Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história na África – PAIVA (AN)

PAIVA, Felipe. Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história na África. Niterói: Eduff, 2017. Resenha de: MACHADO, Carolina Bezerra. A escrita da História da África: Política e Resistência  Anos 90, Por to Alegre, v. 26 – e2019501 – 2019.

Em meio a constantes desafios político-ideológicos, os estudos africanos vêm se firmando como um campo de pesquisa no cenário brasileiro, o que contribui diretamente para o desenvolvimento da escrita da História da África no país. Esse movimento favorece também o rompimento dos estereótipos ainda pertinentes que geram desconhecimento, preconceitos e deturpações acerca da historicidade africana, por anos renegada ou mesmo ocidentalizada. A mudança de perspectiva está amparada em uma historiografia que busca valorizar o africano enquanto sujeito da sua história, colocando-o em primeiro plano para refletirmos sobre os eventos no continente africano, o que não significa renegar a sua relação com o outro, mas desejar compreender os processos históricos a partir do olhar de dentro. Ressalta-se ainda que essa perspectiva traz à tona a riqueza da diversidade presente no continente, que sob o olhar colonial sempre foi visto como homogêneo.  Nesse sentido, o livro Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história da África de Felipe Paiva traz um debate fundamental para repensarmos a escrita historiográfica da África. Resultado de sua pesquisa de mestrado, defendida na Universidade Federal Fluminense e agora publicada pela Eduff, o livro concentra-se em um caloroso debate sobre a ideia de resistência na obra História Geral da África da Unesco. Tomado como principal fonte ao longo da sua pesquisa, o conjunto de oito volumes publicados em diferentes momentos entre a década de 1960 e 1990, de acordo com o autor, apresenta uma “polifonia conceitual”, não só pelas diferentes vozes que compõem os volumes, mas, sobretudo, pela diferença teórica que os acompanham ao abordar o termo resistência.

De acordo com Paiva, essa abordagem deveria vir acompanhada de um debate conceitual em que resistência deveria aparecer como um conceito móvel, considerando o ambiente de tensões, conflitos e disputas políticas que envolvem a história do continente. Ou seja, como conceito deve ser visto dentro de um processo passível de permanências e rupturas e retomado dentro da sua historicidade. Logo, ao escolher como referência a obra publicada no Brasil pela Unesco, deve-se considerar o contexto político-social em que cada volume foi produzido, principalmente ao darmo- -nos conta que foi um período de intensas mudanças no cenário africano a partir da independência dos países, rompendo com o jugo colonial.

Todavia, o livro também não deixa de apontar para trabalhos anteriores de intelectuais que compõem a coletânea, o objetivo é introduzir o leitor ao intenso debate historiográfico em que a HGA foi produzida. As escolhas teóricas que a acompanham já vinham sendo desenvolvidas e fundamentadas em torno de uma perspectiva que elegia o africano como o sujeito da sua história. Além disso, chama a atenção também o tratamento do autor para os autores da obra, vistos não apenas como referências historiográficas, mas como personagens históricos e testemunhas de uma época (PAIVA, 2017, p. 19). Essa posição reconhece o quanto esses intelectuais foram testemunhas de mudanças, atuando no processo de formação de suas nações e, por isso, atores diretos na legiti­mação de um movimento historiográfico que era também, se não, sobretudo, político-ideológico.

A escolha da obra não é fortuita, a sua produção fora marcada por um campo de luta política, que pretendia retomar a perspectiva africana como análise central. Para isso, a escolha dos autores da coletânea foi claramente um ato político, à medida que dois terços eram intelectuais africanos (LIMA, 2012, p. 281). Como afirma o historiador Joseph Ki-Zerbo, um dos grandes nomes e organizadores da obra, a História Geral da África vinha na contramão de uma perspectiva que negava a historicidade do continente. Desse modo, a obra não deve ser encarada apenas dentro do campo historiográfico, mas também a partir do campo político, em que o ato de resistir pode ser encarado como a força motriz da coleção. Por isso, acertadamente, Felipe Paiva retoma o termo resistência, presente entre os volumes, mas não claramente definido no conjunto da obra. A polifo­nia apareceria de imediato a partir dos diferentes usos da palavra, que, para o pesquisador, apenas ganha valor conceitual dentro de um espaço colonial e que, por outro lado, desaparece quando os conflitos são entre africanos. Até o VI volume teríamos um uso apenas vocabular da palavra, sem ser claramente definida, assim sendo apenas a partir do volume VII, quando os autores se voltam para o conceito, visto que a presença colonial passa a ser analisada em sua especificidade.

Como realçamos, a sutileza em abordar determinado conceito ao longo da HGA chama-nos a atenção para os usos políticos da obra. O debate promovido contribui para refletirmos sobre a escrita da história da África em diálogo com uma perspectiva teórica que repensa as relações colo­niais a partir dos agentes internos. É nesse limiar que as contradições e complexidades ausentes em uma análise do continente, até então presa a uma perspectiva eurocentrista, passam a ser evidentes. Dito isto, o título escolhido para o livro propõe apontar para as insubmissões africanas, a partir de suas diferentes vozes ancoradas no conceito polissêmico de resistência. Todavia, notamos que Paiva aponta para a contradição existente na HGA. Pois, embora os autores retratem os movimentos de resistência a partir de um processo homogêneo, construído em oposição ao colonialismo, a sensi­bilidade em analisar os artigos que compõem a coleção apontam para as diferenças existentes entre os intelectuais à medida que os interesses individuais, regionais, políticos, culturais, religiosos e, até mesmo, de gênero, vão aparecendo na escrita. Nesse sentido, o uso da palavra resistência deve ser problematizado, por mais que no conjunto da obra seja possível identificarmos que a palavra tenha sido forjada contra o colonizador.

Dividido entre o prefácio de Marcelo Bittencourt, seu orientador ao longo da pesquisa, que destaca o valor da obra a partir da sua contribuição teórica; uma apresentação, que aponta para os objetivos que pretende, as hipóteses que levanta, assim como o porquê de algumas de suas escolhas teórico-metodológicas e mais três capítulos com subdivisões, o livro de Felipe Paiva vem preencher uma lacuna importante para a escrita da história do continente africano, que dentro da realidade acadêmica brasileira também se traduz em resistência.

O primeiro capítulo volta-se, sobretudo, para um debate teórico e historiográfico o qual se destaca um intelectual: Joseph Ki-Zerbo. A análise pormenorizada de suas pesquisas anteriores, estas que dialogam com a escrita da obra referencial, permite acompanhar alguns dos objetivos desenvolvidos na HGA, comprometida historiograficamente com um contexto histórico de valo­rização do continente africano e de afirmação dos movimentos nacionalistas e independentistas que ganhavam força naqueles anos. Nesse ínterim, podemos notar o quanto a escrita de Ki-Zerbo se encontra sensível à perspectiva pan-africanista, traduzida para o “grau de família” que Paiva chama a atenção. A ideia de “família africana”, ou mesmo da África enquanto pátria, é observada a partir dos “intercâmbios positivos que ligariam os povos africanos nos planos biológico, tecno­lógico, cultural, religioso e sociopolítico” (PAIVA, 2017, p. 25). Tal abordagem, de acordo com o autor, merece cuidado, pois por vezes pode negar as contradições existentes entre os intelectuais que contribuíram para a obra, conforme fora apontado acima.

Por isso, ao retomar a ideia de resistência na obra durante o período que antecedeu a presença colonial, esse é visto por Felipe Paiva apenas em sentido vocabular, sem uma definição concreta. O sentido conceitual só aparece em oposição a um outro, estrangeiro, nunca em referência aos combates internos, produzindo uma falsa ideia de harmonia entre os africanos, que a análise do conjunto da própria obra é capaz de negar, como nos mostra seu livro. Desse modo, o primeiro capítulo volta-se para os interesses teóricos e políticos da obra, enfatizando uma leitura que vê a escrita historiográfica do continente dentro de uma perspectiva de tomada de consciência do africano, em um claro processo chamado de “(re)africanização da África”. Somos, nesse sentido, a partir da leitura de Felipe Paiva, direcionados aos cuidados que devemos ter ao nos aprofundarmos sobre os debates acalorados que cercam os interesses que levaram à escrita da obra.

Quanto ao segundo capítulo, a abordagem volta-se, especificamente, para o volume VII da HGA, em que para o autor o conceito de resistência passa a ser propriamente construído e apresentado junto a preocupações epistemológicas antes ausentes. Ao abordar esse momento da coletânea, Paiva ressalta a construção de uma África como personagem, que sofre um trauma e, de maneira coesa, se constrói em roupagem de resistência contra o colonizador. É a partir dessa narrativa que resistência enquanto conceito se desenvolve e dirige-se exclusivamente em oposição ao colonialismo. Temos aí a construção de uma ideia de África pautada a partir da experiência colonial, que embora retomasse a história dos africanos a partir de um novo enfoque, ainda guar­dava uma visão harmônica do continente. A presença europeia seria vista como um choque que rompeu com o passado africano.

Devemos destacar, ainda nesse capítulo, as interpretações sobre o conceito de resistência pertinentes para o historiador. Para ele, podemos apontar para duas abordagens entre os autores da HGA: a tradicionalista e a marxista. A primeira refere-se a um passado pré-colonial permeado 4 de 5  por uma suposta coesão entre o passado, anterior ao colonialismo e retratado como grandioso e estático, e o presente, interessante a partir de uma concepção nacionalista, em que as lutas anti­coloniais do século XIX estariam plenamente em diálogo com os movimentos independentistas que irromperam em meados do século XX. Assim, esses movimentos eram vistos dentro de uma tradição de valorização de uma África resistente e una, que por vezes se utilizou da concepção racial para formatar suas ideias. Há, em diálogo com essa perspectiva, grande ênfase nas autoridades tradicionais retratadas como defensoras de um modelo de vida ligado à tradição africana, posta em oposição à modernidade, interpretada como uma imposição colonial.

Por outro lado, mas com o mesmo objetivo de destacar a tradição de resistência dos africanos, a abordagem marxista é assim denominada a partir do “uso de noções e categorias advindas da historiografia marxista ou que lhe são próximas” (PAIVA, 2017, p. 94). Ou seja, não necessaria­mente esses autores se colocam como marxistas mas retratam o conceito de resistência, sobretudo, em reação ao capitalismo. Por isso, a ênfase na luta de classes, formada na esteira das relações de produção advindas com o colonialismo e impostas aos africanos.

Esses dois aportes teóricos, de acordo com Felipe Paiva, servem para repensarmos sobre um tema fundamental na ideia de resistência na África: a sua temporalidade. Ou seja, como podemos captar quando inicia o processo de resistência em África? Pois, por mais que ocorra uma continuidade entre as variadas formas de oposição africana no período colonial e as lutas independentistas, temos que considerar que elas não são um movimento homogêneo que se estruturou necessariamente para desembocar nas independências, afirmando um caráter progressivo (PAIVA, 2017, p. 114). Cabe, então, apontar para as complexidades que cercam essa relação, visto que a defesa central da pesquisa reside em considerar resistência enquanto processo, passível de permanências e rupturas.

O debate sob esse ponto de vista inicia no final do capítulo 2, a partir de uma série de análises dos autores que compõem a HGA, e levam ao capítulo 3. Voltado, sobretudo, para o VIII volume da coleção, o capítulo problematiza a ideia contida nesse volume de que a libertação nacional seria herdeira de uma tradição de resistência presente na África. Para um aprofundamento da questão, Paiva lança mão de estudos anteriores do organizador do volume, o queniano Ali Mazrui, ressal­tando as diferenças construídas pelo intelectual entre protesto, interpretado como fenômeno do Estado-nação, e resistência, vista como conceito herdeiro direto desse movimento. Desenvolve-se um grande debate teórico que tem por objetivo problematizar o modo como resistência é encarada dentro de um ambiente de valorização nacionalista com grande influência do pan-africanismo.

A partir dos debates travados e construídos com argumentações que extrapolam os objetivos iniciais do livro, pois nos levam para questões como nacionalismo, pan-africanismo, colonialismo, entre outros temas pertinentes à África, ressaltada dentro de sua complexidade, a leitura de Indômita Babel é uma importante oportunidade para conhecermos um pouco mais a História da África, sobretudo, a partir da sua escrita historiográfica, cercada de tensões e desafios. O diálogo com a História Geral da África, referência primordial para os estudos africanos, enriquece e solidifica a discussão proposta por Felipe Paiva, que continua a tecer em sua trajetória acadêmica um debate político-ideológico a partir dos intelectuais africanos Kwame Nkrumah e Gamal Abdel Nasser, tema da sua pesquisa de doutorado, que vem sendo desenvolvida desde 2015 no programa de história da Universidade Federal Fluminense.

Referências

LIMA, Mônica. A África tem uma história. Afro-Ásia, Salvador, n. 46, p. 279-288, 2012.  PAIVA, Felipe. Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história na África. Niterói: Eduff, 2017.

Carolina Bezerra Machado – Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: [email protected].

Patrimônios de influência portuguesa: modos de olhar – ROSSA; RIBEIRO (Tempo)

ROSSA, Walter; RIBEIRO, Margarida Calafate. Patrimônios de influência portuguesa: modos de olhar. Rio de Janeiro: EDUFF, 2015. 533p.p. Resenha de: CHUVA, Márcia. Presença portuguesa, patrimônios e influências plurais. Tempo v.23, n.3 Niterói Spt./Dec.2017.

Patrimônios de influência portuguesa: modos de olhar é uma coletânea com edição simultânea no Brasil e em Portugal, organizada por Walter Rossa e Margarida Calafate Ribeiro, que compartilham também a coordenação do Programa de Doutoramento em Patrimônios de Influência Portuguesa. Escrever sobre esse livro é também trazer, ainda que de forma indireta, esse programa interdisciplinar, interinstitucional e transnacional, de complexa engenharia, como já se nota na apresentação do livro, nas palavras de seus organizadores. Sediado na Universidade de Coimbra, o curso tem regime de cotutela com universidades na Europa (Universidade do Algarve; Universidade de Bolonha; Universidade Paris Ouest Nanterre La Défense), no Brasil (Universidade Federal Fluminense) e em Moçambique (Universidade Eduardo Mondlane), além da colaboração de instituições em Angola e Cabo Verde. A obra reúne contribuições de especialistas envolvidos com esse projeto, profissionais que enfrentam as controvérsias teóricas de um campo em construção – o campo do patrimônio -, considerando as singularidades desses percursos em seus países.

A centralidade portuguesa, que parece se esboçar logo no título da obra (e do programa) Patrimônios de influência portuguesa: modos de olhar, acaba por desconstruir-se, atualiza-se e se refaz passo a passo, no decorrer dos capítulos, colocando em evidência os desconfortos dessa posição, remanejando pontos de vista, perspectivas, pontos de fuga. Seus organizadores partem de uma constatação relacional valiosa, que se refere à impossibilidade de falar com autoridade e propriedade sobre o patrimônio do outro, mas também à inutilidade de pensar o meu isoladamente. Entendo que tal constatação é geradora dos desafios dessa obra, ao conduzir as discussões do patrimônio para o eixo dos debates do colonialismo e do pós-colonialismo, motivos suficientes para dar pertinência e relevância a ela. É essa, sem dúvida, sua principal contribuição no Brasil, pois tal abordagem no campo do patrimônio ainda tem caráter de novidade por aqui.

Uma segunda constatação vai delinear as singularidades dessa obra: subsistem desconhecimentos e diferenças sensíveis nas práticas de atuação, na teorização e nas normativas, entre os universos das culturas latinas e anglo-saxônicas, apontando os descompassos em termos internacionais no campo do patrimônio. A obra pretende marcar posição nesse debate, como lugar alternativo, em termos teóricos, à hegemonia anglo-saxônica, que se dá em escala europeia e se impõe inclusive em função de sua capacidade editorial. A ambição dessa publicação é, pois, ampliar e transformar perspectivas e reflexões por meio de um debate que se estabelece não apenas pela ampliação do universo empírico de casos distintos, como também por caminhos teóricos alternativos, focados a partir da América do Sul, Ásia e África. Esses caminhos recuperam, como dizem seus organizadores, a ligação umbilical dos estudos culturais com os estudos pós-coloniais, justamente o ponto no qual se distanciam do universo acadêmico anglo-saxônico. Não por acaso, e curiosamente, a mesma frase de Salman Rushdie aparece citada por dois autores: The empire writes back to the centre. Parece mesmo ser indício da predominância dos estudos culturais na operacionalização de análises tão diversificadas, nas quais os conceitos de discurso (como dispositivo que engloba o dito e o não dito), em Michel Foucault, e de tradução, em Stuart Hall (que descreve identidades em diáspora, as quais intersectam as fronteiras nacionais), ou ainda como Homi Bhabha (que toma o processo de descolonização como tradução), atravessam fartamente as análises aqui presentes, apresentando-se inclusive em alguns títulos de capítulos. Isso não significa, de modo algum, uma abordagem teórica homogênea ao longo dos 18 capítulos do livro. Ao contrário, revela uma orientação teórica compartilhada pela maioria dos autores, que conecta abordagens e evita a fragmentação da obra em uma enxurrada de problemas, objetos e contextos bastante diferentes que caracterizam os estudos do patrimônio. Assim, o patrimônio relativamente circunscrito, tomado como discurso e tradução, é apresentado estrategicamente como um conceito-ação, ancorado fortemente na história para não resvalar em perspectivas estanques ou essencialistas.

Por sua vez, língua e território são conceitos que fazem o chão dessa obra de empreitada. Esses conceitos são tradicionais nos estudos nacionais e foram, a um só tempo, aqui reconcebidos e reconectados como pertencimento e poder. A língua tirana e colonial pode ser, por outra via, apenas rastro, traço, resto; ou ainda permanência, lugar de resistência, mobilidade. O território, de aparência tão concreta, pode tornar-se fluido, desmanchar-se em múltiplos fragmentos. Essas tensões constituintes dos conceitos de língua e território configuram o próprio campo do patrimônio e são o fio condutor nos processos de construção de identidades e de patrimonialização aqui analisados. À medida que se avança na leitura dos capítulos, o patrimônio se revela um conceito bastante largo, como aquilo que agrega comunidades, mas também é fruto de política e de poder: por isso mesmo usado no plural, patrimônios.

A estrutura do livro, com duas partes interseccionadas por uma entrevista, sugere que sua leitura tenha início pelos conceitos contextualizados para, em seguida, avançar sobre dispositivos variados, em uma abordagem histórica e objetivada. Na primeira parte, são trabalhados conceitos tradicionalmente presentes no campo do patrimônio, como memória e identidade, somados em pares ou tríades, a outros inescapáveis, como poder e herança, e seguem configurando o universo de questões para (re)desenhar esse campo no âmbito dos debates pós-coloniais. Questões como transnacionalização da memória – mobilidades, migrações, diásporas e pós-memórias (que seriam o modo com que as segundas gerações lidam com as experiências traumáticas que ocorreram antes do seu nascimento, as quais, no entanto, lhes foram transmitidas de modo tão profundo a ponto de se constituírem em memórias suas) – introduzem o debate sobre uma “pós-memória pública”, sugerida por Antonio Sousa Ribeiro. Seis capítulos circunscrevem um expressivo conjunto de conceitos desfiados, desafiados e enfrentados por seus autores, em contextos para ler e pensar a partir de uma perspectiva pós-colonial. Compreende-se a necessidade de uma parte teórica, não por uma instabilidade conceitual advinda, pura e simplesmente, da jovem/relativamente recente configuração do campo, mas sim pelo desafio que é intrínseco a seu próprio projeto: patrimônios de influência portuguesa. A escolha pelo conceito de influência – entre outras tantas possibilidades, como origem ou matriz – apresenta-se para expressar a orientação teórica e política que intitula a obra (e o doutoramento). O conceito de influência é desenvolvido com desenvoltura por Renata Araújo como o melhor caminho a tomar, até mesmo por sua ambiguidade e fluidez, pois, embora também traga riscos, ficamos convencidos de que o maior deles talvez seja, em suas palavras, o “da sublimação ou branqueamento dos processos, que há que acautelar”. É justamente por causa desse risco que uma pergunta de imediato se apresenta: afinal, quem tem legitimidade e meios para falar disso?

Tentativas de respostas a essa pergunta aparecem na parte 2 – “Discursos e percursos” -, composta por 12 capítulos. Seus autores têm lugares de fala variados, desenham objetos de investigação que são também fontes e sujeitos de narrativas. Tais autores buscam, com mais ou menos familiaridade, aproximar-se de problemas postos em diferentes circunstâncias no campo de ação das políticas, ou de investigação do patrimônio. É nessa parte que as distintas narrativas disciplinares se apresentam com maior clareza, pelas abordagens, temas ou fontes trazidas para a investigação. Ali também estão à mostra processos de pesquisa vivenciados a partir das próprias experiências pessoais de construção de identidade em um mundo adverso, onde, a partir da percepção do pequeno gesto de “olhar para baixo”, descortina-se a possibilidade libertadora do ser e do saber, conjugados, tal como trabalhado por Graça dos Santos.

Cinema, desenho, planta ou cartografia, arquitetura, fotografia e espaço urbano são patrimônios expressos em diferentes linguagens aqui capturadas, ora como fontes, ora como objetos de investigação. Urge a aproximação com os debates da história pública, a fim de abrir para a compreensão do conceito em construção de fotografia pública, lançado por Ana Maria Mauad, ou do já referido pós-memória pública, ambos aqui tangenciados. Ainda que essa obra não tenha se proposto enfrentar tal debate, o leitor pode sentir-se provocado a estabelecer algumas conexões, tendo em vista que a temática dos usos públicos da história, por meio dessas diferentes linguagens, tem levado historiadores e cientistas sociais em geral a se interrogarem sobre suas próprias práticas e os efeitos políticos delas. Assim provocada, senti a ausência, entre os autores dessa obra, de agentes do campo do patrimônio, para promover diálogos entre mundos ainda apartados e intelectuais com lugares de fala distintos. Esses profissionais têm muito a dizer e premem por esse debate.

Na interseção das duas partes, encontra-se uma entrevista com o reconhecido pensador português Eduardo Lourenço, que oferece os indícios das expectativas que o livro pode gerar ao conduzir um claro entendimento, em associação: a creoulização da língua portuguesa foi obra do acaso e da ganância; e “influência”, categoria aparentemente problemática que nomeia o livro, difere de cópia – assunto caro ao campo do patrimônio, pois envolve a desconstrução do mito da autenticidade – e se apresenta de forma promissora para a reflexão sobre patrimônios, no âmbito dos estudos pós-coloniais. Por isso, talvez, essa entrevista seja um bom ponto de partida para a leitura da obra.

Trata-se de uma obra densa, e seus organizadores e autores não parecem ter se preocupado em torná-la de digestão fácil ou rápida; mostram-se autores de um conhecimento produzido na base do desconforto e da inadequação, dos incômodos acerca da “situação colonial”. Nessa condição, estabelecem conexões entre campos de conhecimento e disciplinas diversas, trazendo suas contribuições. Destaco aqui a forte presença dos estudos literários, que são apresentados no capítulo de Margarida Calafate Ribeiro, em excelente panorama de suas conexões com o debate pós-colonial. A autora sublinha que a interculturalidade (interpretação cultural resultante do processo colonial) não pode ser compreendida sem ter em conta as relações de poder inerentes à “situação colonial”, assim pensada por Balandier, em 1951, e à “situação pós-colonial”, como tratado por Elikia M’Bokolo. O mesmo raciocínio vale para compreender os processos de descolonização, não como rejeição ou aceitação do patrimônio atribuído pelo ex-colonizador, mas como um processo de tradução de intensidades e modos diversos.

A intenção de ampliação de universos de conhecimento e ruptura de fronteiras disciplinares rígidas pode ter sido motivo para um afastamento de alguns autores dos debates relativos especificamente às políticas de salvaguarda e proteção de bens culturais que configuram parte expressiva das reflexões no campo do patrimônio na atualidade. Parece tratar-se de um esforço legítimo de integrar essa temática ao escopo de problemas teóricos e historiográficos mais amplos. Contudo, sempre se corre o risco de perder o esforço de algumas décadas de circunscrição de um aparato metodológico no campo das ciências sociais, construído para lidar com os novos objetos teóricos advindos desse foro de ação política – o que poderia vir a diluir as especificidades do campo em temáticas históricas das quais faz parte, mas não se confunde com elas. Os autores são grandes especialistas em suas próprias áreas temáticas, neófitos que buscaram conectar-se com reflexões próprias do campo do patrimônio. Por isso mesmo, alguns capítulos brilhantes ganham maior inteligibilidade se lidos em continuidade, como as lições de história sobre colonialismos e pós-colonialismos, de Miguel Bandeira Jerónimo e Francisco Bethencourt; ou as reflexões sobre o ofício do historiador, posto em cena por meio do debate historiográfico sobre territórios em rede, que reorienta a compreensão sobre eurocentrismo e protagonismo de agentes locais, trabalhado por Maria Fernanda Bicalho, e a reflexão de Luís Filipe Oliveira sobre o lugar dos arquivos como espaço de poder sobre o passado e a memória. Esses e outros diálogos entre autores demonstram a organicidade da obra, ficando a cargo do leitor estabelecer as inúmeras correlações entre eles.

Por fim, um mapeamento institucional e disciplinar dos autores evidencia seu locus de fala/ação: acadêmico, europeu e português. Trata-se de características relevantes a serem consideradas para que se compreenda a obra: são 18 capítulos de especialistas com formações nas áreas de letras, história, arquitetura, história da arte, antropologia, comunicação e teatro. A diversidade institucional dos autores aponta para um predomínio português e europeu, seguido de instituições brasileiras e de uma instituição moçambicana. Um olhar mais detido aponta evidências sobre seu caráter interdisciplinar, com predomínio de uma formação teórica ligada aos estudos literários associados à perspectiva histórica (bem aos moldes dos estudos culturais). Essa especificidade confere o tom geral da obra e a distingue da produção especializada na temática do patrimônio no Brasil, em que predominam estudos nos campos da antropologia e da arquitetura, presentes em minoria nesse livro.

É possível afirmar que os estudos brasileiros encontram-se bastante amadurecidos no que concerne às reflexões sobre políticas institucionais de memória e patrimônio, sustentadas por profissionais com larga experiência, que atuam como agentes ou pesquisadores do campo. Por isso mesmo, para ser compreendida, essa obra nos obriga a deslocamentos, mudanças de ênfases e perspectivas, uma vez que aproxima a temática do patrimônio do lugar de formulação de alternativas emancipadoras à situação pós-colonial, pensada em seu sentido mais amplo, como uma fase a ser superada, e não um modo imutável de estar no mundo. Daí a importância de sua publicação no Brasil.

Márcia Chuva – Departamento de História, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) – Rio de Janeiro – Brasil. E-mail: [email protected].