El genocidio como práctica social. Entre el nazismo y la experiencia argentina – FEIERSTEIN (Ph)

FEIERSTEIN, D. El genocidio como práctica social. Entre el nazismo y la experiencia argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2008. Resenha de: MARTÍNEZ, Horacio Luján.  Philósophos, Goiânia, v.14, n. 1, p.211-218, jan./jun., 2009.

O autor deste estimulante e também inquietante livro é Daniel Feierstein, professor da disciplina “Análisis de las prácticas sociales genocidas”, na Faculdade de Ciências Sociais da Universidad de Buenos Aires, e diretor do Centro de Estudios sobre Genocidio e do Mestrado em Diversidad Cultural na Universidad de Tres de Febrero.  O livro procura compreender o genocidio como o “aniquilamento de coletivos humanos”: um modo específico de destruição e reorganização das relações sociais. Isto é, trata-se de observar esses processos de aniquilamento não como uma exceção na história contemporânea, mas como uma tecnologia de poder peculiar.  O conceito de “tecnologia de poder” é entendido aqui como uma forma peculiar de estruturar – seja através da criação, destruição ou reorganização – as relações sociais em uma sociedade determinada, os modos em que os grupos se vinculam entre si e consigo mesmos e os através dos quais constroem sua própria identidade, a identidade de seus semelhantes e a alteridade dos outros. Isso não implicará, como veremos, em dizer que o genocídio é somente um modo de reorganização de relações sociais, nem que esta somente opere através de práticas sociais genocidas.  Pode-se dizer que há consenso entre os historiadores acerca de que o termo “genocídio” surge como um neologismo criado pelo jurista Raphael Lemkin. Dito neologismo se estrutura com o sufixo latino cidio (aniquilamento) e o prefixo grego genos, que tem dado muito mais lugar à discussão, uma vez que não parece fácil decidir se remete a uma origem tribal comum, à comunhão de características genéticas (raciais) ou às simples características comuns compartilhadas por um grupo. Esses dois últimos significados se acham presentes no termo grego genos e em seu herdeiro latino gens, ligado aos clãs familiares.  O trabalho de Feierstein pretende esboçar a possibilidade de que o genocídio – pelo menos na sua forma mais ou menos recente – constitui uma prática social característica da modernidade (de uma modernidade que poderia ter os seus antecedentes ao final do século XV – 1492, talvez –, mas cuja aparição definitivamente moderna se centra nos séculos XIX e XX). Assim, não se trata somente do “aniquilamento de populações”, mas do modo peculiar com que isso é levado a cabo. Os tipos de legitimação a partir dos quais se logra consenso e obediência, as consequências que produz – a morte ou a sobrevivência – nos grupos vitimizados e também as consequências nos mesmos perpetradores e testemunhas, que veem modificadas suas relações sociais a partir da emergência dessa prática.

A ideia de conceber o genocídio como uma prática social evita aquelas perspectivas que tendem a coisificar os processos genocidas, equiparando-os a fenômenos climáticos naturais (ou que formariam parte de certa natureza do homem) e que seriam algo assim como um “exabrupto” nessa natureza. Uma prática social implica um processo levado a cabo por seres humanos e requer modos de treinamento, aperfeiçoamento, legitimação e consenso que diferem de sua prática automática ou espontânea.  Uma prática social genocida, então, é tanto aquela que tende e/ou colabora no desenvolvimento do genocídio como aquela que o realiza simbolicamente através de modelos de representação ou narração dessa experiência. Essa ideia permite conceber o genocídio como um processo que se inicia muito antes do aniquilamento e que se encerra muito depois, mesmo que as ideias de início e conclusão sejam relativas a uma prática social.  O conceito de genocídio, embora apareça pela primeira vez no nível legal na Convenção para a Prevenção e a Sanção do Delito de Genocídio aprovada pelas Nações Unidas em dezembro de 1948, tem sua história iniciada no direito internacional um par de anos antes, com a resolução 96 (I) das Nações Unidas, pela qual se convocava os Estados membros a reunir-se para definir esse novo tipo penal, como consequência direta dos assassinatos massivos levados a cabo pelo nazismo. Essa resolução declara que:

El genocidio es la negación del derecho a la existencia de grupos humanos enteros, como el homicidio es la negación del derecho a la vida de seres humanos individuales; tal negación del derecho a la existencia conmueve la conciencia humana, causa grandes pérdidas a la humanidad en la forma de contribuciones culturales y de otro tipo representadas por esos grupos humanos y es contraria a la ley moral y  al espíritu y los objetivos de las Naciones Unidas. Muchos crímenes de genocidio han ocurrido al ser destruidos completamente o en par-te grupos raciales, religiosos, políticos y otros. El castigo del crimen de genocidio es cuestión de preocupación internacional. (FEIERS-TEIN, 2008, p.38)

Cabe destacar que o genocídio de grupos políticos se encontrava presente nessa resolução, e o que resulta ainda mais importante, se definia o crime em analogia com o homicídio, estabelecendo as características do fato pela tipologia da ação (morte coletiva frente à morte individual) e não pelas características da vítima. Essas características são citadas apenas para dar um exemplo: raciais, religiosas, políticas e outras, onde o termo “outras” completa a tipificação ao estabelecer que não é a identidade da vítima a que especifica o delito, senão as características da ação material cometida.  Porém, no marco das discussões às que deu lugar o tratamento desse projeto, foi o próprio Raphael Lemkin quem expôs suas dúvidas acerca da inclusão dos grupos políticos entre aqueles que deviam ser protegidos pela Convenção, dado que se afirmava que esses grupos “carecem da persistência, firmeza ou permanência que outros grupos oferecem”. Muitos dos próprios estados que assinavam a Convenção disseram que a inclusão dos grupos políticos poderia pôr em risco a aceitação desta por parte de grande quantidade de estados, porque estes não queriam envolver a comunidade internacional nas suas lutas políticas internas. Outras posições sustentaram que a inclusão dos grupos políticos abriria portas para a proteção de outros grupos, como os econômicos e profissionais.  Apesar das propostas prévias postularem o contrário, os grupos políticos foram finalmente excluídos da definição na sua última versão, na qual culminou a passagem de uma primeira definição “extensiva” a uma cada vez mais restritiva. Por outra parte, a restrição estabelecida finalmente na Convenção resultou arbitrária, ao incluir-se dentro dos “grupos protegidos” a quem possui uma “ideologia religiosa”, mas não a quem compartilha uma “ideologia política”, quando – salienta Feierstein – ambos constituem, para além de suas importantes diferenças, dois sistemas de crenças.  Assim, chegamos à definição de genocídio:

1) se chamará genocídio pré-estatal toda prática social genocida vinculada à destruição de um grupo humano, realizada antes da existência dos Estados-nação modernos.  Genocídio moderno:

2) Genocídio constituinte: se refere à aniquilação cujo objetivo é a conformação de um Estado-Nação, o qual requer o aniquilamento de todas aquelas frações excluídas do pacto estatal, tanto as populações originárias como núcleos políticos opositores ao novo pacto estatal.

3) Genocídio colonialista: é o que envolve a aniquilação de populações autóctones, basicamente como necessidade de utilização dos recursos naturais dos territórios que ocupam e/ou como estratégia de subordinação da população originária, seja para tolerar a espoliação ou para utilizá-los como mão de obra.

4) Genocídio pós-colonial: se refere especificamente ao aniquilamento da população produto da repressão às lutas de liberação nacional.

5) Genocídio reorganizador: remete à aniquilação, cujo objetivo é a transformação das relações sociais hegemônicas ao interior de um Estado-Nação preexistente.

Este último tipo – o genocídio reorganizador – logra agir especificamente sobre as relações sociais no contexto de uma sociedade existente, com o objetivo de clausular aquelas relações que geram fricção ou mediações ao exercício do poder – contestatárias, críticas, solidárias – e substituí-las por uma relação unidirecional com o poder, através do procedimento da delação e da desconfiança. A ruptura das “relações de reciprocidade” entre os seres humanos constitui o objetivo central desta modalidade genocida que opera “reorganizando” a sociedade, estruturando outro tipo de vínculos hegemônicos.  As mortes do genocídio reorganizador cobram, por isso, o seu caráter de meios e já não de fins. O desaparecimento daqueles que encarnam determinadas relações sociais é condição necessária, mas não suficiente, para a clausura de tais relações. Na verdade, o processo se encontra dirigido ao conjunto social. O terror, nesta modalidade genocida, não opera tão somente sobre as vítimas, mas, fundamentalmente, sobre o conjunto social, buscando desterrar e clausular determinadas relações sociais e, ao mesmo tempo, fundar outras.  Nesse sentido, o nazismo traz uma nova modalidade na prática do genocídio: “Ya no sólo el surgimiento de un nuevo Estado, ya no sólo una política colonialista, sino que ahora el genocidio se estructura como un modo de transformar un Estado preexistente” (FEIERSTEIN, 2008, p.99-100). O nazismo tinha um arquétipo da vítima ideal, que  não era somente o judeu, mas o “judeu bolchevique”. Desse modo, se combatia o comunismo – o que favoreceu a conivência de tantos países no começo do Terceiro Reich – mas esse comunismo tinha caraterísticas raciais, isto é, originárias, radicais e inassimiláveis. O aparelho retórico do nazismo, que se apoiava no biológico, tornava a dissidência política um caso patológico. É esse modelo degenerativo que repete o terrorismo de Estado na Argentina da ditadura de 1976-1983. Tanto a “judeidade” na Alemanha dos anos 30 e 40 quanto o caráter “subversivo” na Argentina da década de setenta atentavam contra um modo de vida considerado tradicional e, pior, irreversível. Não é difícil pensar que o roubo sistemático de filhos de militantes desaparecidos, levado a cabo na Argentina por famílias militares, teve a cínica justificativa de uma salvação da criança por uma “reversão” da semente subversiva.

A comparação dos dois casos, o alemão e o argentino, realizada pelo autor, superou o que se chamou de a “unicidade” (uniqueness) do genocídio nazista. Esse caráter único outorgado ao holocausto, ou shoá, somente isolou essa experiência, declarando-a quase que ontologicamente irreproduzível.

Nos dois casos comparados, tão importante quanto a aniquilação material do inimigo é sua aniquilação simbólica. É isso o que representa a negação da shoá. O que nunca deveu ser – a existência do “judeu bolchevique” –, nunca foi. Portanto, as câmeras de gás nunca existiram.

Na Argentina, o processo de negação se encarna na demonização absoluta dos que participaram da repressão. Tornar ao outro um monstro, torná-lo o “Outro absoluto”, o afasta da vida cotidiana. Mais uma vez, como no caso da  “unicidade” do genocídio nazista, o que aconteceu foi o delírio sádico de alguns poucos, contra a vontade e a credulidade geral. O que coroa esse mecanismo de negação é a “angelização” da vítima: assim, o desaparecido na Argentina “não tinha feito nada”. Ao massacre absoluto só corresponde a inocência absoluta. Feierstein chama a atenção para o fato de que, desse modo, o genocídio cumpre seu objetivo: a negação simbólica das práticas de resistência políticas (FEIERSTEIN, 2008, p.129).

As leituras de Hanna Arendt e Michel Foucault ecoam claramente no livro. A noção de um poder produtivo com uma ideologia do terror como argumento de coesão e coerção social não é algo tão estranho para nós nestes tempos chamados de “terrorismo globalizado”.

Sabemos que os números e a política sempre mantiveram uma relação perversa da qual a estatística é seu filho bobo. Talvez seja importante pensar que, considerando o genocídio uma prática que procura a reorganização de uma sociedade, aquilo torna algo um massacre premeditado não é o número de suas vítimas, senão as características destas.

Isto é importante sobretudo no Brasil, onde todo debate sobre desaparecimento e tortura na última ditadura é rapidamente abafado com a magra escusa, que mal esconde uma ameaça, de que nos países vizinhos foi muito pior

Referências

FEIERSTEIN, D. El genocidio como práctica social. Entre el nazismo y la experiencia argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2008. 405p.

Horacio Luján Martínez – Professor-adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Cascavel, Paraná. E-mail:  [email protected]

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