Conexões história e direito: temas e problemas compartilhados / História e Cultura / 2015

A ideia de elaborar um Dossiê sobre História e Direito nasceu do desejo de conectar estas duas áreas do conhecimento por meio da apresentação de artigos que abordassem alguns temas e problemas comuns, entre tantos pontos de entrelaçamento possíveis. Assim, buscamos evidenciar assuntos que pudessem elucidar perspectivas e abordagens nas quais a necessidade de contribuições recíprocas estivessem encobertas ou propositadamente distantes de ambos os universos acadêmicos. Mesmo que separados por barreiras ideológicas ou por interesses de campos teóricos divergentes, o objetivo resultou na tarefa de reunir diversos artigos que contemplassem a temática, e que refletissem sobre as relações entre estes dois ângulos do saber humanístico, em diferentes momentos e temporalidades, visando, sobretudo, divulgar o trabalho de pesquisadores que vêem a História e o Direito como possibilidades de interfaces em seus estudos. Portanto, o resultado alcançado partiu da proposta de valorizar a interdisciplinaridade, com base no estudo crítico e reflexivo que deve permear o universo acadêmico.

O Direito se relaciona com a História, não por ser um fato presente na vida social ou um campo especifico do conhecimento, mas por ser um valor construído e erigido em todas as sociedades independentemente das suas formas de organização, sistematização ou estruturação política, moral ou ética. O Direito é vivenciado e realizado pelo homem no decorrer do tempo, o que o faz presente na história da humanidade.

Direito é uma experiência vital; é uma soma de atos que as gerações vão vivendo, uma após outras, dominadas, todas, pelo ideal do que chamamos de justo. Pois, bem, a esta experiência histórica, que se concretiza no tempo, ao fato social que progride ou regride assumindo fisionomias e aspectos bastantes diversos, variando de lugar para lugar, de tempo para tempo, e exprimindo-se em sistemas de normas positivas damos no nome de Direito (REALE, 1956, p. 273)

A História é um campo de investigação que busca não só revelar e compreender os fatos e acontecimentos pretéritos da pessoa humana, mas substancialmente analisar mudanças ocorridas nos grupos sociais em que esta estava imersa. Dentro das condições e possibilidades fáticas estabelecidas, os elementos centrais são: os vestígios que sobreviveram e que, de alguma forma permitem interpretar, tanto a duração dos eventos quanto o tempo histórico. Assim, humanidade, documento, evento, duração e tempo histórico são substanciais para a análise dos acontecimentos relativos ao tempo cronológico.

“O processo histórico, temporal, é contínuo, porém não é linear, vez que não se encontra delimitado pelo tempo cronológico. É um tempo que inclui idas e vindas, desvios e avanços, recuos e inversões, alterações-rupturas e alterações-continuidades”. (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA; 2014) Por isso, a História não se resume a uma mera narrativa de fatos, mas a uma complexa urdidura de reflexão, análise e compreensão sobre fatos, eventos e / ou pessoas no tempo.

A pesquisa histórica foi convulsionada no último século e novos objetos de investigação surgiram florescendo uma nova história, uma história material, associada as práticas cotidianas, do imaginário social e das mentalidades, na tradição aberta pela escola francesa dos Annales. “A nova história começa por deslocar seu centro de atenções de uma certa política, especialmente a política do Estado e do Estado Nacional, voltando-se para a vida material.” (LOPES, 2014, p. 3).

Do ponto de vista dos métodos de investigação e de interpretação, o chamado “Giro Linguístico” impactou, de forma indelével, no último quartel do século XX, e os estudos nesse campo tornaram imprescindíveis a necessidade do historiador se valer das filosofias da linguagem e relativizar realidades e verdades históricas em função do efeito de representação dos fatos, eventos e / ou pessoas contidos tanto na documentação, quanto nas interpretações.

A Ciência do Direito passou a ser analisada pelo viés histórico pela Escola Histórica do Direito ou Historicismo Jurídico. O historicismo jurídico, que surgiu como pensamento de Savigny, vislumbra o Direito como resultado da história, fruto da consciência do povo, expressão não na lei, mas dos usos e costumes. Essa escola nasceu da necessidade de se conhecer o passado do Direito, visando buscar a tradição jurídica de cada povo como fundamento e justificativa da existência de um Direito nacional. Nesse viés, a história do Direito foi uma história romântica, “ela não foi seguramente uma história econômica e social e não foi tampouco sociológica ou jusnaturalista. Ela foi antes de mais nada nacionalista e tradicional” (LOPES, 2014, p. 4)

A História do Direito precisa ser revista e reavaliada, visando uma nova compreensão historicista que rompa com o dogmatismo positivista, permitindo que Direito possa ser analisado historicamente como objeto de um estudo crítico e reflexivo, sem a visão ilusória e romântica da ordem tradicional dominante e elitista, preocupada apenas em reproduzir os ordenamentos jurídicos postos como se eles não fosse elementos de uma conserva de cultura dotada de tropos e de figuras de representação do conhecimento. Essa conserva não pode simplesmente ocupar o espaço da realidade ou de uma verdade sem levar em conta que a linguagem que comporta os comandos jurídicos e que, em decorrência disso, os atos de fala dos operadores do direito, configuram um suporte representacional de intenções de compreensão do real e não o real em si.

Trata-se de pensar a historicidade do direito, no que se refere à sua evolução histórica, suas idéias e suas instituições, a partir de uma reinterpretação das fontes do passado sob o viés da interdisciplinaridade (social, econômico e político) e de uma reordenação metodológica, em que o fenômeno jurídico seja descrito sob uma perspectiva desmistificadora. (WOLKMER, 2006, p. 15).

Mais do que analisar dados, fatos e referências a momentos históricos, a História do Direito ou os aspectos das Ciências Jurídicas vistos em perspectiva histórica precisam estimular uma reflexão crítica dos institutos jurídicos, respondendo indagações acerca de sua finalidade, sentido e razões que foram criados, bem como a conserva cultural linguística na qual essa trajetória ficou registrada para entender suas transformações e as novas dimensões assumidas na atualidade. A História do Direito deve relatar, descrever e comentar o direito que vigorou em certa época e lugar, sem comparações ou julgamentos a partir dos valores atuais, mas como meio de fornecer informações para a compreensão do direito contemporâneo, esclarecendo dúvidas e afastando imprecisões (AZEVEDO, 2005, p. 22).

A história do direito deve cruzar os recursos da história renovada com os elementos característicos do universo jurídico: o direito como ordenamento, isto é, o conjunto de regras e leis; o direito como expressão de uma cultura, um espaço onde se produz um pensamento, um saber-discurso; e o direito como um conjunto de instituições e organizações que produzem e aplicam o próprio direito a partir de elementos de uma discursividade e de uma linguagem própria do campo jurídico não infenso a problemas de interpretação. Com isso, abrirá “para nós um universo de questões que podem e devem inquietar os historiadores de profissão mas que também são semente de inquietação de qualquer um que se dedique a estudar o direito e depois a fazer dele sua profissão.” (LOPES, 2014, p. 8)

A História do Direito por ser a história de um artefato de cultura, não pode ser resumida exclusivamente no ato de correlacionar no tempo e no espaço as normas jurídicas estatais e seus efeitos jurídicos. A História do Direito não se enquadra na dogmática jurídica, pois privilegia “o ato de conhecer, promovendo assim a reconstrução dos fatos e instituições jurídicas em determinados contextos históricos, sociais e intelectuais.” (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA; 2014, p. 5)

A importância de estudar a História do Direito é, antes de tudo, um importante exercício para compreender o tempo presente, e traçar o futuro a partir das experiências vivenciadas. O Direito não é algo isolado, mas tem sua historicidade, cultural e social, não podendo ser compreendido divorciado da sua formação no transcurso do tempo. O Direito quando se apropria das experiências passadas têm melhores condições de cumprir sua missão social, pois o Direito não se resume unicamente ao estudo da norma. O jurista que conhece a História do Direito desnaturaliza a ideia da permanência ou evolução, compreende que “o direito relaciona-se com o seu tempo e contexto (cultural, social, político, moral) e que o direito contemporâneo não é uma nova versão do direito romano ou uma evolução do direito medieval, mas sim fruto de um complexo de relações presentes na sociedade e que progride a par das forças indutoras capazes de modificá-lo, transformá-lo, revolucioná-lo”. (AGUIAR, 2007, p. 22)

O jurista que tem fundamento histórico reúne melhores condições de compreender e utilizar a legislação, a jurisprudência, a doutrina e as outras fontes do Direito, bem como, permite desenvolver a argumentação e persuasão das teses jurídica porque sabe que a conserva saber-discurso na qual se funda o Direito é um campo aberto a ambiguidades, a dialogicidades e a interesses de uma ação comunicacional aberta a constantes reparos e sujeita a uma modalidade de correspondência palavra-coisa que não é biunívoca.

Mesmo existindo novos estudos historiográficos sobre as instituições jurídicas, ainda persistirá uma ausência, até mesmo certo mistério, sobre questões ligadas às origens do Direito e sua aplicação ao longo dos tempos. Muitas perguntas continuam em aberto e muitas respostas conclamam por interpretações. “Essa dificuldade refere-se ao fato de que o estudo histórico do Direito exige procedimentos, métodos e abordagens bastante complexos, além da própria especificidade da Ciência do Direito, que abarca uma série de objetos de pesquisa (sistemas legais, sistemas jurídicos-políticos, sistemas econômicos, dentre outros).” (BAGNOLI; BARBOSA; OLIVEIRA; 2014, p. 4)

O Dossiê quer aproximar e fomentar estudos que revigorem a História do Direito ou o Direito na História. A finalidade dos artigos que compõe essa obra coletiva é apresentar o Direito como um fenômeno histórico, de modo a contribuir para um olhar renovado do meio acadêmico, mostrando que estudar a História do Direito tem relevante importância, para perceber que a normatividade extraída de um determinado contexto histórico torna-se uma experiência concreta de conscientização do presente e de interpretação e compreensão dos fenômenos jurídicos contemporâneos.

O Dossiê é uma oportunidade para compreender a historicidade do Direito, a partir da reinterpretação das fontes do passado numa perspectiva da interdisciplinaridade (cultural, social, econômica e política). Por isso, o Dossiê está formado por artigos de sociólogos, historiadores, filósofos, cientistas políticos e juristas, mostrando as diferentes visões de ver o Direito na História e a História do Direito.

Aproveitamos para agradecer a todos os colaboradores que aceitaram o nosso convite de pensar temas jurídicos na perspectiva histórica, e encaminharam seus artigos, resultante de suas pesquisas. A contribuição de todos foi decisiva para o engrandecimento do nosso esforço em compor o presente Dossiê, e mais do que isto, é sim um enriquecimento para o campo do Direito, que vai além da dogmática jurídica, e ao mesmo tempo é uma oportunidade para fortalecimento do tema no âmbito da historiografia.

Referências

AGUIAR, Renan; MACIEL, José Fábio Rodrigues. História do Direito. (Coleção Roteiros Jurídicos). São Paulo: Saraiva, 2007.

ANKERSMIT, Frank Rudolf. Giro linguístico, teoria literaria y teoria histórica. con prólogo de Verónica Tozzi. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2011.

_______. A escrita da História: a natureza da representação histórica. tradução de Jonathan Menezes … [et al.]. Londrina: EDUEL, 2012.

AZEVEDO, Luis Carlos de. Introdução à História do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

BAGNOLI, Vicente; BARBOSA, Susana Mesquita; OLIVEIRA; Cristina Godoy Bernardo. Introdução à história do direito. São Paulo: Atals, 2014.

LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. 5. ed. São Paulo: Atals, 2014.

REALE, Miguel. Horizontes do direito e da história. São Paulo: Saraiva, 1956.

WOLKMER, Antonio Carlos (Organizador). Fundamentos de História do Direito. 3. ed. Belo Horizonte, Del Rey, 2006.

Pedro Geraldo Saadi Tosi – Professor Doutor.

Paulo Henrique Miotto Donadeli – Professor Mestre.

Organizadores


TOSI, Pedro Geraldo Saadi; DONADELI, Paulo Henrique Miotto. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 4, n. 3, dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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