Frontera y guerra civil española: dominación,resistencia y usos de la memoria – SIMÕES (LH)

SIMÕES, Dulce. Frontera y guerra civil española: dominación,resistencia y usos de la memoria. Badajoz: Diputación Provincial de Badajoz, 2013, 400 pp.  Resenha de: ROVISCO, Eduarda. Ler História, n. 67, p.196-199, 2014.

1 Resultante de uma tese de doutoramento em antropologia orientada por Paula Godinho e José María Valcuende del Río, este livro focado em Barrancos enquanto vértice do ângulo transfronteiriço formado com Oliva de la Frontera e Encinasola constitui uma minuciosa etnografia retrospetiva sobre os acontecimentos relativos à concentração e repatriamento de refugiados espanhóis em Barrancos em 1936, entretecida com uma análise sobre dominação e resistência nos campos raianos do sul durante as primeiras décadas das ditaduras ibéricas.

2 Dividido em seis capítulos, este é um livro que – tomando de empréstimo a expressão proferida por Afonso Cruz a propósito do primeiro romance de Ana Margarida de Carvalho – segue a rota do parafuso de pisão de Heráclito, enquanto síntese da reta e da curva, furando a direito e prendendo o leitor num movimento giratório ao longo de quatro capítulos em direção ao seu núcleo: o acontecimento descrito no capítulo quinto.

3 Nos primeiros dois capítulos dedicados à guerra civil espanhola e à fronteira, o leitor é introduzido no diálogo entre a história e a antropologia, nos movimentos sociais pela memória, e nos contextos sociais e históricos da fronteira e das povoações que compõem este triângulo. Nos dois capítulos seguintes, Dulce Simões procede a um segundo nível de contextualização do acontecimento colocando as peças sobre o lado português deste tabuleiro: ricos, pobres e representantes do Estado na fronteira de Barrancos. Os conceitos de hegemonia de Gramsci e de resistência de James C. Scott emergem aqui como eficaz matriz teórica que sustenta a análise.

4 Na abertura do terceiro capítulo, o leitor torna-se refém da brilhante narrativa de Dulce Simões ao ser colocado na praça central de Barrancos, entre os sócios da Sociedade União Barranquense (Sociedade dos Ricos) e da Sociedade Recreativa e Artística Barranquense (Sociedade dos Pobres), sentados frente a frente. A partir desta imagem da estratificação social, a autora inicia uma descrição contrastada do “sumptuoso” campo onde Juan de Bourbon ia caçar a convite da oligarquia agrária barranquenha, com a miséria dos trabalhadores rurais (assistida pelas sopas deslavadas da União de Caridade das Senhoras de Barrancos) e as suas práticas de resistência quotidiana que evitavam o conflito aberto.

5 No capítulo seguinte são explanados tópicos relativos ao papel do conflito espanhol como detonador do modelo fascizante do Estado Novo, ao apoio prestado por Portugal às forças nacionalistas e às estratégias cénicas do posicionamento de Salazar na arena internacional que auxiliam a compreensão do caracter singular do repatriamento para Tarragona dos refugiados republicanos acoitados em Barrancos. Este segundo nível de contextualização é encerrado com uma caracterização das forças de prevenção e vigilância contra a “ameaça roja” na fronteira de Barrancos. Esta vigilância foi intensificada após o golpe militar, passando a integrar o exército, a Guarda Fiscal, a GNR e a PVDE, sendo tecnicamente dirigida pelo Tenente António Augusto Seixas, então comandante da Secção da Guarda Fiscal de Safara.

6 O terror do plano de extermínio posto em prática pelas forças nacionalistas – colocando milhares de pessoas em fuga, muitas das quais para Portugal – descerra a descrição dos dois fluxos de refugiados para Barrancos. O primeiro fluxo, proveniente de Encinasola, ocorreu na segunda semana de Agosto de 1936 e integrou várias famílias apoiantes do golpe militar. Este movimento foi iniciado devido ao receio de que a coluna composta por mineiros de Riotinto e milicianos de Rosal de la Frontera (que havia já participado no assalto ao quartel da Guardia Civil de Aroche) se dirigisse para Encinasola. O segundo fluxo, procedente de Oliva da la Frontera (onde se concentravam milhares de refugiados das províncias de Badajoz e Huelva), derivou da tomada de Oliva pelos nacionalistas a 21 de Setembro de 1936, sendo composto maioritariamente por republicanos. Possuindo sinais político-ideológicos contrários, estes dois fluxos despoletaram formas de acolhimento diferenciadas. Enquanto os refugiados de Encinasola foram acolhidos pelas autoridades locais barranquenhas e alojados em casas da vila, os refugiados republicanos de Oliva viram-se confinados às margens da fronteira (nas herdades da Coitadinha e das Russianas) numa espécie de “quarentena social” contra o contágio ideológico, enfrentando a escassez de alimentos, a ausência de abrigos e “a incerteza sobre o seu destino” (p. 276).

7 Centrando-se nos refugiados pertencentes ao segundo fluxo, a autora relata a vida nos campos, o conjunto de ações das forças de vigilância, as manobras de resistência do Tenente Seixas assentes na manipulação de ordens recebidas e na ocultação do grupo reunido nas Russianas (que lhe valeu a condenação a dois meses de inatividade e à reforma compulsiva, sendo reintegrado em 1938, após ter recorrido da sentença), bem como as operações logísticas de repatriação para Tarragona dos 1.020 refugiados em Barrancos, muitos dos quais viriam a integrar as frentes de combate ou a partir para o exílio.

8 O sexto e último capítulo comporta uma análise do pós-guerra focada no terror enquanto “elemento estruturante do franquismo” (p. 314) e no contrabando como “principal atividade económica durante o pós-guerra” (p. 348), explicitada através da história de vida de Fermín Velázquez, um dos refugiados de Oliva acolhidos na Coitadinha. Durante a primeira década do pós-guerra, a vida deste carabineiro que havia jurado ser fiel à república desenrolou-se entre a sucessão de prisões e a clandestinidade em Portugal, comprovando que nestes anos a “mera existência se converteu numa experiência ameaçadora” (p. 338). Voltando a Oliva de la Frontera em 1948, Fermín Velázquez, como tantos outros republicanos, passa a dedicar-se ao contrabando aqui entendido como “arma dos fracos” e parte integrante da memória da guerra na fronteira.

9 Desta investigação de Dulce Simões havíamos já colhido importantes resultados, de que são exemplo a obra Barrancos na encruzilhada da Guerra Civil de Espanha. Memórias e Testemunhos (publicada em 2007 em Portugal e em 2008 em Espanha) ou o documentário “Los refugiados de Barrancos” produzido pela Asociacíon Cultural Mórrimer (em que participou como consultora) e que foram vitais na divulgação destes acontecimentos. Estes resultados, difundidos no decurso da investigação em ações enquadradas pela Asociación para la Recuperación de la Memoria Histórica de Extremadura, contribuíram para a atribuição da Medalha da Extremadura ao povo de Barrancos em 2009 como reconhecimento pela sua solidariedade no acolhimento de refugiados, bem como para a edificação de um memorial em Oliva de la Frontera em 2010. Neste sentido, deve também ser referido que estes reflexos da investigação merecem a atenção da antropóloga que se desdobra num duplo movimento analítico assente no exame do acontecimento e do seu reflexo, sobretudo no que concerne às recentes formulações de Barrancos como “comunidade solidária”.

10 Marcante contribuição para a história da guerra civil de Espanha na raia luso-espanhola e para o estudo das fronteiras ibéricas, este livro inserido nas “lutas pela memória” constitui também uma inspiradora arma para as “lutas pelo futuro” que hoje se travam na Península Ibérica.

Eduarda RoviscoISCTE-IUL, Centro em Rede de Investigação em Antropologia.

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