil-militar (1964-1974), analisando a atuação do deputado estadual Carlos da Silva Santos.

Rivail Carvalho Rolim procura dar enfoque a algumas formas de resistência à ditadura militar no Brasil exercidas a partir da organização e mobilização de movimento populares, em seu artigo “Repressão e violência de Estado contra os segmentos populares durante os governos militares”.

No artigo “Todo artista tem de ir aonde o povo está”: o movimento político das Diretas Já no Brasil (1983-1984)”, Vicente Saul Moreira dos Santos tece comentários sobre a relação entre História do Tempo Presente e História Política, com objetivo de inserir o movimento político das Diretas Já, transcorrido no Brasil entre 1983 e 1984. Partindo do pressuposto de ter sido um evento da conjuntura do final da ditadura militar, da luta por democracia e cidadania no país.

No mesmo sentido de compreender e detalhar a organização dos movimentos sociais no curso do regime militar, o artigo “O golpe de 1964 e a repressão ao movimento de ‘trabalhadores favelados’ de Belo Horizonte”, de autoria de Samuel Silva Rodrigues de Oliveira, discute o “Inquérito DVS-096” que atingiu a Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte (FTFBH). Segundo o autor, mais do que destruir a estrutura associativa que articulava o movimento social, a repressão desconstruiu a gramática pública que permitia aos “trabalhadores favelados” reivindicarem o “direito de morar”.

Tal como o artigo anterior, o seguinte aborda a organização de movimentos sociais na ditadura. Intitulado “Repressão política contra trabalhadores rurais: reflexões a partir de um estudo de caso em Magé (RJ)”, o artigo de Marco Antonio dos Santos Teixeira, discute a ação de um grupo de trabalhadores rurais em Magé, na Baixada Fluminense, que lutou pelo direito de permanecer na terra que ocupava e se transformou num exemplo de resistência em todo estado do Rio de Janeiro.

Em “A reforma agrária em projeto: o uso do espaço legal para garantir o acesso à terra no Pará (1960-1962)”, Edilza Joana Fontes, coloca em discussão a proposta de reforma agrária no Pará, ocorrido no pré-64, tendo como análise os decretos dos governos do Estado do que procuram definir uma faixa de terras em torno das estradas estaduais, para fins de assentamentos de pequenos produtores rurais. Um artigo que retoma um tema importante no seio das resistências do campesinato, mesmo antes do golpe de 1964.

Por fim, o artigo que fecha esse dossiê, de autoria de Reginaldo Benedito Dias, intitulado “Maringá no nascimento da ditadura civil-militar de 1964: análise do processo movido contra o vereador Bonifácio Martins e seus desdobramentos”, objetiva analisar o processo movido pelo Estado brasileiro, após a implantação da ditadura civil-militar de 1964, contra o Bonifácio Martins, que exercia mandato de vereador no município de Maringá (PR). Perseguido por causa de seu envolvimento com lutas sociais e sindicais e por presumido vínculo com o Partido Comunista Brasileiro, Bonifácio Martins, por motivos de segurança, evadiu-se de Maringá, ficando impossibilitado de concluir seu mandato. O texto de redimensiona os efeitos da ditadura militar sobre os aspectos biográfico e políticos de um figura importante da resistência e oferece uma interpretação mais densa do fenômeno da repressão.

Assim, com esse segundo tomo do dossiê “50 anos do golpe” foi elencado um conjunto representativo de colaborações que, assim como no primeiro, demonstram – como dissemos – a atualidade do tema de pesquisa e sua pertinência crítica nestes dias em que fantasmas do autoritarismo ganham força, mesmo que 50 anos depois.

A todos, uma boa leitura!

Miliandre Garcia

Rodrigo Czajka

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O Golpe de 1964 e seus desdobramentos: lutas, artes, repressão e memória / Revista Maracanan / 2014

Não nos peças a fórmula que te possa abrir mundos, e sim alguma sílaba torcida e seca como um ramo. Hoje apenas podemos dizer-te o que não somos, o que não queremos.

(Eugênio Montale, sem título, em Ossos de Sépia)

Com satisfação trazemos a público este número especial da Revista Maracanan, que inaugura sua periodicidade semestral com a temática candente do golpe de Estado ocorrido no Brasil em 1964, provocando repercussões duradouras na vida nacional e mesmo em outros países da América Latina.

Os artigos que aqui se encontram provêm, em sua maioria, dos debates ocorridos na UERJ entre os dias 31 de março e 04 de abril de 2014 como parte do Seminário Internacional: 50 anos do Golpe de 1964, promovido por um conjunto de Universidades sediadas no Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV, Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) com o intuito de, em alguma medida, reunir e analisar a imensa quantidade de informações e reflexões que proliferaram no país, dos meios de comunicação às academias, passando pelas Comissões Estaduais da Verdade, pela Comissão Nacional da Verdade, Ordem dos Advogados do Brasil, Grupo Tortura Nunca Mais, entre outros. Mais especificamente, o “Programa Integrado de atividades acadêmicas” buscou agregar professores, alunos e convidados dos cursos de História fluminenses, mas também de outras regiões do país e do mundo, para “descomemorar” o aniversário do golpe, segundo a expressão que entrou em voga neste cinquentenário, com a apresentação de novas produções universitárias, juntamente com novas, velhas e boas discussões. Dentro desse projeto, em que a UERJ se inseriu de variadas maneiras, o Departamento de História – na pessoa dos professores Ricardo Antônio Souza Mendes, Beatriz de Moraes Vieira, Carina Martins Costa e Marcus Dezemone, propôs o Ciclo de Debates sobre O Golpe de 1964 e seus desdobramentos: lutas, artes, repressão e memória, congregando especialistas de diferentes universidades e instituições de pesquisa brasileiras e latino-americanas para debater a temática, a fim de compor um panorama diversificado dos estudos mais recentes e proporcionar o intercâmbio entre os pesquisadores de distintos espaços acadêmicos.

Desse evento resultou o Dossiê que aqui se apresenta, em consonância com os objetivos de qualidade e pluralidade da Maracanan, visando ao incentivo e divulgação de produções científicas inovadoras e interdisciplinares na área da História. Assim, os artigos que compõem o dossiê de mesmo título do mencionado Ciclo de Debates seguem aproximadamente a ordem das palestras e depoimentos do evento, que se organizavam em três blocos: “Cinema, literatura e ditadura”, contando com os professores Viviana Bosi, Wagner Pinheiro Pereira e Sylvia Nemer; “Memória de lutas”, reunindo a psicóloga Vera Vital Brasil e os professores Marcus Dezemone, Beatriz Vieira e Orlando de Barros; e “A participação brasileira nos golpes civil-militares no Cone Sul”, em que as contribuições da jornalista argentina Stella Calloni se somaram às dos professores Francisco Carlos Teixeira da Silva e Enrique Serra Padrós. Na mesa de abertura, os professores convidados Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira debateram o tema “1964: o golpe que acabou com a democracia e instituiu a ditadura no Brasil”.

Em geral, os textos aqui presentes foram compostos, conforme a escolha dos autores, por meio de um processo de gravação, transcrição e posterior revisão, o que resulta em um tipo peculiar de escrita, com forte marca do discurso oral que optamos por manter, ainda que os autores hajam revisto e refeito seus trabalhos. Nem todos os palestrantes puderam enviar seus textos, mas, de todo modo, registramos mais uma vez nosso agradecimento pela participação dos professores Ângela de Castro Gomes, Stella Calloni Jorge Ferreira. Igualmente, agradecemos aos alunos bolsistas do curso de História que generosamente se dispuseram ao duro trabalho de transcrever as gravações, nomeadamente Fabrício Gabriel, Juliana Martins, Cairo Barbosa, Edson Lima e Antônio Máximo. Este último, ilustrador profissional além de nosso aluno, brindou-nos graciosamente com uma colaboração inédita, que temos a honra de publicar. A ele e a Fabrício Gabriel, o dedicado secretário da Revista, nossa especial gratidão.

Não há como unificar as reflexões aqui expostas e os debates por elas suscitados, e nem é esta nossa intenção, alicerçada, como já mencionado, na busca de visões plurais. Tampouco há conclusões definitivas, uma vez que toda história muito contemporânea, ou história do tempo presente, não possui marcos precisos de início e fim, é necessariamente inconclusa e oferece aos agentes históricos, historiadores e leitores, um campo aberto de possibilidades, conforme as palavras do professor Enrique Padrós. Neste tipo de historiografia, se não há a clássica distância temporal, há porém a capacidade de distância crítica, que nos permite não neutralidade, mas isenção.[1]

Aqui, também algumas reflexões sobre a função social da História pedem passagem, pois que cabem a esta disciplina, a considerarmos as obras de autores como Michel de Certeau e Jörn Rüsen, os procedimentos epistemológicos e metodológicos necessários para pôr o passado, seus sofrimentos e seus mortos no devido lugar. Para Certeau, a escrita da história é ou deveria ser um discurso de separação, de distinção entre o presente e o passado, o eu e o outro, pois sem isso nem o tempo nem a identidade se tornam inteligíveis. Lidar com o que foi mas não é mais, a finitude e a morte, é um procedimento inelutável e paradoxal da historiografia, cujo discurso “re-presenta mortos no decorrer de um itinerário narrativo” e ao fazê-lo, cumpre a função simbólica de um rito de sepultamento, à maneira de um canto fúnebre que ao mesmo tempo elogia e elimina, honra e enterra. “Assim, pode-se dizer que ela [a historiografia] faz mortos para que os vivos existam”, fornecendo ao passado morto uma representação que exorciza a angústia e libera o presente vivo de seus pesos dolorosos.[2] Já a concepção de Rüsen sublinha a função orientadora do trabalho historiográfico, que apresenta sentidos para a experiência social. Mas, em momentos de grave crise, a ordem narrativa de uma sociedade pode ser alterada ou rompida, vindo a atingir sua cultura histórica e historiográfica, seja em sua dimensão política, estética, psicológica ou cognitiva. Para não subsumir a essas dificuldades, especialmente quando o próprio cerne da capacidade de criar conhecimento é atingido, a historiografia precisa se autorrefletir, superar empecilhos temporais e sociológicos e estabelecer a “historicização” como “estratégia cultural de superação das consequências perturbadoras das experiências traumáticas”. Isto porque, quando as histórias são contadas, o acontecimento catastrófico começa a ser assimilado dentro de uma visão de mundo plausível, de maneira que “ao cabo desse caminho, a narrativa histórica dá à perturbação traumática um lugar na cadeia temporal de eventos. Aí ela faz sentido e perde, assim, seu poder de destruir o sentido e o significado. Ao dar ao evento um significado e sentido ‘históricos’, seu caráter traumático desaparece”.[3] O autor propõe, assim, que ao historiar o que seria uma catástrofe inenarrável, a historiografia supera o trauma e cumpre uma função destraumatizante, vindo a realizar na escrita da história uma dinâmica equivalente ao luto social.

Tais considerações sugerem alguns pontos de convergência que podem ser tomados como norteadores do conjunto de reflexões que ora se apresenta. Os artigos que tratam da relação entre cinema, literatura e a ditadura, por exemplo, abordam os problemas enfrentados pela vida cultural brasileira num momento de grande mudança, na virada da efervescência política do início dos anos 1960 para os tempos da censura e repressão. A isto se somam as ricas problematizações que a arte e os meios de comunicação colocam à crítica, seja literária ou historiográfica. Viviana Bosi estuda a forma como dois poetas brasileiros importantes no período, Ferreira Gullar e Francisco Alvim, exprimiram os problemas políticos da sociedade brasileira entre os anos 1960 e 1970, e questiona, ainda que brevemente, as relações entre poesia e história, especialmente no que tange à poesia dita engajada. Wagner Pinheiro Pereira busca analisar as representações da natureza repressiva e autoritária do regime militar brasileiro em sua fase de maior recrudescimento político, conforme se vê no filme Pra Frente, Brasil (1982), e Sylvia Nemer destaca, na filmografia e na reflexão teórica de Glauber Rocha, a presença aguda das utopias, ideologias e, sobretudo, das tensões que envolveram a cultura brasileira de esquerda nos anos sombrios da ditadura.

Nos textos concernentes à temática das memórias de lutas, os pontos de condensação versam sobre os problemas da memória social, traumática ou não, sobre a consequente necessidade de testemunhos a serem acolhidos pela sociedade, como forma de superação de silêncios e reparação de danos, e sobre as questões que a dor e / ou as disputas de memória colocam à historiografia brasileira. Neste quadro inserem-se as considerações de Vera Vital Brazil ao destacar efeitos da violência institucionalizada pelo golpe civil militar sobre a produção de subjetividade e apontar sua permanência nos dias atuais. Apontando a tortura como um dos principais estratégias repressivas do Estado Brasileiro, dá destaque ao dano psicológico e social das violações cometidas em conexão com os efeitos de silenciamento e destaca a importância do testemunho e da reparação por meio das políticas públicas estatais. Em um balanço explicativo, Marcus Dezemone aborda as atuais batalhas de memória em torno do significado da deposição do presidente João Goulart e do regime autoritário instaurado em seguida, avaliando a construção de representações que enfatizam ora a repressão e a violência política, ora o crescimento econômico e uma suposta manutenção da ordem. Ao relacionar as disputas do presente às diferentes apropriações do passado, o autor reflete sobre o caráter seletivo da memória e ilumina as paixões, versões e controvérsias que 1964 provoca na sociedade brasileira. Em direção de certa forma semelhante, as reflexões históricas e historiográficas apresentadas em meu próprio textose fazem sobre as atuais e intensas discussões acerca do golpe, da ditadura e seus efeitos no país, e propõem uma espécie de debate sobre os debates em que se considere a necessidade de nuances no que se refere a conceitos importantes como, por exemplo, os de liberdade, vitimização, memória traumática e estado de exceção, aos quais se associa a noção de “perplexidade” que surge reiterada e significativamente nas fontes de pesquisa da época.

No terceiro bloco de textos, cumpre-se de algum modo a proposta orientadora e reparadora da História, uma vez que os trabalhos retiram do silenciamento pequenas e grandes questões incômodas ou obscuras, como a precariedade da defesa dos direitos humanos no Brasil, tratada por Francisco Carlos Teixeira da Silva ao retomar as rupturas e continuidades de nossa história recente – mediante a comparação das ditaduras de 1937-1945 e 1964-1985 e os regimes democráticos de 1946-1964 e pós 1985 -, para criticar a violência policial, a violência política e a cotidiana, em especial no que concerne à resiliência da tortura na vida pública brasileira. Por sua vez, o trabalho de Enrique Serra Padrós expõe a atuação extrafronteiriça da ditadura brasileira, pressionando os países vizinhos do Cone Sul para obter colaboração no controle dos “focos subversivos” ao redor das suas fronteiras, e analisa o caso uruguaio (1964-1973) por ser emblemático dessas relações que sintetizam as responsabilidades do Brasil na eclosão de golpes de Estado e na consolidação de ditaduras de segurança nacional na região. Em ressonância a essas considerações, Orlando de Barros ofereceu seu testemunho de professor da UERJ nos anos ditatoriais, explicando a difícil situação dos mestres que viam seus alunos serem perseguidos, presos ou mesmo mortos, bem como as condições de trabalho vigiado e os modos de atuação do regime dentro da instituição universitária.

Na seção dos Artigos Avulsos, os temas abordados dialogam exemplarmente com o Dossiê, como se vê no trabalho do professor Ricardo Antonio Souza Mendes, que resgata a Doutrina de Segurança Nacional para compreender os diferentes projetos de sociedade que estavam em gestação entre as direitas, ainda antes da efetivação do golpe, mas cuja fragmentação foi superada por um conjunto de elementos de identificação que permitiu a unidade observada nos primeiros meses de 1964. Outrossim, as autoras Joana D`Arc Fernandes Ferraz e Cíntia Christiele Braga Dantas tratam do problema da memória, do esquecimento e dos silêncios em chave diferente, pois adotam uma perspectiva benjaminiana para questionar os usos políticos da memória pelos governos pós-ditatoriais e sopesar os dispositivos de reparação e os seus limites ou sequelas no Brasil.

A Resenha do professor Nilo André Piana de Castro traz a boa nova do livro de Alessandra Gasparotto, agraciada em 2010com o “Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas”. Intitulada O terror renegado: a retratação pública de integrantes de organizações de resistência à ditadura civil-militar no Brasil, 1970-1975, a obra concentra informações relevantes sobre os fatos da história política recente no país a partir de meticulosa pesquisa sobre os “arrependimentos” durante a ditadura civil-militar, nos casos em que jovens militantes de esquerda foram apresentados nos veículos de comunicação, entre 1970 e 1975, com depoimentos que renegavam suas atividades na luta-armada e na oposição ao regime imposto.

Por fim, nas Notas de Pesquisa, Jacqueline Ventapane apresenta seus estudos sobre o papel dos meios de comunicação, como a revista VEJA, na representação dos interesses de setores das elites, inserindo-se nas disputas para fazer prevalecer seu próprio projeto de país, conforme se vê no caso da disputa em torno das decisões da política externa daquele período, que geraram impactos importantes na política doméstica.

Se estão certas as reflexões de Michel de Certeau e JornRüsen acima comentadas, todo este número da RevistaMaracanan, ao buscar de variadas formas historiar essa parte recente e difícil da história do Brasil, de certa maneira entoa seu canto de luto ao passado doloroso, a ser decantado, compreendido e enterrado, para, quem sabe, oferecer aos vivos do presente melhor matéria de reflexão sobre sua vida e seu mundo.

Notas

1. PADRÓS, Enrique Serra. “Os desafios na produção do conhecimento histórico sob a perspectiva do Tempo Presente”. Anos 90, Porto Alegre, v.11, n.19 / 20, jan-dez. 2004, pp. 199-223.

2. CERTEAU, Michel. A escrita da história. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 106-108.

3. RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. História da Historiografia [Revista eletrônica], n.02, [Ouro Preto: UFOP], março 2009, p. 195

Beatriz de Moraes Vieira


VIEIRA, Beatriz de Moraes. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.11, dezembro, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Cultura e Poder: O golpe de 1964 – 40 anos depois (I) | Projeto História | 2004

RC Destaque post 2 12 Golpe de 1964 e a Ditadura militar

Transcorridos quarenta anos do golpe militar de 1964, vários eventos significativos aconteceram nas universidades, no Brasil e nos Estados Unidos, nos centros culturais, privados e públicos, contando com a participação de muitos pesquisadores. Artigos foram publicados em jornais e revistas da grande imprensa. O público leitor em geral e acadêmico em particular teve a seu alcance biografias, narrativas de experiências pessoais, livros analisando o golpe e o significado histórico e político do governo militar. Todos esses eventos marcaram, em 2004, os quarenta anos da instauração do regime militar em nosso país. Na ocasião, várias linhas de pesquisa, várias interpretações do governo de João Goulart e do governo militar foram dadas a conhecer ao público.

Uma das posições que mais se difundiu foi a de que aqueles acontecimentos trágicos, em especial toda a atuação dos dez anos de governos, de Vargas a Jango, eram negadores da democracia. Como uma diátese, o grosso dessa interpretação contaminou todo o corpo do pensamento acadêmico brasileiro, em especial o paulista. Leia Mais

Cultura e Poder: O golpe de 1964- 40 anos depois (II) / Projeto História / 2004

Cultura – Poder: O golpe de 1964- 40 anos depois (II) / Projeto História / 2004

Neste tomo 2 da Revista Projeto História, que ora se apresenta, com a justa homenagem ao cientista político e historiador René Armand Dreifuss, autor de obra seminal intitulada 1964: a conquista do estado, desenvolvemos o III Encontro de Estudos de Realidade Nacional, que o Programa de Estudos Pós-Graduados em História estimulou e organizou em fins de março e princípios de abril de 2004. As contribuições desenvolvidas no Encontro mais aquelas recebidas configuram esta edição temática.

A Revista Projeto História reúne expressivos artigos que sobrevoam assuntos variegados e aqui pontualmente apresentados. Recebe atenção a reflexão acerca das lutas sociais no campo brasileiro que incitaram os grandes proprietários rurais a se mobilizarem para o complô contra João Goulart, o presidente democraticamente eleito. Campos de disputas, também no historiográfico, destacam-se a história das Ligas Camponesas de Francisco Julião, a atuação dos comunistas na mobilização dos lavradores rurais, a atuação dos camponeses no Centro-Sul. A rica história das lutas sociais na região da Alta Mogiana, Noroeste de São Paulo, no pré-64. No interior desse vasto painel, destacam-se a resistência armada no sul do Pará, em 1972, e as concepções militaristas de nossa esquerda comunista. Traçam-se as formas de atuação e de organização específicas na articulação das lutas no campo e na cidade. No seguimento dos fracionamentos no V Congresso do PCB, em 1960, a formação da dissidência já comportava uma duplicidade de concepções, seja na preparação, organização e desencadeamento da resistência armada, seja nas organizações legais. No plano cultural, estudos analisam a literatura de cordel, o “folheto epitáfio” com a isotimia e a assimilação do articulador do golpe, o morto pranteado que aparece como “vulto” nacional, general Castello Branco, no seu leito de morte. Interrogam-se as funções das representações políticas nos folhetos populares. O conspirador visto como o salvador das “garras do anticristo”. Os poetas populares justificam ideologicamente os atos autoritários do presidente como promotores de bem comum à nação.

Na esfera artística, examinam-se peças teatrais, como Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra, que atuaram na crítica, refletindo sobre as invasões holandesas, para servir de crítica às formas de dominação reinantes. As experiências estéticas de Glauber Rocha são revisitadas num texto instigante que explora o “cinema-verdade” do documentário, todavia, recheado de estratégias de agressão e do grotesco alegórico. Detém-se nas conexões entre Maranhão 66 e a obra-prima Terra em Transe (1967), percebendo a articulação entre história, política e ficção.

Este número da Projeto História também congrega inúmeras pesquisas de nosso mestrado e doutorado, as que estão em vias de se completar ou aquelas já defendidas em nosso programa, abrigando contribuições de outras instituições e de fora do nosso estado. Podemos sumariar, para não nos alongarmos em demasia, algumas delas, como a questão do terrorismo oficial e da rede de estruturas e equipamentos da repressão; a questão da anistia da perspectiva dos jogos de afetos, dos direitos humanos e das associações da sociedade civil que com sua luta criativa souberam penetrar no coração do regime. O papel da Igreja católica, abrigo e eficácia na denúncia do arbítrio e da barbárie, dos massacres transformados em “banalizações do mal”. No plano da cultura, importantes temas se apresentam, com destaque para resistência cultural, no plano artístico. Questão complexa e de difícil tratamento, mas vital para a compreensão das ditaduras latino-americanas, alinham-se pesquisas sobre a Operación Condor.

Reafirmando as críticas inscritas no tomo 1: por esta engrenagem monstruosa e seus resultados, é legítimo se perguntar sobre a responsabilidade da guerra suja. Os crimes cometidos são, independentemente dos espaços nacionais onde foram praticados, crimes de lesa humanidade. Assim como ocorreu com as Mães da Praça de Maio, em Buenos Aires, que mantêm a memória sempre viva, não para repor perdas do passado, mas porque representam a continuidade da luta pela “memória do futuro”; em nosso país, as responsabilidades pelos desaparecidos, crimes, seqüestros, esquartejamentos, torturas ficaram novamente impunes. A impunidade é a nossa marca registrada. Reconhece-se que houve abusos e atos arbitrários; no entanto, extinta a máquina, com ela desapareceram os agentes da repressão, e com eles, o esquecimento e o silêncio de seus atos, mandantes e inspiradores. O cinismo dominante afirma que nossa ditadura foi “branda”. Há que rebater, no entanto, graças a coragem das famílias, do grupo “Tortura Nunca Mais”, de historiadores e combatentes, que continuam a pesquisar, a denunciar e a refazer as contas acerca do número de mortos e desaparecidos. Há que acrescentar, aos 386 até aqui constatados, aproximadamente mais de um milhar de trabalhadores do campo exterminados.

As conseqüências dos atos bárbaros e arbitrários se misturaram à violência caseira do cotidiano: a prática cotidiana da tortura – comum nas cadeias brasileiras – torna-se, com os esquadrões da morte, com os aparelhos do Estado, uma prática institucionalizada. Um tipo de prática de extorsão, de ascensão social rápida, de enriquecimento ilícito nos meios policiais, de prostituição e jogatinas à luz do dia, vão se juntar à prática suja e indigna dos empresários no financiamento da repressão oficial.

A divulgação recente de várias fotos montadas e falsificadas, do jornalista Vladimir Herzog – numa delas, nu e em posição desesperada e humilhante, e noutra, com uma mulher ao lado –, só comprovam como os órgãos de repressão se valeram de todos os meios para intimidar, amordaçar, amedrontar, punir, eliminar.

Uma “Nota” afrontosa do Centro de Comunicação Social do Exército, publicada na Folha de S. Paulo, dia 19 de outubro de 2004, tentava justificar os seus “métodos” na luta contra a “subversão”. Nela se faz a apologia dos atos criminosos e, invertendo os próprios fatos, responsabiliza a oposição por se fechar ao diálogo. A facção durista sustenta que “as medidas tomadas pelas Forças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas”. Ao revés do esperado, não houve responsabilizações; pior, o posicionamento contrário de José Viegas Filho, o ministro da Defesa, custou-lhe caro, sendo destituído pelo governo dito de esquerda e popular, que atendeu às reivindicações dos chefes militares. A partir de então, a pressão pela abertura dos arquivos da ditadura foi realimentada ainda que o general Francisco Roberto de Albuquerque tenha salientado que o Exército não possuía mais nenhum documento sobre a guerrilha do Araguaia. A ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), de sua parte, diz ter aproximadamente 4 milhões de documentos da ditadura militar.

No Chile, a 10 de novembro, o presidente Ricardo Lagos divulgava relatório com mais de 35 mil testemunhos de vítimas de tortura sob a ditadura de Augusto Pinochet (1973-90). “Quantos países se atreveram a olhar com profundidade sua própria história? Quantos países se atreveram a chegar ao fundo do que ocorreu? O Chile se atreve”, declarou o presidente chileno. Ao contrário da atitude regressiva e covarde do governo brasileiro, o comandante-em-chefe do Exército, general Juan Emilio Cheyre, reconheceu a monstruosidade praticada pelas Forças Armadas de seu país no arbítrio e desumanidade dos atos cometidos. Como escreveu o jornalista Jânio de Freitas, a 19 de dezembro, à página A 13, de 19 de dezembro de 2004, “A participação de militares brasileiros na Operação Condor está razoavelmente conhecida. Mas as Forças Armadas brasileiras deram contribuição importante ao golpe de estado no Uruguai e tiveram participações comprometedoras no golpe de Pinochet. […] As razões para a recusa à abertura de arquivos são muito maiores do que a solidariedade por espírito de corporação.”

Não custa repetir a rigorosa síntese acerca dos momentos significativos da ditadura militar, que o historiador Nelson Werneck Sodré fez, à época dos trinta anos do golpe, e, com isso, nós fechamos essa apresentação: “O movimento vitorioso em abril de 1964 foi uma ditadura anunciada, longamente anunciada, amadurecida ao longo dos anos da guerra fria. Estabelecida, desenvolveu-se em três etapas: a inicial, até o AI-5; a intermediária, do AI-5 à chamada distensão; o final, da distensão à derrocada. Note-se: a ditadura não foi deposta, daria lugar a profundas modificações na estrutura do regime. Tendo sido extinta pelos seus próprios gestores, pela impossibilidade em continuá-la como desejavam, transferiu à fase seguinte, à chamada distensão, todos os seus problemas, todas as suas mazelas, à carga de suas características de atraso. […] Não, por acaso, tornou normal e usual o que o nazi-fascismo estabelecera de mais torpe, com o exílio, o banimento, a prisão, a tortura, a privação dos direitos elementares, a insegurança do indivíduo, a destruição cultural e, para culminar, o assassínio estabelecido como processo comum e o seqüestro e desaparecimento dos adversários como norma costumeira. A ditadura foi o crime erigido em lei. Muitas das suas torpezas foram herdadas pelo que veio depois e por isso continuamos a nos debater com os mesmo problemas de trinta anos atrás. Isso prova que só o emprego da força da violência, sob todas as suas formas, pode impedir a sociedade brasileira de alcançar a vitória daquelas reformas estruturais de que o nosso povo tanto necessita. E merece”[1]. 40 anos depois, a tragédia brasileira parece continuar…

Nota

1. SODRÉ. Nelson Werneck. “1964: A Ditadura Anunciada”. In: Golpe de 64. Porto Alegre: Universidade Estadual de Porto Alegre, 1994, p. 10.

Antonio Pedro Tota

Antonio Rago Filho

Editores científicos

Dezembro de 2004


TOTA, Antonio Pedro; FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.29, n.2, 2004.  Acessar publicação original [DR]

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