O escravo na formação social do Piauí: perspectiva histórica do século XVIII | Tânya Maria Pires Brandão

Trabalho originalmente proposto como dissertação de mestrado, trata-se de um dos mais importantes estudos sobre a formação social do Piauí, tomando como cerne a questão do trabalho escravo na Capitania do Piauí.

A autora estuda a economia e a demografia escrava no Piauí durante o século XVIII. Mostrando como a atividade criatória permitiu a consolidação do regime de trabalho escravo, com perfil socioeconômico semelhante ao restante do Brasil. Ela baseou-se num rico leque de fontes documentais, como, por exemplo, inventários e correspondências. O trabalho de dissertação de mestrado da autora foi defendido na UFPE em 1984 sob orientação do Prof. Armando Souto Maior.

A notável pesquisadora pode ser tida como uma apaixonada pelos problemas da história notadamente da história do Piauí, nesse trabalho mergulha numa tentativa de desvendar a formação de uma sociedade em constituição de um Piauí distante e remoto do século XVII, a presença do escravo e a sua participação na construção desse universo, Professora e pesquisadora de longa experiência leva o leitor a refletir com rigor sobre a história do Piauí colonial.

Nos capítulos que integram a obra, a professora Tânya Brandão trava um debate claro sobre a questão do escravo na formação social do Piauí colonial. Tânya Brandão mostra que a escravidão foi uma instituição presente no sertão do Piauí até o século XIX como uma instituição perfeitamente consolidada. Portanto o trabalho escravo no Piauí desde o século XVII ao XVIII foi voltado para atividades de agricultura de subsistência, a fabricação de instrumentos, os cuidados com serviços domésticos e em essência relacionados ao manuseio com o gado.

A Autora debate, intencionalmente, sempre na mesma tecla – uma variação sobre o mesmo tema: a compreensão da construção social de um Piauí colonial e a inserção do escravo nessa sociedade.

Como credencial a Professora Doutora Tânya Maria Pires Brandão possui graduação em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Piauí (1974), especialização em Metodologia do Ensino Superior pela Universidade Federal do Ceará (1975), mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1984) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1993). É Professora Adjunta da Universidade Federal de Pernambuco. Como historiadora, desenvolve pesquisas com ênfase em História do Brasil. Atuando principalmente nos seguintes temas: Oligarquia, Colônia, Piauí.

No século XVII, a colonização do Piauí tomou um novo rumo com direcionamento tomado pela política colonial portuguesa, pois o avanço na busca de vias terrestres permitiria assegurar o domínio da região e efetivar o domínio econômico da Metrópole portuguesa. Na ocasião não se apresentaram muitas opções à valorização do território piauiense.

O modelo extrativista vegetal e mineral não se consolidou, bem como se inviabilizou o cultivo da cana para fabricação do açúcar. Logo, a escolha da pecuária como atividade principal talvez tenha resultado da observação aos aspectos regionais.

Nesse ponto a perspectiva apontada por Tânya Brandão começa a desvelar a intencionalidade da proposta portuguesa para a região, pois de acordo com a mesma (1999, p.27) “A formação social do Piauí enquadrou-se em caráter escravista. Desde os primórdios da colonização do território, os pecuaristas, a exemplo de Domingos Afonso, utilizavam-se do trabalho escravo”.

Assim, de acordo com o que foi afirmado pela autora, o escravo africano também começava a fazer parte da colonização do Piauí, mesmo que a atividade econômica desenvolvida não exigisse grande concentração dos mesmos, por outro lado a opção dos fazendeiros no Piauí pelo trabalho escravo do negro deu-se ainda no início da implantação da pecuária, pois o sistema escravocrata já estava consolidado em toda zona colonial portuguesa.

Para Tânya Brandão (1995), o “emprego do escravo no criatório piauiense ocorreu desde a implantação dos primeiros currais”, cuja função destinava-se à construção e manutenção da infraestrutura das moradias, a lida no campo e o cultivo das roças.

Ainda segundo Tânya Brandão, durante o século XVIII, no Piauí se consolidou também o latifúndio, “tipo de propriedade rural pertencente a um senhor, tendo por base a pecuária e com boa parcela da área sem cultivo”. (1999, p. 54)

Ou seja, a atividade pecuarista não deixava muito espaço para o desenvolvimento de outras práticas produtivas que, no entanto, existiam em menor escala, como a própria agricultura de subsistência.

A pecuária extensiva e a produção de gêneros agrícolas foram às principais atividades econômicas desenvolvidas no Piauí, tais atividades possibilitaram a existência de várias categorias de trabalhadores, a proposta de Tânya Brandão parte do princípio de tentar compreender qual o lugar do escravo nesse emaranhado das relações sócias do Piauí colonial.

No Piauí a sociedade colonial foi marcada pela presença de elementos distintos em decorrência das funções que desempenhavam e da posição social que ocupavam.

Neste caso desde sesmeiros, passando por posseiros, arrendatários, vaqueiros, senhores, agregados e os escravos, teremos os principais elementos constituidores desta sociedade. (ARAÚJO, CABRAL, 2012).

A tendência da historiografia piauiense anterior a renovação teórico metodológica implantada nas pesquisas atuais, tendeu sempre a negar ou relativizar a participação do elemento negro escravizado na sociedade piauiense do período colonial.

Numa análise mais aprofundada a servidão negra no Piauí na perspectiva da historiadora Tânya Brandão (1999) é apresentada como secundária nas fazendas de gado. Esta característica deveu-se a vida rústica do sertão, onde os trabalhos desenvolvidos pelos negros não estavam diretamente ligados ao processo produtivo principal no caso a pecuária, mas a tarefas secundárias como fabricação de telhas, tijolos, artesanatos, trabalhos domésticos, alugueis de seus serviços pelos seus senhores, na agricultura e construção civil. (LIMA, SOARES, 2011).

Nas fazendas, o cuidado do gado nos campos e currais seria realizado, predominantemente, por vaqueiros livres. Assim, ficaria para os trabalhadores escravizados as duras e pesadas tarefas da lida nas fazendas.

Considerando a existência de uma dualidade na utilização da mão de obra e de formas de tratamentos, Tânya Brandão defende que a presença do escravo nesta região se deu com características distintas que no resto do país, sendo absorvida muito mais como uma demonstração de status social do que como força de trabalho atuante, apesar de, do ponto de vista da relação social, não fugir a regra do sistema escravista impregnado no Brasil. (LIMA, SOARES, 2011)

Apesar da referência sobre os mecanismos repressores para o controle e domínio dos escravizados, a existência de dois cativeiros no Piauí, o privado e o público, levaram a autora a apontar que os trabalhadores das fazendas públicas gozavam de maiores privilégios e regalias que nas fazendas privadas.

Nas propriedades privadas a violência, principal mecanismo de atuação do sistema escravocrata, se apresentava mais frequente, pois o senhor se mantinha presente e atento aos movimentos de seus trabalhadores. O comportamento violento dos proprietários contrasta com o vivenciado pelos escravizados públicos. (LIMA, SOARES, 2011).

Nesse meandro para Tânya Brandão (1995), o Piauí firmou-se como zona produtora de gado durante a estrutura econômica colonial, constituindo, assim, duas frentes econômicas. A primeira tinha como função ajudar os setores agrário exportador de outras regiões coloniais, fornecendo carne para consumo, a força matriz dos cavalos e bois para mover os engenhos e assegurar os transportes nas duas regiões; a segunda se relacionava à necessidade e capacidade de suprir a colônia com produtos comerciais junto à metrópole.

No entanto, a importância da economia piauiense para o sistema colonial não incidia num grande apoio para balança comercial, mas na articulação que mantinha com os demais setores produtivos da colônia.

Tomando o modelo escravista em vigor no século XVIII, outra perspectiva da sociedade Piauiense colonial era o uso da violência traço também observado por Tânya Brandão, pois segundo a mesma:

De acordo com as fontes históricas, durante os séculos XVII e XVIII, distinguiu-se a sociedade por seu aspecto violento. É evidente que a agressividade da população resultou do processo colonizador. Na primeira fase, quando se iniciou o povoamento da região, foi exigido dos conquistadores, não apenas espírito aventureiro, mas a coragem e a audácia suficientes para dominar a natureza hostil, afugentar o índio bravio, relutante e acostumar a gadaria aos novos pastos. A própria luta pela sobrevivência e garantia de terra conquistada teve caráter violento (BRANDÂO,1999:89)

A violência no cotidiano piauiense tornou-se característica na conquista do território. Tais práticas violentas voltaram-se, sobretudo ao elemento nativo e ao processo de escravização desta população que resistia ao processo de ocupação das terras e a submissão ao trabalho escravo. (LIMA, SOARES, 2011)

Mas para além da violência, podemos destacar outros elementos, na povoação piauiense, pessoas livres que procuravam atingir a condição de fazendeiro, enfim, vários sujeitos com seus traços culturais, suas tradições, que mais tarde configuraram-se em colonizador da terra dando origem à sociedade colonial piauiense, nesse esquema o escravo estava bem alocado.

No entanto, Tânya Brandão defende a ideia de diferenciação de condições de trabalho e vida entre cativeiro público e privado. Demonstra que as fazendas particulares, sobretudo as maiores, utilizavam o trabalho escravo de forma dominante apenas nas tarefas consideradas mais pesadas, como criação e manutenção da infraestrutura requerida pela pecuária, serviços domésticos e agricultura de subsistência. No manejo do gado nos campos e currais predominava o trabalho livre, “por ser mais próprio ao homem livre”. (BRANDÃO Apud, LIMA, 2002)

A autora ao fazer sua dissertação de mestrado sobre a escravidão no Piauí se debruça sobre uma tese clássica, que tem como foco principal o pastoreio, nesse ponto a dissocia o trabalho de escravo como fonte de riqueza, e o retrata como símbolo de status, tal como nos mostra na seguinte afirmação.

Isto significa a dizer que não havia uma relação direta com o interesse de acumulação de bens, mas uma relação muito mais social na posse do escravo, não apenas no alivio de trabalho braçal, mas uma ostentação de posição social (BRANDÃO p 154)

Tânya Brandão relaciona a escravidão no Piauí como instrumento de classe social, no entanto se desfaz da linha da violência branda da escravidão no Piauí como autores anteriores defendiam e passam a defender a violência física e moral que os escravos sofreram.

Nessa perspectiva o trabalho mostra um avanço significativo à produção textual sobre a questão escravista no Piauí, revelando e desnudando novas possibilidades de compreensão de um Piauí que muito precisa ser estudado, um Piauí colonial, sua sociedade e a escravidão.

Referências

ARAUJO, Johny Santana de, CABRAL, Ivana Campelo, Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 4

BRANDÃO, Tânya Maria Pires. O Escravo da Formação Social do Piauí: Perspectiva Histórica do Século XVIII. Teresina: Ed. UFPI. 1999.

LIMA, Solimar Oliveira, SOARES, Débora Laianny Cardoso. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 4

LIMA, Solimar Oliveira. Condenados ao trabalho trabalhadores escravizados nas fazendas públicas do piauí: 1822-1871. Disponível em: www.coreconpi.org.br/papers/…/Monografia_2002Profissional.pdf . Acessado em: 25/05/2012

Johny Santana de Araújo – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da UFPI.


BRANDÃO, Tânya Maria Pires. O escravo na formação social do Piauí: perspectiva histórica do século XVIII. Teresina: Editora da UFPI, 1999. Resenha de: ARAÚJO, Johny Santana de. Um olhar sobre o Piauí escravista e setecentista segundo Tânya Brandão. Contraponto. Teresina, v.5, n.2, p.153-158, jul./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]

 

Patrimônio Arqueológico e Cultura Indígena – PINHEIRO et al (RIHGB)

PINHEIRO, Áurea; GONÇALVES, Luís Jorge; CALADO, Manuel. (Org). Patrimônio Arqueológico e Cultura Indígena. Teresina: EDUFPI; Lisboa: Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa, 2011, 260 p. Resenha de: FALCI, Miridan Britto Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 174 (458) p.321-328, jan./mar. 2013.

Este livro, organizado por Áurea Pinheiro, Luís Jorge Gonçalves e Manuel Calado, recebe a chancela da Universidade Federal do Piauí (Brasil) e da Universidade de Lisboa (Portugal); integra as atividades acadêmico-científicas-culturais do Grupo de Pesquisa/CNPq “Memória, Ensino e Patrimônio Cultural”, Programa de Pós-Graduação em História, Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, UFPI, e CIEBA, Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes, Faculdade de Belas -Artes, Universidade de Lisboa.

Os organizadores convidaram pesquisadores brasileiros, portugueses e espanhóis, reuniram contribuições que revelam o caráter multidisciplinar das investigações e das ações no campo do patrimônio e da cultura.

A proposta da obra é apresentar as correlações de estudos e ações de arqueólogos, historiadores, sociólogos e museólogos, apresentar cada estudo e intervenção em lócus especial de um contexto temporal e espacial, selecionado por cada um dos autores.

Dir-se-ia que é um trabalho de formato novo, articulado, interpenetrado, comportando estudos de um tempo longo, médio e curto, fugindo, então, das camisas de força teóricas de um método especificamente histórico. Chega-se à conclusão que, articulado como está, passa-nos as conexões do fazer, do ofício das ciências históricas, sociais, da arte e do patrimônio.

Na primeira parte do livro, “Patrimônio e Arqueologia”, Áurea Pinheiro, Cássia Moura e Fátima Alves, no texto “Museus comunitários, Museus Sans Murs”, refletem sobre um projeto em construção, qual seja: a proposição de estudos para futura criação de um Ecomuseu na Ilha das Canárias, no Delta do Parnaíba (Piauí, Brasil). Partem as autoras da concepção de museus de Hugues de Varine. A proposta explicitada no projeto será a construção de um inventário multidisciplinar de bens culturais das Ilha das Canárias. O projeto comportará uma pesquisa interdisciplinar e multidimensional no campo da antropologia, arqueologia, sociologia, história, artes, arquitetura, geografia, meio ambiente, patrimônio e museologia; conhecimentos e documentação produzidos que subsidiarão proposições de ações de conservação e salvaguarda do patrimônio e paisagem cultural do lugar. As autoras pretendem “[…] apresentar uma revisão de literatura sobre a Museologia Social, e algumas notas do trabalho de pesquisa documental e de campo, no contexto do Projeto “Patrimônio Cultural e Museus no Nordeste brasileiro”. Localizam as suas reflexões no campo de estudos interculturais, das Ciências da Informação, das Artes e do Patrimônio, notadamente da História e do Patrimônio Público e da Museologia Social.

No capítulo, “Patrimonio y Nuevas Tecnologías: El Observatorio del Patrimonio Histórico Español [OPHE]”, Juan Manuel Martín García e José Castillo Ruiz nos apresentam o Observatorio del Patrimonio Histórico Español, que surge como uma iniciativa no contexto do projeto de investigação de excelência, “Estudio comparado de las políticas de protección del Patrimonio Histórico en España. Creación del Observatorio sobre el Patrimonio Histórico Español [OPHE]”, concebido em março de 2006, para um períogo de 2006 a 2009, “[…] por la Consejería de Innovación, Ciencia y Empresa de la Junta de Andalucía [España] a un grupo de profesores de la Universidad de Granada, fundamentalmente del Departamento de Historia del Arte y Música”. O projeto consiste na análise de diferentes políticas de proteção na Espanha, por diferentes administrações estatais e autônomas, bem como por instituições privadas relevantes, com competências em matéria de Patrimonio Histórico, para,

[…] a partir de dicho análisis, evaluar, comparar y difundir dichas políticas desde los referentes científicos que definen la protección del Patrimonio Histórico a nivel internacional. Especial interés ha revestido para el proyecto la defensa de la diversidad cultural española entendida tanto en lo referente a la pluralidad o diferenciación local, regional o nacional como en lo relativo a los valores y bienes de interés para el conjunto de la sociedad española, sin olvidar tampoco la dimensión universal de dicho legado cultural.

Luís Jorge Gonçalves escreve sobre o “Patrimonio Histórico e Arqueológico: exemplos de intervenção em Évora, Sesimbra e Idanha-a -Nova”; discute o conceito de patrimônio e suas transformações históricas, nos instiga a conhecer três experiências de atividades museológicas, destacando exemplares de arte. O autor trabalha com saberes e interpretações diversas, mostra-nos o conhecimento dos valores encontrados em Évora, Sesimbra e em Idanha-a-Nova; regiões portuguesas, únicas, que contribuem com os estudos de preservação e documentação, conexões com propostas brasileiras. Em Idanha-a-Velha, situado no interior de Portugal, limitado a leste pela fronteira com Espanha e ao Sul pelo Tejo, cuja história remonta à época romana e à Idade Média, os templários construíram uma rede de castelos, integrando, hoje, o concelho de Idanha-a-Nova.

Em 2009, se concretizou uma exposição liderada pela Câmara Municipal sobre os Castelos Templários nos seguintes temas: “Origens dos Templários e a sua presença em Portugal”, “Rituais Templários” e “Castelos Templários de Idanha”. Segundo Luis Jorge, a memória histórica é muito curta, abismo que se aprofunda para épocas recuadas, o público quando visita os monumentos e museus tem, na generalidade, uma atitude contemplativa; é por isso que novos processos metodológicos procuram dar enquadramentos contextuais ao patrimônio. São as visitas guiadas, os catálogos, os guias, os áudio-guias (agora com versões mais económicas como os “iPod” e “iPad”), das exposições retrospectivas, etc. Nesse caso, tanto os meios tradicionais como as novas tecnologias são recursos para os enquadramentos históricos do património. Para Luis Jorge, podemos considerar que hoje ultrapassamos os modelos de J.J. Winkelmann, porvalorizarmos o contexto em desfavor das obras-primas, não significando isto que vamos “deitar fora essas obras”. O enquadramento geral sobre o (s) momento (s) histórico (s) sobre o qual incidimos, como era a vida quotidiana, como viviam as pessoas, o que comiam, o que pensavam, qual a sua visão do mundo, o que significava (m) aquele (s) elemento (s) do patrimônio cultural sobre o qual incidimos o nosso discurso para as pessoas que investiram muito do seu esforço quotidiano, sendo ainda necessária uma comparação com outras áreas geográficas, a chamada história comparada.

Os ingredientes principais são um bom suporte científico com as exposições temporárias e permanentes, a musealização dos sítios, ou seja, a criação de suportes informativos, as visitas guiadas, as publicações para os diferentes públicos, a imagem em movimento. Nos projetos desenvolvidos em Évora, Sesimbra e Idanha-a-Nova existe sempre um suporte patrimonial. O autor ainda assinala que os vestígios arqueológicos e patrimoniais são um fator importante para compreendermos a vida hoje e que correspondeu ao resultado da vida de pessoas, que, como nós, dormiam, comiam, trabalhavam, tinham as suas crenças, festas e tradições.

Cabe-nos desenvolver um discurso acessível para aproximar os públicos, de modo a sentirem que o patrimônio faz parte deles; e principalmente descobrir o patrimônio a “partir do nosso interior, das nossas vivências e da nossa Paixão por compreendermos o mundo que vivemos”.

No artigo Pensar local….agir local. O museu de arte Pré-histórica de Mação, memória, intuição e expectativa, Luis Osterbeek, Sara Cura e Rossano Lopes Bastos nos remetem às percepções da proposta do livro.

Os autores indagam e se posicionam sobre a preservação, o papel de arqueólogos e da arqueologia através de uma releitura sobre as propostas do que é ser arqueólogo num mundo em transformação. Mostrando a criação do Museu de arte pré-histórica de Mação e as parcerias de um projeto desenvolvido em vários estados do Brasil, incluindo o Piauí, os autores revelam as preocupações de um grupo que entende o valor e a importância do patrimônio de um povo. Lembram que “[…] a prioridade da acção arqueológica permanece, naturalmente, na investigação [sem a qual não há reconhecimento da natureza arqueológica de certas evidências] e na conservação [sem a qual não ocorre a perenização supra geracional das evidências, que é essencial para a sua assimilação social]”; destacam a importância do território e da população local e regional, operando nessa inserção local uma didática da diferença cultural. Finalizando, dizem os autores: “A arqueologia deve promover a exigência de qualidade acreditada e permanentemente avaliada, deixando-se escrutinar pelo juízo crítico de terceiros, fugindo das torres de marfim, e assumindo dessa forma uma eficiente intervenção social, cujo fito social é o de contribuir para a construção de novo conhecimento e sua sucessiva socialização.” Manuel Calado, no texto Arqueologia Pública em Portugal, evidencia o conceito de Arqueologia Pública, considera “[…] um lugar-comum, na América Latina e, em particular, no Brasil; isto, apesar das vidas paralelas que as diferentes perspectivas lhes podem atribuir e, de fato, atribuem”.

Destaca que “Um dos indicadores mais evidentes do desenvolvimento da Arqueologia Pública brasileira prende-se, desde logo, com a prática corrente, exigida pela tutela, de programas de Educação Patrimonial associados a intervenções arqueológicas de resgate.” Para o autor, essa obrigatoriedade na maioria das vezes não se concretiza “[…] no terreno, em acções consistentes e frutuosas”, o que segundo ele cria “[…] um corpus de experiências que, feito o balanço provisório, muito têm contribuído para a criação de uma nova imagem da investigação arqueológica, junto das comunidades e dos poderes públicos”. Em sua análise, a arqueologia e o patrimônio, em sua gênese, revelam um potencial conservador e elitista “[…] muito enraizado que, em certos aspectos, parece contraditório com um mundo dinâmico, empenhado na criação de sociedades mais justas, mais participativas e, em suma, mais democráticas”; contradição que considera ultrapassada.

Em “Arqueologia dos Desaparecidos: identidades vulneráveis memórias partidas. O Registro arqueológico como instrumento de memória social”, Rossano Lopes Bastos trata do registro arqueológico e de sua delimitação legal em diversas normas. “Nas preocupações da Unesco, nas Recomendações de Nova de Delhi (1954) e mais recentemente na Carta de Laussane (1990). As principais definições são quanto a sua amplitude e proteção”. Destaca que no Brasil, “[…] o registro arqueológico tem sua primeira aparição enquanto bem a ser protegido no Decreto-lei nº 25 de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico nacional no Brasil. Entretanto, o patrimônio arqueológico, para ser protegido, deveria, a despeito de como é formulado com todos os outros bens, ser objeto do procedimento de Tombamento, conforme apregoa o Decreto-lei nº 25 de 1937. Com a edição da lei federal nº 3.924/61, ‘que dispõe sobre os monumentos arqueológicos e pré-históricos’, que ampliou de forma significativa e definitiva a proteção dos sítios arqueológicos em todo território nacional. Destaca-se que a primeira lei de proteção específica do patrimônio arqueológico foi editada no Estado de São Paulo em 1955”.

Na Segunda Parte da obra, Patrimônio e Cultura Indígena, quatro outros capítulos nos remetem às reflexões sobre o que seria o Patrimônio Humano, Cultural deixado pelos antigos habitantes do Nordeste do Brasil: os indígenas. No texto, “A farsa do extermínio: reflexões para uma nova História dos Índios no Piauí”, João Paulo Peixoto Costa nos faz pensar sobre o problema epistemológico e metodológico que acompanha o estudo dos indígenas no Ceará, revelando as atuais preocupações com a urgência da revisão dos conceitos e da política indígena no Brasil. Qual a significação do conceito de extermínio? Como tem sido usada pelos historiadores? O que nos diz a documentação pesquisada e analisada atualmente? No capítulo “Os Senhores das Dunas e os Adventícios d´além mar: a autonomia indígena e o escambo na costa norte brasileira”, Jóina Freitas Borges destaca os conceitos de extermínio e de história negada, mostrando, com base em extenso levantamento historiográfico, a presença indígena no litoral do Nordeste brasileiro; índios enclausurados nas dunas. Esses “senhores” das dunas, como chama a autora, foram responsáveis por um largo comércio com os franceses, de âmbar gris, pau-violeta e ainda foram seguidamente escravizados e vendidos para as Antilhas. Segundo Jóina, se desenvolveu neles, graças a esses contatos com os franceses, uma autonomia única na História dos indígenas brasileiros. Utiliza o conceito de fronteira, desenvolvido por Boccara. O resultado dessa facção isolada e não dominada por mais de um século foi o processo de etnogênese dos tapuias/tremembés.

No capítulo “Um viés da liberdade: a deserção dos janduís e os conflitos no Maranhão e Piauí”, Juliana Lopes Aragão nos revela histórias desconhecidas da capacidade de certas tribos se organizarem e reelaborarem os conflitos com o grupo colonizador e opressor que chegou no Brasil.

Após uma extensa pesquisa de documentação encontrada no Arquivo Histórico Ultramarino, nos revela como os janduís, com seus contatos com os holandeses do Nordeste desenvolveram uma capacidade que chama de “um viés de liberdade”, se organizando em assembleias e exigindo melhores condições de tratamento. No apresenta a questão dos “terços” dos bandeirantes e o “descimento” dos indígenas para o trabalho doméstico ou nas fazendas.

“Menina Moça: cultura material e simbologia do ritual indígena Guajajara, Maranhão, Brasil”, Síria Borges nos apresenta um conjunto de artefatos ligados à dança, música, gastronomia, adornos corporais e afazeres cotidianos do ritual indígena de passagem conhecido como “Menina Moça ou Festa do Moqueado”, comum a vários grupos indígenas brasileiros. A autora destaca que o ritual fortalece “[…] os saberes tradicionais e justificando as relações sociais e de gênero, o ritual de puberdade feminina do povo Guajajara – Maranhão expõe um conjunto de artefatos e técnicas que dentro do cortejo ritualístico assumem significados específicos dos quais serão analisados neste texto”.

Esta obra é reveladora da importância e da multiplicidade de objetos, temas e abordagens que marcam os estudos e as investigações no campo do patrimônio cultural, notadamente no Brasil, Portugal e Espanha.

Miridan Britto Falci – Professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e Sócia Titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

História e masculinidades: a prática escriturística dos literatos e as vivências no início do século XX – CASTELO BRANCO (REF)

CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. História e masculinidades: a prática escriturística dos literatos e as vivências no início do século XX. Teresina: EDUFPI, 2008. 168 p. Resenha de: VIANA JÚNIOR, Mário Martins. Os machos nos papéis e os papéis dos machos: masculinidades através da escrita literária no Piauí do início do século XX. Revista Estudos Feministas v.18 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2010.

Pedro Vilarinho Castelo Branco se graduou em História no ano de 1992 pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), deslocando-se para Pernambuco onde concluiu o mestrado em 1995 e o doutorado em 2005, ambos em História. Ali desenvolveu sua pesquisa e escrita relacionando mulheres e cidade, e avançou em estudos ligados às relações familiares e às identidades de gênero e literatura, mediante uma abordagem sociocultural e sempre privilegiando o contexto da virada do século XIX para as primeiras décadas do XX no Piauí. Hoje, como professor adjunto da UFPI e tutor do PET de História, desenvolve atividades de ensino e extensão, além de pesquisas na área de gênero, como a coordenação do projeto de pesquisa História e masculinidades, do qual o presente livro parece ser tributário.

Tal obra mostra como o estudo das relações de gênero vem se desenvolvendo no Brasil. De acordo com Raquel Soihet e Joana Maria Pedro, em artigo publicado na Revista Brasileira de História, o momento atual é aquele de busca de legitimidade acadêmica para o campo, e não mais o de reparar as múltiplas exclusões expressas e denunciadas pela “história das mulheres”.1

No bojo desse movimento historiográfico, o trabalho de Pedro Vilarinho vem contribuir para alargar e diversificar as abordagens, ao enfatizar a importância dos estudos sobre masculinidades. Soma-se, portanto, a trabalhos como o de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, anteriormente apontado pelas historiadoras acima como voz isolada na região nordestina, e possibilita dar novas tonalidades aos estudos de gênero e de subjetividades, além de apontar, na contemporaneidade, para uma circularidade de ideias e interesses acerca dessa temática no Nordeste brasileiro, onde profissionais de outras áreas se debruçam sobre as problemáticas de gênero.

Isso fica patente, por exemplo, no prefácio da obra elaborado pela professora Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz. Ainda que sua carreira acadêmica seja marcada pela atenção direcionada à literatura, nesse momento ela convida o/a leitor/a a pensar a escrita dos literatos sob uma perspectiva de gênero, ao contextualizar a produção das obras piauienses, sinalizar o embate travado entre escritores/as e analisar os diferentes discursos literários que tentariam configurar comportamentos específicos conforme o sexo. Articula e instiga a observar, portanto, temáticas presentes e imbricadas em todo o livro de Pedro Vilarinho, tais como história, literatura e gênero.

Pedro Vilarinho escolhe como recorte temporal o momento de transição do século XIX para o XX, ou seja, o intenso período de modificações e transformações da sociedade brasileira e, em específico, da piauiense, marcado pela aceleração do urbanismo e do avanço do capitalismo, expressos no distanciamento do mundo rural, no aparelhamento da cidade e na busca pela concretização dos ideais de civilidade e modernidade. Nesse contexto, traça como principal objetivo a análise de como os modelos comportamentais foram atingidos pelos discursos proferidos, principalmente, pelos literatos, os quais, imersos em uma cultura bacharelesca, teriam atribuído ênfase às identidades femininas e, sobretudo, às masculinas.

No desenvolvimento da pesquisa e no tratamento das fontes, a vasta produção literária é escolhida entre obras na íntegra, romances, crônicas, contos, além de artigos, notícias e comentários em jornais e revistas que expressam vários discursos. Paralelamente, o autor busca informações nos relatos de vida, concedidos por meio de entrevistas, nos textos autobiográficos, submetidos à crítica, encarados e problematizados como fragmentos e vestígios de memória e elucidadores de práticas e vivências.

Seguindo uma forma de escrita dialética, nos três capítulos do livro ele constrói sua argumentação contrastando as práticas e as vivências de homens e mulheres com os discursos elaborados pelos literatos, dando foco especial aos conflitos inerentes às identidades masculinas e às suas formas de subjetivação.

Diante da modernização de Teresina e da adoção de novos costumes e outras sociabilidades, observa-se um conflito expresso na escrita literária pela negação do mundo rural e de seus aspectos diante do progresso do universo urbano. Nesse novo espaço, os discursos literários teriam uma função reformuladora, ao delinearem as formas de os sujeitos se comportarem no espaço citadino e prescreverem os modos de a sociedade vir a ser. Formariam uma espécie de teia discursiva com a função de controle dos indivíduos e de configuração de identidades de gênero.

Práticas e discursos representariam o jogo dialético (tese e antítese), enquanto as formas de recepção, tratamento e consumo dos discursos pelos indivíduos implicariam diferentes modos de subjetivação, isto é, as sínteses nesses jogos de gênero e, dessa forma, os objetivos maiores da análise de Pedro Vilarinho.

Para pensar essa dinâmica, o autor fundamenta seu trabalho em estudiosos de diferentes vertentes, como a de base hermenêutica e a de perspectiva pós-estruturalista, expressas, respectivamente, nos trabalhos de Michel De Certeau e Michel Foucault. Mediante as ideias e os conceitos trabalhados por esses filósofos, tais como consumo, prática escriturística e subjetivação, haveria a possibilidade de contrastar a produção e a recepção dos discursos, ideia essa que já havia sido sinalizada por De Certeau em crítica à ênfase dada por Foucault em relação à força e ao alcance das práticas discursivas.2

Ainda no tratamento dos escritos de Michel Foucault, é válida uma observação quanto à leitura e à atenção dispensada por Castelo Branco a esse filósofo. De forma interessante e intrigante, ele encontra no autor de Vigiar e punir subsídios para pensar não apenas o sujeito como produto, mas também os processos de subjetivação, dinâmicos, contínuos e ininterruptos, afastando, assim, a passividade do sujeito.

O autor aponta para uma abordagem intrigante na medida em que podemos observar, por exemplo, as antinomias levantadas por Stuart Hall. De acordo com esse sociólogo, Michel Foucault teria passado por três grandes momentos em sua rica produção intelectual e somente na década de 1980, com as duas obras incompletas sobre história da sexualidade, teria se inclinado a pensar o que se chama de “sujeito”:

Trata-se de um avanço importante, uma vez que, sem esquecer a existência da força objetivamente disciplinar, Foucault acena, pela primeira vez em sua grande obra, à existência de alguma paisagem interior do sujeito, de alguns mecanismos interiores de assentimento à regra, o que livra essa teorização do “behaviorismo” e do objetivismo que ameaçam certas partes do Vigiar e Punir.3

São os posicionamentos contrários que tornam ainda mais interessantes essas múltiplas possibilidades de apropriações do pensamento de Foucault, tão bem expressas na obra de Pedro Vilarinho e direcionadas para a análise das diferentes masculinidades piauienses.

De forma ampla, as masculinidades são percebidas escalonadas nas diversas fases da vida dos homens. Nesse sentido, a divisão do livro em capítulos, tal como as etapas e o desenvolvimento do corpo humano, é estruturada a partir da infância, juventude e fase adulta. Entretanto, longe de significar linearidade e homogeneidade, esses momentos apontam para a complexidade, na busca da definição das masculinidades dos indivíduos, expressa nos choques de perspectivas, temporalidades e anseios.

É assim, por exemplo, que a escola surge como espaço segregado e afastado do mundo familiar e contribui significativamente para se pensar a infância como uma fase específica, com cuidados e tratamentos específicos às crianças, antes percebidas como adultos pequenos. Mudam-se, portanto, os discursos e as sensibilidades em relação à vida dos infantes e às formas de os meninos se subjetivarem como jovens, à medida que eles percebem outros elementos valorativos da masculinidade através do processo de escolarização.

A escola agiria como pêndulos intermitentes que ligariam as crianças a novas percepções de juventude e, em seguida, os jovens à vida adulta por meio da faculdade e da cidade, preparando-os para as novas atividades do espaço urbano.

Os discursos que influenciariam a inserção dos infantes no mundo escolar seriam contíguos àqueles que incentivariam os rapazes a darem continuidade aos seus estudos, a se inserirem no universo das letras e, cada vez mais, a se distanciarem do mundo rural e de seus tradicionalismos, isto é, de características masculinas desvalorizadas na cidade. Em termos discursivos, o aprendizado obtido através da cultura escrita seria de suma importância para os novos modos de condução das famílias e para a ocupação dos empregos urbanos e dos inéditos espaços de lazer e sociabilidade materializados na moderna Teresina do início do século XX, tais como o footing, o futebol e o cinema, espaços e dinâmicas que ofereciam outras formas de subjetivação masculina aos jovens.

Feitos homens, na idade adulta, os discursos incidiriam principalmente sobre os novos sentidos atribuídos à paternidade e às relações afetivas, além das preocupações em torno da formação do homem produtivo ligado à ideia de trabalho, de comportamentos ordeiros e disciplinados, que deveriam compor a cena urbana, o espaço público, de caráter eminentemente masculino nessa nova configuração moderna.

Em suma, o que marca as diferentes fases da vida dos homens (a infância, inclusive, inventada nesse meio) é a tentativa de modelação discursiva de suas experiências a partir da atividade literária, que, a todo custo, buscava se distanciar dos elementos e do tradicionalismo rural, através da transformação dos aspectos que compunham a masculinidade. Esses discursos, ainda que tentassem alterar o que era tido como ser macho, guardavam em seu bojo uma essência indiscutível: a dominação masculina sobre a feminina. Nesse processo, o que se alterava era apenas o modo como isso era exercido: de forma mais branda e menos violenta, pelo menos em termos.

Os alcances desses discursos são apresentados pelo autor como paradoxais e contraditórios, sinalizando uma realidade dinâmica e plural na Teresina da virada do século. Os aspectos traduzidos pela permanência de hábitos tradicionais e rurais na cidade, principalmente, pela presença de características masculinas consideradas anacrônicas, a todo instante, entravam em conflito com os discursos dos literatos.

O estudo de Pedro Vilarinho vem contribuir, assim, com uma análise mais detida e localizada das mudanças na sociedade piauiense, que pareciam sinalizar uma crise das identidades de gênero e, mais especificamente, de masculinidades, aspecto que, anteriormente, foi apontado por Elizabeth Badinter como uma grande crise de masculinidade no Ocidente, entre fins do XIX e início do XX, na qual a figura do cowboy nos EUA e a construção do tipo nordestino macho no Brasil seriam formas de reação.4

Ainda que os movimentos de valorização de novas masculinidades sejam apontados de forma ampla e genérica, o estudo de Castelo Branco denota a importância das análises mais localizadas, do escrutinar da atividade do historiador. E é somente a partir dessa ação que é possível marcar a peculiaridade e a diferença do Piauí em termos de gênero na região nordestina.

Se tomarmos, por exemplo, os estudos comparativamente, poderemos observar que tanto em Durval Muniz como em Pedro Vilarinho há a argumentação de que houve um processo reacionário, expresso nos discursos dos literatos, contra a feminização da sociedade. Para Albuquerque Júnior, a tonalidade dos discursos literários era a de condenar as transformações sociais e valorizar o passado patriarcal. Houve um resgate dos elementos que compunham a masculinidade rural diante da frivolidade do mundo urbano.

No Piauí, todavia, essa configuração ocorreu de forma diferenciada. A proposta dos literatos era a de afastamento do mundo rural, de aproximação com o mundo das letras e de configuração de novos homens urbanos e intelectualizados. Enquanto o Movimento Regionalista em Pernambuco, do qual Gilberto Freyre fazia parte, via na figura do homem de letras a ameaça do patriarcalismo rural e a feminização da sociedade, os literatos do Piauí enxergavam nesse mesmo homem novas formas positivas de ser masculino. Enfim, delinearam-se expectativas de masculinidades distintas para uma mesma região, o Nordeste, que, assim apontadas, denotam a importância da continuidade de pesquisas sobre essa temática na atualidade.

Notas

1 Rachel SOIHET e Joana Maria PEDRO, 2007.

2 Michel DE CERTEAU, 2008.

3 Stuart HALL, 2000, p. 125.

4 ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003.

Referências

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nordestino: uma invenção do falo. Maceió: Edições Catavento, 2003.         [ Links ]

DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2008.         [ Links ]

HALL, Stuart. “Quem precisa de identidade?”. In: SILVA, Thomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. P. 103-133.         [ Links ]

SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana Maria. “A emergência da pesquisa da história das mulheres e das relações de gênero”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 27, p. 281-300, 2007.         [ Links ]

Mário Martins Viana Júnior – Universidade Federal de Santa Catarina.

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