Culturas Populares, Gênero e Diversidade Sexual: interfaces, tensões e subjetividades / Caminhos da História / 2019

Nos últimos anos, é notório o crescente interesse pelos estudos sobre as artes e culturas populares. Multiplicam-se os trabalhos acadêmicos, artigos e livros dedicados ao tema, assim como o número de agências não governamentais e privadas interessadas na execução de projetos na área. As abordagens mais recorrentes focam questões como as tensões entre a dimensão tradicional e mecanismos de (re)invenção, processos de espetacularização, as dimensões performativas e processos de patrimonialização, dentre outros temas. Também é notória a consolidação, no Brasil, do campo dos estudos de gênero, assim como daquele sobre a diversidade sexual, ao longo das últimas quatro décadas com temas diversos e abordagens múltiplas. Mas, o que falar da relação entre as culturas populares, as perspectivas de gênero e as experiências da diversidade sexual?

Com o intuito de reunir subsídios para responder a essa pergunta, coordenamos um grupo de trabalho na terceira edição do Seminário Internacional Desfazendo Gênero, realizada em Campina Grande, em 2017, evento organizado por Jussara Carneiro Costa, na Universidade Estadual da Paraíba. O grupo de trabalho procurou reunir, assim, pesquisadores / as interessados / as em um território ainda pouco explorado em ambos as áreas de pesquisas, a saber, as interfaces entre as artes e culturas populares e as questões relativas às expressões de gênero e da diversidade sexual. O que se sabia sobre gênero e / ou sexualidade nos contextos de produção cultural, situações ritualizadas, festividades ou processos de patrimonialização? Quais as expressões de gênero e da diversidade sexual nas artes e culturas populares? Que conflitos, tensões, silenciamentos e resistências perpassam esses campos em suas interações? O que este olhar pode nos oferecer como possibilidades de visualizar formas de produção de sujeitos no mundo contemporâneo? Estas são algumas das questões levantadas pelo grupo e que os textos reunidos aqui tentam, de alguma maneira, responder. Uma parte desses textos é oriunda do grupo de trabalho, outra parte foi acrescentada em seguida ao evento com a continuidade de nossos diálogos sobre o tema.

Os saberes populares se materializam na vida social frequentemente por meio de situações ritualizadas. Os rituais são aqueles espaços-tempo em que são formuladas e reformuladas culturalmente, negociadas e renegociadas socialmente, editadas e reeditadas simbolicamente e tensionadas politicamente as múltiplas formas de pertencimento e as mais variadas demonstrações identitárias, entrecruzando os eixos da identidade (indivíduo versus coletividade) e da alteridade (mesmo versus outros). A maneira como tais saberes são performados, portanto, não são apenas um mecanismo de reprodução da vida social por meio da repetição, mas são sobretudo um conjunto de dispositivos acionados para produzir reflexões críticas acerca dos arbitrários culturais sobre os quais se assenta a ordem social e, assim, denunciar, de forma quase sempre lúdica, os efeitos de poder instituídos nos saberes, discursos e práticas sociais. Num aparente paradoxo, no âmbito das culturas populares a liminaridade dos rituais parece contribuir para a naturalização do status quo hegemônico, no que diz respeito às expressões de gênero e da diversidade sexual, representado por um regime de verdade médico-científico e jurídico-moral instaurador do binarismo de gênero, do dimorfismo sexual e da heterossexualidade compulsória, ao mesmo tempo em que subvencionam potentes críticas a essa naturalização, ao promover, ainda que momentaneamente, a subversão, a transversão, a reversão ou a inversão da ordem – ou, pelo menos, a ponderação sobre a sua versão oficial e a possibilidade de sua instabilização.

Além disso, podemos notar também que o impacto das discussões sobre identidade, gênero e sexualidade resultaram na pressão crescente para o reconhecimento e a abertura de novos espaços, dentro de tais manifestações antes ocupados majoritariamente a partir de uma lógica heteronormativa. Tais reivindicações possibilitaram a emergência de novos agentes e narrativas bem como tornando visíveis aquelas até então silenciadas. Assim, à potência das ambiguidades do espaço da liminaridade ritual somou-se também o da reivindicação e luta política.

Os resultados das pesquisas que compõem esse dossiê, de alguma maneira, tratam da tensão entre discursividades hegemônicas naturalizadas / naturalizadoras e possibilidades culturais / existenciais alternativas no que diz respeito às expressões de gênero e da diversidade sexual (e outros marcadores sociais da diferença, em alguns textos). Em certos casos aqui relatados, essa tensão é mediada (ou neutralizada?) pelas manifestações das culturas populares diretamente, como nos artigos de Hayesca Costa Barroso, de Lady Selma F. Albernaz e Jailma Maria Oliveira, de Thayanne Tavares Freitas e de Camila Maria Gomes Pinheiro; em outros, como no artigo de Diego S. Santos e Sérgio Luiz Baptista, a mediação se dá através de situações ritualizadas representadas, por exemplo, pela participação em programas especiais de promoção da cidadania e de valorização da vida, como o Programa ViraVira, que funciona como uma espécie de rito de passagem para pessoas transexuais e travestis. Os processos de patrimonialização abordados diretamente por Laura C. Vieira e indiretamente por Daniel Oliveira da Silva poderiam ser vistos também como meios daquela mediação através de situações ritualizadas.

O artigo de Hayesca Costa Barroso, intitulado “A Produção do Gênero na / da Cultura Popular: problematizando um habitus de gênero junino”, mostra como, apesar de baseadas numa estrutura simbólica heteronormativa e binária, as grandiosas festas juninas cearenses, marcadas pelas apresentações das quadrilhas, têm-se tornado um espaço importante de visibilização de pessoas homossexuais (gays e transexuais, principalmente) e de questionamento – ou reelaboração – da fixidez dos papeis de gênero tradicionais, produzindo, desse modo, uma reflexão sobre o que a autora chamou, baseada na obra de Pierre Boudieu, de “habitus de gênero da cultura popular junina”. Já o artigo de Diego S. Santos e Sérgio Luiz Baptista, intitulado “Como ser Transexual e / ou Travesti num Universo Simbólico Heterossocial? A “Carreira Bicha” na Favela da Rocinha, Rio de Janeiro” é baseado numa pesquisa de campo realizada junto ao Programa ViraVida, desenvolvido naquela favela carioca com o intuito de promover a cidadania de pessoas transexuais e travestis. Os autores analisam o que designam como “carreira bicha”, um conjunto de atividades e instrumentos que ilustram a passagem da “identidade gay” para a “identidade trans”, numa espécie de rito de passagem instituidor de uma posição política dissidente em relação à heteronormatividade hegemônica. Lady Selma F. Albernaz e Jailma Maria Oliveira, no artigo intitulado “Maracatu Nação em Pernambuco: raça, etnia e estratégias de enfrentamento ao racismo”, estudam os rituais de maracatu dos carnavais recifenses a partir de uma minuciosa análise das indumentárias utilizadas pelos / as participantes e apresentam uma instigante reflexão sobre as interseções de raça e gênero nos processos de etnização em vigor nessas manifestações culturais.

A cena dos grafismos murais conhecidos como graffitis na cidade de Belém, capital paraense, foi o objeto de estudo de Thayanne Tavares Freitas. No artigo, Thayanne apresenta os principais resultados de uma pesquisa etnográfica refinada realizada junto a um coletivo feminino de grafiteiras belenenses (que inclui mulheres e um homem transexual). A autora partiu do questionamento do processo que apagou ou excluiu as mulheres dessa cena e, no final de sua pesquisa, acabou revelando a maneira como, nos últimos tempos, o protagonismo feminino vem despontando (com muita negociação) nessas manifestações culturais, não só em Belém, mas também alhures. Por sua vez, Camila Maria Gomes Pinheiro, em seu artigo intitulado “„Mulher na Roda Não é pra Enfeitar‟! A Ginga Feminista e as Mudanças na Tradição da Capoeira Angola”, após perceber que os estudos sobre as culturas populares pouco se interessam pelas desigualdades sociais e as diversas formas de discriminação, utiliza-se também da etnografia para verificar o lugar ocupado pelas mulheres na prática da capoeira angola e, principalmente, para mostrar o modo como essa manifestação cultural vem se transformando a partir do momento em que elas passam a ocupar os espaços de poder antes exclusivamente masculinos e se tornam lideranças na organização de grupos, num movimento demonstrativo daquilo que é definido pela autora como feminismo angoleiro.

Laura C. Vieira, em “As Mulheres Erveiras do Ver-o-Peso e os Olhares Patrimoniais” apresenta os resultados de uma pesquisa etnográfica e histórica realizada junto a mulheres feirantes do maior complexo comercial atacadista e varejista do Norte do Brasil, em Belém, sobre os seus costumes, saberes e práticas relacionados à biodiversidade amazônica e a qualidade patrimonial que lhes é aferida. A autora alerta para os cuidados que o processo de patrimonialização em voga tem que ter para evitar objetificar, exotizar e essencializar as práticas culturais no Ver-o-Peso e, em particular, aquelas protagonizadas pelas erveiras – mulheres que comercializam principalmente ervas e produtos fitoterápicos originários da floresta e propiciam atendimentos mágico-espirituais –, gerando estigmas e retirando-lhes a agência enquanto cidadãs, comerciantes e conhecedoras das coisas amazônicas. Ainda no registro dos processos de patrimonialização, Daniel Oliveira da Silva nos oferece um texto intimista e comprometido, intitulado “Comida, Memória e o Encontro de Gerações: um estudo de caso sobre o resgate de uma receita de família”, que trata da importância da oralidade na rememoração de receitas culinárias tidas como “receitas de família”. O autor traz as histórias contadas pelas mulheres de sua família oriunda do interior do Piauí para construir uma narrativa sobre o mirrado, um bolinho feito à base de goma de mandioca. A narrativa assim constituída por essas mulheres nos ensina que as receitas condensam informações sobre trânsitos culturais passados, catalisam relações sociais presentes e se atualizam como matrizes de pensamento para a existência futura, confirmando o que Lévi-Strauss já dizia: os alimentos não são apenas comidos, mas são também bons à penser.

Já Paula Zanardi e Jorgete Lago nos oferecem uma reflexão sobre a invisibilidade das mulheres nas manifestações culturais, a partir da categoria “mestra”, com um olhar a partir do Pará. Se a primeira parte de sua experiencia enquanto gestora do patrimônio e nos provoca a pensar nas representações de genero nas culturas populares no ambito dos grupos e da formulaçao de políticas de cultura, Lago investe na abordagem de temas sobre classe, gênero e raça sob a ótica da etnomusicologia e a reflexão entre a sua subjetividade e seu papel enquanto acadêmica, mulher e cidadã.

Convidamos todas / os, através da leitura dos artigos desse dossiê, a se apropriarem das reflexões propostas pelas / os autoras / es que, de uma forma ou de outra, convidam-nos a pensar em formas de promover um mundo melhor.

Daniel Reis – Doutor em Antropologia pela UFRJ. Pesquisador do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (IPHANDF). Professor do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural-IPHAN. E-mail: [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-2366-0285

Fabiano Gontijo – Professor Titular vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) e à Faculdade de Ciências Sociais (FACS) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Federal do Pará (UFPA). É Doutor em Antropologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, França. [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0003-4153-3914


REIS, Daniel; GONTIJO, Fabiano. Apresentação. Caminhos da História, Montes Claros, v. 24, n.1, jan / jun, 2019. Acessar publicação original [DR]

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