Culturas Populares, Gênero e Diversidade Sexual: interfaces, tensões e subjetividades / Caminhos da História / 2019

Nos últimos anos, é notório o crescente interesse pelos estudos sobre as artes e culturas populares. Multiplicam-se os trabalhos acadêmicos, artigos e livros dedicados ao tema, assim como o número de agências não governamentais e privadas interessadas na execução de projetos na área. As abordagens mais recorrentes focam questões como as tensões entre a dimensão tradicional e mecanismos de (re)invenção, processos de espetacularização, as dimensões performativas e processos de patrimonialização, dentre outros temas. Também é notória a consolidação, no Brasil, do campo dos estudos de gênero, assim como daquele sobre a diversidade sexual, ao longo das últimas quatro décadas com temas diversos e abordagens múltiplas. Mas, o que falar da relação entre as culturas populares, as perspectivas de gênero e as experiências da diversidade sexual?

Com o intuito de reunir subsídios para responder a essa pergunta, coordenamos um grupo de trabalho na terceira edição do Seminário Internacional Desfazendo Gênero, realizada em Campina Grande, em 2017, evento organizado por Jussara Carneiro Costa, na Universidade Estadual da Paraíba. O grupo de trabalho procurou reunir, assim, pesquisadores / as interessados / as em um território ainda pouco explorado em ambos as áreas de pesquisas, a saber, as interfaces entre as artes e culturas populares e as questões relativas às expressões de gênero e da diversidade sexual. O que se sabia sobre gênero e / ou sexualidade nos contextos de produção cultural, situações ritualizadas, festividades ou processos de patrimonialização? Quais as expressões de gênero e da diversidade sexual nas artes e culturas populares? Que conflitos, tensões, silenciamentos e resistências perpassam esses campos em suas interações? O que este olhar pode nos oferecer como possibilidades de visualizar formas de produção de sujeitos no mundo contemporâneo? Estas são algumas das questões levantadas pelo grupo e que os textos reunidos aqui tentam, de alguma maneira, responder. Uma parte desses textos é oriunda do grupo de trabalho, outra parte foi acrescentada em seguida ao evento com a continuidade de nossos diálogos sobre o tema.

Os saberes populares se materializam na vida social frequentemente por meio de situações ritualizadas. Os rituais são aqueles espaços-tempo em que são formuladas e reformuladas culturalmente, negociadas e renegociadas socialmente, editadas e reeditadas simbolicamente e tensionadas politicamente as múltiplas formas de pertencimento e as mais variadas demonstrações identitárias, entrecruzando os eixos da identidade (indivíduo versus coletividade) e da alteridade (mesmo versus outros). A maneira como tais saberes são performados, portanto, não são apenas um mecanismo de reprodução da vida social por meio da repetição, mas são sobretudo um conjunto de dispositivos acionados para produzir reflexões críticas acerca dos arbitrários culturais sobre os quais se assenta a ordem social e, assim, denunciar, de forma quase sempre lúdica, os efeitos de poder instituídos nos saberes, discursos e práticas sociais. Num aparente paradoxo, no âmbito das culturas populares a liminaridade dos rituais parece contribuir para a naturalização do status quo hegemônico, no que diz respeito às expressões de gênero e da diversidade sexual, representado por um regime de verdade médico-científico e jurídico-moral instaurador do binarismo de gênero, do dimorfismo sexual e da heterossexualidade compulsória, ao mesmo tempo em que subvencionam potentes críticas a essa naturalização, ao promover, ainda que momentaneamente, a subversão, a transversão, a reversão ou a inversão da ordem – ou, pelo menos, a ponderação sobre a sua versão oficial e a possibilidade de sua instabilização.

Além disso, podemos notar também que o impacto das discussões sobre identidade, gênero e sexualidade resultaram na pressão crescente para o reconhecimento e a abertura de novos espaços, dentro de tais manifestações antes ocupados majoritariamente a partir de uma lógica heteronormativa. Tais reivindicações possibilitaram a emergência de novos agentes e narrativas bem como tornando visíveis aquelas até então silenciadas. Assim, à potência das ambiguidades do espaço da liminaridade ritual somou-se também o da reivindicação e luta política.

Os resultados das pesquisas que compõem esse dossiê, de alguma maneira, tratam da tensão entre discursividades hegemônicas naturalizadas / naturalizadoras e possibilidades culturais / existenciais alternativas no que diz respeito às expressões de gênero e da diversidade sexual (e outros marcadores sociais da diferença, em alguns textos). Em certos casos aqui relatados, essa tensão é mediada (ou neutralizada?) pelas manifestações das culturas populares diretamente, como nos artigos de Hayesca Costa Barroso, de Lady Selma F. Albernaz e Jailma Maria Oliveira, de Thayanne Tavares Freitas e de Camila Maria Gomes Pinheiro; em outros, como no artigo de Diego S. Santos e Sérgio Luiz Baptista, a mediação se dá através de situações ritualizadas representadas, por exemplo, pela participação em programas especiais de promoção da cidadania e de valorização da vida, como o Programa ViraVira, que funciona como uma espécie de rito de passagem para pessoas transexuais e travestis. Os processos de patrimonialização abordados diretamente por Laura C. Vieira e indiretamente por Daniel Oliveira da Silva poderiam ser vistos também como meios daquela mediação através de situações ritualizadas.

O artigo de Hayesca Costa Barroso, intitulado “A Produção do Gênero na / da Cultura Popular: problematizando um habitus de gênero junino”, mostra como, apesar de baseadas numa estrutura simbólica heteronormativa e binária, as grandiosas festas juninas cearenses, marcadas pelas apresentações das quadrilhas, têm-se tornado um espaço importante de visibilização de pessoas homossexuais (gays e transexuais, principalmente) e de questionamento – ou reelaboração – da fixidez dos papeis de gênero tradicionais, produzindo, desse modo, uma reflexão sobre o que a autora chamou, baseada na obra de Pierre Boudieu, de “habitus de gênero da cultura popular junina”. Já o artigo de Diego S. Santos e Sérgio Luiz Baptista, intitulado “Como ser Transexual e / ou Travesti num Universo Simbólico Heterossocial? A “Carreira Bicha” na Favela da Rocinha, Rio de Janeiro” é baseado numa pesquisa de campo realizada junto ao Programa ViraVida, desenvolvido naquela favela carioca com o intuito de promover a cidadania de pessoas transexuais e travestis. Os autores analisam o que designam como “carreira bicha”, um conjunto de atividades e instrumentos que ilustram a passagem da “identidade gay” para a “identidade trans”, numa espécie de rito de passagem instituidor de uma posição política dissidente em relação à heteronormatividade hegemônica. Lady Selma F. Albernaz e Jailma Maria Oliveira, no artigo intitulado “Maracatu Nação em Pernambuco: raça, etnia e estratégias de enfrentamento ao racismo”, estudam os rituais de maracatu dos carnavais recifenses a partir de uma minuciosa análise das indumentárias utilizadas pelos / as participantes e apresentam uma instigante reflexão sobre as interseções de raça e gênero nos processos de etnização em vigor nessas manifestações culturais.

A cena dos grafismos murais conhecidos como graffitis na cidade de Belém, capital paraense, foi o objeto de estudo de Thayanne Tavares Freitas. No artigo, Thayanne apresenta os principais resultados de uma pesquisa etnográfica refinada realizada junto a um coletivo feminino de grafiteiras belenenses (que inclui mulheres e um homem transexual). A autora partiu do questionamento do processo que apagou ou excluiu as mulheres dessa cena e, no final de sua pesquisa, acabou revelando a maneira como, nos últimos tempos, o protagonismo feminino vem despontando (com muita negociação) nessas manifestações culturais, não só em Belém, mas também alhures. Por sua vez, Camila Maria Gomes Pinheiro, em seu artigo intitulado “„Mulher na Roda Não é pra Enfeitar‟! A Ginga Feminista e as Mudanças na Tradição da Capoeira Angola”, após perceber que os estudos sobre as culturas populares pouco se interessam pelas desigualdades sociais e as diversas formas de discriminação, utiliza-se também da etnografia para verificar o lugar ocupado pelas mulheres na prática da capoeira angola e, principalmente, para mostrar o modo como essa manifestação cultural vem se transformando a partir do momento em que elas passam a ocupar os espaços de poder antes exclusivamente masculinos e se tornam lideranças na organização de grupos, num movimento demonstrativo daquilo que é definido pela autora como feminismo angoleiro.

Laura C. Vieira, em “As Mulheres Erveiras do Ver-o-Peso e os Olhares Patrimoniais” apresenta os resultados de uma pesquisa etnográfica e histórica realizada junto a mulheres feirantes do maior complexo comercial atacadista e varejista do Norte do Brasil, em Belém, sobre os seus costumes, saberes e práticas relacionados à biodiversidade amazônica e a qualidade patrimonial que lhes é aferida. A autora alerta para os cuidados que o processo de patrimonialização em voga tem que ter para evitar objetificar, exotizar e essencializar as práticas culturais no Ver-o-Peso e, em particular, aquelas protagonizadas pelas erveiras – mulheres que comercializam principalmente ervas e produtos fitoterápicos originários da floresta e propiciam atendimentos mágico-espirituais –, gerando estigmas e retirando-lhes a agência enquanto cidadãs, comerciantes e conhecedoras das coisas amazônicas. Ainda no registro dos processos de patrimonialização, Daniel Oliveira da Silva nos oferece um texto intimista e comprometido, intitulado “Comida, Memória e o Encontro de Gerações: um estudo de caso sobre o resgate de uma receita de família”, que trata da importância da oralidade na rememoração de receitas culinárias tidas como “receitas de família”. O autor traz as histórias contadas pelas mulheres de sua família oriunda do interior do Piauí para construir uma narrativa sobre o mirrado, um bolinho feito à base de goma de mandioca. A narrativa assim constituída por essas mulheres nos ensina que as receitas condensam informações sobre trânsitos culturais passados, catalisam relações sociais presentes e se atualizam como matrizes de pensamento para a existência futura, confirmando o que Lévi-Strauss já dizia: os alimentos não são apenas comidos, mas são também bons à penser.

Já Paula Zanardi e Jorgete Lago nos oferecem uma reflexão sobre a invisibilidade das mulheres nas manifestações culturais, a partir da categoria “mestra”, com um olhar a partir do Pará. Se a primeira parte de sua experiencia enquanto gestora do patrimônio e nos provoca a pensar nas representações de genero nas culturas populares no ambito dos grupos e da formulaçao de políticas de cultura, Lago investe na abordagem de temas sobre classe, gênero e raça sob a ótica da etnomusicologia e a reflexão entre a sua subjetividade e seu papel enquanto acadêmica, mulher e cidadã.

Convidamos todas / os, através da leitura dos artigos desse dossiê, a se apropriarem das reflexões propostas pelas / os autoras / es que, de uma forma ou de outra, convidam-nos a pensar em formas de promover um mundo melhor.

Daniel Reis – Doutor em Antropologia pela UFRJ. Pesquisador do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (IPHANDF). Professor do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural-IPHAN. E-mail: [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-2366-0285

Fabiano Gontijo – Professor Titular vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) e à Faculdade de Ciências Sociais (FACS) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Federal do Pará (UFPA). É Doutor em Antropologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, França. [email protected] ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0003-4153-3914


REIS, Daniel; GONTIJO, Fabiano. Apresentação. Caminhos da História, Montes Claros, v. 24, n.1, jan / jun, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Artes, estéticas e vanguardas no Brasil: cultura, subjetividades e representações / Fato & Versões / 2019

Consideramos isso história, mas não nos esqueçamos de que são apenas palavras em uma página, palavras que foram parar lá por causa de certas regras para encontrar evidências, produzir mais palavras de nossa própria autoria e aceitar a noção de que elas nos dizem algo sobre o que é importante no terreno extinto do passado.

Robert A. Rosenstone

A História nos filmes, os filmes na História

Nas últimas décadas, a historiografia brasileira tornou-se um espaço propício para que debates novos se conformassem, notadamente no campo da chamada História Cultural. Na medida em que a ampliação das fontes históricas, a partir das décadas de 1970 e 1980, ousou contemplar objetos tais como filmes, jornais experimentais, produções musicais, peças de teatro, obras de artes plásticas, histórias em quadrinhos, campanhas publicitárias, etc., no Brasil, experiências históricas tais como os movimentos de vanguardas estéticas, notadamente aquelas que emergiam nos séculos XIX e XX, ocuparam espaço em trabalhos acadêmicos e demais obras que concernem ao ofício da História.

Trata-se, pois, de um campo que, a despeito de sua aparente especificidade, contempla caminhos que perpassam a conformação de grupos, conflitos sociais, movimentações cotidianas, relações familiares e de gênero, questões micro e macropolíticas, e, necessariamente, ajudam a demarcar diferentes experiências do tempo. Nas inúmeras pesquisas dessa ampla área de conhecimento, os objetos artísticos são elencados como elementos capazes de subjetivar uma dada realidade, possibilitando, a partir deles, a compreensão de processos históricos que ali se desdobravam.

Os artigos apresentados nesse dossiê demonstram a pluralidade de possibilidades advindas pela escolha em se trabalhar no campo da História Cultural, especificamente com as linguagens artísticas. Apesar das especificidades, observa-se que o elemento interdisciplinar entremeia cada um dos escritos aqui apresentados ao público, em um exercício crítico de acuidade teórico-metodológica de pesquisadores de diferentes instituições de ensino brasileira. Tal como a musa Clio, que tece o tecido da história com os fios colhidos em outras disciplinas, os objetos artísticos apresentados pelos autores demonstram as potencialidades de se dialogar com outros campos de conhecimento, estabelecendo-se trocas, diálogos, possibilidades, etc. sem que se perca, no meio do caminho, as especificidades do metier do campo historiográfico.

Sendo assim, há um duplo desafio a ser enfrentado nesse tipo de pesquisa. Por um lado, é necessário se compreender as particularidades da produção / elaboração dos objetos artísticos elencados, tanto no que diz respeito à sua natureza (cinema, teatro, moda, etc.), quanto ao seu contexto, recepção, autoria, temática. Por outro lado, é preciso compreender os desdobramentos teóricos e metodológicos advindos pela escolha dessa documentação, a fim de se possa delinear, a partir do olhar do historiador de ofício, os diálogos estabelecidos entre os binômios Arte e Sociedade, História e Cultura.

Tendo em vista essas e outras inquietações, o artigo “‘Lutar com o Super-8 é luta mais vã’: O Palhaço Degolado (1977) ou a maquiagem sorridente de um corpo sem cabeça”, de Fábio Leonardo Castelo Branco Brito, apresenta uma interessante análise do película do pernambucano Jomard Muniz de Britto a partir de um referencial teórico constituído a partir de autores tais como Georges Didi-Huberman, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michel Foucault e Paul Veyne.

Por sua vez, a historiadora Grace Campos Costa, em “Diálogos entre moda e cinema: Prêt-à-Porter (1994) de Robert Altman”, amplia o binômio Cinema / História ao trazer para o campo de discussão os diálogos estabelecidos entre o campo da moda e sua representação cinematográfica, em um duplo processo de influência. Sendo assim, o artigo tem como objetivo demonstrar que esses dois campos de produção são constantemente entrelaçados, seja porquê os filmes influenciam hábitos e vestimentas, seja porquê a indústria da moda serve, constantemente, como temática de diferentes películas, as quais se propõem pensar os impactos da mesma nos diversos campos da sociedade.

Ainda no campo dos estudos cinematográficos, a pesquisadora Lais Gaspar Leite, em seu artigo “O corpo do Vagabundo e o contraste com o Tempo Moderno”, apresenta aos leitores uma possibilidade da análise da personagem Carlitos, mundialmente conhecida pela produção de Charlie Chaplin em Tempos Modernos. A autora, em suas reflexões, busca estabelecer as relações existentes entre a commedia dell’arte e a produção cinematográfica chapliniana, a fim de demonstrar as marcas desse diálogo na construção da personagem vagabundo, especialmente na obra acima referenciada.

Tal como para Chaplin, observa-se nas produções do grupo carioca Dzi Croquettes uma grande influência dos vaudevilles e comédias populares. A criação do seu primeiro espetáculo, Dzi L’Internacionalli, é o objeto de análise do artigo produzido pela historiadora Talitta Tatiane Martins Freitas, no qual ela se propõe discutir a estrutura, as escolhas estéticas, bem como os índices de recepção da referida obra teatral. Sendo assim, em “Dzi L’Internacionalli: as ambiguidades sócio e cênica dos Croquettes em seu primeiro espetáculo”, os leitores poderão ter contato com o impacto produzido por esse grupo de 13 homens que, ao longo dos anos 1970, levaram para os palcos do Brasil e da Europa uma estética considerada transgressora por mesclar elementos femininos e masculinos, questionando os constructos sociais de gênero e de sexualidade.

Fechando o dossiê, a pesquisadora Stéfany Marquis de Barros Silva apresenta, nas páginas do artigo “As travessuras históricas da Curtinália teresinense: Sensibilidades e corporalidades urbanas em Teresina na década de 1970”, as condições históricas que propiciaram o surgimento do grupo de jovens Curtinália, o qual colocava em xeque os discursos normatizadores da sociedade teresinense em meados dos anos 1970. Analisando os escritos e filmes experimentais produzidos pelo referido grupo, a autora busca desvelar a maneira como esses jovens problematizaram os códigos de gênero e sexualidade estabelecidos socialmente, decodificando os seus corpos e relações para além dos moldes tradicionais de pensamento.

A partir dessas breves apresentações, esperamos que a diversidade e riqueza de análises reunidas neste dossiê possam encantar e inspirar nossos leitores. Uma boa leitura a todos!

Fábio Leonardo Castelo Branco Brito

Talitta Tatiane Martins Freitas


BRITO, Fábio Leonardo Castelo Branco; FREITAS, Talitta Tatiane Martins. Apresentação. Fatos e Versões, Campo Grande – MS, v.11, n.21, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Gênero e Subjetividades / Projeto História / 2012

A categoria / perspectiva gênero despontou frente às criticas ao conceito / teoria do patriarcado e em face da insuficiência dos corpos explicativos da persistência das desigualdades entre mulheres e homens.

O termo gênero é polissêmico e seu delineamento encontra-se envolto em polêmicas, apesar disso, observa-se certa unanimidade em aspectos que caracterizam a categoria como: reconhecimento do caráter relacional, constituição histórica, social e cultural, presença de instâncias de poder, além de identificar que os valores e características atribuídos a homens e mulheres são internalizados através de processos de subjetivação.

Apesar de a categoria gênero ser utilizada como sinônimo de mulher, ela é essencialmente relacional, subentendendo que a compreensão do feminino e do masculino não se viabiliza em separado e que estas relações são constituintes das culturas, encontrando-se marcadas por relações de poder, hierarquias e assimetrias que permeiam a trama social.

A expansão da incorporação da categoria / perspectiva de gênero gerou novas indagações, renovação temática, metodológica possibilitando a descoberta de temas, testemunhos, documentos, temporalidades e estratégias metodológicas. Ampliaram-se os questionamentos sobre a naturalização biológica e os universalismos, reconhecendo as diferenças como históricas, sociais e culturais, demonstrando que os comportamentos, sensibilidades e valores aceitos numa certa sociedade, local e momento, podem ser rejeitados em outras formas de organização e / ou em outros períodos.

Nesse sentido a perspectiva de gênero – relacional, posicional e situacional –, desestabiliza certezas e amplia as possibilidades de críticas sobre a noção de natureza humana, permitindo o questionamento de clivagens e a descoberta de subjetividades até então pouco visíveis e insondadas. Os questionamentos dos universalismos contribuíram para tornar os sujeitos mais plurais, desfazendo noções abstratas de “mulher” ou “homem” enquanto identidades únicas e a-históricas, para pensa-las como múltiplas, mutantes e diferenciadas no plano das configurações de práticas, prescrições, representações, apropriações e subjetivações.

As críticas às noções de identidade e papéis de gênero permitem observar subjetividades plurais, com suas contradições, migrações e fluidez, colocando-se como um desafio para a historiografia: problematizar a noção de sujeito universal e unitário.[1]

A subjetividade carrega a noção de “sujeição”, marcada pela imposição coercitiva de modelos culturais hegemônicos, através dos quais objetiva-se moldar, regular e controlar. Todavia, o processo de subjetivação não é um destino inexorável de serialização de indivíduos, comporta possibilidades de apropriação e reapropriação, subentendendo sujeitos agentes que recusam, selecionam e escolhem. Escolhas estas que, embora não sejam ilimitadas, abrem possibilidades para construção e reconstrução, permitindo a autonomia criativa.

A produção de subjetividades envolve instâncias individuais, coletivas e institucionais, circunstâncias histórico-sócio-culturais e biográficas (trajetória de vida e de trabalho) que atingem instituições, percepções e articulações. Num processo em que elementos são captados e reproduzidos, também rejeitados, adaptados, trocados, selecionados e eleitos, envolvendo contradições e tensões através das quais sujeitos reformulam suas propostas, práticas, representações e sentimentos.[2]

Dessa forma, brotam antagonismos e reconciliações entre as normas que se desejam impor e as práticas criadas e recriadas, mantendo-se as manifestações autônomas, vigorosas e inventivas, produzidas e experienciadas num processo histórico dinâmico e infindável, gerando subjetividades multifacetadas e multidimensionais que contém o gênero na sua transversalidade.

Este dossiê encontra-se permeado destes debates e discussões, o que demonstra a vitalidade da temática e o avanço das pesquisas. Reúne investigadores de diversas regiões do Brasil, contando com participações internacionais, um artigo inédito de Joan Scott, “Usos e abusos do gênero”,[3] apresentando reflexões sobre os debates dos últimos 30 anos.

Isto não deveria surpreender, pois as palavras têm histórias e múltiplos usos. Elas não só são elaboradas para expressar certas concepções, mas elas também têm diferentes efeitos retóricos. Embora minha primeira reação à controvérsia francesa sobre gênero tenha sido rejeitar a confusão da crítica católica, eu me percebi atraída pela reflexão sobre os múltiplos e conflituosos significados que gênero foi adquirindo no curso de sua adaptação relativamente recente numa referência gramatical a um termo que denota a relação social dos sexos. Em vez de (como eu equivocadamente pensei) tornar-se mais claro ao longo do tempo, gênero se tornou mais impreciso; o lugar de contestação, um conceito disputado na arena da política.

Dentre tantas possibilidades de análises sobre gênero e subjetividade percebe-se que corpo, desejos, emoções, representações, masculinidades, feminilidades, feminismos, memória e envelhecimento, cotidiano, sensibilidades, família e violência permeiam os artigos do presente dossiê.

Gabriela Cano focaliza as ansiedades de gênero a partir do processo de ingresso de mulheres em profissões classicamente pensadas como masculinas, tais como medicina e direito. As questões do feminismo foram problematizadas por Rachel Soihet, no artigo “Mulheres moldando esteticamente suas existências: feminismo como alavanca para uma sociedade mais justa”.

Ana Carolina Eiras Coelho Soares tece reflexões a respeito das representações da masculinidade heteronormativa a partir do romance inacabado de José de Alencar “Ex-homem”. Este escritor é foco de outro artigo intitulado “Gênero e mercado matrimonial em Senhora de José de Alencar” de Valdeci Rezende Borges, cuja análise centrou-se nas representações masculinas e femininas criadas no romance em questão. Ana Maria Marques apresenta uma análise da produção discursiva sobre envelhecimento e gênero nos anos 1980, através da leitura da revista Manchete. Enquanto Raquel de Barros Miguel discute o corpo na publicidade no artigo “Os cuidados de si e os cuidados do outro: lugares de gênero na publicidade da revista Capricho (décadas de 1950-1960)”.

As relações de gênero e a importância da família é a temática dos escritos de Antonio Otaviano Vieira Junior, “Família, violência e gênero: cotidiano familiar no Ceará (1780-1850)”. Do mesmo modo, Cristina Donza Cancela, da Universidade Federal do Pará, analisa as trajetórias amorosas e as dinâmicas da conjugalidade, no período da borracha na Amazônia.

A preocupação com a memória se destaca em outros artigos como: “O sentido da Memória e das relações de gênero na história da migração de mulheres camponesas brasiguaias” de Losandro Antonio Tedeschi; “Entre a História e a Memória: Práticas masculinas no Piauí oitocentista” de Pedro Vilarinho Castelo Branco. As masculinidades são analisadas também em “Viril, produtivo e honrado: a construção da identidade masculina em colégios católicos”, de Roseli Terezinha Boschilia.

Em “Desenvolvimento regional na perspectiva de gênero”, Temis Gomes Parente deu enfoque nas relações de gênero das falas das populações impactadas pela construção do reservatório da Usina Luís Eduardo Magalhães, no Tocantins.

Denise Bernuzzi de Santanna nos brinda com uma entrevista inédita com Anne Cova, investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, colocando a História das mulheres em debate.

Este dossiê também apresenta comunicações de pesquisa recentemente desenvolvidas, como as experiências das mulheres em Aragarças e Barra do Garças (1970 A 1990). Já priorizando as questões do corpo e da sexualidade, destacam-se “Despindo corpos: sexualidade, emoções e os novos significados do corpo feminino no Brasil entre 1961 e 1985” e “A moral dos Corpos: desejos, dispositivos e subjetividades em Fortaleza (1910-1950)”. As representações do feminino aparecem na literatura de Erico Veríssimo em “Gota de orvalho, na coroa dum lírio: Jóia do tempo” e no “Jornal das Senhoras: um projeto pedagógico: mulher, educação, maternidade e corpo (Rio de Janeiro a segunda metade do século XIX)”.

Compõe o volume, resenhas sobre obras lançadas recentemente “A nova História das Mulheres no Brasil”, publicação organizada por Carla Bassanezi Pinsk e Joana Maria Pedro; “Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz: Relações de gênero e História em José de Alencar” de Ana Carolina Eiras Coelho Soares e a análise de gênero de Tatiana Luiza Souza Coelho sobre “Só dói quando eu rio: o risível sob os traços de Ziraldo no Pasquim”.

Recomendaria aos leitores deixarem-se levar numa viagem através dos tempos, desvendando os segredos destas múltiplas histórias, observando experiências femininas e masculinas no passado através das análises argutas e dos questionamentos destes investigadores.

Notas

1. BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Nova York-Londres, Routledge, Chapman & Hall, 1990.

2. GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Micropolítica – Cartografia do desejo. Petrópolis, Vozes, 1986.

3. Texto gentilmente traduzido por uma das organizadoras: Ana Carolina Eiras Coelho Soares.

Maria izilda Santos de Matos

Ana Carolina Eiras Coelho Soares


MATOS, Maria Izilda Santos de; SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 45, 2012. Acessar publicação original [DR]

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