Deleuze, a arte e a filosofia – MACHADO

MACHADO, R. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2009. Resenha de: AMARANTE, Ana Helena. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.3, p.351-352, set./dez., 2010.

O livro de Roberto Machado aborda, a partir de distintas dimensões da obra deleuziana, aquilo que, conforme o autor, é a grande singularidade deste pensamento – a diferença em detrimento da identidade.

Ele mostra como este é o fio que conduz esta filosofia, perseguindo em seu estudo a heterogeneidade própria deste pensamento em seus encontros com a arte, com a ciência, com a própria filosofia. Em seu livro, Machado persegue essa heterogeneidade, pois acredita que explicitá-la é evocar a própria questão que Deleuze não cessa de fazer acerca do “que é pensar”, retirando a filosofia do seu habitual papel de reflexão sobre outros domínios, sejam eles a história da filosofia, a literatura, o cinema, a ciência; para pensar com eles e não mais sobre eles.

Deleuze crê na filosofia como aliança e não como um pensamento reflexivo, o que Machado explora no desenvolvimento de seu trabalho, mostrando a maneira como estas alianças vão sendo constituídas, os encontros de Deleuze com outras filosofias e o modo como elas vão sendo utilizadas, seus conceitos modificados ao receberem outros elementos, outros contextos. Em relação à arte não é diferente, e a prioridade está nas ressonâncias entre cada domínio e não em uma suposta prioridade de um sobre o outro.

Mas Machado observa que, embora Deleuze conceda à exterioridade da filosofia uma importância evidente, o seu exercício é filosófico, já que o pensamento, quando exposto às forças que o fazem pensar, cria conceitos, e esta é, conforme o próprio Deleuze, a especificidade filosófica. A arte e a ciência não precisam da filosofia para o exercício do pensamento; fazem-no a partir de suas especificidades, criando sensações e funções, respectivamente. Mas a criação de conceitos é a prioridade filosófica, o que Machado destaca na obra deleuziana, afirmando que as questões dessa filosofia vêm prioritariamente da tradição filosófica e se colocaram a partir da filosofia e chegando mesmo a afirmar que Deleuze “é um historiador da filosofia que ousou pensar filosoficamente” (Machado, 2009, p.19).

Mas, simultaneamente, Machado quer mostrar o quanto o título de “historiador da filosofia” não cabe a Deleuze, já que sua obra jamais consiste em buscar uma identidade na leitura que faz dos filósofos, mas afirmar sua diferença. Esta operação Machado examina detalhadamente nas leituras deleuzianas de Foucault e Nietzsche, ressaltando as torções, os deslocamentos ou interferências que essa leitura instaura, destacando o processo de colagem de Deleuze.

Esse processo, já trabalhado em Deleuze e a filosofia, obra de Machado de 1990, agora é ampliado, já que inclui a filosofia de Deleuze ao encontro da arte e literatura (Machado, 2009, cf. capítulos 6, 7 e 8). É o próprio Deleuze que nomeia dessa maneira o procedimento de, sobre a história da filosofia, produzir as torções necessárias para que os conceitos respondam a outros problemas; para tanto é necessário que recebam outros elementos, sendo remanejados para outros contextos.

O autor estabelece uma analogia com as técnicas da colagem na pintura, onde a obra é o encontro com materiais distintos numa mesma tela, e refere-se também ao movimento dadaísta.

Machado quer tornar evidente essa operação de colagem na obra de Deleuze, objetivo que parece mesmo conduzi-lo na leitura dessa filosofia, pois privilegia as íntimas relações entre a colagem deleuziana e a instauração da diferença em detrimento da identidade. Isto porque esse encontro de “materiais diversos numa mesma tela” não faz referência a nenhuma identidade ou totalidade, mas busca justamente as diferenças entre os elementos, as diferenças de diferenças, sem nenhuma sujeição a uma suposta identidade.

Daí a geografia do pensamento e não uma história, característica que Machado desenvolve desde a introdução do seu livro. Deleuze quer a constituição de espaços onde seja possível colocar distintos pensadores em ressonância, sem nenhuma obediência a uma história progressiva e linear do pensamento. Nesse espaço o privilégio é dado ao pensamento sem imagem, isto é, o pensamento que não sabe de antemão o que pensa, sem pressupostos, o “espaço da diferença”.

Machado, ao tornar evidente a singularidade da filosofia de Deleuze, persegue o que em cada encontro, com pensadores da filosofia ou não, faz vibrar essa singularidade. Isto é, ele quer apanhar o próprio exercício deleuziano ao encontro de seus intercessores, observando também como esses encontros constituem a construção da filosofia de Deleuze.

Nesses encontros, Machado ressalta a importância de Nietzsche como inspiração fundamental na construção de uma filosofia da diferença, e parece-nos igualmente ser o momento em que Machado apresenta as suas leituras de um modo mais ousado, arriscando-se a uma colagem própria com os conceitos de vontade de potência e eterno retorno, diferença e repetição.

Poderíamos dizer que, ao mesmo tempo em que Machado percebe a inspiração nietzscheana de Deleuze, é também contagiado por ela, já que procura, em certa medida, a vontade que anima a filosofia deleuziana. E esta certamente é a singularidade de seu estudo.

Referências

MACHADO, R. 1990. Deleuze e a Filosofia. Rio de Janeiro, Graal, 242 p.

Ana Helena Amarante – Centro Universitário Metodista IPA. Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

Deleuze, a arte e a filosofia – MACHADO (AF)

MACHADO, Roberto. Deleuze,  a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Resenha de: PACHECO, Fernando Tôrres. Artefilosofia, Ouro Preto, n.8, abr., 2010.

Lançado no segundo semestre de 2009, Deleuze, a arte e a filosofia consiste em uma revisão ampliada do livro Deleuze e a filosofia (Graal, 1990). No mais recente, Roberto Machado procura explicitar os ca- minhos percorridos pelo filósofo Gilles Deleuze no seu esforço para afirmar o pensamento da diferença contra o pensamento representativo. Para tanto, fez-se necessário demonstrar como essa afirmação perpassa por agenciamentos com interlocutores tanto da própria filosofia quanto de outras maneiras de pensar, como as artes. Deleuze, ao travar acordos e distanciamentos com esses interlocutores, revolve seus conceitos e/ou sensações buscando elevar as suas relações em prol do exercício construtivista característico de seu pensamento. A via proposta pelo autor centra-se principalmente sobre as leituras das obras da década de 60 – em especial Diferença e Repetição – partindo para Foucault e terminando sua análise nos livros e escritos sobre literatura, pintura e cinema. Roberto Machado investiga como o tema da diferença é suscitado tomando como ponto de partida o texto “Platão e o simulacro”, em que Deleuze discorre sobre o método de divisão platônico. Tal texto pretende demonstrar como Platão privilegia a representação em detrimento da diferença ao adotar um método de divisão na sua teoria das idéias, em que há uma eliminação sistemática das cópias que não possuem os seus respectivos correspondentes no mundo ide- al. Dessa maneira, Platão elimina da perspectiva filosófica o simulacro, prevalecendo somente as cópias que mantêm correlação intrínseca com a idéia originária. Contra essa perspectiva excludente das diferenças e contra o ponto de vista ascensional platônico, Deleuze alia- se à perspectiva nietzscheana, esta que se posiciona de maneira cética ao pensamento identitário e universalista. Deleuze revisita o filósofo alemão e adota as noções de eterno retorno e vontade de potência como orientações do pensamento que, em relação, são capazes de afirmar a diferença sem subordiná-la à identidade. O ponto determinante do livro está na leitura deleuziana de Kant, em que podemos perceber que a relação do filósofo francês com o criador da filosofia crítica não se configura por tanta animosidade como é comum ser dito. Dentre as inovações conceituais kantianas, Deleuze aponta como fator positivo a inserção da forma do tempo no cogito, gerando uma cisão no sujeito, o je transcendental e o moi empírico. Deleuze é instigado pela caracterização temporal atribuída por Kant em sua filosofia, a qual possibilita a forma diferencial cingida do sujeito, ainda que este mesmo sujeito seja reconciliado posteriormente pela identidade sintética e pela moralidade da razão prática. Em contrapartida, o filósofo francês vai questionar o acordo das faculdades kantianas inserindo a idéia de “gênese” no senso comum. Para Deleuze, Kant não abre mão da noção do comum acordo entre as faculdades, que configuraria um dos postulados da filosofia da representação. Ao contrário, Kant multiplicaria tal noção. Dessa maneira, o filósofo francês demonstrará que existe um “acordo discordante” entre as faculdades encontradas na Crítica do Juízo, em que “no caso do sublime, o desacordo entre imaginação e a razão é o princípio genético do acordo das faculdades”. Ao contrário da idéia da filosofia da representação em que as faculdades convergem para a recognição do objeto, Deleuze propõe três faculdades (sensibilidade, memória e pensamento) autônomas: a cada uma delas um objeto próprio é apresentado, “só apreende o que a concerne exclusivamente, diferencialmente”.

A intensidade é aquilo que força a ser sentido, é a razão suficiente do fenômeno, dá o limite daquilo que é sentido. O objeto da memória (memória transcendental) é a forma pura do tempo, a coisa esquecida, o ser em si do passado que força a lembrança. Já o pensamento opera sobre um impensável que força o pensamento a pensar. Assim, Deleuze aponta que a relação entre as faculdades é do tipo de uma violência discordante que força o pensamento e que as idéias são uma multiplicidade. O capítulo sobre Foucault é apresentado pelo autor como referência a uma continuidade temática de Deleuze em relação aos escritos da década de 60, o que o faz afirmar não haver uma ruptura a partir do “Anti-Édipo”. Nesse capítulo, ao demonstrar o procedi- mento deleuziano de repetir o pensamento de outrem com o intuito de criar torções, o autor adota também a perspectiva de colagem, contrapondo a própria leitura à de Deleuze e demonstrando o funcionamento de conceitos como poder e saber segundo a perspectiva de cada um. Na parte do livro reservada ao pensamento deleuziano em conexão com interlocutores não-filosóficos, Roberto Machado demonstrará como o filósofo francês capta potências de conceitos oriundos de sensações literárias, pictóricas e cinematográficas. Com Proust, Deleuze irá demonstrar o papel da boa interpretação como forma de alcançar a essência: perfeita unidade entre signo e sentido. Continuando entre os literatos, o filósofo demonstrará a importância da linguagem e do estilo e apontará para o papel da sintaxe como constructo da diferença. Para Deleuze, a sintaxe estabelece o que ele chamará de uma “língua estrangeira” dentro da própria língua, o desvario da língua materna. Alguns autores como Melville conseguem, através do uso sintático da linguagem, proporcionar uma desterritorialização da língua, produzindo um devir-outro da língua que fuja dos padrões gramaticais, do establishment canonizado. Esse procedimento de criação de uma nova linguagem procura estabelecer uma conexão com o de-fora “(…) que consiste em visões e audições capazes de revelar o que há de vida nas coisas ao capturar as forças e a intensidade”. Com Francis Bacon, Deleuze demonstrará como o pintor, ao adotar procedimentos de desfiguração e isolamento da Figura, se caracteriza como sendo o artista a expressar as forças, a prevalência das forças sobre as formas.

Para introduzir “Imagem-movimento” (cinema clássico), Machado demonstra a distinção feita por Deleuze entre movimento reproduzido e movimento apresentado para localizar a leitura de Bergson sobre o cinema e, ao invés de situá-lo como algoz da sétima arte, insere sua filosofia mais ainda no audiovisual. “Imagem-tempo” (cinema moderno) caracteriza-se para Roberto Machado como o livro de cinema em que Deleuze pôde estabelecer a sua filosofia da diferença. Com o advento do neo-realismo, o filósofo francês enxerga a tomada do pensamento pelo cinema: ele sai do cinema de ação e passa a ser um cinema visionário, “um exercício transcendental da faculdade de sentir que suspende o reconhecimento sensório-motor da coisa, ou a percepção de clichês, como é a percepção comum, proporcionando um conhecimento e uma ação revolucionários” (p.273).

Deleuze, a arte e a filosofia reforça a hipótese do autor de que a filosofia de Deleuze é uma filosofia sistemática, mas uma sistematização que se dá por articulações e agenciamentos de multiplicidades conceituais. Como bem lembrou Machado ao comparar a filosofia deleuziana ao “Samba de uma nota só” de Tom Jobim: “outras notas vão entrar, mas a base é uma só.”

Fernando Tôrres Pacheco-Mestrando em Estética e Filosofia da Arte/ IFAC/ UFOP.

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