A Distinção: crítica social do julgamento | Pierre Bourdieu

Publicado originalmente na França em 1979, sob o título La Distinction. Critique sociale du jugement, o último livro de Pierre Bourdieu traduzido para o português no Brasil apresenta uma teoria sociológica do gosto. Em uma perspectiva mais ampla, pode-se dizer que a obra oferece um arcabouço teórico acerca das categorias de percepção e de classificação do mundo social.

Dividida em três partes, além das tradicionais introdução e conclusão, A Distinção expõe, em quatro anexos, localizados no final do livro, reflexões sobre o método e relação comentada de fontes e de dados estatísticos com base nos quais o sociólogo constrói sua argumentação. E, para executar sua proposta, Bourdieu lança mão não apenas de sua tradicional escrita repleta de jogos de palavras, mas também da problematização de gráficos (construídos a partir da metodologia estatística da análise de correspondência), tabelas, ilustrações e trechos de entrevistas. Tais recursos, mais que adornar o texto, evidenciam a complexidade da leitura proposta pelo autor para o tema.

Na primeira parte, denominada “Crítica social do julgamento do gosto”, constituída de um único capítulo, Bourdieu explica que a competência cultural apreendida através da natureza dos bens consumidos e da maneira de consumi-los varia conforme as categorias de percepção dos agentes e segundo os domínios aos quais tais categorias se aplicam, desde os mais legítimos (pintura ou música) até os mais livres (vestuário ou cardápio). Nesse sentido, para buscar a significação sociológica das diferentes preferências, é necessário atentar para a relação que une as práticas culturais ao capital social e ao capital escolar. Nesses termos, o autor começa a deslindar a ideia lançada na introdução e que perpassa toda a obra: “O ‘olho’ é um produto da história reproduzido pela educação” (p.10). Utilizando-se de questionários aplicados a indivíduos de classes diversas e sobre assuntos igualmente variados no início dos anos 1960, Bourdieu analisa – através de indicadores como nível de instrução ou origem social – as preferências musicais e as relativas à pintura e à compra de móveis, demonstrando a existência de gostos mutáveis consoante as diferentes condições de aquisição de capital (econômico e cultural). Dentre tais predileções, o autor destaca o “gosto puro” – aptidão incorporada para perceber e decifrar as características propriamente estilísticas – e o “gosto bárbaro” – relacionado àqueles desprovidos de capital cultural e que, por falta de familiaridade, acabam aplicando ao objeto os esquemas que estruturam a percepção comum da experiência comum.

Na segunda parte, composta por três capítulos e intitulada “A economia das práticas”, o autor dá continuidade à reflexão, afirmando que o gosto relacionado a consumos estéticos está indissociável do relativo aos consumos habituais. Desta ideia deriva a de que o consumo tanto pressupõe um trabalho de apropriação, quanto contribui para produzir (por identificação e decifração) os produtos que se consome (mesmo os industriais). Os significados dos objetos não impõem a evidência de um sentido universal. Eles variam segundo os esquemas de percepção, apreciação e ação produzidos em condições objetivamente observáveis das classes, as quais não são definidas apenas pela posição que ocupam nas relações de produção, mas também pelo conjunto de agentes que, situados em condições de existência análogas, produzem sistemas de disposições homogêneos, os quais originam práticas semelhantes. Significa que é pelo habitus, princípio gerador de práticas objetivamente observáveis ao mesmo tempo em que sistema de classificação de tais práticas, que se constitui o espaço dos estilos de vida. Em seu interior, a distância da necessidade – possível de ser determinada pela renda – engendra o princípio das diferenças, isto é, a oposição entre os “gostos de luxo” – definidos pelas facilidades proporcionadas pela posse de capital econômico – e os “gostos de necessidade”. A alimentação, a cultura e as despesas com apresentação de si são as três estruturas de consumo através das quais a classe dominante pode se distinguir, principalmente pelas maneiras de se comportar. O interesse que as diferentes classes atribuem à apresentação de si – seja na alimentação, seja no esporte – é proporcional às oportunidades de lucros (materiais ou simbólicos) que podem esperar como retorno. No final desta segunda parte, o autor afirma que a relação entre oferta e demanda não é direta, fruto de simples imposição da produção sobre o consumo, mas uma homologia entre um campo e outro, e suas respectivas lógicas. No interior do campo da produção, responsável pelo universo de bens culturais oferecidos, estão os produtores em luta para satisfazerem os interesses/necessidades dos consumidores e, assim, obterem lucro, seguramente alheios às funções sociais que desempenham para este público. Já no campo de consumo, estão os consumidores manifestando interesses culturais diferentes, os quais se devem a sua condição e a sua posição de classe. Eles se apropriam do produto cultural de uma forma exclusiva porque orientados por disposições e competências que não são distribuídas universalmente. As diferentes formas de apropriação dos bens configuram-se verdadeiras lutas simbólicas, travadas entre aqueles que Bourdieu chama de “pretendentes” e “detentores”, pela apropriação dos sinais distintivos ou pela conservação ou subversão dos princípios de classificação das propriedades distintivas. Os “pretendentes” (exagerados, inseguros e obcecados pelo entesouramento), encarnados na figura do pequeno-burguês, tentam se apropriar dos sinais distintivos nem que seja sob a forma do símile para se distanciar dos desprovidos de distinção (as classes populares). Através do “parecer” eles pretendem “ser”. Já os “detentores”, os burgueses, são seguros de seu ser e só quando seus hábitos de consumo são ameaçados de vulgarização procuram afirmar sua raridade em novas propriedades.

Quatro capítulos integram a terceira e última parte, nomeada “Gostos de classe e estilos de vida”. Segundo o autor, no interior das classes – principalmente da burguesia e da pequena burguesia – existem variações de gosto que correspondem às frações de classe, caracterizadas, por um lado, pela distribuição das diferentes espécies de capital e, por outro, pela trajetória social. Primeiramente, ele trata da classe dominante e do que chama de “sentido de distinção”, no seio da qual há constante luta pela imposição do princípio dominante de dominação, que é inseparável do conflito de valores que comprometem toda a visão de mundo. A apropriação (material ou simbólica) confere aos bens de luxo, além de legitimidade, uma raridade que os transforma no símbolo por excelência da excelência, colocando em jogo não apenas a “personalidade”, mas a “qualidade” daquele que se apropria do produto. Em seguida, o sociólogo examina a pequena burguesia, caracterizada por ele pela “boa vontade cultural”, quer dizer, pela capacidade de tomar o símile como algo autêntico. A diferença entre conhecimento e reconhecimento assume formas diferentes dependendo do grau de familiaridade com a cultura legítima, conforme a origem social e seu modo correlato de aquisição da cultura. Daí decorrem três posições tipicamente pequeno-burguesas: a pequena burguesia em declínio (associada a um passado ultrapassado, manifesta-se contra todos os sinais de ruptura), a pequena burguesia em execução (que exibe em grau mais elevado os traços de “pretendentes”) e a nova pequena-burguesia (geralmente indivíduos oriundos da burguesia que operaram um conversão para novas profissões, mas mantendo um capital social de relações importante). Na sequência, Bourdieu trata das classes populares e seu “gosto do necessário”, disposição adaptada à privação dos bens imprescindíveis e que traz consigo um modo de resignação, um princípio de conformidade que incentiva escolhas compatíveis com as imposições das condições objetivas e adverte contra a ambição de se distinguir pela identificação com outros grupos. A submissão à necessidade acaba produzindo uma “estética” pragmática e funcionalista, recusando a futilidade das formalidades e de toda espécie de arte pela arte.

No último capítulo, Bourdieu problematiza a relação entre cultura e política, questionando a noção de “opinião pública”. Responder a um questionário, votar ou ler um jornal, para ele, são casos em que acontece um encontro entre uma oferta – uma questão, uma situação etc. definida pelo campo de produção ideológica – e uma demanda – dos agentes sociais que ocupam posições diferentes no campo de relações de classe e caracterizados por uma competência política específica (uma capacidade proporcional às oportunidades de exercer tal capacidade). A probabilidade de dar uma resposta política a uma pergunta constituída politicamente depende não apenas do volume e da estrutura dos capitais econômico e cultural, mas também da trajetória do grupo e do indivíduo considerado. Assim como o julgamento do gosto, o julgamento político não está indissociado da arte de viver.

Para os neófitos em textos bourdianos, arriscaria um conselho: iniciar a leitura de A Distinção pela conclusão, intitulada “Classes e Classificações”. Nela, o autor retoma e explica minuciosamente as principais categorias teóricas apresentadas ao longo do livro – como gosto, habitus, lutas simbólicas, classe etc. – e o modo como elas se interrelacionam, constituindo uma rede de conceitos que ajudam a tornar inteligíveis os processos de percepção e de classificação do mundo social.

A maior contribuição no livro é mostrar que as diferenciações sociais são definidas relacionalmente, e não essencialmente, contrariando a aparente inflexibilidade da máxima “gosto não se discute”. O autor apóia- se em estudos realizados em áreas diversas – ora acatando, ora questionando Emmanuel Kant, Karl Marx, Max Weber, Ernest Gombricht, entre outros – e aprofunda a reflexão sobre categorias teóricas importantes. Muitos de seus conceitos foram formulados nos anos 1960 e 1970, mas adquiriram popularidade no meio acadêmico brasileiro a partir dos anos 1990 através da organização, no formato de livros, de artigos publicados inicialmente em periódicos franceses. Nesse sentido, A Distinção preenche uma sentida lacuna para aqueles interessados em acompanhar a trajetória intelectual de Bourdieu e em entender sua lógica.

As formulações teórico-metodológicas apresentadas em A Distinção marcam um momento em que, por caminhos diversos, teóricos sociais – como Antony Giddens, Alain Touraine, Marshal Sallins e o próprio Bourdieu – buscavam alternativas ao estruturalismo. Através da perspectiva relacional e operando com um vocabulário conceitual peculiar, o sociólogo francês oferece uma via para explicar o mundo social situando os agentes no interior de estruturas historicizadas, fortalecendo, assim, o diálogo com os historiadores.

Marisângela Terezinha Antunes Martins – Mestre em História pela UFRGS, doutoranda em História pelo PPGHIST-UFRGS. E-mail: [email protected].


BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2008. Resenha de: MARTINS, Marisângela Terezinha Antunes.  Os Gostos e a Dinâmica da Distinção Social. Aedos. Porto Alegre, v.4, n.10, p.182-185, jan. / jul., 2012. Acessar publicação original [DR]

Leituras e Leitores na França do Antigo Regime – CHARTIER (PH)

CHARTIER, Roger. Leituras e Leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: Editora Unesp, 2004. Resenha de: BOBEK, João Vinícius. Distinção e divulgação: a civilidade e seus livros. Projeto História n. 41. 650 Dezembro de 2010.

Chartier historiador francês vinculado à atual historiografia da Escola de Annales, onde trabalha sobre a história do livro, da edição e da leitura, e que nesta obra apresenta oito ensaios que constituem uma história cultural em busca de textos, crenças e gestos aptos a caracterizar a cultura popular tal como ela existia na sociedade francesa entre a Idade Média e a Revolução Francesa. O intelectual francês mostra que a cultura escrita influencia mesmo aqueles que não produzem ou lêem textos, mas interagem com eles.

Ao revisitar a chamada Biblioteca Azul, coleção de livros acessíveis vendidos por ambulantes (romances de cavalaria, contos de fada, livros de devoção), além de documentos próprios da chamada “religião popular” e textos sobre temas que se dirigem a um público geral, como a cultura folclórica, o autor enfoca as tênues fronteiras entre a chamada cultura erudita e a popular e mostra como se ligam duas histórias: da leitura e dos objetos de leitura.

Assim sendo Chartier reforça o plural do plural “civilidades”, que remete aos usos e intercâmbios de um código de polidez reconhecido por uma sociedade distinta, fazendo menção a Erasmo que rejeita os modelos aristocráticos da época pregando que a civilidade deveria ser uma instrução de um grupo moralizadora, determinado, e deveria começar pelas crianças fazendo do aprendizado escolar a primeira instrução. O autor também indica sempre citando autores como Courtin, que a civilidade pode ser uma virtude cristã, a caridade, pois deve ser uma questão de cada um, diferenciando o Homem do Animal, distinguido na sua execução em tantos comportamentos convenientes a cada estado ou situação. A partir desses conceitos a partir do século XVII, a noção de civilidade ganha um sentido ambíguo, pois sua função é designar a conduta histórica dos príncipes de tragédia, pois segundo Toussaint, a civilidade torna-se “um cerimonial de convenção”, dando origem a uma polidez devida aos príncipes, sendo muitas vezes uma aparência ou uma máscara que disfarça e engana. Assim nesse contexto, o conceito de civilidade está situado no próprio centro da tensão entre o parecer e o ser que define a sensibilidade e a etiqueta barroca.

Sendo Roger Chartier discípulo da Escola de Annales1 percebe-se no texto um intercâmbio entre a História Cultural e a Antropologia, pois ele menciona Jean-Baptiste de La Salle para citar que este pensador abrange a civilidade como honestidade e piedade como conveniência social. Portanto nessa teoria a civilidade se afasta do uso aristocrático para constituir-se num controle permanente e geral se todas as condutas, sendo um modelo eficaz de comportamento das elites nas camadas inferiores. A partir do século XVIII, a noção de civilidade conhece um duplo e contraditório destino, segundo Chartier. Ela permite aos humildes compreender o código de comportamentos, sendo que ensinada ao povo, a polidez se vê ao mesmo tempo desvalorizada aos olhos da elite que a partir daí não exige nenhuma autenticidade de sentimento, sanciona a ruptura admitida e contraditória.

História, Historiadores, Historiografia. 651 Para Jacourt a civilidade foi imposta a inúmeros indivíduos e por isso perdeu seu valor de distinção, considerando que foi colocada a maioria e se tornou uma norma para as condutas populares.

Para fundar uma civilidade republicana, o articulista, juntamente com outros pensadores sugerem uma ruptura radical com a educação tradicional, já que a repetição dos gestos considerados convenientes é idealmente substituída pela aprendizagem de virtudes que conseguirão sempre expressar-se numa linguagem moral resultando numa instrução moral. Para o autor as novas obrigações dessa civilidade republicana não devem se regulamentar-se pelas diferenças de condição ou posição, pois se apoia na liberdade, conforme a igualdade, a civilidade refundida deve reconciliar enfim as qualidades da alma e as aparências exteriores, sendo nítida a recusa das formalidades antigas, pois essa abdicação à etiqueta tradicional encontrase manifesta na esfera política.

Finalizando esse capítulo de sua obra, que deixa claro os conceitos de polidez e civilidade, Chartier, deixa evidente que a partir do século XIX, a civilidade pode ser definida como um conjunto de regras que tornam agradáveis e fáceis às relações dos homens entre si, podendo ser entendida como um código de boas maneiras necessárias na sociedade, sendo fixada por todo esse século, a identificação da civilidade com a conveniência burguesa.

Conclui então que entre os séculos XVI e XIX, a noção de civilidade sofre mudanças e apanha um enfraquecimento, portanto apesar das tentativas de reformulá-la, a noção perde um pouco da teoria ético-cristã para significar apenas a aprendizagem das maneiras convenientes na vida das relações da sociedade, que questionando a diferença entre cultura popular e erudita e a definição de popular simplesmente como oposição à cultura erudita, Roger discute como diversos textos franceses desses séculos atravessam as fronteiras sociais entre clero, nobreza e Terceiro Estado. O historiador francês mostra assim a influência exercida pelo texto escrito mesmo entre os que não estão familiarizados com o livro e reconstitui em sua complexidade a comunicação cultural entre os homens do Antigo Regime.

Projeto História nº 41. 652 Dezembro de 2010 Sendo assim, através dessa leitura é possível trabalhar com os discursos historiográficos, realizando uma análise da passagem da leitura extensiva à intensiva, para assim poder abordar com destaque os aspectos da leitura como formação da identidade cultural intelectual francesa, para futuramente abordar tópicos sociais do Antigo Regime.

Nota

1 Incorpora métodos das Ciências Sociais à História. Encontramos neste movimento, certa unidade em sua composição, mas não uma homogeneidade. Sendo como um conjunto de estratégias, uma nova sensibilidade, uma atividade que de fato mostra-se pouco preocupada com definições teóricas.

João Vinícius Bobek – Licenciado em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: [email protected].