A ditadura brasileira: história e historiografia / História Unisinos / 2014

O golpe de 1964 inaugurou novo período na História do Brasil, ao dar origem a regime autoritário que deixou marcas profundas em nossa sociedade. A ditadura significou uma ruptura com o período anterior, porém, em alguns aspectos ela representou também uma continuidade em relação a certas tradições arraigadas. Os militares e seus aliados civis implantaram um regime político marcado por outros paradoxos, para além da combinação entre rupturas e continuidades. A ditadura construiu um Estado ao mesmo tempo conservador e modernizador, em que ações de repressão aguda – como tortura, mortes e desaparecimentos – se combinaram com estratégias de acomodação envolvendo segmentos das elites sociais e intelectuais. Simultaneamente à construção de notável máquina repressiva e de instrumentos legais visando a garantir o poder autoritário, que trouxeram agruras para parte da sociedade e alimentaram o desejo de resistir, a ditadura deslanchou grande projeto de modernização econômica e tecnológica, que contribuiu para atrair o apoio de outros segmentos sociais.

O estudo desse processo recente, cuja complexidade implica inúmeros desafios para os pesquisadores, coloca em jogo as relações entre História e Memória, e seus distintos regimes de verdade e de aproximação / afastamento em relação ao passado. Além dos desafios impostos pela presença forte da memória, neste terreno os historiadores encontram-se diante da produção proveniente de outros campos do conhecimento, em especial as Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia, Ciência Política, Economia), e o jornalismo, para não falar da participação cada vez maior dos profissionais do direito. Não obstante o caráter saudável desses múltiplos olhares e perspectivas, que só podem contribuir para um conhecimento mais amplo e profundo do tema, deve-se destacar – e estimular – a atuação dos historiadores no campo escorregadio e perigoso dessa história recente. Os profissionais da História têm importante contribuição a oferecer na construção de representações sobre o passado autoritário recente: lançando mão do devido aparato teórico e metodológico, e armados ao mesmo tempo de distanciamento crítico e responsabilidade cívica, os historiadores são agentes importantes na busca da verdade possível. Por isso, devem assumir lugar de destaque nos debates em que têm pontuado jornalistas, cientistas sociais, profissionais de direito e políticos.

Apesar das reticências dos que ainda consideram que à História cabe estudar apenas as sociedades mais recuadas no tempo, é cada vez maior o número de jovens pesquisadores interessados no passado recente. Entre os fatores que estimulam a realização de novas investigações vale a pena destacar o interesse público atual pelo tema, em que chamam a atenção as atividades de entidades criadas para investigar a violação dos direitos humanos durante a ditadura e estabelecer a verdade sobre tais processos. Por outro lado, há um dado característico do Brasil que favorece o incremento no número de pesquisadores dedicados à ditadura: o grande volume de acervos documentais relativos ao período, em que pese o fato de alguns arquivos ainda estarem indisponíveis, sobretudo os de agências militares. Esses volumosos acervos vão irrigar numerosas pesquisas por largo período de tempo, o que nos faz lembrar que os historiadores continuarão por muitos anos ainda a estudar tais questões, mesmo depois que tenha passado a atual urgência política pela investigação dos crimes praticados pela ditadura e seus agentes.

Partindo de tais pressupostos, quais sejam, a valorização da produção historiográfica e a preocupação de estimular mais investigações sobre o tema, especialmente despertando o interesse dos jovens, organizamos este dossiê “A ditadura brasileira: história e historiografia”. O propósito era reunir contribuições de historiadores e cientistas sociais situados na “linha de frente” da produção acadêmica sobre a ditadura, e fomos bem sucedidos. Conseguimos atrair o interesse de um seleto grupo de pesquisadores, com trabalhos originais sobre aspectos importantes da história da ditadura. Os textos reunidos no dossiê oferecem diferentes abordagens sobre o tema e disponibilizam para os leitores um painel amplo, e atual, sobre os caminhos que a historiografia dedicada ao regime militar vêm trilhando.

O artigo A breve primavera antes do longo inverno: uma cartografia história da cultura brasileira antes do golpe de Estado de 1964, de Marcos Napolitano, que abre o dossiê, explora criticamente a cena cultural dos anos 1950 e 1960 situando as principais questões postas pela análise e estudo da produção cultural e artística do período, com especial atenção para a década de cinquenta, ainda pouco estudada. Sob inspiração teórica de Raymond Willams, o autor faz uma reflexão sobre as diferentes formações culturais brasileiras que atuavam naquele contexto, bem como seu potencial de interação, sem perder de vista suas contradições e ambiguidades. Expõe os limites analíticos das categorias consagradas pela história política para pensar os projetos e a renovação estética da época, o que implica repensar a articulação entre cultura e política sob novas bases. Cabe destacar que, ao retomar a discussão sobre os grandes projetos culturais abordando tendências e os problemas envolvendo o processo de entrecruzamento das diferentes tradições na cena cultural brasileira do período, o autor vai indicando, de modo inspirador e generoso, aspectos que necessitam de pesquisa e de aprofundamento analítico e reflexivo.

O artigo de Mariana Joffi ly e Maud Chirio intitulado A repressão condecorada: a atribuição da Medalha do Pacificador a agentes do aparato de segurança (1964 – 1985) revela como agentes envolvidos e responsáveis pelo funcionamento do aparato repressivo dos governos militares foram distinguidos pelo Exército Brasileiro. As autoras abordam analítica e reflexivamente os critérios e significados envolvidos na atribuição dessa comenda, afinal, a Medalha do Pacificador foi distribuída condecorando diversos indivíduos que participaram diretamente da violência política que caracterizou a ditadura militar brasileira. Uma pesquisa minuciosa, com amplo cruzamento de informações, fornece as bases para as conclusões das autoras, permitindo, inclusive, estabelecer a expressão numérica e a relevância dessa condecoração entre os agentes diretos da repressão, bem como o perfil dos militares envolvidos.

Janaina de Almeida Teles no artigo Os segredos e os mitos sobre a guerrilha do Araguaia (1972 – 1974) nos situa em um novo universo para pensar o impacto da atuação dos guerrilheiros, seja em meio às populações rurais do sudeste do Pará, seja no confronto com os soldados que integravam as forças de combate. As representações simbólicas que foram mobilizadas para explicar e dar sentido à presença e permanência dos guerrilheiros na região são o foco de atenção da autora. A partir de entrevistas com guerrilheiros e camponeses da região do Araguaia, ela conseguiu recompor os mitos envolvendo os guerrilheiros, dando destaque a dois deles neste artigo, os quais foram cuidadosamente examinados e cotejados em sua articulação com os mitos amazônicos. O universo simbólico delineado pelas entrevistas e explorado à luz da mitologia amazônica permite que tenhamos a percepção dos sentimentos que mesclavam as relações entre a população local e os guerrilheiros. Em contraponto, Teles discute as representações inauguradas pelos programas e novelas produzidos no âmbito das redes de TV, explorando a compreensão que a chave midiática construiu e divulgou a respeito dos guerrilheiros.

O artigo Intelectuais, literatura e imprensa no pós-golpe, de autoria de Rodrigo Czajka, traz uma reflexão sobre os espaços editoriais existentes no quadro da ditadura e que estavam envolvidos no campo da resistência e do engajamento político. Discute a difusão do vocabulário e do ideário de esquerda no contexto de constituição de um mercado consumidor de cultura, em um momento significativo de reflexão e gestação de debates sobre a realidade nacional. Aborda aspectos e questões presentes na formação desse debate público sobre os rumos da vida nacional, bem como sobre o papel e a inserção da intelectualidade e sua produção cultural no novo contexto repressivo. Destaca especialmente as discussões veiculadas nas páginas da Revista Civilização Brasileira, tematizando e explorando, entre outras questões, o embate entre Paulo Francis e Ferreira Gullar e o seu significado para a compreensão dos conflitos intelectuais existentes entre as formações culturais de esquerda.

Os oficiais brasileiros da reserva e a defesa da memória institucional do “31 de março de 1964” é o título do artigo apresentado por Fernando da Silva Rodrigues e Claudio Beserra de Vasconcelos como contribuição para este dossiê. Os autores problematizam importante questão ao tratar da construção e preservação da memória oficial a respeito do golpe militar e da instalação da ditadura, enfocando especialmente os agentes e as iniciativas que, mesmo no contexto da redemocratização, ainda se esforçam para a (re)construção desta memória, tanto dos acontecimentos que consideram implicados no golpe de 1964, como de todo o período ditatorial, até 1985. Detalhada análise dos informativos do Centro de Comunicação Social do Exército é apresentada e subsidia a análise da batalha das memórias implementada desde 1964. Os autores abordam o papel dos Clubes Militares na manutenção dessa memória institucional, bem como a sua difusão e recepção nos modernos meios de comunicação. Enfocam ainda a atualidade e abrangência desse debate político, cujo alcance e relevância pode ser dimensionado pela institucionalização e funcionamento da Comissão Nacional da Verdade.

Por fim, o artigo Intelectuais conservadores, sociabilidade e práticas da imortalidade: a Academia Brasileira de Letras durante da ditadura militar (1964 – 1979) de Diogo Cunha discute o papel da Academia Brasileira de Letras a partir da análise de três práticas características do funcionamento desta instituição, que são as cerimônias de posse, as visitas que os “imortais” recebiam e as homenagens que permitiram abordar a maneira como uma memória oficial era construída no interior da instituição. Especial destaque foi dado às candidaturas e disputas envolvendo algumas eleições, bem como ao ritual de posse dos novos membros, sendo duas cerimônias de posse selecionadas para análise detalhada, pois reveladoras dos vínculos e aproximações com os governos militares. Os interesses e a forma de atuação dos presidentes da Academia Brasileira de Letras também são examinados e mereceram a atenção do autor. As visitas destacadas permitem compreender a dinâmica das relações e a sociabilidade no cotidiano da ABL, que permanecia um lugar de consagração intelectual e sociabilidade política entre as elites conservadoras.

Marluza Marques Harres

Rodrigo Patto Sá Motta


HARRES, Marluza Marques; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.18, n.3., setembro / dezembro, 2014. Acessar publicação original [DR]

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