A critical overview of biological function – GARSON (Ph)

GARSON, J. A critical overview of biological functions. Dordrecht: Springer, 2016.Resenha de: LAZZERI Felipe. Funções biológicas em chave etiológico-selecionista. Philósophos, Goiânia, v. 24, n. 2, p.205-222, jul./dez., 2019.

O conceito de função, na acepção teleológica do termo (não função no sentido matemático), conota processos e ob-jetos dirigidos a finalidades ou propósitos. Em razão de ele ser utilizado para descrever vários traços em ciências bioló-gicas – tais que traços anatômicos, histológicos e compor-tamentais dos organismos –, frequentemente as funções, nesses casos, têm sido chamadas de funções biológicas. Os contornos do conceito de função biológica (isto é, os crité-rios sob os quais ele se aplica), os compromissos ontológicos envolvidos em seu uso e suas conexões inferenciais com o núcleo teórico das ciências da vida, entretanto, não são cla-ros, e por vezes isso resulta em usos discrepantes entre si. Daí, conjugado-se com a importância do conceito, suscita-rem uma série de debates em filosofia da biologia, que já se estendem a várias décadas (a partir inicialmente de traba-lhos como os de AYALA, 1970; CANFIELD, 1964; NAGEL, 1961; WIMSATT, 1972; WRIGHT, 1973; e, ain-da antes, no contexto das ciências do comportamento e da cibernética, trabalhos como os de BRAITHWAITE, 1953; e ROSENBLUETH et al., 1943, para mencionar apenas al-guns). Esses debates são objeto de ampla revisão e balanço examinativo no livro de Garson A Critical Overview of Biolo-gical Functions (Springer, 2016, vii + 113pp), que aprofunda e atualiza uma revisão que o autor havia desenvolvido de forma mais compacta em um verbete há alguns anos (GARSON, 2008).

Já dispomos de alguns trabalhos que revisam ampla-mente a literatura metateórica sobre funções biológicas (como, por exemplo, NISSEN, 1997). Mas a revisão ofere-cida no livro de Garson (2016) é talvez a mais abrangente e atual de que dispomos hoje a respeito do assunto. Nesta re-senha, procuramos destacar as linhas gerais do percurso metodológico do livro, bem como a abordagem das funções nele sugerida por Garson, que ele denomina ‘teoria dos e-feitos selecionados generalizada’ (generalized selected effects theory), uma tentativa de aprimorar a teoria etiológico-selecionista das funções, articulada notoriamente por Wri-ght (1973), Millikan (1984) e Neander (1991). Além disso, levantamos algumas breves ponderações a alguns pontos do livro, inclusive à abordagem específica sugerida por Garson, embora sem objetar a plausibilidade dela em si.

O livro começa (cap. 1) com um levantamento de desi deratos – adotados por Garson em capítulos subsequentes – para uma teoria das funções. Garson destaca três: (a) coe-rência com o contraste que as atribuições de funções cono-tam em relação a acidentes; (b) dar sentido ao caráter explicativo que as atribuições de funções costumam ter; e (c) coerência com o dito caráter “normativo” do conceito de função. O desiderato (a) refere-se ao fato de que não con-tamos como funções de um traço acontecimentos mera-mente acidentais que envolvem ou provocam. No exemplo clássico usado para ilustrar isso, atribuímos ao coração a função de irrigar o sangue no corpo, mas não produzir cer-tos sons, ainda que isso seja algo que o coração também produz. Para tomarmos um exemplo talvez mais intuitivo, quando uma suçuarana (Puma concolor) sai para caçar, dize-mos que seu comportamento tem como uma função obter alimento (para si ou para sua prole). Essa atribuição de fun-ção contrasta com certas coisas que o animal faz de modo incidental, tais que, possivelmente, espantar uma preza ao movimentar a relva, projetar reflexo em uma poça, acabar esmagando uma formiga ao correr, etc.

O desiderato (b), por sua vez, sugere que uma boa teo-ria das funções biológicas deve harmonizar-se, de algum modo, ao fato de que muitas das atribuições de funções são dadas em resposta a perguntas sobre por que um dado traço existe ou existiu. Assim, por exemplo, diante da curiosidade sobre o porquê das diferentes vocalizações das suçuaranas (miados, sons ásperos e outros), podemos explicá-las por re-ferência a suas respectivas funções em dados contextos, co-mo as funções de atrair companheiros à distância, intimidar rivais e assim por diante (cf. ALLEN et al., 2016). Garson (2016) deixa claro que o desiderato (b) deixa em aberto se o caráter explicativo que as atribuições de funções costumam possuir se trata de explicação em sentido causal ou não: “[H]á outras maneiras de satisfazer a esse aspecto das fun-ções sem entender explicação em sentido causal” (p. 5).

O desiderato (c), por fim, diz respeito ao fato de que o conceito em pauta se aplica mesmo em casos em que o tra-ço não desempenha sua função, seja momentaneamente, se-ja de modo mais estável no tempo. Mesmo que o animal vá caçar e não seja bem-sucedido em obter alimento, ou emita vocalizações associadas à atração de companheiros, mas a-cabe não atraindo nenhum, seu comportamento não deixa de ter tido essas respectivas funções. Como Garson pontua, o termo “normativo”, usado para designar essa característi-ca do conceito de função, não quer dizer que o traço deva desempenhar suas funções, em um sentido moral, mas ape-nas que “[É] logicamente possível que um caso particular de um traço tenha uma função que não possa [talvez tempora-riamente], de fato, realizar” (p. 5).

Ainda no capítulo 1 do livro, Garson explica que, ao seu ver, indiferentemente de se as teorias das funções sobre as quais se debruça são propostas como (i) análises concei-tuais, (ii) definições teóricas ou (iii) explanações conceituais à la Carnap (1962), o que importa é que, para se mostrar plausíveis, estejam em consonância com o uso real do con-ceito em biologia e nela se mostrem úteis. Desse modo, se-gundo o autor, a abordagem pode-se mostrar plausível apenas se capturar critérios subjacentes ao(s) modo(s) como o conceito vem sendo empregado em contextos das teoriza-ções em biologia. Propostas em termos de análise conceitu-al, a exemplo daquela de Wright (1973), (i) prezam pela consonância com nuanças semânticas comuns do conceito, em seus usos típicos; inclusive, se for o caso, científicos. Propostas em termos de definição teórica, como aquela de Millikan (1984; 1989), (ii) colocam-se, conforme interpreta Garson, no mesmo pé que a teorização científica, e tendem a mitigar a relevância da consideração das nuanças básicas do conceito envolvidas em seu uso comum, reputando-as com bastante chance de ser enganadoras. O empreendi-mento de definição teórica, explica Garson, compreende sua tarefa como sendo análoga à busca por definições tais que a de calor como energia cinética média de partículas, sal como substância formada por moléculas de cloreto de sódio, e assim por diante. Por sua vez, explanações (explica-tions) conceituais, no sentido carnapiano, (iii) veem-se como propostas de substituição de um termo vago (com contor-nos imprecisos e que, embora com casos paradigmáticos de aplicação, deixam dúvida sobre sua aplicabilidade a muitas situações) por um termo com critérios precisos. O empre-endimento em termos de (iii) é feito sob um crivo funda-mentalmente pragmático (preocupado com a aplicabilidade eficiente e que mostre resultados úteis), e sem uma preten-são realista de que haja algo como um “tipo natural” (natu-ral kind) a ser capturado por uma definição das funções biológicas. Apesar das diferenças entre (i)-(iii), todas devem ser avaliadas, segundo Garson, conforme consigam “refletir a ciência bem, e devem resultar em teorias que os cientistas possam achar úteis” (p. 10); e esse “refletir bem a ciência” envolve “ser razoavelmente limitadas (constrained) pelo uso biológico real” (p. 1).

A nosso ver, porém, ao fazer tal asserção, Garson (2016) deixa passar despercebido que o conceito em pauta tem uma carga semântica trazida a contextos científicos a partir, pelo menos em parte, de contextos ordinários. Os desidera-tos (a)-(c) que Garson aponta como condições para uma te-oria satisfatória das funções remetem a nuanças do conceito em seus usos ordinários, e não originados na biologia con-temporânea. O fato, por exemplo, de que atribuímos fun-ções a comportamentos, mas não a aspectos e efeitos acidentais neles envolvidos (como exemplificado anterior-mente), é revelado pela análise do uso comum do conceito (cf. LAZZERI, 2013b; 2014b; WRIGHT, 1973). Portanto, a nosso ver, embora Garson (2016) não se comprometa expli-citamente com características específicas de (i) – os empre-endimentos em termos de análise conceitual –, antes, ao contrário, procurando-se manter neutro entre (i)-(iii), ele na verdade implicitamente admite algum compromisso, mes-mo que parcial, com (i).

Além disso, ainda a esse respeito, a nosso ver, a compa-tibilidade da adoção dos desideratos (a)-(c) para avaliar teo-rias das funções e, ao mesmo tempo, do imperativo de condizência com usos reais do conceito em biologia, é algo problemático. Pois pode, naturalmente, haver incompatibi-lidade entre um uso em âmbito científico, por parte de um ou mais biólogos, e os desideratos (a)-(c). Ou seja, um bió-logo pode assumir, de forma implícita ou explícita, com-promissos com uma interpretação das funções que passem amplamente por cima de nuanças básicas do conceito (por exemplo, se AMUDSON & LAUDER, 1994, estiverem certos). Diante de um tal conflito, é preciso um critério que o resolva, mas Garson (2016) não o oferece.

Pode, a princípio, haver fortes razões para se fazer uma alteração em nuanças básicas do conceito. Por exemplo, se (a), (b) ou (c) não se mostrassem (ao contrário do que algu-mas abordagens sugerem) compatíveis com a síntese mo-derna em biologia, teríamos talvez boas razões para readaptar as correspondentes nuanças, senão para rejeitar seu uso em biologia. Entretanto, às vezes pode também o-correr simples erro de categoria (no sentido de RYLE, 1949), sem qualquer pretensão de se propor uma revisão em nuanças básicas do conceito. Isto é, pode-se incorrer em um uso incoerente com (a)-(c) que não passaria despercebi-do ao se constatar essas nuanças básicas. O ponto, aqui, é que há certa tensão, aparentemente não resolvida por Gar-son, entre abraçar os desideratos (a)-(c) como pedra de to-que para se avaliar as teorias das funções e também adotar a perspectiva de que uma teoria das funções só pode revelar-se plausível caso condiga com “seu uso real” em biologia.

Nos cinco capítulos seguintes (caps. 2-6), Garson passa a descrever as características de um amplo leque de teorias da função formuladas até então, bem como suas qualidades e críticas enfrentadas, com base em parte nos desideratos (a)-(c). As duas teorias em maior evidência nos debates nas últimas décadas (cf., por exemplo, CAPONI, 2012; CHEDIAK, 2018; NUNES-NETO & EL-HANI, 2009) são tratadas nos capítulos 3 e 5: nomeadamente, o capítulo 3 é dedicado à teoria etiológica-selecionista (ou dos efeitos sele-cionados), em suas formulações por Wright (1973), Milli-kan (1984), Neander (1991) e outros; e o capítulo 5 é dedicado à teoria das funções como papeis causais (teoria sistêmica), desenvolvida por Cummins (1975). As outras teorias tratadas no livro são: um conjunto de abordagens anteriores aos debates mais recentes na literatura em filoso-fia da biologia (cap. 2), incluindo aquelas de Rosenblueth et al. (1943) e Braithwaite (1953); a teoria das funções em termos de incremento na aptidão biológica (cap. 4), devida a Canfield (1964) e reformulada por Bigelow e Pargetter (1987), Walsh (1996) e outros; e, ainda, visões alternativas recentes (cap. 6), incluindo a teoria etiológica fraca de Bul-ler (1998), versões da concepção organizacional (como a de SCHLOSSER, 1998) e a teoria modal de Nanay (2010). Ademais, cabe mencionar que Garson dedica uma seção do capítulo 5 a perspectivas pluralistas sobre as funções.

Não é nosso propósito, nesta resenha, reapresentar to-das essas teorias e o exame crítico delas por Garson. Gosta-ríamos, entretanto, de destacar a concepção defendida pelo autor, a teoria generalizada dos efeitos selecionados (que o autor já havia articulado previamente em trabalhos como GARSON, 2011). Para defendê-la, a estratégia básica do au-tor é mostrar que, com exceção desse tipo de teoria, os de-mais tipos não conseguem resolver problemas que, em última instância, resumem-se a uma ou mais falhas quanto aos desideratos (a)-(c) – estratégia essa já adotada pioneira-mente por Wright (1973), em relação a abordagens de sua época, embora não de forma tão sistemática quanto Garson (2016). A vantagem da formulação específica do autor, em relação a versões anteriores de teoria etiológico-selecionista, é, segundo ele, ser menos restritiva, sem comprometer a sa-tisfação dos desideratos (a)-(c): “O principal argumento em favor para essa teoria dos efeitos selecionados generalizada é que ela satisfaz os mesmos desideratos que a visão conven-cional dos efeitos selecionados, mas sem aparentes restri-ções arbitrárias” (p. 59).

Grosso modo, conforme as formulações de Millikan (1984; 1989) e Neander (1991) – “a visão convencional” e tiológico-selecionista –, um traço T (por exemplo, uma vo-calização da suçuarana) possui a função de realizar F (por exemplo, intimidar rivais) se F é algo para o qual foi sele-cionado, em um sentido darwiniano de seleção. Ou seja, T possuir F quer dizer que realizar F é uma propriedade de T em virtude da etiologia de T, que envolve: (1) processos de variação entre itens de uma população de ancestrais de T (algumas vocalizações de ancestrais de suçuaranas eram ás-peras, outras vocalizações não); (2) sucesso diferencial de al-guns desses itens em relação aos outros, por possuírem uma ou mais características c¹,…, cn, requeridas no ambiente em que interagem (certas vocalizações ásperas resultavam em intimidação de rivais, e outras não); e (3) retenção das vari-antes bem-sucedidas por meio de mecanismos de cópia e replicação (os organismos bem-sucedidos em intimidar ri-vais tenderam a sobreviver mais e a se reproduzirem, propa-gando mutações gênicas responsáveis pelo referido fenótipo). Na formulação de Millikan (1984; 1989), em es-pecífico, propõe-se ainda que certos traços D possuem fun-ções derivadas G a partir de traços que possuem funções em virtude de história de seleção, sem que D mesmo tenha sido diretamente selecionados por realizarem G. A ideia é que D (por exemplo, uma pigmentação inédita em camaleões) tem uma função G (camuflagem) se há um T (mecanismos de troca da pigmentação do camaleão), oriundo de história de seleção, que realiza G (camuflagem) por meio da produção de D (cf. também [LAZZERI, 2013a; 2014a]).

A formulação que Garson (2016, cap. 3, §3.4) sugere como alternativa tem como ponto de partida o núcleo geral da teoria etiológico-selecionista, comum às formulações de Millikan e Neander; e propõe uma alteração no entendi-mento dos processos de seleção envolvidos nas etiologias dos traços funcionais. Segundo Garson, seria demasiado restritivo exigir que, nesses processos, haja sempre retenção por meio de mecanismos de cópia e reprodução. Ou seja, o autor problematiza o requisito (3) supramencionado, refe-rente às condições para haver uma etiologia selecionista re-levante.

Garson, ao problematizar (3), tem sobretudo em vista acomodar a aprendizagem (ou condicionamento) operante como um tipo de processo de seleção que confere funções a comportamentos no âmbito ontogenético. Millikan (1984; 2004) tem um interesse explícito em acomodar o referido tipo de aprendizagem como um processo de seleção e, as-sim, abranger os comportamentos operantes como traços funcionais em termos de sua teoria etiológico-selecionsta. Porém, Garson (2016) considera que na aprendizagem ope-rante não há exatamente retenção por meio de cópia e re-produção. A retenção, na aprendizagem operante, dá-se por meio de mecanismos sinápticos, e não há cópia e geração de sinapses novas, mas, sim, alteração em suas configurações, conforme resultem ou não em reforçamento: “Não há ne-nhum sentido em que uma dada sinapse se reproduza. An-tes, elas meramente persistem melhor ou pior do que outras” (p. 58). Daí o autor sugerir, no lugar da “formula-ção bastante liberal da seleção dada por Millikan”, que “[A] função de um traço consiste na atividade que levou ao seu reforçamento diferencial ou à sua reprodução diferencial em uma população biológica” (p. 58). A seleção natural envolve retenção por meio de mecanismos (nomeadamente, genéti-cos) de cópia e reprodução, mas na seleção em processos de aprendizagem operante a retenção é apenas persistência di-ferencial de comportamentos por meio de alterações nas configurações sinápticas.

A proposta de Garson, embora ele não o note, ou pelo menos não o mencione no livro, pode ser entendida como estando em certa consonância com vários autores em psico-logia comportamental, como Skinner (1953; 1976/1974; 1981), Rachlin (1976) e Baum (2005), além de com a epis-temologia evolutiva de Popper (2010/1973), que desde há tempo tomam a aprendizagem operante como um processo análogo à seleção natural. Inclusive, esses autores não traba-lham com a analogia entre aprendizagem operante e seleção natural em termos de retensão por meio de mecanismos de cópia e reprodução, mas, justamente, em termos de persis-tência diferencial de comportamentos. Autores como Baum (2001) e Godfrey-Smith (2001) já chamavam a atenção para o fato de que a retenção, em tal aprendizagem, não envolve cópia e reprodução; e que, desse modo, o “algoritmo sele-cionista” – para utilizarmos aqui um linguajar de Dennett (1995) – seria demasiado restritivo caso nele estabeleça-se esse parâmetro específico da seleção na filogênese (cf. [QUEIROZ & LAZZERI]). Portanto, a novidade de Garson (2016) a esse respeito é, a nosso ver, propor uma compreen-são menos restritiva do algoritmo de seleção para a “versão convencional” da teoria etiológico-selecionista, assim corri-gindo-a. (Uma conjugação semelhante de uma compreensão menos restritiva do algoritmo com a teoria etiológico-selecionista figura-se, embora apenas implicitamente e não de forma sistemática e pormenorizada como faz Garson, em [LAZZERI, 2013a; 2014a], em linha com o chamado mode-lo de seleção por consequências de SKINNER, 1981. É o portuno também registrar o estudo de RINGER, 1976, que também concatena a perspectiva skinneriana com a teoria etiológico-selecionista, especificamente em sua formulação pioneira por WRIGHT, 1973.)

Para finalizar, consideramos que o livro em pauta reúne um rico arsenal de respostas a críticas feitas à teoria etioló-gico-selecionista. Apenas para ilustrar, uma das críticas su-gere que tal teoria não condiz com o fato de que por vezes se atribui funções em biologia sem que se lance mão de qualquer referência a histórias de seleção, testando-se hipó-teses referentes a características dos traços no ambiente pre-sente (cf., por exemplo, AMUDSON & LAUDER, 1994). Garson (2016, p.50) menciona o caso de Prudic et al. (2015), que, procurando determinar a função das manchas semelhantes a olhos espalhadas nas asas de algumas espécies de borboletas, observaram que essas manchas ajudam as borboletas a evitar ataques por predadores a órgãos vitais. Para determinar a função desse traço de algumas borbole-tas, não lançaram mão de nenhuma hipótese sobre a histó-ria evolutiva das manchas, mas apenas o papel causal desempenhado por elas no ambiente presente desses ani-mais. Como Garson (2016, pp. 6-7, pp. 49-50) aponta, po-de-se mostrar que a veracidade desse tipo de atribuição funcional envolve, ainda que de modo implícito, compro-missos ontológicos com etiologias selecionistas subjacentes, responsáveis pelo caráter funcional do traço. A inteligibili-dade de características tais como o contraste com acidentes e seu caráter “normativo” não parece fazer sentido sem se ter esses compromissos.

Em suma, o livro de Garson (2016) é bastante meritó-rio, sob vários aspectos. Um deles é percorrer não apenas um grande espectro de abordagens, mas também de versões diferentes delas, quando o caso, e também de críticas que foram articuladas a cada uma delas. Fá-lo tipicamente de maneira opinada, tomando posicionamentos nesses emba-tes teóricos, mas sem comprometer a qualidade expositiva. Garson defende uma versão da teoria etiológico-selecionista das funções, que abrange processos de seleção além da sele-ção natural de maneira mais adequada do que formulações como as de Millikan e Neander. Segundo o autor, há pro-cessos de seleção que envolvem retenção sem ser em termos de cópia e reprodução. A retenção, em alguns desses pro-cessos, como é o caso da aprendizagem operante, deve ser pensada simplesmente como persistência diferencial. Essa ideia já estava no ar previamente, mas Garson tem o mérito de fazê-lo de modo explícito e sistemático, aliado a uma de-fesa minuciosa da abordagem.

Ao adotar os desideratos (a)-(c) para avaliar as outras te-orias das funções e defender a sua, Garson parece suben-tender uma adoção, pelo menos parcial, do chamado projeto de análise conceitual das funções, ainda que declare neutralidade a respeito. Ademais, há no livro certa tensão entre a adoção desses desideratos e sua colocação de que uma boa teoria das funções tem necessariamente de har-monizar-se com os usos reais do conceito em biologia; posto que aqueles podem conflitar com estes, e Garson não pare-ce oferecer uma solução ao problema. Apesar disso, o livro, a nosso ver, mostra-se uma revisão e um balanço crítico muito valiosos da literatura filosófica sobre funções biológi-cas.

Referências

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Felipe Lazzeri – Professor Adjunto na Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, GO, Brasil. E-mail: [email protected]

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Sublimação e unheimliche – PARENTE (Ph)

PARENTE, Alessandra. Sublimação e unheimliche. São Paulo: Pearson, 2017. Resenha de: SILVEIRA, Léa. A mulher entre o ouro e a carne. Philósophos, Goiânia, v. 23, n. 2, p.-91-104, jul./dez., 2018.

Il crut que dans son corps elle avait um trésor.

La Fontaine

A questão das neuroses condensou-se para Freud, como sabemos, em torno de um problema específico de defesa psíquica que ele, a certa altura, nomeou Verdrängung (recalque) e que cedo o conduziu ao enfrentamento teórico do modo pelo qual tal defesa se relacionava à cultura: suas exigências, suas condições psíquicas, sua existência mesma. Por que motivos, afinal, um indivíduo vem a rejeitar aquilo que ele próprio deseja? Eis algo que Freud, por mais que tivesse se identificado com os valores burgueses da Viena finde-siècle, não tomou por dado. Nem sequer, a meu ver, por um dado de sua época. Pelo contrário, ele perseguiu tal problema a partir dos mais diversos ângulos e fez disso o pensamento de uma vida. É assim que, para mencionar apenas um exemplo, ao relatar o caso Dora, ele expressa seu pasmo muito exatamente diante de um não reconhecimento da sexualidade. E escreve, nesse sentido:

Toda pessoa que, numa ocasião para a excitação sexual, tem sobre-tudo ou exclusivamente sensações desprazerosas, eu não hesitaria em considerar histérica, seja ela capaz de produzir sintomas somáticos ou não. Explicar o mecanismo dessa inversão de afeto é uma das tarefas mais importantes – e, ao mesmo tempo, mais difíceis – da psicologia da neurose (FREUD, 1905[1901]/2016, p.201).

Decerto, com Dora e os “Kas”1 temos também o problema da cegueira (ou surdez) possível do analista, mobilizada já como problema clássico na história das ideias psicanalíticas relacionadas à transferência, uma vez que Freud teria falhado em perceber o endereçamento do desejo de Dora. Lacan (1952[1951]/1998) vê isso em uma peculiaridade do momento em que a moça parece rejeitar o Sr. K. Trata-se do momento em que Dora entende que o Sr. K. não tinha acesso ao gozo da Sra. K., ao gozo do corpo daquela mulher. Lacan explora, com isso, o vislumbre do final do relato do caso, que ocorre a Freud só-depois: quanto mais o tempo passava, mais Freud se convencia de que o erro técnico, a partir do qual Dora rompera bruscamente o tratamento, consistiu em não pontuar o investimento erótico homossexual da moça na Sra. K2. É certamente em função dessa cegueira que Freud atribui a Dora, na interpretação de seus sintomas, “correntes afetivas masculinas” (p. 245). Mas, em qualquer caso, isso não dissipa o fato de que a pergunta de Freud, aquela com a qual ele se espanta, é: não seria de se esperar que uma mulher, ao desejar, assumisse o seu desejo enquanto tal? Se isso não acontece, conclui, é preciso tomar o fato na condição de enigma, pois ele não pede menos do que isso.  Se a cultura representa um campo importante no sentido de fornecer motivações para a rejeição do desejo, uma reflexão sobre ela é, então, inescapável para Freud. Tal reflexão terá desdobramentos sem os quais dificilmente poderíamos ter alguma expectativa de fazer uma leitura de nosso próprio tempo. Ela não será, no entanto, de modo algum suficiente para se pensar o que é o recalque. Não é raro vermos o leitor que se restringe a O mal-estar na cultura desencaminhar-se nesse sentido. Mas o que eu gostaria de destacar, tendo em vista meu propósito nessa resenha, é o fato de que essa reflexão – necessária e, para Freud, insuficiente – é marcada, de uma maneira fundante, por uma ambiguidade. Para mim, quando se trata de dizer isso, há uma passagem que se destaca como nenhuma outra. Está em A moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno, primeiro texto que Freud dedica diretamente ao problema do antagonismo entre cultura e indivíduo. Poder-se-ia defender que um dos movimentos importantes que têm lugar entre esse texto e o do Mal-estar… é aquele que corresponde a uma estruturalização de tal antagonismo. Lá, o adoecimento cobrado pela cultura é destacado sobretudo como algo que caracterizaria a Europa da transição do XIX para o XX; aqui, tornar-se-á correlato de todas as suas formas. De todo modo, é no texto de 1908 que lemos:

A experiência ensina que há, para a maioria das pessoas, um limite, além do qual sua constituição não pode acompanhar as exigências da civilização. Todas as que querem ser mais nobres do que sua constituição lhes permite sucumbem à neurose; elas estariam melhores se lhes fosse possível ser piores (FREUD, 1908/2015, p.373-4).

Isso se desenha assim para Freud especialmente porque a construção da cultura envolve um investimento de energia psíquica subtraído das perversões constitutivas do ser humano, sendo este um argumento que resultará na célebre formulação de que a neurose é o negativo da perversão.  Assim, apesar de por vezes Freud situar a arte como um caminho de reconciliação com os sacrifícios exigidos pela cultura3, qualquer estudo sobre o tema em sua teoria deve estar advertido de que sua reflexão sobre a estética não poderia deixar de reverberar essa ambiguidade. Se por um lado, o resultado do processo sublimatório consiste, diz Freud, em alcançar metas valorizadas socialmente, por outro lado o que ele mobiliza, como formação do inconsciente, é, de saída, potencialmente subversivo na medida em que aquilo que o caracteriza são as tendências de oposição à cultura. A sublimação corresponde a um destino pulsional que precisa trabalhar contra a pulsão; ou, dito de outro modo, corresponde a um trabalho da pulsão contra si mesma.

A ambiguidade que Freud enxerga, talvez a despeito de seu próprio desejo, na realização estética, na medida em que ela é também uma tensão constitutiva da cultura, é um problema que atravessa todo o livro Sublimação e Unheimliche, de Alessandra Parente. Assim, a autora escreve, na introdução, sobre o caráter paradoxal da sublimação: “[…] o conteúdo que emerge do inconsciente, servindo como matéria essencial para a criação, não pode mostrar sua natural face subversiva, a menos que seja amainada por ornamentos ou superfícies formais que reiteram o estado vigente das coisas” (PARENTE, 2017, p.38).  O livro toma para si a tarefa de explorar aspectos sociais e históricos presentes no período de elaboração da teoria freudiana, de modo que a autora pretende expor não apenas a maneira como Freud concebia a cultura, mas a maneira como concebia a forma assumida pela cultura na época em que viveu e que viu nascer a nova disciplina. Ela se compromete, então, com a investigação das implicações psíquicas, sociais e políticas de tais concepções. À luz dessa chave, a primeira parte do livro mostra o modo pelo qual o modelo político-cultural do Império Austro-Húngaro aparece no conceito de sublimação. A. Parente defende que aparece nesse conceito freudiano um patriarcalismo que não teria percebido seu próprio fim, fim este que teria sido gestado pela Reforma Protestante e pela Revolução Francesa. O término não elaborado dessa ordem patriarcal, cujo representante paradigmático teria sido Francisco José I, teria promovido como resultado o surgimento de um espírito melancólico.  No sentido psicanalítico, a melancolia, assim defende Freud, está relacionada a uma situação em que o Eu perde o objeto amado e não reconhece essa perda, introjetando o objeto e, consequentemente, deixando de fazer o trabalho de luto que se sucederia. Além disso, o não reconhecimento da perda seria disparado por uma culpa relacionada ao fato de o sujeito direcionar ao objeto um sentimento de ódio ou o desejo de matá-lo. Em virtude dessa ausência de reconhecimento, a hostilidade que se voltaria para o objeto inflete-se agora, na melancolia, para o próprio Eu que se regozija tanto com a manutenção do objeto quanto com sua própria punição. “A sombra do objeto caiu sobre o Eu” (FREUD, 1917/2011, p.61) foi a bela formulação que Freud encontrou, em Luto e melancolia, para esse estado de coisas. Do ponto de vista econômico (no sentido da metapsicologia), isso corresponde a uma inflação do Eu, já que lhe torna mais difícil realizar investimentos de libido em outros objetos. Essa hipertrofia do Eu, sustenta agora A. Parente, está relacionada com a sublimação.  A referência à melancolia permite à autora proceder a um diagnóstico da cultura da época, em favor do que ela convoca as análises que W. Benjamin fornece dos dramas do Barroco alemão. No Trauerspiel, o traço marcante seria a fragilidade dos soberanos, a exposição do abalo que incidira sobre o poder monárquico. Qual é a reação dos cidadãos do Império Austro-Húngaro diante desse abalo? Eles preferem, diz a autora, alhear-se das discussões políticas e investir em uma “cultura dos sentimentos” que supervaloriza as artes e a beleza. Tudo se passa aqui como se, quanto mais complexas e investidas fossem as percepções dos objetos internos, mais os indivíduos se afastassem do âmbito público. Neste lugar, estaria então localizada a função da sublimação: ela estaria a serviço de dar vazão ao mundo interno sem tocar a questão dos problemas públicos. Isso corresponde, por óbvio, a uma crítica do conceito freudiano de sublimação, pois, na medida em que consiste em um processo conduzido pelo Eu com o intuito de, simultaneamente, obter reconhecimento social e realizar de modo parcial desejos sexuais e agressivos do artista, ela submete conteúdos que seriam resistentes à civilização a uma adaptação, contribuindo, assim, para a manutenção do “estado vigente das coisas”.  Já com o Unheimliche4, o que se passa seria algo bem diferente porque sua expressão pelo artista trabalharia o conteúdo do trauma sem integrá-lo, afastando-se de valores que são reconhecidos pela sociedade de maneira não crítica e não problemática. O encaminhamento da reflexão estética na direção dessa noção teria, por esse motivo, desalojado Freud do lugar de um liberalismo conservador.  Para A. Parente, a condição cultural que tem lugar com a Primeira Grande Guerra reflete-se no encaminhamento do pensamento de Freud, que então sofreria uma alteração significativa. Após a Guerra ele retoma sua teoria do trauma, elabora o conceito de pulsão de morte e escreve Das Unheimliche. Por esse motivo, a autora declara que seu segundo objetivo no livro é mostrar a importância desse acontecimento para a reconfiguração da teoria freudiana da cultura, o que significaria que essa reconfiguração alcançaria também o conceito de sublimação que Freud mobilizava até então. Nesse período, ele teria reconhecido limites em tal conceito, tendo sido por isso que: 1- não publicou o artigo metapsicológico que teria escrito sobre a sublimação e 2- escreveu o texto O inquietante. Isso faria parte de um cenário em que a condição psíquica prevalecente deixa de ser a melancolia e passa a ser o pânico.

Como órfãos de uma cultura perdida”, escreve a autora, “os homens que vagavam melancolicamente pela vida finalmente são obrigados a olhar para o vazio deixado após a guerra e para sua condição de desamparo. Juntando migalhas, tecem narrativas desconexas, potentes e vigorosas. Ao contrário do verniz que encerava o processo sublimatório, é possível ver uma inconsistência e uma precariedade mais fiéis à seiva inconsciente (p. 40).

A tese central do livro precisa então ser assinalada ao redor disso: há uma inflexão relevante entre a sublimação e o Unheimliche na teorização que Freud dedica à arte. Eles seriam dois processos de simbolização distintos e o entendimento da transição entre ambos precisa ser referido à repercussão que a Primeira Grande Guerra teria tido no pensamento freudiano. Tal chave dará ensejo a diversas incursões por obras artísticas e, especialmente, a autora recupera essa tensão entre o destaque conferido ao ouro na pintura de G. Klimt e a exposição crua da carne na de E. Schiele. Suas obras podem ser vistas como signos de uma amplitude de contexto cultural que, segundo A. Parente, ecoa na argumentação que Freud tece entre esses dois períodos cuja separação teria sido marcada com a Grande Guerra. A passagem entre o mestre e o discípulo – isto é: entre Klimt e Schiele – sinaliza uma ruptura da nudez para com a extravagância dourada e permite perceber a queda do véu da ornamentação, conduzindo decisivamente a obra de arte à exploração do Unheimliche, o que corresponderia a uma potência mais ampla de deslocamento e disrupção relativamente à ordem social estabelecida.  Há muitos percursos possíveis para a leitura desse livro tão rico. Porém, em torno de sua tese central, A. Parente não entrega o ouro fácil. Ela exige bastante de sua leitora porque a costura da argumentação precisa ser feita constantemente. Nossos fios de coser são convidados a passear pelas duas partes constitutivas do livro, demarcadas entre si a partir dos dois momentos identificados na reflexão estética de Freud, e que acabam de ser assinalados aqui. Em torno do primeiro momento – ou seja, da primeira parte do livro –, temos sete capítulos que elaboram sucessivamente os seguintes recortes: o teatro na Viena finse-siècle, a relação entre modernidade e melancolia, o declínio da imagem do pai, o feminino na obra de Klimt, a abordagem romântica da sublimação, a relação entre Freud e Goethe, o estatuto da escrita freudiana. Já na segunda parte do livro, nos deparamos com cinco outros capítulos, sendo que o primeiro deles situa a obra de Freud diante de sua desilusão com a guerra, o segundo aborda a articulação entre o sentimento de pânico e a condição de desamparo, o terceiro investiga a figura do Unheimliche na obra de E. T. A. Hoffmann, o quarto fornece uma leitura da produção de E. Schiele e o último retorna ao Édipo mediante a referência a H. von Hofmannsthal.  Diante das etapas assim desenhadas, podemos levantar algumas questões. Por exemplo: como podemos identificar em Klimt o modelo sublimatório nos termos propostos (p. 179) e ao mesmo tempo reconhecer em sua obra um profundo questionamento do poder patriarcal (p. 180)? Isso não seria prova de que a sublimação pode trazer resultados que ultrapassam a expectativa da aceitação social? Quando se diz que a Guerra imprime também uma mudança no próprio estilo de Freud, que análise concreta seria possível fazer desse estilo? Como o esforço de referir a teoria psicanalítica à história de seu tempo, especialmente mediante o estudo das obras de arte selecionadas, permitiria avançar a sua compreensão e o modo pelo qual ela dispõe seus conceitos? Chegamos, ao final do livro, no contexto de uma discussão sobre a peça A torre, de Hofmannstahl, a um comentário de Totem e tabu que está longe de ser trivial. Mas, dali, olhamos para um certo abismo, desamparados em busca de “considerações finais” que estivessem a serviço de dizer que um certo itinerário se encerrava ali de um certo modo, ainda que abrisse atalhos para tantas outras coisas. É especialmente importante ficar atenta ao fato de que a argumentação do livro vai se voltar para o tema do feminino. Uma das pistas mais relevantes nesse sentido, além do destaque dedicado a Klimt e Schiele – e, consequentemente, a essa questão – é a epígrafe do capítulo 3, que traz um pequeno trecho de 1907 das Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena. Nele, lemos muito a  contragosto, para dizer o mínimo, que, “na opinião de Freud, a verdade é que a mulher nada ganha pelo estudo e que, no todo, a sorte delas não há de melhorar com isso. Acresce que as mulheres não podem alcançar a realização do homem na sublimação da sexualidade” (citado por PARENTE, 2017, p.141). Não se pode acusar Freud de ter sido incoerente com esse posicionamento nos textos que publicou durante sua vida. Pois conhecemos bem – nós, suas leitoras – o modo pelo qual ele se esforça por destituir as mulheres das condições ética e estética. Mas, por mais que seja difícil para nós hoje equacionar essas duas coisas, também devemos em larga medida a Freud a construção de um território em que o pensamento feminista se tornou possível. Dívida que começa, é claro, no que concerne à psicanálise, com a coragem das mulheres que ocuparam seu divã. A exemplo de Dora, com quem abri essa resenha, eram sobretudo mulheres que colocavam em cena, ainda que de modo deformado, seu desejo na clínica de Freud durante seu período inicial. Convém lembrar, a esse respeito, as seguintes palavras de J. Mitchell: só podemos entender o significado da obra de Freud

[…] se compreendermos primeiro que eram exatamente as formações psicológicas produzidas dentro das sociedades patriarcais que ele estava revelando e analisando. A oposição à história assimétrica sobre os sexos, proposta por Freud […], pode muito bem ser mais agradável no igualitarismo que ela assume e revela, mas não faz sentido algum para uma defesa mais profunda de que sob o patriarcado as mulheres são oprimidas – uma argumentação que só as análises de Freud podem nos ajudar a compreender (1974/1988, p.7).

Isso significa, dentre tantas coisas, que é ainda urgente rever, comentar, repensar Totem e tabu nessa sua direção fundamental de estabelecer uma equivalência entre cultura e masculinidade e da qual, a meu ver, Lacan não soube se desvencilhar o suficiente. A. Parente acena para essa tarefa ao encerrar seu livro, de modo que a peça de Hofmannstahl dá ensejo a localizar essa pergunta pelo legado do mito freudiano e a marcar, talvez, mais um ponto de tensão entre o território do Unheimliche e o do patriarcado, embora ainda pareça pouco vincular, como faz a autora, a posteridade de Totem e tabu apenas ao tema da insurgência.  A questão da mulher é um dos pontos mais pungentes em que a obra de Freud parece ser refém de seu contexto. Não é o caso de avançar aqui em sua exploração, mas ela força a esta pergunta de base, tão centralizada pelo livro de A. Parente: em que medida a obra reverbera seu contexto histórico, em que medida é independente dele?  No que diz respeito ao segundo dualismo pulsional, não podemos deixar de lembrar a argumentação que L. R. Monzani constrói em Freud: O movimento de um pensamento. Para ele, o conceito de pulsão de morte não pode ter sua inteligibilidade referida à Grande Guerra5, pois tratar-se-ia, com tal conceito, de um elemento presente na obra de Freud desde o início em virtude da própria caracterização da pulsão como alguma coisa que possui a tendência a eliminar a si mesma. Lemos, assim, que “[…] a ideia de uma tendência à inexcitabilidade total e absoluta era um dos ordenadores fundamentais da rede teórica elaborada por Freud, que atravessa toda a sua obra de um extremo ao outro […]” (MONZANI, 1989, p.228). Pensar a pulsão de morte como resposta a um acontecimento histórico seria, assim, para Monzani, perder de vista a lógica interna que guia o movimento do pensamento. No livro de A. Parente as cartas são, a meu ver, claramente apresentadas em um sentido oposto.    Aqui o historicismo é assumido em torno de um pressuposto metodológico articulado com a leitura de W. Benjamim, de cujas teses sobre a história ela destaca a ideia de que a “substância histórica” está presente na estruturação dos conceitos. Tal estratégia envolve, como qualquer estratégia, perdas e ganhos. Que se ganha, espero ter conseguido mostrar um pouco. É preciso acrescentar, todavia, que a autora sinaliza nesse sentido para a aposta de que o resgate da história dos conceitos possui a capacidade de indicar forças que teriam sido abafadas pelas circunstâncias em que foram construídos. Por outro lado, se se defende que conceitos são amplamente tributários do contexto vivido por aquele que os pensou e construiu, então corre-se o risco de não se poder empregá-los sob a pena da óbvia objeção de serem datados. Qual a medida de sua sobrevivência? Por que alguns teriam uma vida para além da situação em que nasceram enquanto outros não? Por que aceitamos, por exemplo, um conceito metapsicológico de inconsciente, enquanto rejeitamos as teses de Freud sobre a inferioridade da mulher? Não são todos – tal conceito e tais teses – situados no mesmo contexto histórico? Se levássemos o ponto até suas últimas consequências, não seria, aparentemente e afinal, nem despropositada nem ingênua a pergunta: que direito tem a psicanálise de ser psicanálise após Freud? Esse tipo de impasse não restou, é claro, desapercebido por A. Parente. A solução encontrada por ela parece ser formulada aproximadamente do seguinte modo: “Conceitos e noções representam ideias que atravessam os tempos, mas só ganham feições nas malhas concretas da história” (PARENTE, 2017, p.51). Mas, se é assim, a pergunta pelo estatuto do Unheimliche não permanece em aberto? Se a noção de inquietante tem na Primeira Grande Guerra sua condição de possibilidade, possuiria ela alguma força para “atravessar os tempos”? O problema poderia também ser organizado de uma maneira não menos necessária por ser aparentemente trivial: por que continuamos a reconhecer que têm lugar processos de sublimação, apesar de a melancolia ter sido atrelada ao período que antecedeu a Primeira Guerra? São questões que, a meu ver, podem, dentre tantas outras, ser construídas com o livro de A. Parente de modo a favorecer o debate e a continuidade da investigação.

Referências

FREUD, Sigmund. (1905[1901]) Análise fragmentária de uma histeria. In:____. Obras completas. Volume 6. (Trad. P. C. de Souza) São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

FREUD, Sigmund. (1908) “A moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno”. In: ____. Obras completas. Volume 8. (Trad. P. C. de Souza) São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. (Trad.: M. Carone). São Paulo: Cosacnaify, 2011.

FREUD, Sigmund. (1927) O futuro de uma ilusão. (Trad.: R. Zwick) Porto Alegre: L&PM, 2012.

LACAN, Jacques. (1952[1951]) Intervenção sobre a transferência. In: ____. Escritos (Trad.: V. Ribeiro). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

MITCHELL, Juliet. (1974) Sobre Freud e a distinção entre os sexos. In: ____. Psicanálise da sexualidade feminina. (Trad.: L. O. C. Lemos). Rio de Janeiro: Campus, 1988.

MONZANI, L. R. Freud: O movimento de um pensamento. Campinas: Editora da Unicamp, 1989.

PARENTE, Alessandra. Sublimação e Unheimliche. São Paulo: Pearson, 2017.

Notas

1 Dora estava envolvida em um enredo que implicava, além de seu próprio pai, duas pessoas casa-das entre si que Freud nomeia “Sra. K” e “Sr. K”.

2 “Quanto maior o tempo que me separa do fim desta análise, mais provável me parece que meu erro técnico consistiu na seguinte omissão: eu não percebi a tempo e não comuniquei à paciente que a mais forte das correntes inconscientes de sua vida psíquica era o impulso amoroso homosse-xual (ginecófilo) relativo à Sra. K” (FREUD op. cit., p.317).

3 Cf., por exemplo, Freud 1927/2012, p.51-2

4 O termo é por vezes traduzido por “inquietante”, outras por “estranho” e ainda por “sinistro” ou por “ominoso”.

5 Cf. nota 38, p.318

Léa Silveira – Professora de Filosofia da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, MG, Brasil.  E-mail: [email protected]

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Susan Stebbing and the language of common sense – CHAPMAN (Ph)

CHAPMAN, S. Susan Stebbing and the language of common sense. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2013. Resenha de: GIAROLO, Kariel Antonio. Philósophos, Goiânia, v. 23, n. 1, p.161-169, jan./jun, 2018.

Lizzie Susan Stebbing (1885-1943) was an important figure in the beginning of the twentieth century, specially in view of her role in the development of analytic philosophy and particularly because she was the first woman Professor of Philosophy in a British university. In Susan Stebbing and the Language of Common Sense, Siobhan Chapman, Professor of English at the University of Liverpool (UK), brings us a de-tailed historical analysis of Stebbing’s life and of her philo-sophical developments. The book, divided into nine chapters, provides a lot of information on Stebbing’s per-sonal, academic and political life as well as on her philo-sophical ideas and commitments. Given that, for a better analysis of the book it is possible to divide it into three main parts: (i) historical importance of Stebbing; (ii) philo-sophical context of her academic life; and (iii) importance of her philosophical conceptions, mainly, the logical-linguistic.

Stebbing was born in 1885 and she was registered in Barnet, in London. About her young life, Chapman (2013, p.10) says that she was a delicate child, suffering from an illness called Menière’s Disease. Her ill health and periods of enforced inactivity continued into her adult life and many times she was unable to work because of this unstable health. In the first years, because she wasn’t strong enough for full-time schooling, she was educated privately at home and afterwards she went to James Allen’s Girl’s School, in London. After finishing high school, she was admitted at Girton College in Cambridge, and she graduated in 1908. Finishing College in Cambridge, she went to King’s Col-lege, London, to take her MA in Moral Science, until 1912.

As a student, Stebbing was influenced by the works of F. H. Bradley, B. Russell, A. F. Whitehead and, mainly, G. E. Moore. In her first philosophical works she shows a great interest in analytical philosophy, specially the relations be-tween natural language and formal logic. Furthermore, at that time she demonstrated a great interest in debates be-tween idealists and realists, and even in her young life she showed an ambitious personality, trying to identify the mis-takes in the two approaches. Her MA’s thesis was entitled Pragmatism and French Voluntarism and already in this initial work she indicates her commitments with the relations be-tween the notions of action, language and the theory of knowledge. Stebbing argued, as explained by Chapman (p. 28), that action and thought, intellect and will cannot be opposed. This is significant because in her mature books, the relations between natural language, formal logic and the purposes of speech are recurrent and a guide to understand her main philosophical conceptions.

According to Chapman (p. 37) during the decade or so following her MA graduation, Stebbing established herself as an important voice in the philosophical discussions in Cambridge and London. She was engaged in debates with the leading philosophic figures in Britain at that time and her work was read and discussed frequently by them. In 1931 she became president of the Mind Association and a few years later of the Aristotelian Society. Due to the in-crease of her reputation and the quality of her work, in the summer of 1933, Susan Stebbing was honoured with a place at the University of London as Professor of Philoso-phy. However, if today a woman being a Professor in a University stands as a normal fact, at that time it was not trivial: Stebbing was the first woman Professor of Philosophy in a University in Great Britain. Women’s rights in the ninetieth and twenti-eth centuries were limited, including the positions in uni-versities. For this reason, Stebbing can be considered as a milestone in the fight for equal rights between men and women. Chapman, in several instances, particularly in the first chapters, calls attention to this event. In Chapter Four (p. 79) she says: “In its historical and cultural context, Stebbing’s appointment as full Professor of Philosophy real-ly was headline news. Women were by now an established presence, although certainly a minority one, in academia, but their place there was hard-won and still controversial”. Unfortunately, as expect, her appointment did not please everyone.

Anyway, Stebbing remained Professor in London until 1938. During this period, she published several books on logic and language. The most important books are A Mod-ern Introduction to Logic (1930, 1933, the first edition was published before the appointment), Philosophy and The Phys-icists (1937), Thinking to some purpose (1939, the most popu-lar of her books), Ideals and Illusions (1941) and A Modern Elementary Logic (1943). In all these, Stebbing focuses on a logical analysis of the natural language and related issues.

The philosophical context of the beginning of twenti-eth century in Britain was predominantly influenced by an-alytical philosophy. The new developments in logic and language arrived in philosophical discussions and the ana-lytic methodology became the common ground for solving classical problems. Frege, Russell, Moore, Carnap, Wittgen-stein and others were the central figures in that time (in logical and analytical context, of course) and their works changed the way in which philosophical questions were considered. The mathematical logic was a development of traditional Aristotelian syllogistic and one of its main goals was to construct a formal language for science that would be able to avoid the errors and imperfections of natural language. The basic idea was that with a perfect formal lan-guage to express thought it would be possible to solve phil-osophical problems, because many of these problems actually originated in our imperfect ordinary language use.

Susan Stebbing’s academic formation was basically ana-lytical and she read and kept direct contact with some of these figures, in particular, Moore and Russell. In A Modern Introduction to Logic, for instance, Stebbing introduces the recent developments in mathematical logic. According to Chapman (p. 50), “Stebbing proceeds to offer her readers an overview both of traditional Aristotelian logic and of re-cent developments, and also to introduce them to some of the current issues in scientific method, including the prob-lems surrounding deduction and induction”. In this sense, Stebbing is located in a transitional moment in the history of logic: before Frege and Russell, logic was equated with the Aristotelian syllogistic; after them mathematical logic became central. Stebbing, despite her acceptance of math-ematical logic, affords space in her books to the traditional logical analysis as well.

Chapman’s Chapter 4 and, mainly, Chapter 5 present a detailed reconstruction of the philosophical context in which Stebbing worked. Chapter 5, Logical Positivism and Philosophy of Language, is an excellent read for everyone who wants to know more about logical positivism, particularly because Wittgenstein (an “associate” of the Vienna Circle) was of great influence in Stebbing’s conceptions and also because the first time that Carnap went to UK was by invi-tation of Stebbing. The relations between Stebbing and the positivists was closer, but also have several philosophical disagreements. According to Chapman (p. 84) in Logical Positivism and Analysis (1933), she sets out what she sees as the main claims of the logical positivism. For her the most attractive characteristic in Wittgenstein and in the logical positivists was “the insistence on analysis as the philoso-pher’s main tool in searching for clarity and unmasking as simply nonsensical some of the questions that philosophers had traditionally posed themselves”. To the Vienna Circle, the analysis of the sentences can show what sentences have meaning and what sentences haven’t. A sentence is mean-ingful only in one of the three following cases: (i) if it is an-alytic, i.e., if this meaning is determined by the language; (ii) if it is a logical or mathematics sentence; or (iii) if it can be, in principle, verified by observation.

Although Stebbing agreed with some of the positivists ideas, she was a critic of other aspects of their philosophical conceptions, in special the conception of analysis. Accord-ing to her, the way in which the positivists perform analysis is problematic. Positivist approaches fail to observe differ-ent kinds of analysis. They consider that all analysis is nec-essarily linguistic analysis. As Chapman explains (p. 85), “for Stebbing, using language to analyse language involves philosophers in an unproductive and circular activity”. Fur-thermore, the purpose of analysis is to clarify existing be-liefs, not justify them. Another point of disagreement with the members of the Vienna Circle was about metaphysics. For them, all metaphysical sentences haven’t cognitive con-tent: metaphysical sentences are unable to fall in any of the three kinds listed before. They are not analytical, not logical and not observable, in principle, by experience. On the other hand, due the influence of Wittgenstein and Ber-trand Russell, Stebbing sustains an atomistic conception of propositions, namely, that there are basic atomic sentences that constitute the world.

The popularity of Stebbing grew in the 1940’s especially because of Thinking to Some Purpose (1939). In this book, she presents a rich analysis of the way that we think and how we can avoid the illogicalities in the speech of other people and in our own. Written at the beginning of the World War II, the book affords space to discuss some “examples taken from the speeches of politicians and from politically loaded newspaper reports and is explicitly aimed at promot-ing a discerning and critical attitude in the electorate” (p. 120). So, the book, focuses, among other things, also in the political context of England when WWII started.

However, the central idea is that we need to make clear our reasoning and a logical analysis of the ordinary speech could show where the mistakes are. The point is very sim-ple: we talk unclearly, because we think unclearly. Then, to talk in a clear way, we need to consider the way that we think. According to Stebbing (1939, p.22), thinking logical-ly (reflexively) is thinking to some purpose. In her own words, “to pursue an aim without considering what its real-izations would involves is stupid”. In this sense, thinking involves asking questions and trying to find answers to these questions. When we think logically, we think rele-vantly to the purpose that initiated the thinking. The pro-cess of reflective thinking consists in pondering upon a set of facts so as to elicit their connections. This process is known as inferring. The various stages in the process are re-lated to the conclusion as the grounds upon which it is based. Stebbing calls these grounds “premises”. In short, ef-fective thinking is directed to an end. Consequently, there is a teleological commitment in all properly reflexive think-ing.

According to Chapman (p. 183), Stebbing was con-cerned in special with the analysis of language primarily as a window to the process of thinking that it expressed. By the language we can determine if this process is logical or oth-erwise. Books like A Modern Introduction to Logic (1930), Thinking to Some Purpose (1939), Ideals and Illusions (1941) and A Modern Elementary Logic (1943) contains some im-portant ideas which became central in subsequent discus-sions in Ordinary Language Philosophy and in Pragmatics. Stebbing’s philosophical motivations were very similar to those of philosophers of the first generation of ordinary language, like J. Austin, H. P. Grice, and Wittgenstein in the Philosophical Investigations.

In the last chapter of the book, Chapter 9, Stebbing, Phi-losophy and Linguistics, Chapman shows us, in a very clear way, the relations between Stebbing’s work and the follow-ing developments in Philosophy of Language and the dis-cussions of language in general. Throughout her work, it is possible to identify several passages when Stebbing sustains positions that only some years later were systematically con-sidered. As Chapman says “her attentiveness to how words, even the most philosophically loaded ones, are used and understood in everyday life inevitably invites comparisons with ordinary language philosophy. Her insistence that analysis must have real examples of language in use, have resonances with some very recent approaches in linguistics, particularly with critical discourse analysis”. Stebbing’s handbooks on logic, A Modern Introduction to Logic and A Modern Elementary Logic, consider both the analysis of mathematic logic as well the ordinary language, the com-mon sense language.

Susan Stebbing and the Language of Common Sense is a book that deserves attention. It is a very interesting book that brings us important information about the develop-ment of analytical philosophy in the beginning of the twen-tieth century in Britain. Chapman organized the book in a chronologically way that helps the reader to understand the development of Stebbing’s ideas. The language and the way in which the philosophical conceptions are presented are quite clear. In special, in my opinion, this book has as a great worth the capacity to find on a nearly forgotten phi-losopher views that are actual. Although today Stebbing is unfamiliar for most philosophical students, in her works we can find very stimulating analysis and views that remain current. Stebbing contributed to the development of logic and philosophy of language, so her writings cannot be dis-regarded. According to Chapman (p. 186) “Stebbing’s work as a whole is best assessed in relation to the various direc-tions taken in the decades that followed her death by the serious study of human language”. Furthermore, her histor-ical figure is symbolic in the pursuit for equal rights be-tween men and women not only in the universities, but in all fields.

Referências

CHAPMAN, S. Susan Stebbing and the Language of Common Sense. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2013.

Kariel Antonio Giarolo – Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil.  E-mail: [email protected]

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Ética e subjetividade – CESCON (Ph)

CESCON, Everaldo (Org). Ética e subjetividade. Petrópolis: Vozes, 2016. Resenha de: DALSOTTO, Lucas Mateus. Philósophos, Goiânia, v. 23, n. 1, p.171-177, jan./jun., 2018.

Para todos aqueles que anseiam aprofundar seus conhecimentos a respeito da fenomenologia e, em especial, da relação desta com a ética, há pouco tempo foi publicado no Brasil um livro de imprescindível leitura, a saber: Ética e Subjetividade, organizado pelo competente e destacado professor Everaldo Cescon (Vozes, 2016, 314 p.). Note-se que a força e relevância do texto não decorrem apenas do fato dele fornecer uma ampla e apropriada abordagem a respeito da fenomenologia e, por conseguinte, de alguns de seus principais teóricos, tais como Edmund Husserl, Emmanuel Levinas, Edith Stein, Michel Henry, entre outros, mas especialmente por chamar a atenção do leitor a temas fenomenológicos que nos permitem falar diretamente da ética. Ainda que a obra resguarde uma homogeneidade no que diz respeito ao estilo e à forma de como cada autor estabelece sua discussão, isto não exclui em nada a riqueza de ca da um dos textos. Em linguagem acessível e com interpretações e análises acuradas, o livro conta com a contribuição de uma vasta gama de reconhecidos especialistas brasileiros e internacionais (i.e., Argentina, Colômbia, Portugal, Espanha e Itália) na área.

Ao considerar que a ética contemporânea desenvolve-se num vazio de sentido, na medida em que as bases ontológicas e metafísicas para a reflexão desta foram removidas, o escopo do presente livro reside em apresentar a fenomenologia como sendo capaz de fornecer princípios para um novo agir. O trabalho de fundamentação de nossas escolhas morais continua sendo um problema fundamental e indispensável no domínio da ética, o qual não se restringe em ser um problema meramente teórico, mas, tanto mais, um problema prático. Assim, é somente reivindicando a exigência do valor e refundando as crenças morais que será possível enfrentar uma sociedade cada vez mais atrelada à necessidade, à instrumentalidade e à utilidade do valor.

A fim de levar a cabo tal proposta, Ética e Subjetividade está dividida em cinco seções, cada uma delas cumprindo uma função especial no objetivo geral da obra. Partindo do processo metodológico de constituição da fenomenologia e perpassando pelo pensamento ético husserliano, as análises dirigem-se às mais variadas abordagens e desenvolvimentos éticos que surgiram a partir dessa corrente teórica. Estas seções são ainda precedidas por uma breve e oportuna introdução, a qual, nas palavras de Cescon, visa apresentar a eminente necessidade de repensarmos a ética no sentido de “permitir ao indivíduo constituir-se enquanto pessoa autor-responsável, livre, solidária e aberta” (p. 9).

Considerando o fato de que Husserl era entendido como um filósofo teórico e que, portanto, a ética sempre foi um dos temas que menos recebeu atenção por parte de seus estudiosos, a primeira seção do texto tem por finalidade principal expor a concepção de racionalidade prática que parece emergir de sua fenomenologia. Neste contexto, são apresentadas duas fases principais da obra husserliana no tocante à reflexão ética, uma de tipo lógico centrada na crítica e na teoria do conhecimento, e outra centrada na subjetividade humana e na noção de dever no sentido da vocação/missão. Na sequência, defende-se que em ambas as fases o objetivo de toda a fundamentação fenomenológica de Husserl foi sempre salvaguardar a objetividade, tanto das proposições teóricas quanto dos valores e das proposições éticas. Então, busca-se analisar o excurso Natur und Geist nas Lições de Ética, de 1920 a 1924, a fim de esclarecer o “âmbito do humano espiritual para, assim, saber ao que exatamente a ética se refere” (p. 68). Por fim, é avaliado se a ética de Husserl obtém sucesso em reivindicar que juízos de valor possuem uma validade que independe das particularidade dos agentes que os emitem e em defender que há alguma coisa como uma obrigação moral absoluta que vincula incondicionalmente a vontade dos agentes à ação.

Diferentemente da primeira seção, onde a reflexão estava centrada na noção de racionalidade prática e de objetividade moral na ética husserliana, a segunda seção visa discutir a questão da subjetividade ética e mostrar a influência de Husserl sobre outros autores. Partindo deste último, inicialmente é mostrado que a intencionalidade da consciência permite aos agentes perceber que os valores lhes são dados do mesmo modo como os objetos da intuição sensível o são e que, desse modo, a esfera afetiva – subjetiva – dos agentes faz parte do âmbito da moralidade. Num segundo momento, busca-se evidenciar a herança de Husserl na antropologia de Edith Stein, especialmente no que diz respeito ao método, uma vez que esta última incorpora integralmente em sua proposta a ideia de epoché daquele. No que se segue, discute-se a transcendência ética em Levinas no sentido de que a razão é incapaz de captar o outro sem reduzi-lo ou objetificá-lo e que, por isso, ela é incapaz de reconhecer a radicalidade do chamado do outro. A resposta a este chamado produz um “transbordamento da intencionalidade” (p. 156), o qual é impossível de ser capturado pela consciência intencional do agente.

Em continuidade à anterior, a terceira seção aborda a questão da subjetividade ética e o problema do corpo a partir da contribuição de alguns autores filiados – de alguma forma – à tradição fenomenológica. Primeiramente, avalia-se a possibilidade de uma fenomenologia da individuação a partir do conceito de encarnação de Michel Henry. O ponto central é que aquilo a que fazemos referência – noema – em nossa experiência intencional, dando-lhe sentido – noesis –, implica, em alguma medida, torná-lo carne, especificamente “carne de minha carne” (p. 164). Em seguida, o pensamento de Michael Henry é apresentado como estando vinculado a um tipo de fenomenologia do corpo – da subjetividade – segundo o qual a ética se dá no cuidado da vida e, nesse caso, na não-instrumentalização do corpo de cada indivíduo. Ao final dessa seção é exposta a posição Nicolai Hartmann, que, pensando a partir da fenomenologia, realizou uma vigorosa crítica à metafísica, tanto antiga quanto moderna, no sentido de chamar atenção à pluralidade e complexidade dos valores que afetam a vida dos agentes.

Na quarta seção, a questão da subjetividade ética ainda permanece no foco das discussões, mas agora atrelada ao problema da ação e sob o viés de outros autores. O ponto de partida de Ética e Subjetividade aqui é mostrar o esforço de Paul Ricouer em conciliar a teleologia aristotélica e a deontologia kantiana e, ao mesmo tempo, eliminar o problema – atinente a ambas as teorias – da exclusão da alteridade e da reciprocidade nas relações interpessoais. Posteriormente, expõe-se a teoria de Xavier Zubiri com vistas a sugerir que a reflexão moral não é uma questão de descobrir a que normas se está obrigado a cumprir, mas, ao contrário, de descobrir quais são as estruturas e características próprias de organização, solidariedade e corporeidade do ser humano. Finalizando a seção, o fenômeno da hospitalidade é analisado como uma forma de agir passivo em que há, nos termos de Levinas, um ‘transbordamento’ – as bordas de um fenômeno transbordado nunca poderão ser evidentes –, o qual, por sua vez, torna a apreciação conceitual uma tarefa delicada e complexa. A impossibilidade de tal apreciação deve converter a hospitalidade numa espécie de transgressão cujo resultado será a acolhida do hóspede, do estrangeiro ou de qualquer um outro.

Na última seção, as análises concentram-se na compreensão da relação existente entre subjetividade pessoal e comunidade ética. Num primeiro momento, o trabalho de Edith Stein é tomado em questão para evidenciar que a realização do ser humano como pessoa reside no encontro deste com o outro no interior de uma comunidade, onde esta comunidade é fonte de força vital e espiritual para os agen-tes na medida em que ela gera um sentido de pertença entre todos eles. A seguir, retorna-se a Husserl para mostrar que, embora a personalidade dos agentes seja regida por normas racionais que se ajustam ao telos próprio de cada um deles, é impossível imaginar que o ideal ético pessoal seja realizável sem abertura aos outros. Por fim, faz-se uma interpretação do fato da irrupção dos pobres – termo cunhado pelo teólogo Gustavo Gutiérrez ao se referir ao crescente número de marginalizados existentes nas grandes e pequenas cidades – na América Latina a partir do conceito de Jean-Luc Marion de fenômeno saturado – fenômeno que ultrapassa todas as significações conceituais e horizontes prévios de compreensão.

Para concluir, é importante chamar atenção para o fato de que, além de muito bem escrito, Ética e Subjetividade oferece uma segura síntese a respeito do atual estado da arte entre fenomenologia e ética. Apesar de toda a complexidade dos temas e análises realizadas nos textos, o livro é de fácil e acessível leitura, mesmo para aqueles que não estão familiarizados com os autores ou com os principais tópicos da discussão. Ainda que alguns temas pareçam carecer de maiores explicitações e, talvez, merecessem até uma exposição mais detida e minuciosa, é possível afirmar que o livro cumpre plenamente sua função, a saber: apresentar a fenomenologia como sendo capaz de fornecer princípios para um novo agir ético. Portanto, Ética e Subjetividade é uma das mais importantes contribuições editoriais no domínio da fenomenologia realizadas no Brasil nos últimos anos e, por conseguinte, é imprescindível sua leitura e discussão nos mais diversos ambientes da academia filosófica de nosso país.

Referências

CESCON, Everaldo (Org.). Ética e subjetividade. Petrópolis: Vozes, 2016.

Lucas Mateus Dalsotto – Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:  [email protected]

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Semantik und Ontologie: drei Studien zu Aristoteles – SEGALERBA (Ph)

SEGALERBA, Gianluigi. Semantik und Ontologie: drei Studien zu Aristoteles. Bern: Peter Lang AG, 2013. Resenha de: CARRARO, Nicola. Philósophos, Goiânia, v. 23, n. 1, p.179-190, jan./jun., 2018.

The book is a collection of three independent exegetical es-says on Aristotle’s theoretical philosophy. The common el-ement that unifies them is the contrast between Aristotle’s own ontology, which Segalerba (S.) qualifies as a “typologi-cal ontology” (“typologische Ontologie”), and Aristotle’s inter-pretation of Plato’s theory of Ideas, which he labels as a “gradualist ontology” (“stufenartige Ontologie”).

As S. declares in the preliminary remark (p. XIII), his focus lies mainly on the theory of Ideas as understood and criticized in Aristotle’s writings, including On Ideas, a lost work on whose content we are indirectly informed thanks to a long digression in Alexander of Aphrodisia’s Commen-tary on Aristotle’s Metaphysics. However, this theory is con-sidered not so much for its intrinsic merits, but mainly to bring into sharper focus Aristotle’s own position on the on-tological status of universals.

According to S., the Platonic theory that postulates the existence of eternal models that exist independently from the perceptible individuals that are their copies can be characterized as “gradualist” because it asserts that percep-tible individuals are to a lesser degree what eternal models are to a higher degree. Thus, the only thing that is perfectly human according to a Platonist is the Idea of “human”, while perceptible individuals like Socrates and Plato are on-ly human to a certain degree. By contrast Aristotle’s ontolo-gy is “typological” since he conceives universals as types of entities of which individuals are instantiations. In S.’s view, he thinks that being a type is incompatible with being an instantiation: therefore, it is incorrect to say that the prop-erty of being a human being is a human being. And while he admits that some types (such as hotness and coldness) can be instantiated to a higher or lower degree, he denies this of the types whose instances are “primary substances”, i.e. concrete individuals like Socrates and Plato. This allows him to claim that the most basic entities are not universals, but rather individual primary substances.

The first essay (“Aspekte der aristotelischen Theorie der zweiten Substanzen als Universalien”) contrasts the typological ontology of Aristotle’s Categories with the gradualist ontolo-gy criticized in On Ideas, and particularly in the section de-voted to the so-called “third-man argument”. S. stresses that Aristotle is committed to the existence of universals. He ar-gues that, contrarily to what some interpreters have con-tended, the difference between Platonic Ideas and Aristotelian universals does not consist exclusively in the fact that Ideas can exist independently from perceptible in-dividuals, but also in the fact that they are conceived as paradigmatic instantiations, while Aristotelian universals are not instantiations of themselves. He goes on to claim that the same ontology is also recognizable in a passage of On Interpretation, and that it lies behind Aristotle’s solution of the third-man argument at Sophistical Refutations 22, 178b36-179a10 and his criticism of Ideas at Metaphys-ics M.9, 1086a31-b16.

In the second essay (“Aspekte der Substanz bei Aristoteles”), S. compares Aristotle’s treatment of substance and univer-sals in the Categories and in the Metaphysics, claiming that, for the most part, his stand on these matters is coherent be-tween the two works. He argues against interpreters who think that, in the central books of the Metaphysics, Aristotle gives up his commitment to the objective existence of uni-versals, or that he abandons the idea that the most basic en-tities are concrete individuals living beings, in favour of an ontology in which forms play the role of basic entities. On the other hand, he individuates some claims that Aristotle makes in the Metaphysics and elsewhere and that are absent (or, at least, not explicit) in the Categories: most notably, the view that the form of each individual substance is a particu-lar, which S. takes to be an implication of some passages in Metaphysics Z, and the view that universals exist only poten-tially unless somebody is thinking about them, which he considers as one of the results of the treatment of thought in On the Soul.

The third essay (Synonymie in der Kategorienschrift gegen Nicht-Homonymie im Argument aus den Bezüglichen) has a more limited scope. For the most part, it consists of an analysis of Aristotle’s description and criticism of the so-called “argument from the relatives” in On Ideas (Alexan-der, Commentary on Aristotle’s Metaphysics, 82,11–83,17). S. argues that the position of the proponent of the argument can be identified with what he calls “gradualist ontology”, and that Aristotle’s rejection of the argument is based on his rejection of a Platonising analysis of the notion of syn-onymy that he replaces with his own account from the Cat-egories.

The three essays are preceded only by a very short pre-liminary remark, which concentrates exclusively on S.’s pol-icy when it comes to dealing with Aristotle’s interpretation of Plato (apart from bibliographical indications on transla-tions and commentaries). Each essay consists of several chapters, many of which are devoted to the analysis of short passages from different works in the Aristotelian corpus: from the Categories to the Metaphysics, and from the Sophisti-cal Refutations to On the Soul. A glance at the preliminary materials might therefore give the impression of a study on Aristotle’s understanding of Plato, or of a miscellaneous work mainly concerned with the solution of local interpre-tative issues. However, these impressions could not be more misleading. S. is not writing history of reception, and (with few exceptions) he is not focusing on details. Rather he aims to solve what might well be the most contentious among the countless exegetical problems that have in-flamed interpreters of Aristotle since Antiquity: his views on universals and the exact reasons for his rejection of Pla-to’s theory of Ideas. The main virtues and the main weak-nesses of the book can all be traced back to this extremely ambitious goal.

A positive feature of the book lies in its focus on Aris-totle’s works and on global exegetical questions concerning his philosophy, rather than on debates in the secondary lit-erature. Many studies on Ancient philosophy have the ten-dency to give too much weight to disputes among other interpreters. At times this can generate artificial questions that have little to do with the texts themselves, but rather arise from the internal dialectic of the debate. S., by con-trast, always concentrates on what Aristotle thinks, rather than on what others think that he thinks. Another virtue of the book lies in its clarity: S. chooses his words carefully, and he is explicit in the definition of the terms that he uses. He also has an appreciable tendency to privilege precision over style, and he does not shy away from reiterating his point one more time when he deems it useful to make his argument more understandable. A special care is given to the translations, which are always elegant and precise. When the text can be constructed in more than one way, this is often indicated and discussed in a footnote.

The most valuable feature of the book, however, lies in the interpretation itself. S. provides a promising counter model to two traditional, diametrically opposed, and prima facie plausible ways to interpret Aristotle’s reaction to Pla-to’s theory of Ideas. According to the first of these readings, Aristotle sees Ideas as universals that can exist independent ly from concrete individuals. This interpretation stresses the continuity between Plato and Aristotle and holds that, in spite of the polemical tones of his criticism of ideas, Aristo-tle agrees with Plato more than he cares to admit: their dis-agreement concerns not so much the existence of Ideas, but rather their metaphysical status as “separate” entities. On the second interpretation, Aristotle rejects Ideas because he does not think that universals exist independently from the human mind, and he adopts a conceptualist stance on uni-versals, while their role as essences of concrete individuals is taken over by particular forms.

S.’s most important move consists in questioning the main premise on which these interpretations are both based: the view that Aristotle regards Plato’s theory of Ideas as a theory of universals. S. claims that, when he argues against Platonists, Aristotle does not aim to either modify or reject an already existing theory of universals, but rather to “introduce” for the first time universals into western phi-losophy. This conclusion is based on the hypothesis that Platonic Ideas (at least as they are understood by Aristotle) are not universals, but rather paradigmatic individuals, which have a certain property to the highest degree, where-as perceptible objects are copies, which have the same property to a lower degree.

According to S., Aristotle criticizes this gradualist on-tology by noticing that the talk of “degrees” is only mean-ingful for certain properties: while an object can be darker than another, it would be meaningless to claim that Tiger instantiates the property of being a cat to a higher degree than Felix. For this reason, he abandons the Platonic view that the primary objects of knowledge should be conceived as ideal models that are copied by perceptible objects, and argues instead that they should be seen as types that are in-stantiated by the particulars. Whereas Plato’s models differ from their copies mainly because of their perfection and eternity, Aristotelian universals differ from their instantia-tions mainly because they have a different logical status: while particulars instantiate universals, universals do not instantiate themselves. Saying that the universal “cat” is a cat would be a category mistake.

One could, of course, question whether this is a fair representation of Plato’s theory of Ideas. S. recognizes this, and is careful to distinguish Aristotle’s representation of the theory of Ideas and the views held by the historical Pla-to, on which he appropriately remains agnostic, given the focus of his study. His goal is not to argue that Aristotle’s understanding of Plato is correct, but rather to show that the opposition between “gradualist” and “typological” on-tology provides the framework that is needed in order to understand what Aristotle thinks of himself as doing when he criticizes Plato and other Platonists.

Establishing whether S.’s interpretation is correct is a task that would go beyond the limits of this review. Howev-er, I find it a clear and appealing reading, which has the merit of explaining both Aristotle’s polemical tone when he argues against Plato and his apparent commitment to the objective existence of universals as a condition for the pos-sibility of thought and knowledge.

While the broad and ambitious scope of S.’s book is what makes it interesting, it also threatens to make it over-whelming and, at times, perplexing in its argumentative strategy, methodology, and structure. One sometimes gets the impression that S. is trying to cover too much ground and that, for this reason, his arguments end up being un-convincing even though his position is interesting and in-trinsically plausible. My criticism will concentrate on the following five points, in decreasing order of importance. 1) S. often does not contextualize passages within the book or work in which they appear. 2) He often fails to adequately discuss possible objections against his interpretations, or to consider evidence for alternative readings. 3) He sometimes omits to highlight and discuss internal tensions in the thought of Aristotle, or in the views that he attributes him. 4) The structure of the book makes for some repetitions. 5) Some sections are inessential to the overall argument.

1) S. takes a global approach to Aristotle’s text. He em-phasizes the continuity between supposedly early works like the Categories and On Interpretation and supposedly mature works like the Metaphysics. He also stresses the affinities be-tween the works that we possess through direct transmis-sion and the information on the lost treatise On Idea that we have thanks to Alexander’s commentary to the Metaphys-ics. What is often absent from the picture, however, is the role of a passage within the argumentative strategy of a work. S. tends to treat passages almost as if they were isolat-ed fragments, without explaining their connection with what precedes or follows them.

This approach is especially questionable when dealing with books whose argumentative structure is intricate and opaque, such as Metaphysics Z. It is notoriously difficult to untangle what the different sections of this treatise are do-ing. In many cases, it is not clear whether Aristotle is argu ing ad hominem against an opponent, raising possible objec-tions against his own position, or giving his considerate opinion on the matter. In S.’s exposition, these distinctions often get blurred, under the assumption that every passage contains Aristotle’s final word on a given issue. By contrast I think that we should at least entertain the possibility that chapters such as Z. 13 (pp. 270–284) are aporetic to a cer-tain extent, and that not all of the premises used in their arguments are unconditionally endorsed by Aristotle.

Another instance in which the lack of contextualization threatens the cogency of S.’s arguments is the analysis of Aristotle’s theory of perception and thinking in On the Soul (pp. 285–310). One of the main upshots of this discussion for S.’s argument is to provide further corroboration for the view that universals have objective existence independently from the human mind (p. 295). S. argues that, since Aristo-tle holds that the intellect thinks by acquiring universals, rather than by creating them itself, these universals must have “an autonomous existence”. It seems to me that Aris-totle’s main concern in the passages analysed by S. is not with the ontological status of universals, but rather with the way in which thinking as a psychological activity takes place. Even a philosopher who is not committed to univer-sals as independently existent entities could agree with the idea that concepts are not freely created by the intellect. The claim that thinking happens in that the intellect is ac-tualised by the universals could just mean that concepts are produced by extracting common elements from repeated experiences, and does not in itself commit Aristotle to uni-versals that exist independently of the mind.

2) I have already mentioned that S.’s focus on Aristotle rather than debates in the secondary literature can be re-garded as a positive feature of the book. However, I also think that he brings this approach too far. While the bibli-ography runs for eleven pages and includes well over 200 ti-tles, S. mentions the overwhelming majority of these works only as further reading. Instances in which he directly voic-es major disagreement with other interpreters are much more limited. The most notable examples are arguably his rejection of Gail Fine’s diagnosis of Aristotle’s criticism of Platonic Ideas (see esp. p. 19)3 and of Michael Frede and Günther Patzig’s4 view that, in Metaphysics Z, Aristotle elim-inates universals from his ontology (see esp. p. 280). Even in these instances, however, S. does not directly engage with his opponents’ arguments, and he rests his case almost ex-clusively on textual support for his own reading. Given the importance that S.’s rejection of these interpretations has for his overall argument, a more thorough discussion would have been advisable.

3 Gail

3) One instance in which S. fails to highlight an inter-nal tension within the view that he attributes to Aristotle concerns the issue of whether forms are universal or partic-ular, which is, of course, one of the central choices that face any scholar that deals with these topics. S.’s answer in ecu-menical but somewhat difficult to grasp. He thinks that, for Aristotle, forms are both universal and particular. On the one hand, he holds that the essence of an individual can only be universal (p. 282), since it is not a concrete entity, but a “biological program” that can be instantiated in sev eral individuals. On the other hand, he believes that each instantiation of this biological program is a particular (p. 275). At the same time, S. also attributes to Aristotle the be-lief that not only concrete individuals like Socrates, but also their essences must be particulars (pp. 274–275): “Socra-tes’s essence cannot be common to other people, because it already constitutes a concrete instance of the essence taken generally” (p. 275).

To me, this answer sounds arbitrary: once we allow universal forms into our ontology, I do not see a compel-ling reason to identify the essence of Socrates with a partic-ular rather than with the universal form: why not simply say that Socrates’s essence is the “biological program” that he has in common with Plato, etc.? And why identify instantia-tions of this biological program with individual forms ra-ther than with the concrete individuals (Socrates, Plato, etc.) themselves? I should stress that I am not necessarily criticizing S. for attributing to Aristotle this position: after all Aristotle can, at times, hold strange views. Rather, I am saying that the position itself is rather weak. It seems to me that, if S. is correct in arguing that Aristotle is defending this theory, he has the responsibility of either acknowledg-ing its awkwardness, or proposing some strategy to fix it.

4) As already mentioned, the book tends to support a single theory, but it is formally constituted by three inde-pendent essays. At times, this can produce some repeti-tions. For instance, the two analyses of the meaning of “substance” in the Categories (pp. 24–41 and pp. 124–189) contain many common elements, such as the claim that secondary substances work both as classes of individuals and as features that are common to many individuals, the claim that the Categories are at least in part a response to Platonic ontology, or the contrast between Aristotle’s own ontology in the Categories and the one he criticizes in On Ideas. These redundancies represent a disturbance to the general flow of the argument, and the readability of the book would have been improved had the three essays been unified into a single monograph.

5) Occasionally, the book also contains some superflu-ous material. The most evident example is the chapter de-voted to Aristotle’s views on immaterial substances in Metaphysics Λ (pp. 311–318). It is not hard to see why S. deems it appropriate to discuss this topic: after all, Plato’s Ideas are immaterial entities, and it might therefore be im-portant to stress that Aristotle’s rejection of them does not translate into an overall ban on immaterial entities. How-ever, this chapter is too short to provide an original contri-bution on such a heavily studied topic, and its relevance to the economy of S.’s argument is far from obvious.

In conclusion, the book offers a clear, ambitious, and convincing interpretation of a central point of Aristotle’s philosophy. However, it would have highly benefitted if S. had selected a narrower corpus of texts, paid more atten-tion to the context of the passages that he analyses, and en-gaged more thoroughly with his opponents’ arguments.

Notas

1 Gail Fine, Aristotle’s Criticism of Plato’s Theory of Forms, Oxford: Clarendon Press, 1993.

2 Michael Frede, and Günther Patzig, eds., Aristoteles: Metaphysik Z, München: Beck, 1988

Referências

SEGALERBA, Gianluigi. Semantik und Ontologie: drei Studien zu Aristoteles. Bern: Peter Lang AG, 2013.

Nicola Carraro – UNICAMP. The research for this paper was financed thanks to a FAPESP postdoctoral fellowship at Unicamp and a Junior Thyssen Fellowship at the Central European University in Budapest. Nicola Carraro obtained a PhD from the University of Munich in Germany, and held teaching and re-search positions in Germany, the US, France, Brazil, and Hungary. He has published on Aristo-tle’s conception of the soul and on his reception of Presocratic thinkers. His main research interests are Aristotle’s metaphysics, his conception of nature, and his philosophy of biology. E-mail: [email protected]

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Gênese e estrutura da antropologia de Kant – FOUCAULT (Ph)

FOUCAULT, Michel. Gênese e estrutura da antropologia de Kant. São Paulo: Edições Loyola, 2011.Resenha de: SOLER, Rodrigo Diaz de Vivar y. Foucault e antropologia Kantiana: morte do homem e analítica da finitude. Philósophos, Goiânia, v. 22, n. 1, p.265-273, jan./jun., 2017.

A construção de um ensaio intitulado Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant (FOUCAULT, 2011) seguido da tradução de Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático (KANT, 2006) constitui a tese complementar escrita por Foucault em paralelo com a sua consagrada leitura sobre a história da loucura. Texto menor, sem sombra de dúvida, porém de extrema relevância já que é nele que podemos encontrar todo um conjunto de problematizações que se farão presentes em outros momentos de sua trajetória intelectual.1 Em linhas gerais, pode-se afirmar que o projeto longitudinal dessa interpretação, por parte de Foucault (2011) consiste em demarcar como todo pensamento moderno, desde o século XVIII, encontra-se assombrado pelo espectro da antropologia, uma vez que, para Foucault (2011) a emergência da crítica como categoria fundamental do pensamento opera como uma espécie de emblema de passagem do sujeito do cogito em Descartes para a complexa maquinaria do duplo empírico-transcendental.

Entretanto, antes que se prossiga é necessário nos perguntarmos: quais seriam as condições de possibilidade responsáveis por fazer da antropologia o grande sistema epistemológico de nossa modernidade? Inicialmente é necessário afirmar que a antropologia corresponde a toda categoria de pensamento que procura responder a infame pergunta: o que é o homem? Questionamento este que recebera um tratamento crítico desde a publicação de As Palavras e as Coisas até A Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 2006, 2007) no que se refere a uma problematização sobre o homem como categoria fundamental dos saberes modernos. Mas, é necessário ressaltar que, correlativo a esse projeto, encontra-se a tese de Foucault (2011) de que no horizonte prescrito pela antropologia kantiana vislumbra-se a analítica da finitude como ferramenta para se pensar o tempo presente.

Logo nas primeiras páginas de Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant Foucault (2011) constrói duas problematizações imprescindíveis a esse respeito. A primeira consiste na denúncia de que toda racionalidade ocidental encontra-se atrelada aos problemas desenvolvidos por Kant. A segunda refere-se a imagem concreta do homem como categoria inventada. Habituamo-nos a compreender que foram os homens que criaram o pensamento científico.

A leitura foucaultiana acaba por indicar que foi a ciência quem criou o homem baseada nas contribuições elaboradas por Kant, lançando em torno dessa figura uma série de discursividades que remontam à emergência da modernidade. Para Foucault (2011, p.36)

A Antropologia é pragmática no sentido de que não vê o homem enquanto pertencente à cidade moral dos espíritos (ela seria chamada de prática), nem à sociedade civil dos sujeitos de direito (ela seria então jurídica); considera-o “cidadão do mundo”, isto é, pertencente ao domínio universal concreto, no qual o sujeito de direito, determinado pelas regras jurídicas e submetidos a elas, é ao mesmo tempo uma pessoa humana que traz, em sua liberdade, a lei moral universal (Foucault 2011, p.36).

Ou seja, a importância da antropologia consiste no fato de que ela consiste em ser um livro prescritivo sobre as bases do problema do agir. Ela não está, portanto, interessada em fixar os limites da experiência ética ou descrever as condições de possibilidade de uma doutrina jurídica e política, mas sim demonstrar quais seriam, precisamente, os motivos pelos quais o homem, na modernidade, age em sua liberdade a partir da aplicabilidade de uma lei universal.

Nesse contexto, é a liberdade do ponto de vista pragmático isto é, as razões que nos levam a agir de acordo com aquilo que a sociedade espera de nós sem perder, contudo, a capacidade de exercer o argumento crítico em relação as nossas ações públicas e privadas. Na realidade, o objetivo de Kant seria o de propor um valor universal mediado pela experiência do pensamento e, o que as convenções sociais compreender como correto a partir da constatação, ou melhor, da formulação do problema de que o homem faz, pode e deve fazer constituir-se como ser livre da ação.

Justamente por conta desses aspectos que Kant (2006) desenvolverá ao longo de toda sua antropologia um conjunto de prescrições práticas sobre as ações humanas como as recomendações elencadas em torno da saúde. Uma saúde que se produz no bom uso da liberdade. Observa-se nesse caso como Kant (2006) enfatiza nesse ensaio não a categorização dos grandes sistemas metafísicos, mas as questões concretas que contribuem para tornar a vida humana possível a partir do exercício de uma ética voltada para as possibilidades manifestadas de maneira empírica. A verdadeira antropologia é aquela responsável por fundamentar um conhecimento prático sobre o homem característica fundamental de toda a modernidade. Na realidade, Foucault (2011) parece se interessar muito em apresentar a antropologia de Kant como uma espécie de correlação entre a ciência da época e sua própria experiência filosófica para fazer emergir uma espécie de estética cotidiana do agir. Não por acaso que Kant (2006) irá considerar o prolongamento da existência como uma arte. Contudo, mesmo a minúcia desse prolongamento não é capaz de garantir a vitória do homem contra a morte sendo necessário ao homem gerir as relações entre a ética do agir e as adversidades experimentadas ao longo da existência.

O que ilustra a antropologia como texto prescritivo e daí a riqueza do pensamento kantiano é que ela inaugura um novo estatuto ontológico baseando sua analítica em torno de uma questão que circula sobre as condições de uma época a qual parece emergir uma compreensão prática sobre o homem e sua finitude através da dimensão técnica do trabalho de compreensão em torno da objetivação do sujeito. Em suma, o problema a ser colocado consiste em pensar: o homem é sujeito de liberdade da ação, mas como se pode defini-lo? Esse problema coloca a antropologia diante de alguns desafios. O primeiro consiste em perceber o conhecimento como algo pragmático já que se faz uso dele de um modo generalizado na nossa sociedade. Embora, isso não significa que ele seja algo utilitário convertido em um universal.

Foucault (2011) designa que esse aspecto responsável pela correlação entre antropologia e conhecimento é a junção do que Kant compreende como Können poder e Sollen – dever a partir do desdobramento das práticas sociais cotidianas.

Mas, isso não significa que Kant (2006) pretenda constituir uma espécie de psicologia. A primeira vista Foucault (2011) trata de deixar claro que os projetos que consolidaram a psicologia como ciência referem-se a um projeto radicalmente diferente do formulado por Kant (2006) na sua antropologia, pois para o filósofo alemão os motivos pelos quais o homem apresenta determinados modelos de conduta aceitáveis seriam aqueles pensados sob o ângulo de certo contexto social. A questão seria a explorar o Gemüt natureza2isto é, a maneira pela qual o homem, por meio de suas experiências, constitui-se a partir de sua relação com o mundo e com as coisas. Percebe-se, portanto, como a antropologia acaba por fixar as bases de que é o labor das ideias que se manifestam no campo da experiência, princípio pelo qual deve-se perceber a analítica kantiana não somente como um pressuposto epistemológico mas sim como uma dialética desdialetizada uma vez que ela destina-se a compreender a experiência no próprio jogo dos fenômenos. Nesse sentido Foucault (2011) inclina-se a pensar Kant deslocando seu campo da filosofia da ciência para relacioná-lo dentro de um contexto mais amplo, no caso, os jogos provenientes dos enunciados e da ordem do discurso.

O fato emblemático é que Foucault (2011) considera a antropologia como superação do próprio empirismo científico uma vez que ela sinaliza o conhecimento como um princípio vivificante. Crítica empreendia por parte de Kant dos próprios limites do empirismo compreendido como uma mera fisiologia. De fato, um dos maiores problemas elencados por Kant (2006) foi o de tentar estabelecer todo um esforço para pensar os contornos de sua antropologia a partir de uma nova relação do conhecimento com o problema da experiência.

Uma vez que a antropologia não deve ser lida como uma mera continuidade das teses presentes na teoria do conhecimento, o que está em questão seria a necessidade de um deslocamento que se manifesta na categoria do homem como objeto de estudo a partir da constatação de que a antropologia do Gemüt dedica-se a pensar a condição de possibilidade da experiência no campo da finitude humana.

Não que o Gemüt não esteja presente no contexto da filosofia crítica, mas especificamente na antropologia essa ideia surge como um desafio a ser superado pelo empírico-transcendental.

Se a antropologia inaugura a questão moderna sobre o que é homem já não se trata mais de uma questão que deve ser sustentada somente pela perspectiva do ceticismo filosófico dirigido pelo tribunal orquestrado pela filosofia crítica, mas pelos contornos os quais toda forma de conhecer está inegavelmente sujeita desde a metafísica, até a moral, desde a própria política até a religião. Em torno dessa questão que todo o pensamento moderno encontra-se delimitado.

Foucault (2011) parece interessado em nos mostrar como toda episteme está imersa na antropologia kantiana não conseguindo desvencilhar-se dessa conjetura, por mais radical que posam parecer suas argumentações. Ao propor os limites e as possibilidades do que é o homem, a antropologia acaba constatando que essa figura pode apenas conhecer o fenômeno, ou seja, aquilo que se apresenta sem apreender a coisa em si. Esse modo de pensar se traduz na possibilidade de se perceber quão problemática se torna a analise sobre a questão da conduta humana. Ao tentar solucionar tal problema, a episteme moderna limita-se a descrever características limitadoras mediadas pelos fenômenos aparentes de suas ações e predicados. Por isso, jamais poder-se-á afirmar algo sobre a natureza humana descontextualizada das práticas culturais, históricas e sociais. Contudo, isso não quer dizer que não se possa caracterizar as ações do homem.

Existe nesse conjunto de constatações lançado pela antropologia a estreita relação entre verdade e liberdade. Tal problema é trabalhado por Kant, segundo Foucault (2011), no Opus Postumum: a tripartição entre Deus, o mundo e o homem. Foucault (2011) nos lembra que, para Kant, Deus configura-se como persönlichkeit a personalidade responsável por representar a liberdade em relação ao homem e ao mundo, a própria fonte absoluta. Já o mundo seria o todo, a potência da experiência que se apresenta como extensão do inoperável enquanto que, o homem apresenta-se como síntese dupla, ao mesmo tempo que se configura como aquilo que se unifica em Deus e no mundo, não sendo mais do que um de seus habitantes e um ser limitado em relação a Deus. Abre-se nessa perspectiva o fundamento da ação antropológica cujo efeito seria o de perceber a relação entre verdade e liberdade como um processo de finitude.

Nesse sentido, a interpretação foucaultiana de Kant está inscrita na tentativa de se desdobrar os limites dessa finitude a partir da problematização sobre a modernidade como idade do homem. Conforme aponta Foucault (2011), a maioria dos sistemas de pensamento que julgavam ter ultrapassado a sabedoria do grande chinês de Konninsberg não souberam, delimitar com acuidade o fato de que não se encontravam as voltas com novos problemas, mas simplesmente lidavam com as questões de filiação e de fidedignidade ao pensamento kantiano. Resta, compreender o olhar sobre a filosofia pelos critérios da intempestividade de Nietzsche. Uma empresa de coragem que ousa associar o filosofar a golpes de martelo em torno de problemas delicados sobre os quais nossa modernidade foi fundada. Se ao homem não lhe é facultado o direito de conhecer sobre sua natureza, a filosofia de Nietzsche nos mostrará, segundo argumenta Foucault (2011) que o homem não passa de uma invenção risível dentro do contexto dos grandes sistemas de enunciado, uma invenção que encontra- se em vias de desaparecimento como um rosto desenhado na orla do mar.

Referências

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

____. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

____. Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant. São Paulo: Edições Loyola, 2011.

____. Foucault. In: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos V: ética sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, pp. 228-233.

KANT, Immanuel. Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006.

Notas

1 Em muitas análises do pensamento foucaultiano são reconhecidas as influências de Kant em temas relacionados à morte do homem, a ontologia histórica de nós mesmos e a problemática sobre o apriori histórico. O próprio Foucault reconheceu, sob o pseudônimo de Maurice Florence a, é certamente na tradição crítica de Kant, e seria possível nomear sua obra História Crítica do Pensamento. Ver mais detalhes em: FOUCAULT (2014, p.228).

2 Embora tenhamos traduzido a palavra Gemüt como natureza cumpre ressaltar que podemos encontrar na língua alemã outros significados igualmente relevantes como alma, mente e até mesmo sensibilidade.

Rodrigo Diaz de Vivar y Soler – Doutorando em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS, Brasil. Professor do Centro Universitário Estácio Santa Catarina e do UNIBAVE. E-mail: [email protected]

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O socialismo utópico – BUBER (Ph)

BUBER, Martin. O socialismo utópico. São Paulo: perspectiva, 2007.Resenha de: CARVALHO, José Mauricio de. Philósophos, Goiânia, v. 22, n.1, p.249-264, jan./jun., 2017.

O livro, elaborado em doze capítulos, começa examinando o legado intelectual daqueles pensadores que os marxistas chamavam de socialistas utópicos. Seguem-se as análises das propostas de Gustav Landauer, Karl Marx e Vladimir Ilitch Lênin para a reforma da sociedade. Nos antepenúltimo e penúltimo capítulos Buber comentou a criação do Estado de Israel e as dificuldades do seu tempo. No último capítulo o autor exporá sistematicamente as próprias ideias sobre os mecanismos de mudança na sociedade e a forma de socialismo que lhe parece mais adequada. Então criticará os rumos históricos do socialismo marxista, contrapondo a experiência soviética à que estava se realizando na terra de Israel.

No capítulo inicial, o autor considera as razões pelas quais os marxistas denominaram seus predecessores de utópicos. A razão fundamental, esclarece, é que eles queriam a reorganização da sociedade mantendo a mesma sociedade, mesmo sem saber exatamente que sociedade surgiria com a expansão do proletariado. Buber esclarece o essencial da análise marxista (p. 10): “Foi a impossibilidade de compreender e dominar o problema do proletariado que deu azo ao aparecimento desses sistemas, que só poderiam ser imaginários, fantásticos e utópicos e que, no fundo, propunham a abolição de uma diferença de classes que estava apenas começando a processar-se e que, um dia, iria provocar a transformação geral da sociedade”. A crítica a esses socialistas foi desenvolvida especialmente no Manifesto Comunista. Seu autor, o filósofo e sociólogo Karl Marx (1818-1883), pretendia dar tratamento científico à reorganização da sociedade, pois os precursores do socialismo não lhe pareciam conscientes do desenvolvimento e dos problemas da sociedade industrial.

Segue-se o estudo dos chamados socialistas utópicos. O socialismo como proposta teórica, Buber sintetiza, é o anseio pelo justo, (p. 18): “anseio que se experimenta na visão religiosa ou filosófica, como revelação ou ideia e que, por sua essência, não pode se realizar no indivíduo, mas somente na comunidade humana”. E o justo tanto na ordem religiosa – a escatologia teológica ou filosófica, possui um sentido realista, realiza-se na sociedade. Há duas formas de escatologia, explica Buber (p. 21): “uma profética, que faz depender a preparação da redenção […] da força da resolução de todo homem a que se dirija; uma apocalíptica, para a qual o processo de redenção foi fixado desde a eternidade com todos os pormenores, com suas datas e prazos, e para cuja realização os homens servem apenas de instrumento”.

O pensamento escatológico se tornou, depois da Revolução Francesa, uma utopia. Por força da laicidade do pensamento iluminista, a crença ou redenção do homem ficou restrita à construção de uma sociedade justa nascida do esforço humano. Encontrando-se nessa perspectiva moderna e próxima do iluminismo, Marx e seu parceiro Friedrich Engels (1820-1895) explicam que os socialistas utópicos pretendem reorganizar a sociedade valendo-se da razão e dos esforços do homem. Para Buber, enquanto os socialistas chamados utópicos assumiam a escatologia profética, o pensamento de Marx e Engels, tornou-se prevalentemente, mesmo que não exclusivamente, articulador de uma escatologia apocalíptica. Além disso, o marxismo incorporou, mesmo negando que o fizesse, uma fé secreta na utopia, que os marxistas apenas enxergam nos socialistas que os antecederam. Na revisão do sentido dessas formas primeiras de socialismo denominadas utópicas, Buber identifica um esforço de renovação da sociedade pela superação da solidão na alma e pelo máximo de autonomia comunitária.

Essa solidão é própria, ele aponta, de uma sociedade de massas em sentido próximo ao indicado pelo filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955) (p. 25): “a sociedade é amorfa, invertebrada, pobre de estrutura”.

O terceiro capítulo retoma a questão do socialismo utópico e aprofunda as teorias de Claude Henry de Rouvroy, filósofo e Conde de Saint-Simon (1760-1825), François Marie Charles Fourier (1772-1837), filósofo e economista francês e de Robert Owen (1771-1858), reformista social e considerado um dos fundadores do socialismo.

Esses homens esperam ver surgir uma sociedade socialista não no futuro, mas no seu tempo. Os socialistas utópicos, para Buber, poderiam ser agrupados em dois grupos, um que antecede a geração e ao trabalho de Marx e Engels e outro contemporâneo. No primeiro grupo, Buber destaca a contribuição desses três socialistas começando pelo Conde de Saint Simon, defensor de uma sociedade dirigida por industriais e trabalhadores. Saint Simon sabia que uma sociedade que não caminhasse para a unidade, mas permanecesse dividida em duas classes teria sempre uma dirigente e outra dirigida. Por sua vez, Fourier julgava haver descoberto o segredo da associação social e de uma sociedade constituída com base nela, contra a herança da Revolução Francesa que era contrária tanto a associação como ao sindicato. Para Fourier, somente a associação entre as pessoas resolveria os problemas do Estado, pois representa a união dos interesses. Com a organização, os trabalhadores assalariados se transformariam em associados, alcançando um novo patamar de evolução social. Esse pensamento influencia a formação de cooperativas, mas devido à suas limitações, o socialismo utópico somente pode incorporá-lo, superando-o. Uma terceira formulação foi a de Robert Owen para quem uma autêntica comunidade não viria da propriedade comum, (p. 33): “mas de uma igualdade de direitos e facilidades”. Ele pretendia modificar as relações entre governantes e governados. Essa dicotomia permanecerá enquanto o homem estiver separado numa organização social que não favorece relações autênticas. As relações verdadeiras, assim lhe parece, viriam de dentro das comunidades e renovariam as formas de organização social existentes. Temos em síntese, Saint Simon que espera construir uma sociedade unitária para superar a dualidade; Fourier para quem isso somente seria possível em pequenas comunidades que busquem o próprio sustento e Owen que pensa que a mudança deveria ocorrer tanto nas pequenas células como nas grandes, sendo que a justiça na sociedade total somente ocorreria se começasse em suas células menores. Temos assim três formas complementares de socialismo utópico.

Segue-se o capítulo dedicado ao filósofo e economista francês Pierre Joseph Proudhon (1809-1865) para quem o socialismo, avalia Buber, promoveria o desenvolvimento da sociedade no cumprimento do seu destino. Proudhon retomou os princípios essenciais das teorias anteriores e as reconstruiu.

Não assumiu o determinismo hegeliano, mas entendeu que a razão orienta a História para a liberdade, devendo o homem apenas respeitar as leis da História. Ao contrário de Hegel, que concebeu uma dialética triádica da negação da negação ou da síntese dos opostos, Proudhon espera realizar uma síntese de todas as contradições. O problema que enfrenta é que nenhum princípio que pudesse nascer dessa síntese consegue abarcar e explicar toda uma época. No espaço político, Proudhon desconfia de toda centralização, manifestando sua preferência pelos costumes comunais. Como os grupos que formam as nações não são geralmente ouvidos tenta-se escutar os indivíduos, mas é necessário, para fazê-lo, criar um princípio de organização.

O futuro da sociedade depende de se entender o trabalho como financiador da empresa e da sua coletivização.

Desse entendimento depende o futuro dos trabalhadores, trabalharem todos uns para os outros e não todos para o proprietário. Quanto a centralização, política esta devia ser evitada, pois ele não a diferencia do centralismo absolutista.

Então pode-se dizer que Proudhon desejava, como Saint Simon, a reestruturação da sociedade, mas não queria que ela viesse de cima. O problema de suas teses é que elas não explicam se as novas unidades sociais conservariam os princípios geradores das unidades antigas e se seriam suficientes para promover a nova sociedade que ele espera ver surgir.

Depois de Proudhon, Buber examina as teses centrais do geógrafo russo Piotr Kropotkin (1842-1921) que pretende renovar o legado desse último. Kropotkin substitui as antinomias sociais do seu antecessor por uma luta pela existência e colaboração mútua. Quanto a sua ideia de Estado, ele a identifica com a tese centralista e seu enfoque não é a proteção contra o terror generalizado, ou a luta de todos contra todos (Hobbes), mas a proteção que oferece às comunidades que o integram. Sua crítica não é propriamente contra o Estado, mas contra a máquina do Estado centralista moderno. O problema da tese de Kropotkin é que ela não diferencia o Estado prepotente que nasce da máquina centralizadora e o Estado legítimo e necessário, protetor das comunidades que o formam. O certo é que o Estado legítimo tanto convive com a liberdade dos indivíduos como jamais chega a constituir-se definitivamente. De Proudhon, Kropotkin recupera a tese de que a transformação da sociedade somente viria com a Revolução e considera que a Revolução produziu o fenômeno político da centralização, mas não se deu conta que, no âmbito social, a Revolução é um fator desagregador e não de união. E então Buber comenta o que considera o ponto frágil de seu pensamento. Ele tem consciência de que seu projeto não se realizaria dentro de um Estado como o que existia em seu tempo, mas espera promover uma reforma na sociedade que começasse naqueles dias e não num futuro distante.

O capítulo 6 é dedicado ao exame das teses de seu amigo Gustav Landauer (1870-1919). Landauer percebeu que o Estado não é uma instituição que possa ser destruído pela revolução social, pois é (p. 63) “uma situação, uma relação entre os homens, um modo dos homens se conduzirem uns aos outros”. Para destruí-lo seria necessário criar novas formas de relação social que Landauer supõe possa estar no povo. Não se trata de uma categoria nova, mas da reformulação de comunidades que já existem nos Estados. Eis o essencial do seu pensamento (p. 67): “aqui se põe a descoberto a verdadeira relação entre nação e socialismo: a semelhança dos conacionais quanto à maneira de ser, linguagem, patrimônio de tradições, memória de um destino comum, constante predisposição para uma existência comunitária e, tão somente edificando essa existência, é que os povos podem ser reconstituídos”. O grande risco de pretender que as revoluções sociais modifiquem fundamentalmente os Estados é que eles não favorecerão sua própria destruição e as forças revolucionárias serão cooptadas pelas correntes políticas nele presentes. Acompanhando Proudhon e Kropotkin, Landauer entende que os ideais socialistas não podem se limitar ao que foi pensado numa geração.

Comenta Buber (p. 75): “o socialismo é uma criação contínua da comunidade dentro do gênero humano, na medida e na forma em que as condições momentâneas permitam que ele seja desejado e realizado”.

O capítulo seguinte é dedicado ao estudo das propostas cooperativistas. O método marxista que denominou de utópicos aos socialistas que o precederam, classificou as propostas cooperativistas de românticas, ou fora da realidade.

William King (1787-1865) médico inglês espera transformar as instituições sociais, valendo-se dos princípios do cristianismo. Para King, o trabalho é a base da organização social e ele está nas mãos dos trabalhadores. Ao se unirem os trabalhadores poderão adquirir os instrumentos de que necessitam para trabalhar, bem como a terra que necessitam para produzir. E as relações entre os homens nessa nova organização social nasceriam nessas cooperativas que, para King, traduzem a forma autêntica das relações humanas. Essas cooperativas são a base de uma realidade socialista que teria origem (p. 84): “com a criação de pequenas realidades socialistas em constante fusão e expansão”.

Embora essa trajetória não tenha se verificado, as cooperativas, especialmente as de consumo, se espalharam pela Europa. Outro defensor desse modelo de produção foi o francês Benjamin Buchez (1776-1860) que pensou, no seu país, a criação e expansão de cooperativas de produção.

Ele percebeu os riscos inerentes ao modelo cooperativista na medida em que os sócios fundadores podiam contratar empregados e funcionarem como capitalistas. É difícil superar a tentação de contratar pessoas para trabalhar para si. Para evitar esse encaminhamento na organização Buchez sugere medidas corretivas nas cooperativas como a incorporação dos empregados como novos cooperados e a necessidade de anualmente abrir a entidade a novos sócios.

Segue-se a proposta de Karl Marx de renovação social, tema do oitavo capítulo. Buber recorda que o socialismo utópico trabalha com a hipótese de que (p. 104): “uma sociedade profundamente estruturada poderá substituir ao Estado”. Essa seria a sociedade autêntica, formada em parte pelas comunidades já existentes e dentro de uma perspectiva temporal na qual as mudanças seriam as possíveis já naqueles dias. Buber considera que Marx pretende algo próximo aos socialistas utópicos, eliminar o Estado em geral, não apenas o Estado das classes. Se esse propósito era semelhante ao dos socialistas utópicos, Marx, diversamente, espera fazer isso (p. 107): “através de meios políticos, mediante um puro suicídio, por assim dizer, do princípio político”.

Ao propor que o proletariado vencedor do processo revolucionário tomasse conta do espaço político, fica-nos a dúvida de se não surgiria nesse grupo vencedor uma nova divisão social. Sem traçar uma linha clara sobre os limites do poder, o risco desse processo é gerar não uma disputa entre classes, mas entre indivíduos ou grupos. A partir de 1858, Marx começa a duvidar de que uma revolução socialista pudesse ser realizada numa escala mundial e mesmo se triunfaria na Europa. Nesse contexto, aproxima-se da ideia de uma reestruturação da sociedade, ainda que não aderisse a ela completamente. Considera a possibilidade de as cooperativas crescerem superando a ordem capitalista.

Porém, nos revela, no Manifesto Comunista, que essas pequenas experiências socialistas estavam fadadas ao fracasso.

E surge então um problema: como seria possível eliminar imediatamente o poder do Estado, antes mesmo de concluída a revolução se o processo revolucionário é ele mesmo autoritário? Parece a Buber, considerando o que escreve Engels em 1866, que a valorização das cooperativas era um pretexto. As cooperativas teriam, no marxismo, apenas função auxiliar no processo revolucionário. Portanto, o marxismo, conclui Buber, (p. 124): “não se empenhou em dar forma à nova existência social do homem”.

O capítulo nove é dedicado à herança soviética das ideias de Marx e Engels, pela análise das teses de Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924). O caráter utópico dos socialistas antecessores a Marx parece estar em tentarem pensar os rumos do processo revolucionário. Marx nada diz disso. A contradição entre afirmar o princípio político ao invés do social, numa realidade que mantém o sistema político, foi disfarçada, por Lênin, com a tese de que o processo ainda estava em curso. E Lênin admite não saber o que surgiria com a extinção do Estado. Engels defendera a tese de (p.128): “que o Estado desaparecerá em consequência da futura revolução social, porque as funções públicas não serão mais políticas, mas administrativas”. E Lênin passou a falar do fim do Estado, mas ele, como Marx, não sabia como estruturar a sociedade depois da Revolução. Se destruir o Estado era o objetivo, ele não sabia contudo, como e nem quando isso seria possível. Ele explica que se refere aos resíduos burgueses presentes no Estado porque (p. 130): “o Estado, como poder especial de repressão, é indispensável”.

Lênin adota, então, posição oposta à pretendida por Marx e Engels. A partir dessa tese, Lênin e os bolchevistas, consideraram os soviets não órgãos de controle do governo, mas o próprio governo. A evolução do processo revolucionário mostra que Lênin irá apostar na crescente centralização do poder (p. 152): “de centros de produção governamentais e repartições governamentais um mecanismo de instituições de produção e consumo burocraticamente dirigidas e engatadas a uma engrenagem”. De um lado, admitia Lênin, a descentralização das cooperativas e de outro defendia a centralização das decisões, o que é uma incongruência traduzida pela avaliação crítica (p. 153): “quadratura do círculo”.

O capítulo X traz a experiência socialista em Israel. Essa experiência teve sucesso porque a união no novo país se baseou na construção de uma vida comunitária. Isso não se fez sem dificuldades, mas parecia alternativa mais bem sucedida que a experiência soviética. Ele explica (p. 162): “é a colônia cooperativa hebraica da Terra de Israel, com suas diferentes formas”. Apesar das dificuldades seu sucesso se explica: primeiro pela ausência de uma doutrina que a organizasse, sua evolução foi resposta aos problemas da vida real e da necessidade de trabalho dos produtores rurais.

Quando muito houve uma razão espiritual que os aproximou, mas que não afetou o caráter maleável da organização (p. 163): “as doutrinas bíblicas da justiça social”. Segundo: essas associações se formaram no espírito estabelecido no novo país, onde a elite dos precursores (halutzim) pensou o país como uma colônia comunitária. Assim os grupos comunitários não se fechavam em si mesmos, mas eram partes de uma comunidade nacional. Terceiro: a necessidade desses grupos comunitários (p. 164): “não só educasse para a autêntica vida comunitária aqueles que se incorporavam, mas que, também, exercesse uma influência construtiva e estruturadora sobre a periferia da sociedade”.

Embora colônia comunitária exercesse forte poder de atração, suas organizações eram ainda insuficientes para unificar a grande quantidade de pessoas que afluíam para a Terra de Israel. E a chegada desses novos moradores chamou atenção da elite de precursores que os aproximavam do destino comum. Aí se explicita a noção de comunidade autêntica para Buber. Ela (p. 166): “não precisa ser composta de homens que se façam constantemente companhia, deve ser constituída de homens, justamente como companheiros, sejam mutuamente receptivos e bem dispostos. Comunidade autêntica é aquela que, todos os aspectos de sua existência, possui potencialmente, o caráter de comunidade”.

Além do mais, essas pequenas comunidades de produtores possuíam força para resistir às tendências centralizadoras que pretendiam encerrá-las ou dividi-las. O problema foi que com o passar do tempo foi-se perdendo o sentido comunitário e apesar de colônias mais ricas ajudarem as mais pobres, a solidariedade diminuiu. Apesar dessas dificuldades, concluiu Buber, ao lado de Moscou, que é um dos polos do socialismo contemporâneo (p. 171): “atrevo- me a denominar o outro polo de Jerusalém”.

O penúltimo capítulo examina a crise que se estabeleceu depois da Primeira Grande Guerra. Não era a crise de um sistema da vida social, mas de todos e com sérias consequências. Buber escreveu (p. 173): “E, nessa crise, o que está em jogo é a própria existência do homem sobre a terra”.

Sobre o progresso humano, diz que não é uma avenida plana, mas uma marcha entre crises que se sucedem. Em seguida, Buber esclarece que a construção da vida social é a grande marca da presença humana no planeta e que ela, na modernidade, se acomodou ao Estado. O social ficou, pois, na dependência do político. O que fazer para enfrentar essa situação? Para Buber, o perigo a ser enfrentado era (p.177): “um centralismo planetário ilimitado que devore toda comunidade livre. Tudo depende de que o trabalho de cultivo da terra não seja entregue a um princípio político.” Perigo porque, para ele, o propósito da vida humana é a construção de uma comunidade autêntica o que equivale a uma organização (p. 178): “de conteúdo absolutamente comunitário”. Esse projeto não atende a um plano pré-concebido, mas à capacidade de responder aos problemas que a vida trouxer. E aqui se chega ao ponto central de sua tese, mesmo sem haver uma teoria definitiva que contemple o grande projeto de criação de uma comunidade autêntica, ela somente se forma em torno a um núcleo aglutinador. Ele explica a importância desse núcleo (p.180): “A gênese da comunidade só pode ser compreendida, quando se considera que seus membros têm uma relação comum com o centro e que essa relação é superior a todas as demais; o círculo é traçado pelos raios, não pelos pontos periféricos”. Esse centro, para o filósofo, é uma transparência para o divino. Há quem diga que a vida moderna não mais se organizará em torno desse centro, como era no passado. Contudo, contrapõe Buber, consiste nessa articulação entorno ao núcleo aglutinador e nas relações comunitárias menores inseridas em maiores, a melhor estratégia para enfrentar a crise. Ele concluiu (p. 183): “o ponto essencial é que o processo de formação de comunidades persista nas relações das comunidades entre si. Somente uma comunidade de comunidades poderá ser qualificada como ente comunitário”.

O capítulo final aprofunda o problema da subordinação da sociedade ao Estado. A formação de uma sociedade depende (p. 186): “dos homens encontrarem um estado de intervinculação ou que se unam entre si e, assim formando uma união já existente ou a ser fundada, criem uma sociedade”.

Ao olhar a evolução dos grupos humanos, Buber comenta a confusão entre os princípios social e político na antiguidade. No mundo grego, por exemplo, (p. 188): “ainda que nos seja dito, expressamente, que o homem foi criado não apenas para a comunidade política, mas também para a doméstica, ainda assim a polis é a consumação da koinonia (companherismo, participação, compartilhamento).

O mundo romano não ultrapassa essa deficiência de entendimento (p. 189): “para Cícero, não só o Estado é uma sociedade, mas simplesmente, uma societas vivium.” A Idade Média também não melhorou tal compreensão, pois entendeu a comunidade humana inserida numa unidade: Igreja ou Estado universal. O mundo moderno, com a formação do Estado Nacional, principia com a anulação da sociedade. Na formulação de Hobbes (p. 192): “o Estado que alcançou a perfeição eliminará também o último resquício de sociedade. Tal Estado perfeito chegou bem próximo daquele que atualmente denominamos de totalitário”.

A construção de uma ideia de sociedade, à parte do Estado, emerge da Revolução Francesa, mas a sociedade que surge é a burguesa. As tentativas de aprofundar a distinção entre os sistemas social e político podem ser encontradas em Saint Simon e Hegel. Esse último entende faltar, no Estado do seu tempo, o que é necessário para a formação de uma autêntica comunidade (p. 195): “legítima cooperação, solidariedade, auxílio mútuo, camaradagem fiel e entusiasmo ativo”. Essas teorias estiveram no limiar da construção da Sociologia, que somente surgiria com Marx e Lorenz von Stein, mas ambos ao considerarem a nova realidade social, a sociedade burguesa, afastaram-se dos esforços dos seus antecessores. Em Marx, o Estado é um instrumento da classe burguesa em defesa de seus interesses.

Por isso, ele espera substituí-lo por um outro Estado que faça surgir uma sociedade sem classes e depois se dissolva nela. Portanto, o grande problema da Sociologia é encontrar formas de relação entre os princípios social e político.

O que Buber entende necessário para dar efetividade ao propósito humano de construir uma comunidade autêntica é o estabelecimento (p. 197): “de uma sociedade de uma comunidade de povo, que não é composta de indivíduos, mas de sociedades e não, como achava Comte, apenas de famílias”. Esse projeto enfrenta obstáculo no medo que cada povo tem de seus vizinhos. O resultado é que (p. 199): “o princípio político em relação ao social é sempre mais forte”.

Daí que o enfrentamento da crise contemporânea passa pela construção de uma sociedade com relativa autonomia das comunidades locais e regionais. Assim, a maior força da comunidade economicamente e culturalmente produtiva, passa pelo fortalecimento das organizações sociais face ao poder político. Essa é a proposta de Buber para o enfrentamento da crise humana que o socialismo tentou resolver. Este livro esclarece as posições de Buber sobre o socialismo.

Explica porque as soluções socialistas, que foram desqualificadas pelos marxistas como utópicas e românticas, contêm uma melhor compreensão da dicotomia entre o social e o político. Tais propostas também lhe parecem melhor concebidas do que as de Marx e Engels, isto é, propõem a afirmação da Sociedade ante o Estado. Buber rejeita a visão apocalíptica da história, que Marx laicizou em sua teoria da História. Ele ainda procurou dissociar essa visão apocalíptica que enxerga no socialismo marxista da tradição judaica. Para ele, o essencial da tradição judaica é que os caminhos da história, dependem da ação dos homens que, com liberdade, contribuem para os planos de Deus. Nos socialismos denominados utópicos, além do respeito ao empenho pessoal, estão os melhores elementos para tratar a questão social que emerge da sociedade burguesa. Autores como Saint Simon e Fourier não projetam a solução do problema social no futuro, mas o enfrentam no seu tempo, na concretitude do aqui e agora, encaminhamento da questão que lhe parece mais adequada que as propostas do socialismo marxista.

A perspectiva buberiana de existência humana, bastante próxima das posições da fenomenologia existencial explica o essencial da crítica ao marxismo. Suas teses filosóficas estão descritas na sua filosofia do diálogo e especialmente no clássico Eu e Tu. São essas ideias que formam o pano de fundo das reflexões propostas nesse livro. O livro nos coloca também diante do fato de que a construção da Terra de Israel representa uma alternativa de efetivação do socialismo com maiores chances de sucesso do que o socialismo soviético. Assim ele avalia porque esse socialismo encontra- se sustentado na visão de sociedade e fé ensinada pelos profetas judeus. O socialismo, tal como o filósofo vê surgir em Israel, parece-lhe expressar o projeto humano de construir uma comunidade autêntica. As razões que elenca são coerentes a visão de existência da fenomenologia existencial.

Uma tal comunidade tem um centro irradiador que a unifica e é formada de comunidades livres, de pessoas livres, responsáveis pelo destino de suas vidas, que se associam em comunidades maiores igualmente livres. A construção de uma comunidade autêntica é o lado exterior da aspiração ao divino que ultrapassa a existência temporal e são sua forma de reconhecer a transcendência. Ela expressa o propósito de se aproximar de Deus e realizar tal projeto pautado no código mosaico e no reino de justiça anunciado pelos profetas que é a base dos modelos éticos prevalentes no ocidente.

Referências

BUBER, Martin. O socialismo utópico. São Paulo: Perspectiva, 2007.

José Mauricio de Carvalho – Professor do Instituto Presidente Tancredo de Almeida Neves (IPTAN), São João Del Rei, MG, Brasil. E-mail: [email protected]

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Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética – BARROS (Ph)

BARROS, Roberto. Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética. Campinas: Editora Phi, 2016. Resenha de: MACHADO, Bruno Martins. Philósophos, Goiânia, v. 21, n. 2, p.351-359, jul./dez., 2016.

Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética, livro escrito pelo professor Roberto de Almeida Pereira de Barros da Universidade Federal do Pará (UFPA), publicado pela Editora Phi em 2016, é resultado de um rigoroso trabalho interpretativo.

Já na apresentação é possível vislumbrar essa situação, pois o professor Ernani Pinheiro Chaves (UFPA) destaca o nível de aprofundamento da pesquisa que o leitor terá em mãos. Ele ressalta que o trabalho de Roberto Barros alçou um desenvolvimento continuado desde as investigações na graduação, passando pelo mestrado, pelo doutorado e chegando ao seu formato atual, balizado por pesquisas recentes conduzidas na UFPA e em importantes centros da Alemanha.

Composto por uma apresentação, uma introdução, quatro capítulos (I- “A perspectiva trágica”; II- “Filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte”; III- “A fala poética em Assim falava Zaratustra”; IV- “O além-do-homem enquanto ideal estético”) aos quais se seguem as considerações finais, o livro tem o curso de suas divisões sustentado por duas linhas fundamentais. Elas foram extraídas do modo singular como Nietzsche, valendo-se de uma “compreensão valorativa inerente ao pensar” (p.18), empenhou seu “esforço filosófico” (p.18) para destacar o papel da “arte enquanto manifestação vital e antídoto (Heilmittel) contra o desafio apavorante do existir” (p.19).

A primeira linha gira em torno da concepção e consequências colocadas pelo conceito de além-do-homem. A escolha do conceito justifica-se pela sua centralidade tanto no modo como foi apresentado em Assim falava Zaratustra1, quanto na maneira como tomou forma no desenvolvimento da teoria nietzscheana. Para Roberto Barros, o conceito de além-do-homem exerce a função de “princípio atenuante do peso que a percepção e aceitação dos outros ensinamentos [de Zaratustra] trazem consigo” (p.18). No pensamento nietzscheano, a sua função geraria condições para que a gravidade trágica fosse incorporada à existência como uma perspectiva possível, ou seja, o conceito de além-do-homem abriria a possibilidade para que o peso da condição de verdade do conhecimento fosse transformando em um saber sobre a vida, abrindo as portas para uma “alegre ciência” (p.18).

Tais contornos proviriam de um continuado processo de maturação de pensamentos já expostos em O nascimento.da tragédia2. Nesse sentido, emblemáticas são as noções de dionisíaco, arte, tragédia, inspiração, verdade, conhecimento, função da história, vida, ciência. Concebendo, assim, uma espécie de dinamismo conceitual, é possível visualizar os traços que fomentam a segunda linha. Os aspectos extraídos da concepção de arte trágica defendida por Nietzsche em O nascimento seriam ressignificados em Humano, demasiado humano3, chegariam ao ápice em Zaratustra. Livro, este último, em que a arte se liga tanto à composição conceitual, quanto ao formato da obra, resultando em características específicas que lançam a filosofia nietzscheana para além da concepção de neutralidade do conhecimento típica dos modernos. A consequência extraída desse movimento aponta para o fato de que alguns problemas atribuídos à filosofia de Nietzsche, a exemplo de uma suposta falta de coerência lógico e semântica, poderiam ser resolvidos caso se observasse como a arte adquiriu uma posição de destaque no pensamento nietzscheano de maturidade.

Após esse primeiro panorama, proposto a partir das duas linhas citadas acima, é possível enunciar a ligação dos conceitos e das obras de acordo como foi apresentada pelo próprio Roberto Barros, certamente como umas das hipóteses centrais de seu livro: “ que se pressuponha o fato de que o anúncio do ensinamento do além-do-homem no prólogo de Assim falava Zaratustra e antecedendo o pensamento do eterno retorno, possa ser compreendido segundo os princípios utilizados por Nietzsche em seu primeiro livro para descrever os aspectos formadores da tragédia. Desse modo, o além-do-homem poderia ser entendido como ensinamento preparatório ao anúncio da visão dionisíaca do mundo implícita no ensinamento do eterno retorno. Isso pressuposto, o ensinamento do além-do-homem pode ser retomado como a bela imagem apolínea, posta previamente como forma de consolo e meio de suportar o pensamento dionisíaco do eterno retorno do mesmo” (p.136).

Passando a uma apresentação mais direta dos capítulos do livro, no primeiro, “A perspectiva trágica”, o autor evidencia que, ao escrever O nascimento, Nietzsche manteve em seu horizonte a intenção de expor aos seus contemporâneos uma “nova compreensão do verdadeiro conteúdo do sofrimento e da arte trágica dos gregos” (p.36). Seu propósito de mostrar que a compreensão da existência, com todas as suas possíveis desventuras e sofrimentos, poderia ser transfigurada em um “caráter estético afirmativo” (p.36), consistiria no sentido mais proeminente da arte trágica grega. Mas tal leitura só poderia ser efetivada desde que se olhasse para a proveniência dessa construção artística. O resultado foi a concepção da relação entre Apolo e Dionísio.

A interpretação dada por Roberto Barros para a leitura nietzscheana dos impulsos apolíneos e dionisíacos estrutura- se sobre uma percepção singular que servirá de lastro para os outros capítulos. Barros insere Nietzsche em uma tradição interpretativa que busca entender a arte grega “a partir de uma ‘interpretação’ naturalista” (p. 27). Um movimento que tem como representantes Winckelmann, Lessing, Herder, Goethe, Schiller e Hölderlin. Em todos eles, seria possível observar a tendência de “identificar uma forma natural de manifestação artística” (p.28). Considerando este aspecto, é possível entender um outro elemento que aumentaria a distância entre Nietzsche e os filólogos de sua época. Enquanto os últimos buscavam interpretar a arte grega como “uma mera forma de expressão artística” (p.32), Nietzsche considerava a arte grega como “manifestação dos impulsos artísticos naturais, procedentes da vontade, que, atuam no sentido de criar modos estéticos de representação do mundo, enquanto forma de justificação do sofrimento inerente à existência” (p.32).

Barros assinala que O nascimento atacou um problema não só dos filólogos, mas também de toda cultura de uma época: o massivo distanciamento da arte em relação aos problemas da existência. Tal diagnóstico, gerado pela excessiva “racionalização e moralização do sentido original da arte” (p. 44) decorreria, de acordo com Nietzsche, do desprezo pelas forças dionisíacas.

O dionisíaco seria um “impulso natural relacionado à inconsciência, ao esquecimento de si, à embriaguez e ao orgiástico” (p.41). Uma força oposta à apolínea que, por sua vez, destaca-se pelo transbordamento de consciência, edificando- se sobre o princípio de individuação. Nesses termos é importante identificar a base sobre a qual Roberto Barros identifica a elaboração de O nascimento: o livro seria a análise da tragédia a partir da “manifestação natural dos instintos, responsáveis por estados fisiopsicológicos, que atuam na superação da percepção direta da verdade da existência” (p.45). Também o ocaso da tragédia é lido por Barros como produto desmedido de um agente natural: o socratismo estético. Este empurra o homem para busca por clareza e moderação (aspirações apolíneas) através do emprego da racionalidade. Apropriando-se de todas as formas de conhecimento, através de uma suposta ideia de verdade, o socratismo torna-se a força hegemônica, destitui o dionisíaco. No lugar do desmedido, do insconsciente é instaurada a tirania da ciência com seus pressupostos de verdade alcançados a partir dos saberes conscientes. Ainda no primeiro capítulo, verifica-se o propósito do autor em mostrar conteúdos que denotam como as análises de Nietzsche já se erguiam sobre especulações extraídas da “relação entre saber e vida” (p.64).

No segundo capítulo, Barros passa pelas obras intermediárias de Nietzsche, seu foco é mostrar que a noção de arte adotada por Nietzsche em O nascimento sofreu um grande ajuste. Roberto indica a mudança como prenúncio à ideia da transvaloração dos valores, como se a nova mirada filosófica fomentasse uma nova concepção de arte. Tal mudança se iniciaria a partir de Humano, quando Nietzsche toma Wagner e Schopenhauer como inimigos declarados, pois eles representariam os “efeitos da percepção dos perigos da hegemonia da metafísica e da religião cristã oposta ao dionisíaco” (p. 67). Nesse capítulo, o dionisíaco é apontado como: (i) modo de Nietzsche avançar contra as categorias de valor da tradição metafísica e cristã e (ii) forma de embelezamento artístico do viver. Desse modo, Roberto pretende mostrar que o dinonisíaco não sucumbe no chamado período intermediário da filosofia nietzscheana. Pelo contrário, ele persiste, passando por uma reconfiguração que se apoiaria na ressignificação da noção de arte, efetivada sobre uma também nova mirada da concepção de ciência.

Os capítulos terceiro e quarto articulam uma leitura em conjunto do pensamento de Nietzsche, não como um corpo sistemático, mas como um agrupamento de construções conceituais fluidas, que transmutam através da obra, e ressignificam em virtude da busca de uma forma possível de afirmar e elevar a vida.

Fundamental nesse percurso é a forma como Barros explora as noções de eterno retorno do mesmo, grande saúde, morte de deus, transvaloração dos valores, além-do-homem, dionisíaco e arte. O eterno retorno do mesmo, o pensamento mais abissal de Zaratustra, já é anunciado desde A gaia ciência, em último grau, o pensamento do eterno retorno manifesta “uma pluralidade de contextualizações possíveis, que se desdobram em pretensões científicas, morais estéticas, cosmológicas” (p.103). Também denota uma experiência própria ao âmbito individual que se traduz psicofisiologicamente como afirmação ou negação da existência.

Frente ao eterno retorno, a grande saúde se mostra como “a capacidade de suportar os perigos e sofrimentos” (p.111) que a existência coloca ao homem e, mais ainda, o desejo de enfrentar tais condições para poder conseguir criar algo afirmativo. A morte de deus pode ser descrita como a face do niilismo que liberta o homem de seu apequenamento na moral, ela impulsiona o indivíduo para uma busca por superação. Esse o faz desde que consiga transvalorar os valores. Justamente aqui incide o alcance do conceito de além-do-homem, este é o símbolo da necessidade humana de superar a si mesmo, o termo estético com o qual o “ensinamento do eterno retorno pode ser interpretado a partir de sua significação afirmativa para a existência humana” (p.114). Sob tal configuração, o dionisíaco emerge como indicativo da crise dos fundamentos da tradição filosófico-científica e da religião – “ele é o ato decisivo de retorno da humanidade a si própria e que no autor faz carne e gênio” (p.114). A arte liga-se ao dionisíaco através da “postura heróica” (p.180) com a qual o homem entende a existência em sua tragicidade, empurrando-o em uma viagem épica movida pelo “desejo de conhecer com suas representações interpretativas” (p.180) as possíveis, novas e positivas valorizações da vida e da existência (cf. 180).

Destaca-se também a centralidade da tese sobre o renascimento do pensamento trágico na obra de Nietzsche.

Barros mostra como tal concepção ganha importantes traços a partir de A gaia ciência, a tragicidade inunda a filosofia com o ímpeto dionisíaco. Ela se traduz na aceitação incondicional da vida que é levada por Nietzsche a sua mais alta expressão através da escrita de Assim falava Zaratustra.

Uma obra onde o filósofo reconcilia seu pensamento com a natureza, a vida, o conhecimento, a arte e a afirmação de si.

O livro escrito por Roberto Barros é um trabalho robusto, no texto, obras e conceitos são articulados com coerência e originalidade mostrando um duplo caráter do pensamento nietzscheano – seu lado crítico e seu lado afirmativo.

Tudo isso realizado através de um claro fio condutor mantido do início ao fim da obra, a saber, a noção de além-do-homem. Enquanto trabalho interpretativo, restanos reafirmar o elogio escrito por Oswaldo Giacoia Júnior, para quem “o livro de Roberto A. P. Barros é um excelente guia de viagem para um fascinante percurso pela obra de um dos espíritos mais vigorosos de nossa tradição, tanto no rebelde ímpeto crítico-destrutivo quanto na extraordinária potência de criação e beleza”.

Notas

1 Doravante Zaratustra

2 Doravante O nascimento.

3 Doravante Humano.

Referências

BARROS, Roberto de A. P. Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética.Campinas: Editora Phi, 2016, pp.198.

Bruno Martins Machado – Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Aracaju, SE, Brasil. E-mail: [email protected]

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Giotto et les humanistes: la découverte de la composition em peinture, 1350-1450 – BAXANDALL (Ph)

BAXANDALL, Micheal. Giotto et les humanistes: la découverte de la composition em peinture, 1350-1450. Tradução Maurice Brock. Paris: Seuil, 2013. Resenha de: CARDIM, Leandro Neves. Philósophos, Goiânia, v. 21, n. 1, p.235-249, jan./jun., 2016.

A versão mais próxima para o português do título deste livro de Micheal Baxandall (1933-2008) escrito originalmente em inglês é: Giotto e os oradores. Os humanistas observadores da pintura na Itália e a descoberta da composição pictórica 1350- 1450. Sua primeira edição de 1971 é ilustrada e vem acompanhada de um aparato crítico extraordinário. A última tradução para o francês é a que tomaremos por referência nesta resenha. Mas é preciso dizer que esta tradução, apesar de seu cuidado linguístico, peca principalmente por dois motivos: ela não traz nenhuma das dezesseis ilustrações, tão importantes para o texto de Baxandall, nem os vinte excertos de textos em latim e em grego de alguns dos autores trabalhados no corpo do livro. Supressão injustificável pratica e teoricamente: na prática, tanto as imagens quanto os textos poderiam ser consultados como fontes de pesquisa; teoricamente, porque faz parte da tese do livro mostrar a relação entre tais imagens e textos. Quanto às ideias veiculadas pelo livro é preciso chamar a atenção, desde seu longo título, para o fato de que o autor se propõe analisar não só a obra dos primeiros humanistas que foram observadores da pintura, ou melhor, aquilo que eles disseram sobre a pintura, mas também, e este é o ponto alto do livro, analisar a descoberta propriamente humanista do conceito de composição.

Baxandall toma todo o cuidado de relacionar de modo muito estreito as regras da figuração pictórica com a arte da retórica, e é isto que tentaremos tornar sensível nesta resenha; mas veremos, além disto, que em um mesmo movimento, o autor rastreia a historicidade do conceito de composição com o objetivo de marcar momentos de continuidade e de ruptura relativamente a seu uso vigente no início do Renascimento. Quanto à referência a Giotto e aos oradores, ela deve ser compreendida como o horizonte do livro. Giotto e os oradores delineiam o índice de um problema de fundo que envolve as delicadas e controversas relações que se estabeleceram historicamente entre as duas disciplinas em questão: a pintura e a poesia. O leitor não deve procurar ali alguma espécie de discurso sobre o alcance da pintura de Giotto, não se trata de um livro sobre a história da pintura de Giotto e de suas relações com os oradores, exímios usuários da retórica antiga. Porém, é possível dizer que o livro nos conduz de tal modo através de várias considerações sobre Giotto entre os primeiros humanistas que, no limite, talvez seja possível depreender dali um debate sobre a história da arte no sentido estrito da palavra.

O livro analisa três gerações de humanistas para mostrar que a palavra e a imagem estão emaranhadas na produção de uma mesma estrutura retórica: a composição de uma beleza ordenada. Baxandall aborda “dois problemas conexos”: o primeiro e mais geral é o de saber “o quê, nas preferências visuais, procede da linguagem”, o segundo e mais local diz respeito à “contribuição mais interessante dos humanistas à nossa apreensão da pintura”: o conceito de composição. Em primeiro lugar, Baxandall insiste que “a gramática e a retórica em uso em uma língua dada inflecte substancialmente a maneira com a qual se descreve as imagens” (BAXANDALL, 2013, 21). Isto é compreensível porque a referência à gramática e à retórica determina o tipo de atenção que os primeiros humanistas dirigem à pintura. É justamente isto que põe em relevo o interesse de Baxandall pelo latim humanista, detentor de características formais bem acentuadas. Trata-se de colocar em evidência “as condições linguísticas e literárias nas quais os humanistas operavam quando eles formulavam considerações sobre a pintura” (BAXANDALL, 2013, 21). Em segundo lugar, Baxandall afirma que a ideia de que um quadro tem uma “composição” tem uma dupla fonte: ela foi sugerida por uma categoria humanista e pela própria situação da pintura em uma determinada época. O conceito em questão nasce de um conjunto de problemas e de uma determinada configuração linguística que polariza a atenção do autor para aquelas relações que “unem os hábitos da linguagem à atenção visual”. É neste contexto que a tese do livro deve saltar aos nossos olhos: “é a língua latina que estrutura o ponto de vista humanista” (BAXANDALL, 2013, 22).

As condições linguísticas e literárias devem ser circunscritas em torno do interesse comum dos primeiros humanistas pela ordem retórica e pelo latim neoclássico. A retórica era o centro de suas principais competências e o latim neoclássico era um interesse comum a todos os humanistas: “a arte dos humanistas era a gramática e a retórica” (BAXANDALL, 2013, 26). A situação dos humanistas ao formularem seus discursos sobre a pintura era ao mesmo tempo prática e linguística: eles eram secretários, professores, historiógrafos, e enquanto tais seus campos de atividades intelectuais eram bem específicos. Ao nascerem é óbvio que eles aprendiam sua língua natal, mas enquanto humanistas eles conversavam entre si com uma “língua literária que não estava mais em uso já fazia mil anos”. Esses homens também se esforçavam para diferenciar este latim neoclássico das formas do latim medieval que já estavam degradadas, mas que ainda eram usadas pela Igreja e pelos homens da lei. Conviviam, assim, uma “língua cultural de elite” e uma “língua vernácula e seu uso culto”. Ora, comparado com o latim medieval, o latim neoclássico era muito mais pródigo em discriminações internas, e mesmo seus recursos sintáxicos eram mais ricos do que os das línguas vernáculas da época. Essas línguas, como por exemplo o italiano, não concorriam com o latim neoclássico, o qual era um “complemento especializado” delas. Os primeiros humanistas estavam imersos em uma paisagem cultural e linguística bem peculiar: muitas versões do latim pós-clássico, leituras muito diferentes daquelas que poderíamos imaginar (enciclopédias medievais, retóricas da antiguidade tardia e traduções latinas dos tratados apócrifos de Aristóteles), uso da retórica grega e romana ao mesmo tempo com intenção de persuadir e de ensinar, um público determinado ao qual o orador se referia (o orador pronunciava discursos em casamentos, enterros, investiduras de magistrados, aulas inaugurais). Sob este pano de fundo é possível dizer que a novidade dos primeiros humanistas consiste na “firme resolução de se reapropriar e de praticar a língua de Cícero: eles se veem nesta tarefa com uma energia e um ardor inteiramente novos” (BAXANDALL, 2013, 31). Para nós, esta situação é estranha: qual interesse haveria em fazer um “pastiche de Cícero”? Baxandall nos mostra que “o que há de fundamental e heroico nos primeiros humanistas é o pastiche de Cícero: eles colocavam sua melhor energia em reencontrar estruturas linguísticas perdidas fazia mil anos” (BAXANDALL, 2013, 32). A contribuição destes homens para a cultura pictórica consiste em que eles estudaram os hábitos linguísticos da própria pintura. Para além de um simples uso de palavras e de sintaxe latinas, é preciso ver aí um “comportamento verbal altamente formalizado se aplicar à mais sensível das experiências visuais quase sem que se produza interferências” (BAXANDALL, 2013, 35).

Conscientes do fato de que o latim discriminava melhor certas regiões da experiência do que a língua vernácula, os primeiros humanistas aprenderam a manejar certos grupos de palavras que os levaram a modificar suas percepções da arte e dos artistas. Vem daí o expurgo sistemático e consciente do vocabulário degradado. Vem daí, também, que rastrear esse vocabulário não seja tão difícil. Mas vem daí, enfim, que não seja fácil rastrear as mudanças de sentido que muitas palavras sofreram. A mudança no sentido das palavras não se deixa apreender por aquilo que elas designam ou por aquilo a que se referem. A resposta de Baxandall é clara: “o uso faz o sentido”. Graças a isto é que em seus pastiches de Cícero os humanistas reconstruíram “redes de articulação do léxico” (BAXANDALL, 2013, 44). A propósito, é no interior destas redes que encontram-se as metáforas intersensoriais, as quais remetem o pesquisador à terminologia da retórica clássica que repousa sobre metáforas saídas da experiência visual. É deste recurso antigo sistemático às metáforas ― seja como procedimento estabelecido, seja como bagagem de expressões consagradas ―, é em contraste com este recurso que a novidade de Alberti ganhará relevo.

Os primeiros humanistas atribuíam “importância suprema” à frase periódica: o período ― “frase combinando vários pensamentos e afirmações em várias proposições equilibradas” ―, era o “paradigma da grande frase neoclássica” (BAXANDALL, 2013, 53). Havia aí uma forma artística fundamental que, no início do Renascimento, foi o modelo da composição artística em geral. Assim, para que a frase periódica oferecesse suas “delicadas combinações de elementos diversos”, era preciso, da parte de quem a manejava, um vasto conhecimento do campo semântico, da flexão das palavras, um domínio do vocabulário e da gramática clássica. O que atraía os primeiros humanistas no estilo periódico era, enfim, o uso das “antíteses” e dos “paralelos”.

Até mesmo Alberti usa a frase periódica, a qual opera um arranjo simétrico e equilibrado das palavras, das expressões, das proporções, e mesmo de noções abstratas.

Dos dois métodos que a retórica clássica dispunha para inventar o conteúdo de um discurso (o método especulativo e o método indutivo), foi o método indutivo que exerceu maior influência sobre os humanistas, afinal, eles procuravam algo que tivesse influência sobre suas próprias vidas e práticas literárias. Enquanto o método especulativo só ensinava argumentar em um tribunal, o indutivo ensinava “levar uma vida feliz ou ter um estilo elegante em prosa”. A comparação, modo de operar do método indutivo, tinha um duplo estatuto: funcionava como argumento e como ornamento, funcionando, neste caso, como processo de estilo.

Eles praticavam tanto esses exercícios comparativos que tais exercícios acabaram se tornando um hábito: a comparação está na origem seja de suas observações, seja de suas noções relativas às artes visuais. A natureza de seus discursos exigia comparações extraídas da pintura e da escultura, eles agiam assim baseando-se em precedentes clássicos em que Cícero e muitos outros autores clássicos faziam comparações entre o estilo literário e as artes figurativas. Os humanistas “se remetiam ao material clássico e modificavam, transpunham ou renovavam comparações já empregadas por Cícero e outros autores” (BAXANDALL, 2013, 73). Assim, as anedotas, a mitologia da história da arte, seus lugares comuns, lhes serviam de material, não para fazer considerações diretas sobre a pintura, mas para uso em benefício próprio em seus textos e vidas: “o uso de comprar a literatura à pintura se tornou um jogo humanista” (BAXANDALL, 2013, 78).

O tipo de uso da linguagem que é feito entre os humanistas pode ser delineado desde que notemos que se trata, precisamente, de observações humanistas sobre a pintura.

No elogio ou na censura que eles faziam de uma obra de arte pressupunha-se que o ouvinte não conhecesse a obra, mas isto deveria forçar o orador a possuir o máximo de habilidade usando, então, o registro “florido”: “alguém agencia pigmentos sobre um suporte, e, vendo isto, outro alguém se esforça para encontrar palavras adequadas ao interesse da coisa” (BAXANDALL, 2013, 87). Esta atividade “árdua” e “excêntrica” já era validada pela antiguidade, e como já existiam no latim termos que evocavam categorias visuais, o caso da pintura era ainda mais interessante porque se aprendia com ela “a distinguir quais registros ou quais sensações” correspondiam a estes termos: “o aprendizado de uma língua tão sutil reorganizou suas capacidades de atenção para as obras de arte” (BAXANDALL, 2013, 92). O que era comum aos humanistas não era uma simples questão do gosto, mas uma “comum experiência de uma língua, a posse comum de um sistema de conceitos que permitiam focalizar a atenção” (BAXANDALL, 2013, 93). Esta é a bagagem comum, os elementos constitutivos do ponto de vista humanista que os diferencia do ponto de vista vernáculo.

Baxandall começa a rastrear as observações humanistas sobre a pintura a partir de Francesco Petrarca (1304-1374): ele “recolocou em uso uma forma específica de referência generalizada à pintura e à escultura” (BAXANDALL, 2013, 99). Petrarca trabalha de tal modo com uma “série de grandes oposições” que ele as faz valer como fundamento de sua visão humanista sobre a pintura e a escultura. É por aqui que encontramos os primeiros traços daquelas comparações retóricas. Os primeiros humanistas exploravam as fontes das artes antigas como repertórios de analogias e se inspiravam nos trabalhos plásticos que possuíam duas qualidades necessárias para uma boa comparação: a concretude e a visibilidade.

Assim, os detalhes que serviram para Petrarca elucidar sua arte acabaram, por fim, se tornando um lugar comum obrigatório entre seus sucessores.

Filipo Villani (1325-1407) forjou o mais consistente e durador esquema do progresso das artes. Ele interpreta sua época como decadente e vai buscar em Dante e seus contemporâneos o modelo dos valores necessários para uma renovação da cultura. Villani adota um esquema para interpretar a evolução da pintura no século XIV. O esquema que ele extrai de Dante prescreve o seguinte: primeiro veio Cimabue que tirou a pintura da decadência, em seguida, Giotto, que completou a renovação, enfim, os sucessores de Giotto. Eis o esquema: profeta/salvador/apóstolo. O interesse desta sequência está nos tipos de diferenciações que é possível daí depreender. Ele ainda projeta sobre Giotto não só o lugar ocupado por Dante na história, mas também o lugar que ocupava Zeuxis no esquema de Plínio. Dito de outro modo: Zeuxis está para Apolodoro, assim como Cimabue está para Giotto. Baxandall acredita que este esquema até certo ponto ainda está presente entre nós. Seu interesse está no modo como articula capítulos obscuros da história da arte e no modo como trabalha de forma concisa com diferenciações variadas (prioridade, qualidade, estatura, registro). Seu modo claro de estruturação faz com que ele se baste a si mesmo. Esta é a razão da dificuldade que os humanistas do século XV tiveram para encontrar outro esquema para prolongar o esquema de Villani.

Os humanistas se nutriram não só da literatura latina, mas também da grega. Baxandall mostra que a partir de 1400 as bases literárias se alargaram tanto que, em vinte e cinco anos, suas novas e variadas fontes acabaram influenciando muito suas maneiras de falar sobre a pintura e a escultura.

Precisamente aí encontramos Manuel Chrysoloras (1355-1415), “figura intermediária” relativamente à cultura grega. Sua “marca” foi a estimulação do interesse por essa cultura, a qual deveria “tornar-se o elemento mais dinâmico do humanismo do século XV na Itália” (BAXANDALL, 2013, 137). Uma carta de Chrysoloras ao Papa teve muito alcance na crítica de arte humanista, nela ele recorre a “diversos registros descritivos” e “enumerações generalizadas” para comparar Roma à Constantinopla. Em uma outra carta, e talvez esteja aí sua maior contribuição, ele dá um “alcance geral e uma formulação mais ou menos aristotélica para alguns valores bem precisos: vida dos detalhes, variedade, intensidade de expressividade emocional” (BAXANDALL, 2013, 142). Aristóteles e Chrysoloras situam a fonte de prazer da representação visual no ato de reconhecimento do espectador, mas diferentemente de Aristóteles, Chrysoloras tem grande interesse pela expressividade e, particularmente, pelo artista. Lembremos que os humanistas frequentaram seus contemporâneos bizantinos em Constantinopla. Assim, os humanistas aprenderam a praticar muitos exercícios retóricos separadamente, ou melhor, “como gêneros independentes, em composições realizadas por si mesmas com muita pesquisa e virtuosidade”: “os meios tinham se tornado fins” (BAXANDALL, 2013, 145). Esta é a fonte dos exercícios de descrições detalhadas ou de écfrases como “obras inteiramente à parte”. Essas écfrases possuíam vivacidade visual, clareza, elas tinham o dom de trazer aos olhos o que descreviam. Utilizar os olhos ao dirigir-se aos ouvidos, lançar mão de uma linguagem que esteja de acordo com o objeto descrito, possuir desenvoltura nesta descrição, saber que a écfrase nunca é neutra, combinar noções críticas com procedimentos descritivos habituais já presentes na écfrase, enfim, esses são alguns dos procedimentos determinantes do modo dos humanistas elaborarem seus discursos.

Aluno de Chrysoloras, Guarino de Verona (1370-1460) foi um dos que aprenderam grego para ler Luciano e Arriano, ao passo que os primeiros humanistas queriam ler Homero.

Guarino transmite os valores da écfrase bizantina e aclimata os trabalhos de seu mestre. Guarino exalta a literatura em detrimento das outras artes e argumenta que a pintura não mostra as qualidades morais, mas sim as aparências; ela agrada mais pela destreza do artista do que pela importância do tema; ela não é durável como um livro. Ao comparar a pintura com a literatura, Baxandall nos mostra que Guarino indica os “limites da pintura” com dois argumentos: os quadros são “pouco aptos para veicular o renome pessoal” e “não são cômodos para transportar”. Guarino e seus alunos trabalharam muito com este gênero de escrita em torno da obra de Pisanello: seus escritos, particularmente os de Guarino, reúnem em suas descrições o valor retórico que a variedade da pintura pode ter, os atrativos e efeitos da écfrase, e as categorias críticas de Chrysoloras. Baxandall vê aí uma “combinação muito eficaz” na qual encontramos uma concepção de composição que será recusada por Alberti: sua “nova concepção” de composição só ganha relevo sobre o fundo da “concatenação das proposições de Chrysoloras, dos valores ecfráticos e da arte de Pisanello” (BAXANDALL, 2013, 161).

Analogia entre pintura e literatura, esquema histórico, práticas e valores da écfrase: falta acrescentar que Bartolomeo Fazio (1400-1457), aluno de Guarino, traz um duplo aporte que deve aparecer neste rastreamento. Por um lado, Fazio introduz uma associação entre personalidades notáveis, pintores e escultores; por outro, ele retoma dois lugares comuns sobre a relação entre as duas artes: a afinidade que Filostrato o Jovem via entre a pintura e a poesia (que nos remete à exaltação da expressão), e a compreensão da pintura como poesia silenciosa tal como ela chega até nós vindo de Simônides. Ele aprofunda tudo isto no sentido de explorar a expressão do caráter e da emoção. Enfim, só compreenderemos o fato de que tanto a pintura quanto a poesia “têm em comum esta função expressiva”, se reencontrarmos, por trás destas ideias, os rastros de Horácio quando elabora metáforas retóricas que pretendem tocar o coração dos ouvintes. Só assim a superioridade da pintura pode ser reconhecida. Mas se é verdade que as convenções do neoclassicismo eram corretas, é verdade, também, que, segundo Baxandall, elas desviaram os humanistas de empreitadas mais profundas.

Vários caminhos poderiam ter sido seguidos. Aí encontramos Lorenzo Valla (1407-1457) com sua teoria da percepção sensorial e seu “novo esquema” ou “modelo” para pensar a história da arte italiana. Segundo ele, o progresso das artes deve ser visto como um “efeito das relações sociais”: em princípio, “um indivíduo inova”, em seguida, “sua inovação é tornada acessível à seus confrades, e, em troca, ele tem acesso à totalidade de suas invenções” (BAXANDALL, 2013, 192). Enfim, o impasse da crítica humanista não é um índice de mediocridade: o ponto está em que as convenções dos humanistas “não forneciam a um Lorenzo Valla ― ou, em outro sentido, a um Léon Battista Alberti ―, um quadro que encorajasse suas reflexões” (BAXANDALL, 2013, 193).

O tratado de pintura escrito em latim por Alberti (1404-1472) ― De pictura ―, se distingue de todos os outros textos da época pela “seriedade da iniciativa”. A formação humanista de Alberti ainda incluía uma prática da pintura. É neste cruzamento que encontramos a noção de composição e o método de Alberti. Como compreender que mesmo sendo humanista Alberti não se comporte como um humanista? O traço principal que define o tratado de Alberti como um livro humanista deve ser procurado nas competências exigidas ao leitor. Peritos em analogias, os humanistas não elaboraram nenhuma teoria da pintura em quanto atividade intelectual relacionada com seus estudos.

Ao que tudo indica, não havia uma demanda urgente de um livro como o de Alberti, mas o lugar que ele ocupa era oferecido pelo próprio sistema de pensamento da época.

Seu público deveria possuir “três tipos de competências”: ler facilmente em latim neoclássico, dominar os Elementos de Euclides e um pouco de ótica geométrica, saber desenhar ou pintar. Ainda que seu leitor não seja um humanista tradicional, resta que a redação do livro era autorizada pela tradição: “o De pictura aparece como um manual que dava os meios de uma apreciação ativa da pintura a uma espécie inabitual de amadores humanistas informados”. O leitor de Alberti precisava ter simultaneamente um ponto de vista euclidiano e ciceroniano. Assim, a noção de composição surge como a “maneira com a qual um quadro deve ser organizado para que cada superfície plana e cada objeto traga sua contribuição ao efeito de conjunto” (BAXANDALL, 2013, 205-06).

O procedimento de Alberti é duplo: ele reconduz a pintura a uma “certa norma, feita de pertinência narrativa e de conveniência e economia” ― “norma amplamente giottesca” ―, mas que é uma “norma não-clássica”, já que visa a pertinência e a organização. Por um lado, as normas de Giotto, por outro, sua aplicação à relação das formas no interior do quadro. A “arma” de Alberti contra a tradição virtuosística da écfrase é a noção de composição. Esta noção já possuía o sentido geral de colocação em conjunto, e isto, de Vitrúvio à estética medieval. Mas Alberti ao mesmo tempo modifica o conceito anterior e introduz nele um sentido novo. A grande novidade de seu conceito de composição está na “interdependência das formas”. No momento em que ele enuncia isto, no momento em que inova, ele está, ao mesmo tempo, “mais condicionado do que nunca, em suas possibilidades de comunicação com seus leitores, por sua situação de humanista escrevendo para humanista”.

Alberti interpreta a obra de Giotto como se ela fosse uma “frase periódica de Cícero ou de Leonardo Bruni”! A eficácia deste modelo permite a Alberti submeter a pintura a uma análise funcional rigorosa que encontra, ao fim e ao cabo, seu complemento visual na obra de Mantegna, o qual adota o regime narrativo sugerido no tratado que, por sua vez, relaciona internamente termos com procedimentos e ingredientes tradicionais. O conceito de composição “emana de um conjunto de elementos e de disposições humanistas”, mas Alberti reúne esses elementos e disposições em sua própria formulação:

assumindo as imagens dos humanistas, ele inverte a analogia que ia da pintura à literatura em uma analogia indo da literatura à pintura, ele tem o atrevimento de reivindicar para a pintura uma organização análoga àquela das frases periódicas bem balanceadas nas quais eles tão freqüentemente formulavam esta famosa analogia (BAXANDALL, 2013, 213).

Alberti se afasta, então, dos humanistas que admiravam Pisanello e Guarino. Ele toma posição com relação a isto e seus termos sofrem “deslizamentos de sentidos” se comparados com os da tradição. Ele tem em mete uma pintura neogiottesca que preconiza a elaboração periódica! Para concluir, diríamos que o final do livro conduz a uma delimitação negativa de nosso ponto de vista, já que delimitado o ponto de vista humanista, há o olhar que, organizado segundo certas modalidades, é muito diferente do nosso. No Prefácio à edição italiana do livro resenhado, Baxandall esclarece um pouco mais o que está em questão em seu livro. Ele chama atenção para dois pontos que, vinte e três anos depois, ainda lhe parecem importantes: primeiramente, seu intento mais geral era “demonstrar que os nossos gostos no campo da arte visual são estreitamente ligados aos conceitos (e também, é óbvio, com as palavras) com os quais refletimos sobre as obras”, em seguida, e mais particularmente, ele fornecia as coordenadas daquilo que era “um gosto artístico ‘latino-humanístico'” (BAXANDALL, 1994, 15). Nem “determinismo linguístico”, nem “‘estrutura’ cultural”.

A sugestão de Baxandall ao leitor é a de seguir um dos fios disponíveis: a linguagem. Ela será capaz de nos fornecer, se não quisermos permanecer no nível da aglomeração causal de inclinações fragmentadas, os elementos necessários para a articulação.

Referências

BAXANDALL, Micheal. Giotto and the orators. Humanist observers of painting in Italy and the discovery of pictorial composition 1350-1450. Oxford: Claredon Press, 1971.

____. Giotto et les humanistes. La découverte de la composition en peinture 1350-1450. Tradução Maurice Brock.Paris: Seuil, 2013.

____. Giotto e gli umanisti. Gli umanisti osservatori dela pittura in Italia e la scoperta della composizione pittorica 1350-1450. Tradução Fabrizio Lollini. Prefácio Michael Baxandall. Milão: Jaca Book, 1994.

Leandro Neves Cardim – Professor de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil. E-mail:  [email protected]

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Radicalizing enactivism: basic minds without content – HUTTO; MYIN (Ph)

HUTTO, Daniel D; MYIN, Erik. Radicalizing enactivism: basic minds without content. Mit Press, 2013. Resenha de: SILVA, Marcos; BRITO, Carlos; FERREIRA, Francicleber. Philósophos, Goiânia, v.20, n.2, p.227-235, jul./dez., 2015.

In contemporary discussion, some authors are developing tenets in pragmatism (broadly construed) to motivate it as a comprehensive model of cognition, alternative to a farreaching representationalist tradition. The latter constitutes the orthodoxy in some influential areas of philosophy investigating language and mind. Roughly speaking, a representationalist would answer the question “What are we?” by saying that we are consumers of representations, which could be satisfied or not by (that is, correspond or not to) the world. And to the question “What is the world?” we could expect receiving an answer like this: The world is assumed to be, as in a typical Cartesian tradition, the totality of things that can be represented, or can be the content of our cognition. The world, according to this view, should be held as a domain of entities that could make our representations true or false. Thus, cognition or intelligent behavior is what make possible to representers to access and to manipulate the representations of reality, standing “out there” to be revealed by our thoughts. Sometimes, we could also act and do things in this rational and static world.

As a matter of fact, we may challenge this scenario. We could well hold that in the beginning was the deed, as Goethe put it in his Faust, instead of the word (or any representational content). Before representing the world, we have to enact in it. Actually representing demands enacting.

In short, representing can very well be held as a kind of action in the world. As a result, a shift in the traditional picture can be illuminating: from “We must think in order to act” to “we act before we think.” Abilities should be prior to theories; competence should be prior to content. As a result, “knowing how,” rather than “knowing that,” should be taken as the paradigm of cognitive states. Thinking is not a propriety of an immaterial mental substance, but rather a special capacity of some organisms to act in their environment.

Several authors in the pragmatist and related traditions call attention to the import of inherited practices, cooperation and Handlung in order to understand language, intentionality and cognition. They take seriously evolving biological systems and situated individuals interacting in communities over time as preconditions of our rationality, features often dismissed as not central in a representationalist tradition. What role do notions such as situatedness, contextual dependency, shared attention, openness and vagueness play in representationalism? The answer is: a very marginal role (if any). Wittgenstein, for example, already in his Tractatus (1918), instructively suggested that language is an integral part of the human organism (TLP 4.002, our emphasis). There it is already signaled (although not worked out) the idea that language should be best understood by appealing to dynamically unfolding, situated embodied interactions with worldly offerings. Hutto and Myin’s (2013) book belongs to this broad pragmatist tradition which we could call antirepresentationalism.

They develop the view that basic cognition, that is, mental processes involved in obtaining knowledge through intentional directedness in perceptual experience, is not a matter of consuming representational content which imposes to reality some conditions of satisfactibility.

In order to understand what cognition is we must understand how organisms dynamically interact with others and their environment. Here we must raise a caveat: our authors do not put forward a thorough rejection of contents, since they defend that representations may turn out to be necessary in a full account of complex human cognition, especially language skills.

This book is highly readable and relevant for current debates in philosophy of mind and related battle fields where representationalism can (and should) be challenged.

Hutto and Myin’s work does an impressive job of calling into question what they call CIC (Content Involving Cognition) and CEC (Conservative Enactive Cognition).

CIC states that cognition, and also perceptual experience, must be contentful. CEC, in contrast to CIC, holds the importance of situated, environment-involving embodied engagements as a means of understanding minds, but still maintain the need for some manipulation of content in basic cognition. Hutto and Myin critically analyze CIC and CEC in order to make a case for REC (Radical Enactive Cognition), a form of enactivism where no form of content is used to explain intentional directedness and phenomenality.

If enactivism is already a defensible model and applicable to many hot contemporary discussions (as the mind/body problem and the development of Artificial Intelligence), REC, Hutto and Myin suggest, can do even more. It can be strategically applied as a tenable framework for different areas and problems, such as naturalism, qualia and extended minds.

What does it mean to promote REC? First, the main line of enactivism is maintained, that is, the idea that cognition is environment involving and dynamically unfolding. Not just human agency, but also experience should be thought of as a situated and embodied organismic activity. As a result, interactions with other organisms and engagement with the environment is not just a matter of fact.

They are crucial to understand what mind is. Second, to hold radically enactive cognition means to hold that we can understand cognition without any appeal to contents and representations (i.e., to conditions that must be satisfied by the world). Against the view that REC cannot “scale up,” Hutto and Myin hold that the scope of REC is indeed much wider and can be more fruitful.

Hutto and Myin’s work is well informed in contemporary problems and literature. It provides a good review of the enormous literature on the topic. However, we see some problems in their book. Content is hardly characterized in the whole work, and its connection with the notion of information is somewhat obscure. Also, the association they make between representationalism, internalism and intelectualism is not that evident to be just assumed. Moreover, Hutto and Myin hold in various moments that perception is an act; but the reader may have a hard time to understand that. They do not explain this crucial thesis.

It is also important to highlight that our authors show sometimes a limited view of the logic used in computer science.

For instance, they say that “The Information- Processing Challenge appears to present a formidable problem for REC. But it takes for granted that the standard computational and information-processing explanatory strategies of cognitivism are in perfectly good order under standard renderings” (p. 37). Nowadays approaches to computation can be real time, adaptive and interactive in several ways. This has been an agenda worked out by several important computer scientists in contemporary research.

Besides, we do not really understand why our authors do not discuss some particular philosophical traditions. By way of example, Descartes and Kant are very scarcely debated.

This choice obscures the fact that matters of cognition are widespread in the history of philosophy. Descartes, for instance, was not interested in cognition per se, but in facing skepticism and finding a new model for science.

IN WHAT FOLLOWS WE BRIEFLY DESCRIBE HUTTO AND MYIN’S BOOK CHAPTERS.

In Chapter 1, they clarify pivotal theses and introduce main players. Embodied cognition is characterized as concrete spatio-temporally extended patterns of dynamic interaction. This view is complemented by a developmentexplanatory thesis, which holds that mental interactions are grounded on the history of the organism’s previous interactions. Here they highlight that REC rejects all vestiges of the idea of contentfulness.

Chapter 2 shows how denying CEC means an ultimate rejection of CIC. Although the authors do not offer any clear definition of intelligent behavior, they hold that perceptual experience and intentional directedness do not imply content. Further, they assess some “sister accounts” of REC, including Noë’s Sensori-motor Enactivism (which, they think, makes just a modest advance) and Autopoetic enactivism (which, they hold, has a too broad concept of cognition). Both accounts deny dualism, emphasize input/ output processes and hold that the mental emerges from spontaneous self-organization and self-creativity of living beings. But these approaches, our authors criticize, still presuppose some kind of meaning being created, consumed and carried.

In Chapter 3, Hutto and Myin bring robotics and insects to the discussion. They also claim that enactivism can account for complex human activities of reaching and grasping objects. Content is not just unnecessary for basic cognition (even though it is relevant for complex human cognition); it can encumber development in AI and robotics, they maintain. The whole model of mentality holding information as the basic commodity of cognition has to be dropped. Information is not used, extracted, manipulated, carried in basic cognition. In fact, it would be very weird to think that children learn to grab something by means of some abstract instructions. REC can explain also distinctive human cognition, not just insects and simple robots. The variety of manual activities is too large and diverse to be captured by some general and abstract rules. We have to learn how to regulate actions in a wide range of dynamical environments.

Chapter 4 is their most important contribution for the discussions. They come back very often to this chapter throughout the whole book. In a nutshell, they suggest therein that CIC is not the case, on the grounds that we cannot make naturalism and CIC compatible. The challenge is that, if we take CIC seriously, we cannot explain what the origin of content in nature is. As Hutto and Myin explain: “they [defenders of CIC] are unable to account for the origins of content in the world if they are forced to use nothing but the standard naturalist resources of informational covariance.” (p.xiv) After proposing this far-reaching challenge, our authors answer two common problems suggested by defenders of CIC, namely: 1) REC does not address any relevant form of cognition because what it calls basic cognition is too basic, and 2) REC cannot be generalized.

However, if we start with dynamical explanations of a system, representation loses its import. Basic cognition mechanisms may have the proper function of guiding the system’s actions in the environment. Actually, according to REC and to some other naturalist accounts, organisms should be taken as sensitive to information. This means that organisms exploit correspondences in their environment, that is, co-variance among several phenomena, and not manipulation of representations, in order to adaptively guide their actions.

Chapter 5 shows that CIC is inappropriate and unnecessary, since it cannot explain highly sophisticated and intentionally directed behaviors. Behaviors of artificial agents and some insects, as well as reaching and grasping by human hands are explored in this chapter. Our authors evaluate Hyperintellectualism, which holds that perceptual experience is always inherently contentful and depends entirely on representational activity; and Minimal Intellectualism, which maintains a more modest view of how perceptual experience might be essentially contentfully representational. The leitmotif for Hutto and Myin’s criticism is perceptual human vision. Those accounts claim that visual experience implies representational activity. Hutto and Mying are against these views, but they don’t really answer how without the very idea of content we could pass from perception to belief and judgment. Hutto and Myin do not even pose this relevant question. It is not an accident that Kant, among others, holds that perception has to be conceptual.

Furthermore, the problem of false information is not touched in the book. How perception can be false if it should have no content at all? Here the whole discussion seems to presuppose that representational content should be independent of linguistic capacities (as they point out very quickly on page 87). They do not provide any reason for this assumption.

Chapter 6 evaluates some alternatives that try to make sense of content ascription in perceptual processes. A maximally minimal representationalism has much agreement with REC, namely: no concepts, no proposition, no truth conditions, no given. But it still holds there is need for conditions of satisfaction. This minimal CIC is modest, less expensive and more plausible. Are there compelling reasons to think that perceiving is representational? If not, we have to go REC, as our authors claim.

Chapter 7 deals with problems related to the boundaries of mind. Hutto and Myin defend that minds are in fact extensive and wide-ranging, and (contrary to the extended mind view) not merely extended. The crucial point is that we do not have things in our minds, but rather operate with objects in the world; our minds should not be thought of as a vehicle, but rather as a capacity. If REC is true, the extended mind hypothesis is not radical enough. External features of the environment are always constitutive of the mental. Extended-mind defenders are too deferential to internalism.

Chapter 8 discusses if whether phenomenal properties of experiences can be extensive. Hutto and Myin try to dissolve the well-known Hard Problem of Consciousness.

When we describe phenomenal properties, we cannot help but mention environment-involving interactions. Qualia discussions, they hold, make up an agenda of solving impossible problems. REC should liberate both science and philosophy to pursue goals they are able to achieve.

As a conclusion, we agree that “not only science but also philosophy benefits by radicalizing enactivism” (p. 178), since the idea that several relevant mental processes and basic minds require neither contentful representations nor manipulation of content indeed deserves a better hearing.

It is hard to expect that basic minds represent the world with specified conditions of satisfaction. As the book imposes itself as a reference, we think that people for or against enactivism should react to it if they want to make advances in this field.

Marcos Silva – Professor Adjunto da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, AL, Brasil. E-mail:  [email protected]

Carlos Brito – Professor no Departamento de Computação da Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, CE, Brasil. E-mail:   [email protected]

Francicleber Ferreira – Pós-doutorando no Departamento de Computação da Universidade Federal do Ceará (UFC)., Fortaleza, CE, Brasil. E-mail: [email protected]

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Epistemologia da virtude: crença apta e conhecimento reflexivo, Vol I; Conhecimento reflexivo: crença apta e conhecimento reflexivo, Vol II – SOSA (Ph)

SOSA, Ernest. Epistemologia da virtude: crença apta e conhecimento reflexivo, Vol I. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2013. Resenha de: FILHO, Waldomiro Silva. Pessoas epistemicamente virtuosas. Philósophos, GOIÂNIA, v.18, n. 2, p.293-312, JUL./DEZ, 2013. SOSA, Ernest. Conhecimento reflexivo: crença apta e conhecimento reflexivo, Vol II. Trad. Cecília C. Bartalotti. São Paulo: Edições Loyola, 2013. Resenha de: SILVA FILHO, Waldomiro. Pessoas epistemicamente virtuosas. Philósophos, GOIÂNIA, v.18, n. 2, p.293-312, jul./dez, 2013.

1. Vou começar com uma citação um pouco longa: SÓCRATES. […] Estamos seguramente em acordo que o homem bom está absolutamente obrigado a fazer o que é bem, não é assim? MENON. Sim.

SÓCRATES. E eu suponho que estamos certos em concordar que eles nos farão bons se guiarem corretamente nossos assuntos. Certo? MENON. Sim.

SÓCRATES. Mas que a boa orientação seja impossível sem conhecimento, parece que não estamos certos em concordar.

MENON. O que queres dizer? SÓCRATES. Vou explicar. Se alguém conhecesse o caminho para Larissa […] para lá partisse e mostrasse para outros o caminho, não os estaria guiando bem e corretamente? MENON. Sim.

SÓCRATES. Bem, o que dizer de alguém que, tendo uma crença correta sobre qual o caminho, mas jamais o tendo percorrido e não tendo conhecimento disso? Ele também não guiaria corretamente? MENON. Sim.

SÓCRATES. E enquanto ele apenas acredita corretamente aquilo que outra pessoa conhece, ele poderá ser também um bom guia, assim como alguém com conhecimento, porque seu pensamento está correto, mesmo que não tenha conhecimento.

MENON. Sim, ele será.

SÓCRATES. A crença verdadeira, então, é tão bom guia quanto o conhecimento quando se trata de garantir a correção da ação. E isso é o que agora mesmo negligenciamos no exame sobre que tipo de coisa era a virtude, dizendo que somente o conhecimento é o bom guia de nossas ações. De fato, todavia, também a simples crença verdadeira o é.

MENON. Sim, aparentemente é.

SÓCRATES. Logo, em nada a crença verdadeira é menos proveitosa do que o conhecimento.

MENON. Sim, exceto nessa medida, Sócrates, aquele que tem conhecimento sempre será bem sucedido, ao passo que aquele que tem uma crença verdadeira às vezes estará certo e às vezes, errado.

SÓCRATES. O que você quer dizer com isso? Aquele que sempre tem uma crença verdadeira não acertará sempre enquanto tiver crenças verdadeiras? MENON. Eu acho que ele é obrigado a estar certo. Isso me faz perguntar, espantado, Sócrates, sendo assim, por que afinal o conhecimento é muito mais valorizado do que a crença verdadeira e em que um é diferente da outra.” (PLATÃO 2005, 97a-d)

Este fragmento do Ménon de Platão condensa um assunto de grande relevância para o pensamento antigo e que parece ser negligenciado pela epistemologia moderna até os nossos dias, qual seja, o problema do valor do conhecimento.

Em geral, a epistemologia tem se ocupado com a definição de conhecimento, com tentativas de estabelecer aquilo que seria requerido a uma crença para que se torne conhecimento e em se desvencilhar de terríveis ameaças céticas.

Notemos, entretanto, que neste trecho do Ménon, Platão não está preocupado com a verdade da crença (pois, no diálogo, tanto aquele que simplesmente acredita, pela sorte ou adivinhação, quanto aquele que sabe tem crenças verdadeiras); ele, do mesmo modo, não está preocupado com a diferença entre ter uma simples crença e ter conhecimento; ele nem mesmo está preocupado com a possibilidade de algum gênio maligno lhe estar enganando… O que Platão/ Sócrates nos chama a atenção é para a questão: por que, para um filósofo e para um homem comum, o conhecimento é mais valioso do que a simples crença? Se prestarmos atenção, esta pergunta, a rigor, não é uma pergunta estritamente epistemológica, mas uma pergunta que remete ao campo da ética e da ação – e não é por acaso que ela nasce justamente no interior de um diálogo dedicado às virtudes.

A obra de Ernest Sosa tem significado uma contribuição original e instigante à epistemologia contemporânea exatamente porque enfrenta essa questão platônica e oferece uma nova direção para velhos dilemas em Teoria do Conhecimento.

O livro Epistemologia da Virtude de Sosa foi publicado originalmente em inglês em 2007 como resultado das prestigiosas John Locke Lectures proferidas por ele em Oxford entre maio e junho de 2005 (SOSA 2007a). Ao lado de um segundo volume intitulado Conhecimento Reflexivo de 2009 (SOSA 2009a), Epistemologia da Virtude constitui o caminho mais direto e límpido para a compreensão das ideias de Sosa sobre a natureza e o valor do conhecimento.

Recentemente, as Edições Loyola publicou uma tradução dos dois volumes (SOSA 2007b; 2009b). Destaque para a belíssima capa que reproduz a edição original.

2. Sosa nasceu Ernesto Sosa num dia de junho de 1940 na histórica Cárdenas na Ilha de Cuba, mas teve toda a sua educação nos Estados Unidos, onde frequentou, como estudante ou professor, as mais destacas universidades (GRECO 2005, p.2287). Na sua carreira acadêmica, Sosa escreveu sobre uma variedade de assuntos, incluindo artigos influentes em metafísica, filosofia da linguagem e filosofia da mente – tópicos acerca dos quais, como editor, publicou obras de grande relevância1. Porém, sua grande contribuição é no campo da epistemologia, disciplina que, ao lado de autores como Alvin Goldman, Linda Zagzebski, Fred Dretske, entre outros, ajudou a redefinir as fronteiras e vocabulários (GRECO 2004b; Sosa 2010).

Grosso modo, se fôssemos apresentar numa frase aquilo que caracteriza a posição epistemológica madura de Sosa, poderíamos dizer que, para ele, o conhecimento deve ser entendido como algo produzido pelas virtudes intelectuais de uma pessoa. Enquanto a análise clássica do conhecimento esteve centrada na natureza da crença, para Sosa, a epistemologia deveria estar centrada nas habilidades e no caráter do agente (BATTALY 2008, p.4-5). Com isso, o conhecimento deveria deixar de ser analisado em termos de representação e de crença verdadeira justificada e passar a ser interpretado como uma forma de performance bem sucedida.

E performance significa algum tipo de ação que visa um fim – e no caso da atividade epistêmica, esse fim não poderia ser outro senão a verdade. Há conhecimento se a performance da pessoa é apta, ou seja, é o resultado de competências da pessoa, numa palavra, é resultado das virtudes da pessoa.

A partir de Ernest Sosa, Linda Zagzebski e Jonathan Kvanvig, retomando uma tradição que remonta a Aristóteles (LEAR 1988; Annas 2011), passou-se a considerar seriamente duas coisas: a) que adquirir conhecimento tem alguma relação com o fato do agente ter uma habilidade para alcançar a verdade e b) que o interesse crescente pelo valor epistêmico causou aquilo que Wayne Riggs (2006) chama de “value turn” na epistemologia contemporânea. Os filósofos que defendem a relevância das “virtudes” concordam que virtudes intelectuais expressam um tipo de “excelência cognitiva”.

Entretanto, a despeito disso, não há consenso sobre a Epistemologia da Virtude ou mesmo acerca do que é uma virtude intelectual (BAEHR 2008, p.469). Seguindo uma fórmula apresentada por Guy Axtell (2000) e amplamente aceita, a epistemologia da virtude se organiza em duas posições distintas: a Epistemologia Confiabilista da Virtude (associada a Sosa e Greco) e a Epistemologia Responsabilista da Virtude (associada a Zagzebski e Kvanvig). Tratarei aqui apenas da perspectiva de Sosa2.

3. Mas, para compreendermos o sentido da posição de Sosa é importante, mesmo que abreviadamente, esboçar o cenário do debate epistemológico onde ela se insere. Entre as décadas de 60 e 80 do século passado, as discussões epistemológicas, em geral orbitavam ao redor de duas disputas: a primeira era acerca da estrutura do conhecimento e mobilizava filósofos que defendiam, de um lado, uma posição fundacionista e, do outro, uma posição coerentista; a outra disputa era acerca da natureza do conhecimento e opunha externistas e internistas (POLLOCK & CRUZ 1999).

A disputa entre fundacionistas e coerentistas visava encontrar uma boa resposta ao desafio cético estabelecido por aquilo que ficou conhecido como o “trilema de Agripa”.

Que pode ser apresentado assim (SEXTUS EMPIRICUS 2000 HP, 164-169)3: a) ou nossas crenças não estão fundamentadas em nada; b) ou nossas crenças são fundamentadas em outras crenças que por sua vez são fundamentadas em outras crenças, numa cadeia infinita; c) ou nossas crenças são apoiadas por outras crenças de um sistema fechado, num circulo vicioso. Nesse quadro, o coerentismo seria aquela posição que aceita (mesmo que só parcialmente) a terceira afirmação do trilema, como é o caso do holismo epistemológico de Quine e Davidson. Para esses autores, somente uma crença pode justificar outra crença; uma crença depende de uma rede holística de crenças, um sistema coerente internamente. Já o fundacionismo aceitaria a primeira afirmação do trilema, ou seja, que há certas crenças que não estão fundamentadas em nada, mas podem servir para sustentar todo o sistema.

Diante disso, Sosa cria a seguinte imagem: parece que o conhecimento ora pode ser visto como uma pirâmide – que teria uma fundação sólida que suporta toda a estrutura – ora pode ser pensado como uma jangada – onde as várias partes se sustentam mutuamente (SOSA 1980)4.

Já a disputa entre internismo e externismo5 pode ser resumida assim: o internismo epistemológico concebe que a racionalidade epistêmica está sustentada naquilo que o agente tem acesso cognitivo direto e autorizado; o próprio conceito de justificação é interno e imediato no sentido de que uma pessoa deve descobrir diretamente, pela reflexão, o que está justificado a acreditar (CHISHOLM 1982; BONJOUR 1998; 2003); já o externalismo epistemológico afirma que a racionalidade não está sustentada necessariamente naquilo que o agente tem acesso cognitivo; a natureza e a sociedade provêm tudo aquilo que precisamos para ter conhecimento e o melhor e mais confiável meio para chegar à verdade não necessita ser discriminado e acessado cognitivamente pelo agente (GOLDMAN 1979). A versão mais elaborada do externismo é o confiabilismo, segundo o qual uma crença é justificada se somente se é produzida ou sustentada por um processo confiável que tenda a produzir mais crenças verdadeiras do que crenças falsas, mesmo que o sujeito não esteja consciente disso ou que não seja capaz de explicar as razões que tornam essa crença verdadeira (GOLDMAN 2012).

Todas essas posições, fundacionistas e coerentistas, externistas e internistas, abordam aspectos relevantes da vida cognitiva das pessoas. O problema, porém, é que normalmente os defensores dessas posições estão inclinados a refutar as outras posições, mesmo que encerrem ideias intuitivamente relevantes: poderíamos deixar de lado a ideia de que somos seres naturais e que o modo como nos inserimos nele tem um papel constitutivo nas nossas vidas mentais? Poderíamos também recusar a ideia de que a reflexão joga um papel central nas nossas vidas?

4. A epistemologia da virtude lança uma nova perspectiva sobre essas disputas. Seu ponto de partida está no fato de que se prestarmos a devida atenção à própria noção de conhecimento veremos que ela envolve necessariamente um acontecimento cognitivo que deve ser creditado ao agente, uma vez que, de fato, não podemos atribuir conhecimento a uma pessoa se ela se encontra no estado de ter uma crença verdadeira simplesmente pela sorte (PRITCHARD 2010, p.55). Por isso, Sosa (1985, 1991a, 1991b) argumenta que conhecimento requer crença verdadeira produzida por algo que está relacionado com as habilidades e competências, naturais ou aprendidas, da pessoa e que lhe permite buscar e alcançar a verdade – numa palavra, requer que a pessoa tenha certas virtudes intelectuais.

Como eu disse no início, o sentido de virtude está diretamente associado a uma perspectiva em ética. A ética da virtude, diferente de outras teorias morais, muda o foco da avaliação ética, deslocando a atenção da natureza da ação e do bem moral para, distintamente, investigar o caráter do agente: a ética da virtude nos fala acerca do que é uma pessoa virtuosa, que qualidades e excelências uma pessoa virtuosa deve ter (ANNAS 1993; 2011; HURSTHOUSE 1999). Por isso, é uma ação boa aquilo que normalmente uma pessoa virtuosa faz. Do mesmo modo, uma epistemologia voltada para a virtude em vez de se ocupar com aquilo que torna uma crença justificada e imune à ameaça cética, irá se dedicar a entender as virtudes e vícios intelectuais das pessoas: é conhecimento aquilo que normalmente uma pessoa virtuosa faz.

5. Podemos dizer que a epistemologia da virtude integra dois pontos: a) a ideia de que o conhecimento é uma performance (uma performance apta) e não uma representação e; b) é possível conceber dois tipos de conhecimentos, o conhecimento animal e o conhecimento reflexivo (SOSA 2010).

A ideia de performance apta é crucial porque o conhecimento deve ser o resultado do trabalho, do esforço, da pessoa e não do acaso. Lembremos do caso do caminho de Larissa no Ménon: há uma pessoa que afirma ser aquele o caminho para Larissa, mas disse isso sem saber, por adivinhação, chute; e há uma pessoa que sabe, pois já fez esse caminho outras vezes, domina os mapas etc. Esse aspecto de que há algo que deve ser atribuído ao trabalho da pessoa faz toda a diferença. Nesse sentido, Sosa (2007a, p.22-43) usa o exemplo de um arqueiro lançando sua fecha para o alvo para ilustrar o fato de que uma das exigências que poderiam ser solicitadas para o conhecimento é o fato de que o agente cognitivo deve realizar um tipo específico de performance baseada em certas habilidades. Esse exemplo envolve três elementos: α) accuracy (precisão, correção); β) adroitness (destreza, habilidade) e γ) aptness (aptidão, competência) (SOSA 2007a, p.22-3): A crença é um tipo de performance que almeja um primeiro nível de sucesso se é verdadeira (ou precisa, correta [accurate]), um segundo nível se é competente (ou hábil, destra [adroit]) e um terceiro se sua verdade manifesta a competência do agente da crença [believer] (i.e. se é apta).” (Sosa 2011, p.1; cf. também Sosa 2007a, p.23).

Uma vez que este arqueiro realmente é hábil, então não é meramente uma questão de acaso que ele atinja o alvo.

Espera-se que ele acerte o alvo em certas situações que devem envolver o ambiente (a posição em que se encontra, a luminosidade, a velocidade do vento, não estar sob o efeito de uma droga etc.) e a sua performance. Assim, ele acerta o alvo por causa de sua aptidão e não por causa de algum outro fator qualquer (SOSA 2007a, p.28).

Aquilo que se aplica ao arqueiro, deve se aplicar também ao agente cognitivo. Um agente cognitivo não deveria ser alguém que formou uma crença verdadeira ao acaso, mas alguém que tem uma crença verdadeira em uma variedade de circunstâncias relevantemente semelhantes e que envolve suas habilidades para formar crenças verdadeiras.

No caso do arqueiro, o que é requerido para que o tiro seja apto é que ele seja preciso [accurate] porque é hábil [adroit], bem-sucedido porque competente (SOSA 2007a, p.29). Ou seja, para que uma crença seja conhecimento, não é requerida uma invulnerabilidade ao erro, mas aptidão (SOSA 2007a, p.41). É claro que mesmo sendo apto, o arqueiro pode errar o alvo (o vento soprou forte demais, ele foi dopado sem seu conhecimento por seu adversário etc.).

Assim também é claro que, mesmo apto, um sujeito pode formar uma crença falsa. O requisito para acreditar com aptidão não é, por exemplo, que a crença seja verdadeira, mas que o agente acredite corretamente, onde se entende corretamente como um exercício da competência nas condições apropriadas. Para qualquer crença correta, a correção dessa crença é tributável a uma competência somente se a crença deriva do exercício dessa competência em condições apropriadas para seu exercício e esse exercício nessas condições não produziria muito facilmente uma falsa crença (Sosa 2007a, p.33)6.

Quando uma realização, prática ou intelectual, é creditável a um agente, isso se deve a uma aptidão (para uma competência ou habilidade ou virtude) instalada no agente, cujo exercício é compensado pelo sucesso no seu ato ou atitude. (Sosa 2007a, p.86)

Uma vez que este arqueiro realmente é hábil, então não é meramente uma questão de acaso que ele atinja o alvo. Espera- se que ele acerte o alvo em certas situações que devem envolver o ambiente (a posição em que se encontra, a luminosidade, a velocidade do vento, não estar sob o efeito de uma droga etc.) e a sua performance. Assim, ele acerta o alvo por causa de sua aptidão e não por causa de algum outro fator qualquer (Sosa 2007a, p.28).

Aquilo que se aplica ao arqueiro, deve se aplicar também ao agente cognitivo. Um agente cognitivo não deveria ser alguém que formou uma crença verdadeira ao acaso, mas alguém que tem uma crença verdadeira em uma variedade de circunstâncias relevantemente semelhantes e que envolve suas habilidades para formar crenças verdadeiras.

No caso do arqueiro, o que é requerido para que o tiro seja apto é que ele seja preciso [accurate] porque é hábil [adroit], bem-sucedido porque competente (Sosa 2007a, p.29). Ou seja, para que uma crença seja conhecimento, não é requerida uma invulnerabilidade ao erro, mas aptidão (Sosa 2007a, p.41). É claro que mesmo sendo apto, o arqueiro pode errar o alvo (o vento soprou forte demais, ele foi dopado sem seu conhecimento por seu adversário etc.).

Assim também é claro que, mesmo apto, um sujeito pode formar uma crença falsa. O requisito para acreditar com aptidão não é, por exemplo, que a crença seja verdadeira, mas que o agente acredite corretamente, onde se entende corretamente como um exercício da competência nas condições apropriadas. Para qualquer crença correta, a correção dessa crença é tributável a uma competência somente se a crença deriva do exercício dessa competência em condições apropriadas para seu exercício e esse exercício nessas condições não produziria muito facilmente uma falsa crença (Sosa 2007a, p.33)7.

Quando uma realização, prática ou intelectual, é creditável a um agente, isso se deve a uma aptidão (para uma competência ou habilidade ou virtude) instalada no agente, cujo exercício é compensado pelo sucesso no seu ato ou atitude. (Sosa 2007a, p.86)

6. Aqui surge uma distinção crucial para Sosa entre “conhecimento animal” e “conhecimento reflexivo” (Sosa 2004).

Como vimos, as crenças são um caso especial de performance, performances epistêmicas: quando uma crença é corretamente atribuída à competência exercida nas suas condições apropriadas, isto conta como apta e como conhecimento de um tipo, conhecimento animal (Sosa 2007a, p.93). Aqui, o adjetivo animal não tem qualquer conotação negativa; serve apenas para enfatizar o sentido natural do processo de aquisição de conhecimento e tem como paradigma o conhecimento perceptivo que é adquirido passivamente.

O conhecimento animal requer crença apta sem, porém, requerer uma crença apta defensável, ou seja, uma crença apta que o sujeito acredita de modo apto que ela é apta e cuja aptidão do sujeito pode ser defendida contra dúvidas céticas (Sosa 2007a, p.24).

Como vimos no início, o confiabilismo, enquanto uma forma de externismo epistêmico, declara que o fato de que o agente cognitivo não sabe como ele faz para formar crenças verdadeiras e nem mesmo faz alguma ideia de que seu procedimento é confiável, não o impede de ter conhecimento; conhecimento não exigiria razões. A epistemologia da virtude tem uma inclinação externista e confiabilista e aceita que um agente tenha conhecimento animal se e somente se a sua crença é apta, ou seja: a) a crença é verdadeira, b) é produzida por virtude intelectual, c) o sujeito obtém a verdade porque sua crença foi produzida por suas virtudes intelectuais. Uma crença é verdadeira porque é outorgada à competência do sujeito; ele não chega à verdade por acidente (SOSA 2007a, p.92), mesmo que isso não exija reflexão e crenças meta-cognitivas (se verificarmos nossas vidas, nos daremos conta de que muito do que conhecemos não temos como exercer alguma autoridade epistêmica nem sabemos como justificar por meio de razões).

7. Mas, por outro lado, a epistemologia da virtude também aceita a relevância de algo como uma consciência intencional, pois o agente que está consciente do modo e do meio como que ele forma suas crenças (ou seja, ele tem o cuidado de evitar o erro e toma as evidências disponíveis em conta), será mais virtuoso e, com isso, mais confiável do que alguém que não tem essa atitude. Podemos pensar que para ter conhecimento não é suficiente confiabilidade, é preciso também ter boas razões para pensar que se é confiável. Assim, podemos admitir que a pessoa epistemicamente virtuosa exerce excelências externas (está envolvida em processos confiáveis providos pela natureza, pelas suas virtudes perceptivas, pela sociedade) e excelências internas (um agente seria virtuoso se ele tivesse bons motivos disponíveis para apoiar o que ele acredita).

Para Sosa, o conhecimento reflexivo requer não apenas crença apta, mas uma crença apta que também pode ser defendida como sendo apta (SOSA 2007a, p.24; 2011, p.67- 95). Nas situações onde o agente tem uma crença apta, mas não pode estabelecer por que ela é apta (por exemplo, o caso do caleidoscópio que conta com uma pessoa que manipula a luz), o que lhe falta não é conhecimento reflexivo. O conhecimento reflexivo é adquirido ativamente como resultado de um inquérito intencional; exige que o agente realize ações intelectuais voluntárias: pensando evidências, formulando hipóteses, avaliando objeções, considerando alternativas, formulando conjecturas, como no caso da ciência, da filosofia etc. (ROBERTS & WOOD 2007). Por isso, o conhecimento reflexivo vai além do conhecimento animal (mas isso não significa que é melhor do que ele) e requer também uma apreensão apta de que a crença é apta (SOSA 2007a, p.108).

O conhecimento animal não requer que o agente cognitivo tenha uma “perspectiva epistêmica” acerca das suas crenças, uma perspectiva a partir da qual ele endossa a fonte da sua crença e que ele pode estabelecer que tal fonte é confiável para produzir a verdade (SOSA 2009a, p.135). O conhecimento reflexivo requer essa condição adicional e aceita a ideia de “graus” de conhecimento – pessoas conhecem coisas melhor do que outras pessoas. A aquisição reflexiva de conhecimento implica em perseguir um objetivo guiado pela própria inteligência, curiosidade, interesse, informação e deliberação.

8. Por fim, como Sosa responde à pergunta de Platão/ Sócrates acerca do valor do conhecimento? O conhecimento é mais valioso do que a simples crença porque é expressão das virtudes intelectuais de uma pessoa. Uma pessoa tem conhecimento se ele chega ao conhecimento porque sua crença foi produzida por suas virtudes intelectuais; o agente chegou à crença verdadeira por causa das suas próprias virtudes e, assim, merece crédito por isso (SOSA 2011, p.4).

Na minha opinião, essas ideias contidas no livro Epistemologia da Virtude são uma boa inspiração para voltarmos nossas atenções para o valor do conhecimento e para o lugar que a reflexão ocupa nas nossas vidas cognitivas. Não porque Sosa esteja certo – e talvez não esteja, seus críticos não cansam de indicar erros, imprecisões, obscuridades8 –, mas porque isso é uma boa razão para continuarmos fazendo investigações filosóficas.

Notas

1 Entre essas publicações, destaque para Sosa & Tooley (1993), Kim & Sosa (1996; 1999) e Lackey & Sosa (2006).

2 Em outro lugar discuto alguns pontos da Epistemologia Responsabilista da Virtude, especialmente o tema do “valor do entendimento” em Zagzebski e Kvanvig (Silva Filho 2013b).

3  São cinco os modos de Agripa: desacordo, regresso ao infinito, relatividade, hipótese e circularidade (sobre o trilema, ver Williams 2001, p.58-68).

4 Aqueles que aceitam “b” defendem uma posição chamada de infinitismo (Klein 1999), mas isso não interesse ao escopo desta resenha.

5  É importante não confundir internismo/externismo em epistemologia como a disputa internismo/ externismo em filosofia da mente e semântica filosófica. Em filosofia da mente, o problema orbita em torno de estabelecer a natureza do conteúdo de expressões oblíquas que envolvem termos psicológicos como “penso que”, “imagino que” etc. O externismo defende que os conteúdos dos estados mentais intencionais de um sujeito, como pensamentos e crenças, dependem lógica ou conceitualmente do entorno físico e social externo a esse sujeito: se eu penso ou acredito que há água no copo esse meu pensamento depende do fato de que há água no copo. O que determinaria, ao menos em parte, o conteúdo dos nossos pensamentos e crenças – usemos o jargão filosófico e falemos de atitudes proposicionais – são as relações que o sujeito mantém com o mundo externo. Para o internismo, os conteúdos são determinados inteiramente por propriedades intrínsecas do sujeito (Goldberg 2007; Kallestrup 2012. Eu dediquei um livro às consequências desse debate para a noção de racionalidade (Silva Filho 2010).

6 Isso serve para resolver o problema de Gettier – que crenças podem ser verdadeiras e justificadas, mas, mesmo assim, não ser conhecimento – e o problema do valor do conhecimento – qual a diferença entre crença verdadeira e conhecimento? Para Sosa, crenças podem ser verdadeiras e justificadas sem serem aptas, ao passo que para constituir conhecimento, a crença deve ser apta, não somente verdadeira e justificada (Sosa 2007a, p.33).

7  Isso serve para resolver o problema de Gettier – que crenças podem ser verdadeiras e justificadas, mas, mesmo assim, não ser conhecimento – e o problema do valor do conhecimento – qual a diferença entre crença verdadeira e conhecimento? Para Sosa, crenças podem ser verdadeiras e justificadas sem serem aptas, ao passo que para constituir conhecimento, a crença deve ser apta, não somente verdadeira e justificada (Sosa 2007a, p.33).

8 Em outro lugar discuto criticamente alguns pontos da epistemologia de Sosa (Silva Filho 2013a).

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Waldomiro Silva Filho – Pesquisador do CNPq e Professor Associado da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA, Brasil. E-mail: [email protected]

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A ética do uso e da seleção de embriões – FRIAS (Ph)

FRIAS, Lincoln. A ética do uso e da seleção de embriões. Editora UFSC, 2012.  Resenha de: KRAUSE, Décio; MERLUSSI, Pedro. Philósophos, Goiânia, v.18, n. 1, p.219-232, jan./jun, 2013.

Os acadêmicos em filosofia são diversas vezes acusados de tratar de temas que não possuem qualquer relevância fora do âmbito das universidades. O livro A Ética do uso e da seleção de embriões, de Lincoln Frias, contribui para colocar em causa esta ideia popular, constituindo-se como um grande exemplo acerca de como os filósofos podem ser mais ousados e tentar contribuir ativamente para a discussão pública de assuntos importantes. O livro tem méritos inegáveis quanto à discussão informal de senso comum, tratando de tema atual e relevante, para o qual maior atenção deveria ser dada, o que faz de seu trabalho um texto importante para a discussão pública de questões filosóficas.

Infelizmente, o nosso uso do termo “tentar” não foi por acaso. O livro de Frias é apenas uma tentativa de tratar do problema ético da seleção de embriões, visando trazer o debate ou, mais especificamente, muito da argumentação sobre o tema, para a tradição analítica em filosofia, como sustenta o próprio autor à página 21. Mas é neste ponto que apresenta falhas evidentes. Com esta resenha, objetivamos apresentar algumas críticas ao modo expositivo de Frias, lembrando que o trabalho de crítica, embora muito comum em países de língua inglesa, é pouco comum em países como o Brasil, onde as críticas são, via de regra, levadas para o lado pessoal. Esperamos que esta resenha não seja considerada deste modo.

O problema geral discutido neste livro é o de saber se a prática da seleção de embriões é moralmente permissível. Seja qual for a resposta que se ofereça, e aqui não estamos defendendo qualquer delas, deve-se apresentar razões a seu favor. Quem defende que a seleção de embriões para pesquisas não é permissível, precisa oferecer razões, por exemplo, a favor da tese de que os embriões são passíveis de consideração moral, isto é, que eles instanciam propriedades moralmente relevantes. Por outro lado, os que sustentam a permissibilidade da seleção de embriões parecem se comprometer com a tese de que os embriões não têm relevância moral. O livro de Frias defende esta última posição. Possui três capítulos e uma breve introdução ao problema.

Na introdução, como é de se esperar, o autor apresenta uma breve caracterização da questão. Os objetivos dos capítulos seguintes são apresentados pelo próprio Frias:

O primeiro [capítulo] trata da seguinte questão: a pesquisa com células- tronco embrionárias deve ser permitida, mesmo que signifique a morte de embriões sadios? Para justificar uma resposta positiva, a argumentação procura mostrar que o concepcionismo (a tese de que o embrião possui direito à vida desde a concepção) está equivocado. Isso é feito examinando os principais argumentos que poderiam sustentar essa posição e apontando as falhas de cada um deles. (FRIAS, 2012, p.31).

O segundo e o terceiro capítulos se concentram na seguinte questão: a seleção genética de embriões deve ser permitida, ainda que implica a morte de embriões sadios e mesmo que não se restrinja a motivações terapêuticas? Para justificar uma resposta positiva, o terceiro capítulo (sic) argumenta contra o antisselecionismo, a ideia de que há algo de moralmente errado na seleção de embriões […].

O terceiro capítulo é dedicado a indicar quando a seleção é aceitável e quando ela não é”. (FRIAS, 2012, pp.31-32). O que se espera de um livro que lida diretamente com um problema filosófico e avalia, na tradição analítica em filosofia, é solidez dos argumentos a favor e contra suas principais tentativas de solução, bem como que o autor domine com precisão conceitos que qualquer profissional da área tem de dominar: no caso de sua proposta, mencionamos conceitos como os de argumento, validade, solidez (correção), etc., ou seja, conceitos elementares de lógica, mesmo que a de lógica informal. O objetivo desta resenha é o de mostrar que o autor usa de maneira indisciplinada alguns conceitos elementares de lógica e filosofia. Não nos posicionaremos a respeito da tese defendida pelo autor.

Para começar a justificar nossas críticas, é importante considerar o conceito de argumento. Textos tradicionais (e aqui mencionamos somente dois casos), definem argumento do seguinte modo: Um argumento é uma série conectada de frases, afirmações ou proposições (chamadas “premissas”) que pretendem dar razões de algum tipo para uma frase, afirmação ou proposição (chamada a “conclusão”). (ARMSTRONG & FOGELIN, 2010, p.3).

Um argumento, no sentido do lógico, é qualquer grupo de proposições das quais uma é afirmada como se seguindo das outras, que são consideradas como fornecendo suporte ou razões para a verdade da primeira (COPI, I.M. Introduction to Logic 8th edition, 1990, p.6).

Como se vê, tratam-se de dispositivos elaborados em uma certa linguagem que procuram sustentar uma conclusão, mas deixam em aberto uma série de outras questões, como o que se deve entender por “sustentar” (a conclusão), “dar razões”, “provas evidentes” e “verdade”. Porém, deixemos esses esclarecimentos de lado, os quais somente dão indícios a favor da ideia de que é difícil encontrar nos textos comuns uma definição suficientemente precisa e não ambígua de argumento. Pensamos que podemos ser mais flexíveis do que as definições acima permitem, de modo a acolher os argumentos considerados por Frias, e dizer que, informalmente falando, de um ponto de vista lógico, um argumento é uma coleção de sentenças de uma determinada linguagem que pode ser separada em duas sub-coleções não vazias e não necessariamente disjuntas, a primeira sendo dita coleção (ou conjunto) das premissas e a segunda de coleção (ou conjunto) das conclusões. Importante é que um argumento não pode ser simplesmente uma coleção de asserções, mas as premissas devem, de alguma forma, estabelecer as conclusões. Igualmente importante é notar que assumimos esta definição para acomodar os “argumentos” contemplados pelo autor da presente obra, assim que um argumento pode conter mais de uma conclusão.1 Ora, uma caracterização informal como esta traz a necessidade de outros esclarecimentos. O que se entende por  “estabelecer”? (deixaremos implícitas as noções de linguagem e de asserções ou sentenças formuladas nesta linguagem).

Por “estabelecer as conclusões” queremos dizer que as conclusões devem se seguir de um modo não subjetivo (e isso é importante), das premissas. Geralmente, isso pressupõe o uso de algum tipo de lógica, mesmo que indutiva. Porém, via de regra os argumentos que utilizamos são formulados de modo a conterem uma única conclusão, que deve se seguir dedutivamente das premissas. A lógica em questão dá sentido preciso à noção de inferência que permeia a de argumento.

Note-se que aqui estamos enfatizando a noção de dedução e não de verdade; normalmente, os textos (como o de Copi acima mencionado) classificam um argumento de válido se, e somente se, a conclusão (ou as conclusões, mas não falaremos mais no plural) é verdadeira sempre que as premissas forem verdadeiras. Mas aqui entra em jogo o problemático conceito de verdade. Porém, se admitirmos que em última instância os argumentos considerados possam ser vertidos para a linguagem da lógica elementar clássica (ou, na maioria das vezes da linguagem do cálculo proposicional clássico), podemos deixar de lado a noção de verdade em prol da de demonstrabilidade, tendo em vista a completude dessas lógicas.

Cabe aqui, no entanto, uma observação. Quando usamos tais linguagens para mapear ou traduzir argumentos, há que se fazer uma convenção, a saber, a de que é possível tal empreitada, pois os conectivos, expressões quantificadas, etc. das linguagens naturais não coincidem exatamente com as correspondentes noções lógicas. Mas isso não constitui problema para a definição que estamos realizando, pois em momento algum Frias verte seus argumentos em linguagem lógica ou faz uso explícito de uma lógica bem determinada.

Mérito seu? Não cremos. O uso de linguagens informais tem seus limites, e se Frias pretendesse discutir as argumentações contra e a favor da utilização de embriões informalmente, sem o rigor da filosofia analítica, nossa resenha nem mesmo seria escrita. Contudo, da forma como ele apresenta seus argumentos, vis. com premissas e conclusões, cremos que uma explicação lógica deva ser dada.

Frias nos apresenta uma série de “argumentos” dispostos em premissas e conclusões. No entanto, na quase totalidade das vezes, o que se percebe é uma sequência enorme de falhas elementares na formulação dos “argumentos, de non sequitur na maioria delas, de termos utilizados dubiamente e com vários sentidos numa mesma argumentação.

Ou seja, seu trabalho, dentro da tradição analítica, é primário e mal feito. É surpreendente que um livro com uma apresentação dessas tenha granjeado tamanha reputação favorável.

Mas vejamos alguns casos particulares, pois se fôssemos considerar todos teríamos que reproduzir aqui praticamente o livro todo.

Vejamos um exemplo de um argumento dado pelo autor, chamado de “Argumento da Desigualdade”, onde as Ps são premissas e as Cs são conclusões:

P1 – A seleção de embriões é muito cara (e provavelmente não deixará de ser) P2 – Se for disseminada, ela será usada predominantemente por ricos.

C1 – A seleção de embriões aumentará a desigualdade social.

P3 – Os ricos já têm muitas vantagens sobre os pobres.

P4 – É injusto que exista desigualdade social muito grande.

C2– A seleção de embriões é injusta.

C3– A seleção de embriões não deve ser permitida. (FRIAS, 2012, p.150).

Obviamente, a conclusão C1 não se segue. Assumindo a definição modal de validade, a saber, que um argumento é válido se, e só se, é impossível ter premissas verdadeiras e conclusão falsa, é fácil ver que C1 não se segue de P1 e P2.

Isto porque a seleção de embriões “dos pobres” (se fosse possível caracterizar precisamente esta classe de pessoas) poderia ser financiada pelo governo ou pelos próprios ricos (idem), o que diminuiria a desigualdade ao invés de aumentá-la. Assim, é possível ter conclusão falsa mesmo que as premissas sejam verdadeiras. Em filosofia tradicional, diz-se Non Sequitur de uma situação assim. O argumento, como podemos observar, é mal formulado. As demais premissas são igualmente absurdas, o que se constata por simples inspeção, devido à vaguidade dos conceitos empregados (justiça, vantagem, etc.).

O leitor poderia pensar que este caso tenha sido isolado, talvez um equívoco isolado do autor. Mas não é. Citamos mais alguns exemplos:

P1- Se os gametas não têm direito à vida e os recém-nascidos o têm, é preciso identificar um momento entre eles em que há a aquisição do direito.

P2 – Esse momento precisa corresponder a alguma mudança no feto que justifique a atribuição de direito à vida.

P3 – Não foi encontrado nenhum critério satisfatório para identificar um momento decisivo durante a gestação em que ocorresse uma mudança no feto que justificasse a atribuição do direito à vida a ele.

C1 – Portanto, a gestação é um processo descontínuo, sem saltos.

P4 – A fertilização é um processo descontínuo, um salto.

C2 – Portanto, a aquisição do direito à vida se dá na fertilização (FRIAS, 2012, p.51).

Esse raciocínio é válido e suas premissas P1, P2 e P3 são aceitáveis.

Ora, dizer que até o momento não foram encontrados quaisquer critérios não implica que eles não existam. Um argumento que visa sustentar as conclusões não pode ser formulado deste modo. De que momento o autor está falando? Do dia da publicação do seu livro ou de quando a premissa foi escrita? E ele se refere a todas as partes do mundo ou a apenas o que é apresentado na literatura? Claro que o leitor poderia dizer que Frias está expondo os argumentos dos seus adversários, os quais ele visa combater.

Mas nenhum desses “argumentos“ é apresentado da forma como a tradição analítica sugere (para tal, basta consultar um livro de lógica, como o de Copi antes mencionado). E se ele pretendia outra forma de discurso, por que se juntou, ou pretendeu se juntar, a esta tradição? A objeção aqui é simples: os filósofos têm de ser suficientemente caridosos com as posições adversárias e oferecer formulações plausíveis dos argumentos que procuram sustentar a contraditória daquilo que defendem. Frias não faz isso; pelo contrário, simplesmente apresenta os argumentos menos sofisticados contra o que defende.

Repare ademais na última frase do autor: ele diz que o raciocínio é válido. Esta é uma afirmação curiosa. Pode ele demonstrar que isso é de fato assim? (Este é um desafio: nos mostrar, dentro da tradição à qual está se vinculando, que o argumento é válido). É fácil perceber que as supostas conclusões do raciocínio não se seguem das premissas. Elas certamente não se seguiriam mesmo se conseguíssemos formalizar o argumento na lógica proposicional clássica.

Também certamente não se seguem se isso fosse feito na lógica de predicados clássica. O que se pode sugerir é que o que ele nos apresenta seja um entimema, ou seja, um argumento com premissas suprimidas. Muito provavelmente é o que ocorre no caso acima. Entretanto, torna-se inútil expor o raciocínio daquela maneira. Tipicamente reconhecemos um entimema quando o formulamos em sua forma canônica; mas a forma acima não é nem de longe canônica. A formulação de Frias nada mais é do que uma exposição imprecisa de um suposto argumento com inúmeras premissas suprimidas.

Outro problema notável – embora recorrente – é o uso da dupla negação na premissa 3. A dupla negação é uma afirmação, diziam os latinos. Certamente que não há problemas em cometer esse tipo de engano em nossa vida cotidiana. Mas aqui estamos diante de uma obra acadêmica que tem a pretensão de ser um livro sério e logicamente disciplinado. É um erro elementar que não poderia passar despercebido.

A crítica que fizemos da afirmação acima, a saber, de que o argumento é válido, foi para indicar que o livro comete erros conceituais elementares em lógica. O leitor poderia pensar que este caso tenha sido isolado, talvez um equívoco isolado do autor. Mas não é. Citemos mais alguns exemplos:

P1 – nós temos direito à vida porque nós somos nós.

P2 – nós somos da espécie Homo sapiens.

P3 – embriões são da espécie Homo sapiens.

C – embriões têm direito à vida.

Não há dúvidas de que P2 e P3 são verdadeiras e de que C é válida (sic) caso P1 também seja verdadeira (FRIAS, 2012, p.61).

Um dos erros elementares da passagem acima é a afirmação de que a conclusão é válida. O autor comete um erro categorial, porque a propriedade de ser válido é instanciada por argumentos, não por conclusões de argumentos. O conceito de “fórmula válida” é outro e não se aplica aqui. A rigor, a conclusão de um argumento não pode ser válida. A conclusão pode ser verdadeira ou falsa, pois é um portador-de- verdade. Ademais, o que quer ele com o adendo à premissa 1 “porque nós somos nós”? Afirmar o princípio da identidade? Para quê? Afinal, é supostamente uma lei lógica.

Vamos tentar formalizar esse argumento na linguagem da lógica elementar clássica. Frias poderia ter agido da seguinte forma. A premissa 1 ficaria algo como “Para todo x, se x=x, então Dx”, em que Dx significa que x tem direito à vida. Ora, é trivial que isso equivale a “para todo x, Dx”.

Aceitemos esta como a primeira premissa: assim teríamos de modo óbvio

P1- Para todo x, Dx

P2- Para todo x, Hx (onde Hx = x é da espécie Homo Sapiens)

P3- Para todo x, se Ex então Hx. (onde Ex = x é um embrião)

C – Para todo x, se Ex então Dx.

Deste modo, pode-se comprovar facilmente que o argumento é válido aplicando-se as regras da lógica quantificacional usual, enquanto que na formulação proposta a derivação se afigura dúbia, porque o argumento está mal formulado. Apesar do nome sugestivo dado por Frias, sua P1 não é uma premissa. É, antes disso, um argumento.

“Temos direito à vida porque nós somos nós” é um argumento, o que é fácil de ver pelo indicador de premissa “porque”. Pretende-se sustentar a conclusão de que temos direito à vida com base na premissa de que nós somos nós.

O que ele provavelmente queria dizer, aplicando o princípio da caridade, era o seguinte: se nós somos nós, então temos direito à vida. Mas isto é uma condicional. E, é claro, uma condicional não é um argumento. Ademais, é um condicional com antecedente verdadeiro. Então, se é aceito como uma premissa, para que o antecedente? O que Frias poderia ter feito para formular o argumento de maneira simples e correta era apenas isto: assumindo que o domínio de quantificação seja o conjunto de seres vivos, temos o seguinte argumento:

  1. Para todo x, se x é da espécie Homo sapiens, então x tem direito à vida.
  2. Os embriões são da espécie Homo sapiens.
  3. Logo, os embriões têm direito à vida.

Esta formulação torna o argumento dedutivamente válido.

Obviamente não o torna sólido (correto), com premissas verdadeiras. Mas esse é outro problema. Como já dissemos, não é nosso objetivo discordar da conclusão do autor, mas antes denunciar o uso indisciplinado de conceitos elementares de lógica.

Infelizmente, as incongruências neste que poderia ser um belo texto não param por aí. Vejamos mais um exemplo, dado à página 62, que procura mostrar como um grupo justifica sua superioridade. Diz ele:

P1’ – nós temos direito de escravizar

P2- nós somos brancos

P3- nuvens são brancas C- nuvens têm o direito de escravizar.

O autor diz que a conclusão é absurda, mas sua justificativa é completamente errada. O que ele faz é apresentar a famosa falácia dos quatro termos. O termo “branco” está sendo usado em dois sentidos diferentes. Para mostrar que os brancos não têm o direito de escravizar, ele teria de ter feito isso mediante outro argumento, não mediante uma falácia muito conhecida. O que se poderia dizer é que simplesmente ter uma determinada cor de pele não garante relevância moral a um agente. O termo “branco” não se aplica de igual modo a nuvens e a pessoas, pois pessoas não são “brancas” no mesmo sentido em que nuvens o são.

Dissemos acima que uma conclusão não pode ser válida, pois a validade é uma propriedade de argumentos. É importante insistir que os argumentos não são portadores- de- verdade. Proposições são, presumivelmente, portadores primários de valor de verdade. Frases declarativas são portadores- de-verdade. Argumentos seguramente não o são.

Novamente o autor parece desconhecer esta trivialidade, como ele afirma: “Logo, se o Argumento do Futuro de Valor é verdadeiro, o concepcionismo também o é, o embrião possui direito à vida desde a concepção” (FRIAS, 2012, p.89).

Vários outros exemplos de erros conceituais elementares poderiam ser apontados, mas deixamos os demais exemplos implícitos, acreditando que nossos poucos exemplos já são suficientes para se perceber que a opção feita pelo autor de seguir o viés analítico e na forma de apresentação dos argumentos comprometeu significativamente a sua obra, que no entanto tem mérito, como dissemos, por tratar do tema que trata e pela significatividade das teses que defende, ou que pretendeu defender.

Uma das virtudes de uma obra filosófica é levar em conta as posições contrárias ao que se defende. Mas não é uma virtude fazer uma caricatura das posições contrárias à que se defende. Os argumentos que Frias apresenta contra a tese por ele defendida são caricaturas grosseiras e filosoficamente ingênuas. Considere finalmente o seguinte exemplo dado por ele:

P1 – É errado brincar de Deus.

P2 – Selecionar embriões é brincar de Deus.

C – Logo, a seleção de embriões é errada (FRIAS, 2012, p.125).

Qual filósofo profissional defendeu ou defenderia este argumento? Asseguramos que esta não foi uma pergunta retórica.

Não há quaisquer referências no livro de Frias que nos ajude a respondê-la. A premissa P1 é tão vaga que não é inteligível como possa ser usada em um argumento. O que pode significar “brincar de Deus”? O argumento, pelo tanto quanto sabemos, não foi defendido, tal como exposto, por qualquer filósofo profissional. Não haveria problemas se o autor dissesse que o objetivo deste capítulo era o de refutar argumentos usados pelo senso comum. Mas não é o que ele diz. Na Introdução da obra, Frias diz que, no segundo capítulo, “são consideradas as principais alternativas sobre o que há de errado na seleção: o Argumento Brincar de Deus […]” (FRIAS, 2012, p.31). E, como citamos no início desta resenha, ele quer considerar os principais argumentos contra sua posição. Não há razão em apresentar esse tipo de objeção numa obra que quer considerar as principais alternativas e os principais argumentos contra o que quer defender.

Em resumo, procuramos mostrar com alguns exemplos que esta obra comete inúmeros erros elementares. Há erros conceituais, espantalhos com a posição adversária, entre diversos outros problemas. Um dos méritos do autor é a clareza na escrita, que evidenciou com facilidade os erros que aqui denunciamos. Nosso objetivo nesta resenha não foi o de discordar da conclusão defendida pelo autor. A obra infelizmente carece de competências mínimas que a permitiriam discuti-la de maneira filosoficamente rigorosa.

Concluímos que a obra não pode ser considerada como uma tentativa séria de solução para um problema filosófico genuíno.

O que se há de lamentar, finalmente, é que uma obra como essa seja usada como referência na área, tamanho é o seu primarismo argumentativo.

Nota

1 Aqui distinguimos uma noção pragmática de argumento, captada pelas duas definições que citamos acima, e uma noção lógica de argumento, que é a definição que oferecemos para acomodar os argumentos apresentados por Frias. Agradecemos ao professor Newton C. da Costa por notar esta distinção.

Décio Krause – Professor Adjunto na Faculdade de filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. E-mail:  [email protected]

Pedro Merlussi – Mestrando na Faculdade de filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. E-mail:  [email protected]

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Die Späten Wissenschaftlichen Vorlesungen (1809-1814) – FICHTE (Ph)

FICHTE, J. G. Die Späten Wissenschaftlichen Vorlesungen (1809-1814). Editado por H. G. von Manz, E. Fuchs, R. Lauth, e Radrizzani, I. 3º volume. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 2012. Resenha de: SANTORO, Thiago Suman. Philósophos, Goiânia, v.18, n. 1, p.233-243, jan./jun., 2013

Como terceiro volume da série intitulada J.G. Fichte – Späte wissenschaftliche Vorlesungen (Studientexte), o livro ora avaliado traz a lume importantes textos da fase berlinense do filósofo, que na sua maior parte permaneceram inéditos até metade do século XX, com o início da edição crítica de suas obras completas. O presente volume inclui uma reprodução dos manuscritos originais de três cursos ministrados entre o inverno de 1811 e o verão de 1812, que têm por título Lições sobre a Determinação do Sábio1 (Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten), Doutrina do Direito (Rechtslehre) e Doutrina da Ética (Sittenlehre). Enquanto objetivo geral da presente resenha, pretendo não exatamente estabelecer uma análise crítica do conteúdo filosófico das obras em questão, algo que sem dúvida necessariamente ultrapassaria em muito o escopo de uma resenha padrão, considerando-se a complexidade dos textos aqui recolhidos, e considerando sobretudo que não são textos de um novo autor senão obras de um filósofo já consagrado na história, mas almejo apenas apresentar de modo sucinto alguns dos principais temas tratados no livro, de modo a instigar a curiosidade filosófica do leitor, e principalmente chamar a atenção para algumas qualidades dessa edição primorosa em novo formato. Segue abaixo, assim, uma breve descrição geral do conteúdo dos cursos em questão.

Também denominado Doutrina Ética para o Sábio2, temos na presente edição o terceiro ciclo de preleções sobre esse tema, intitulado Lições sobre a Determinação do Sábio (Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten), e proferido em 1811 na recém fundada Universidade de Berlim, um curso que Fichte já lecionara no início de sua carreira acadêmica em Jena (1794)3, e posteriormente no seu retorno à vida universitária em Erlangen (1805).

Na primeira versão do curso, em Jena, encontramos ainda um texto que traz diversas questões teóricas não resolvidas, pois somente alguns anos mais tarde, após a elaboração da Doutrina do Direito de 1976 e da segunda versão da Doutrina-da-Ciência (nova methodo), Fichte responderá de maneira adequada, por exemplo, ao problema do papel que a intersubjetividade desempenha na definição da tarefa do sábio. Além disso, esse texto inicial consagra suas primeiras preleções à descrição de três premissas fundamentais da definição da tarefa do sábio: se na primeira lição temos uma determinação do homem em si, na lição subsequente encontramos uma determinação do homem na sociedade, seguida de uma investigação sobre as distintas posições ou classes profissionais na sociedade. Só a partir dessas etapas seria possível ao filósofo sistemático Fichte deduzir, na quarta lição, uma Determinação do Sábio. Ao final da obra, o autor faz um excurso sobre Rousseau.

Todas essas etapas preparatórias serão suprimidas já na edição de 1805, e o curso de Berlim, seguindo os moldes deste último, apresenta como desenvolvimento ulterior das teses de 1794, além da determinação do sábio, uma espécie de tipologia dos distintos modos de atuação e comunicação desse mesmo sábio. Assim, o referido curso pretende responder, nas próprias palavras de Fichte, às seguintes questões fundamentais: 1) o que é o sábio? 2) como ele se torna sábio? 3) como seu ser interior se exterioriza no fenômeno?4 Engana-se, todavia, aquele leitor que pretende encontrar aqui uma simples investigação superficial acerca do status quo da emergente classe acadêmica na Alemanha da época, ou alguma espécie de manual de etiqueta para o métier do filósofo universitário. Não por acaso decidi traduzir o termo alemão Gelehrte, utilizado no título da obra, por “sábio”, ao invés de “douto” ou “erudito”. De acordo com as primeiras lições do curso de 1811, o sábio serve como uma espécie de mediação entre os aspectos suprassensíveis e sensíveis da realidade. Em outras palavras, Fichte sugere que a essência do sábio, na esteira do modelo platônico, consiste em uma visão de ideias, isto é, em certa compreensão intuitiva do fundamento conceitual que determina a própria realidade humana. Caso o sujeito decida transmitir essas ideias a outros, ele se torna professor. Caso ele pretenda implementar essas ideias no mundo, ele se torna administrador do estado.

Ao responder à segunda questão inicial, Fichte observa que o processo de tornar-se sábio não pode se realizar desde fora, desde um procedimento mecânico, mesmo que através do domínio da razão ou da linguagem, pois o objetivo final dessa formação só é atingido quando o indivíduo acessa sua intuição interna e desenvolve, conforme indica em tom um tanto místico o próprio texto de Fichte, um “olho para o suprassensível” 5 . Somente através desse esforço interno próprio, para além da mera erudição, é que o sujeito alcança o estatuto de sábio.

Nesse sentido, o teor da tese anterior parece delimitar o percurso ulterior da obra, na medida em que Fichte utiliza a distinção entre sábios e não sábios para estabelecer uma controversa estrutura hierárquica de funções sociais (mais uma vez ressoa aqui a politiké platônica). E a partir disso chegamos à tentativa fichtiana de responder à terceira questão fundamental da obra. Contudo, infelizmente a natureza inacabada do texto original (pois não dispomos mais do restante das lições que continuaram o curso de Berlim), ao invés de explicitar a forma de manifestação ou exteriorização do ser interior do sábio, conforme o plano inicial da obra, traz na sua quinta e última lição apenas uma descrição de critérios para a escolha dos distintos tipos de alunos nessa formação.

A presente edição das conferências de Fichte no período tardio de sua filosofia contém ainda duas importantes obras dos ciclos de lições sobre subdisciplinas filosóficas iniciados já no período de Jena, a saber, a Doutrina do Direito e Doutrina da Ética. No que diz respeito ao primeiro, o texto final dessa edição estudantil enfrentou certo desafio editorial. Na edição crítica GA, temos uma reprodução exata do manuscrito resumido e muitas vezes críptico redigido pelo próprio autor. Além disso, há uma versão desse curso editada pelo filho de Fichte6, que no entanto acrescenta, sem indicar precisamente em que situação, passagens do texto fichtiano de 1796 sobre o mesmo tópico, ao considerar que o curso de Berlim faz remissões às preleções desse primeiro ciclo. A presente edição optou por um sensato meio termo, na medida em que adotou o texto original como base, acrescentando quando estritamente necessário à compreensão os trechos de 1796 entre colchetes.

Ainda que através de dois manuscritos de estudantes da época possamos afirmar que Fichte de fato fez referências à sua obra do período jenense sobre direito no curso de Berlim, não se trata aqui no presente texto de uma simples reformulação das teses anteriores. As lições tardias estão estruturadas em duas grandes partes, sendo a primeira uma introdução ao próprio conceito de direito que supera em clareza e facilidade de compreensão a exposição de Jena, e tendo como segunda parte principal uma análise dos contratos de propriedade. Além disso há um anexo relativo ao direito internacional (Völkerrecht), e desaparece o conteúdo, frágil em sentido argumentativo, a respeito do direito familiar que constava na primeira versão da doutrina do direito.

Outra diferença marcante dessa versão tardia da doutrina do direito com relação à anterior consiste na exposição mais direta daquilo que poderíamos denominar por fundamentação do direito. Ao contrário do texto de 1796, redigido ainda na época em que Fichte iniciava o desenvolvimento de seu sistema filosófico, a presente obra pôde já tomar como pressupostas as deduções da intersubjetividade estabelecidas, por exemplo, na Doutrina-da-Ciência nova methodo. Não se pode ler, contudo, nessa diferença de método uma espécie de transformação no próprio projeto fichtiano.

A doutrina do direito de 1796 simplesmente apresenta um prenúncio dessas deduções necessárias ao sistema do filósofo, e agora Fichte pode considerar isso como realizado e explicar a origem do conceito de direito a partir de seu fato fundamental, a saber, a existência de uma comunidade de seres livres.

Uma das teses fundamentais apresentadas na teoria do direito fichtiana envolve a distinção radical entre a esfera jurídica e aquela relativa à moral, ainda que Fichte jamais considere aceitável uma separação absoluta entre ambos os termos. A esfera jurídica, que concerne a totalidade ou conjunto dos indivíduos em sociedade ao invés do indivíduo particular, funciona como um mecanismo de coação, no sentido de que garante ao corpo social a manutenção dos direitos individuais ao exigir de cada cidadão o cumprimento dos seus deveres, através da obediência às normas vigentes em sua legislação. Mas isso não impede a qualquer indivíduo que sua atuação no meio social se paute por princípios éticos, desde que em acordo com tais leis. Nesse sentido, o direito se mostra como condição necessária porém não suficiente para a realização da ética.

Outro aspecto interessante da teoria fichtiana concerne o limite inerente ao papel do estado na definição das atividades individuais. Longe de defender um estado completamente controlador, como algumas de suas críticas mais radicais ao liberalismo econômico feitas em outro texto anterior poderia sugerir7, Fichte admite que a determinação das obrigações políticas do cidadão por parte do governo não pode interferir no uso que cada indivíduo faz de seu tempo de ócio.

Por fim, uma mudança notável que surge nessa nova versão da doutrina do direito diz respeito ao que Fichte denominou Ephorat. Essa instituição, que deveria se contrapor ao abuso de poder por parte do estado, e que em última instância teria o direito de convocar a população à uma espécie de revolta ou revolução coletiva em defesa de sua liberdade, tem agora na teoria fichtiana um papel menor, e acaba se transformando naquilo que Fichte já naquela época definiu como “eforato natural”. Sem dúvida surge aqui uma mudança significativa no pensamento político de Fichte, em grande parte influenciada pela experiência negativa do filósofo após a invasão napoleônica na Prússia, e em consequência disso por sua crescente decepção com os efeitos contraditórios da Revolução Francesa.

Tomando agora em consideração o terceiro texto do livro ora resenhado, vemos na Doutrina da Ética (Sittenlehre) de 1812 uma obra completamente repensada, se a comparamos com a Ética escrita no período de Jena, sem a proximidade teórica antes encontrada entre as duas Doutrinas do Direito. Isso se deve em grande parte ao fato de que Fichte, alguns anos após sua saída de Jena, elaborou uma teoria sobre cinco modos distintos de compreensão ou visão de mundo (Weltansicht). Essa tese, cujo desenvolvimento detalhado aparece em dois textos da fase intermediária, intitulados Anweisung zum seligen Leben e Die Grundzüge des gegenwärtigen Zeitalters, ambos publicados em 1806, apresenta uma escala hierárquica de visões de mundo, e dentre essas cinco etapas encontram-se dois pontos de vista da moralidade, denominados por moralidade inferior e superior.

Fichte indica nesse período que seu texto sobre ética de 1798 se refere ainda àquilo que o autor entende por moralidade inferior, isto é, trata-se neste caso de uma teoria moral que permanece atrelada à lei ordenadora, uma moralidade fundamentada em princípios restritos aos interesses da sociabilidade humana.

Podemos afirmar que o texto reformulado de 1812 representa a tentativa fichtiana de postular uma teoria da moralidade superior, que não mais se restringe à lei simplesmente ordenadora, mas aponta para uma lei ao mesmo tempo criadora. Para compreendermos melhor essa distinção, será necessário indicar qual o papel preciso que a doutrina ética representa na determinação dessa classificação.

Fichte postula na sua teoria dos pontos de vista sobre o mundo uma subdivisão importante. Por um lado, os dois primeiros graus da escala, referentes respectivamente aos pontos de vista da Filosofia da Natureza e da Filosofia do Direito ou da Ética inferior, constituem isso que o autor denomina por Scheinlehre, isto é, uma doutrina da aparência ou da ilusão, na medida em que tais posições não compreendem o estatuto primordial do conceito na fundamentação do mundo manifesto. Do outro lado do espectro encontra-se as posições relativas àquilo que Fichte denomina Wahrheitslehre, ou doutrina da verdade. Temos neste  caso dois pontos de vista, a saber, a Doutrina da Religião e a Doutrina da Ciência, que permitem, a partir de vias distintas, a compreensão do fundamento último da realidade, o próprio Absoluto, em sua natureza incompreensível, ou melhor, em sua incompreensibilidade. Nesse sentido, a doutrina da ética tem como função principal servir como mediação desses dois extremos, e isso se realiza através do desenvolvimento de uma Erscheinungslehre, de uma doutrina da manifestação ou do fenômeno.

Justamente por essa razão o texto da Ética de 1812 se divide em duas partes principais. A parte inicial apresenta uma dedução do sujeito, da causalidade real, da vontade e do dever, a partir do próprio conceito, enquanto fundamento provisório da moralidade. Na segunda parte encontramos propriamente a Erscheinungslehre, uma fenomenologia que desvenda a natureza provisória daquele conceito, na medida em que revela o caráter fenomênico de toda figuração ou imagem do Absoluto. Não por acaso o texto da presente obra encerra com uma longa discussão a respeito da relação entre as doutrinas da religião e da ciência.

Finalmente, gostaria de tecer um comentário a respeito de certa importância pragmática dessa série. Até meados do século passado considerado por grande parte da comunidade acadêmica filosófica como um dos mais obscuros membros do idealismo alemão pós-kantiano, Johann G. Fichte finalmente recuperou, após o elogiável esforço realizado pelo comitê da edição crítica de sua obra, seu verdadeiro estatuto como um dos pilares da história da filosofia. Com a recente finalização da referida edição das obras completas do filósofo (conhecida como Johann G. Fichte Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften ou, abreviadamente, GA), podemos agora avaliar corretamente a importância e atualidade deste que, em sua época, sem dúvida foi um dos mais admirados pensadores germânicos.

Não há como negar que o trabalho da edição crítica seguiu um padrão de rigor e minúcia exemplar, algo que se percebe imediatamente no imenso aparato de notas explicativas, nos índices remissivos separados por autores ou personagens mencionados, locais, e assuntos, tudo isso acompanhado, em cada volume, de uma introdução geral bastante detalhada bem como de prefácios para cada um dos textos principais. Somando-se a qualidade gráfica da impressão e o zelo pela impecável escolha do material de encadernação, compreende-se porque a GA de Fichte tornou- se de fato um modelo de edição crítica em meio à comunidade acadêmica da área.

No entanto, o alto custo dos 42 volumes da obra completa faz com que poucas sejam as bibliotecas universitárias a adquirir e disponibilizar a coleção, ao menos em nosso país, e não se faz necessário observar que o mesmo vale ainda mais para aquisições individuais. Nesse sentido, a edição da versão estudantil do mesmo texto da GA, infelizmente por enquanto restrita aos manuscritos, tanto do próprio Fichte como de seus alunos, referentes aos cursos realizados na Universidade de Berlim (série IV da edição crítica) – bem como ao segundo volume da série I, edição em separata dos importantes textos inaugurais Ueber den Begriff der Wissenschaftslehre e Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre 1794/95, preenche uma lacuna na medida em que disponibiliza, em formato completo e ao mesmo tempo economicamente acessível à maior parte dos estudantes e pesquisadores, fontes imprescindíveis para a correta compreensão do pensamento do filósofo tanto em seu período inicial quanto em sua fase tardia, como bem representa o recém publicado terceiro volume da série aqui em foco.

Notas

1 Sigo aqui a sugestão da tradução portuguesa (cf. nota seguinte), com a diferença de que traduzo “Bestimmung” por “determinação”, ainda que a primeira tenha adotado “vocação” para traduzir mais livremente o termo.

2 Cf. Fichte, J. G. Die späten wissenschaftlichen Vorlesungen (1809-1814), p.xvi da introdução do editor.

3 Existe uma tradução portuguesa para essas conferências de Jena em: FICHTE, J. G. Lições sobre a Vocação do sábio. Trad. Artur Morão. Edições 70: Lisboa, 1999.

4 Isso já aparece no primeiro parágrafo da obra em questão. Cf. GA II 12, p.313. Como de praxe, GA refere- se à edição crítica da obra de Fichte (Gesamtausgabe), seguido do número da série e do volume correspondente.

5 Cf. GA II 12, p.343.

6 Cf. Fichte, J. G. Sämmtliche Werke, vol. X.

7 Refiro-me aqui ao texto do autor intitulado Der geschlossene Handelsstaat (O Estado Comercial Fechado), publicado em 1800. Cf. GA I 7.

Referências

FICHTE, J. G. Die Späten Wissenschaftlichen Vorlesungen (1809-1814). Editado por H. G . von Manz, E. Fuchs, R. Lauth, e Radrizzani, I. 3º volume. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 2012.

_________. Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften. Reihe II: Nachgelassene Schriften, v. 12 (1810-1812). Editado por R. Lauth, E. Fuchs, H. Gliwitzky, e P. K. Schneider, Stuttgart-Bad Cannstatt : Frommann- Holzboog Verlag 1962-2012.

_________. Sämmtliche Werke. Editado por Fichte, I. H.

Berlin: de Gruyter, 1962.

_________. Lições sobre a Vocação do Sábio. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1999.

Thiago Suman Santoro – Professor Adjunto na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, GO, Brasil. E-mail: [email protected]

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Oeuvres complètes tome I – Écrits philosophiques et politiques 1926-1939 – CANGUILHEM (Ph)

CANGUILHEM, Georges. Oeuvres complètes tome I – Écrits philosophiques et politiques 1926-1939. Paris: Vrin, 2011. Resenha de: ALMEIDA, Fábio Ferreira de. Philósophos, Goiânia, v.17, n. 1, p.237-248 jan./jun., 2012.

Com o subtítulo “Escritos filosóficos e políticos – 1926- 1939”, acaba de ser publicado, sob a direção de dois reconhecidos especialistas (Jean-François Braunstein e Yves Schwartz), o primeiro volume das obras completas de Georges Canguilhem. Estamos, de fato, diante de escritos filosóficos e políticos, como anuncia o título deste volume, mas também estamos diante, seguindo uma classificação costumeira que encontra bem seu emprego aqui, dos escritos de juventude de Canguilhem, cuja obra, a parte Le normal et le pathologique (1966) e, talvez, La connaissance de la vie (1965) e os Etudes d’histoire et philosophie des sciences (1968), ainda é bem pouco conhecida1. Os textos deste período, aos quais agora passamos a ter acesso, nos mostram um Canguilhem anterior ao Canguilhem cujas ideias, a pesar da discrição, não cessam de repercutir e de se renovar entre pensadores e estudiosos mundo a fora; um Canguilhem de antes do Canguilhem (Canguilhem avant Canguilhem), como diz o feliz título do artigo em que Jean-François Braunstein afirma com razão: “Está claro que não se trata aqui de trabalhos de epistemologia, nem mesmo de história das ciências em sentido corrente, mas alguns dos primeiros combates de Georges Canguilhem orientarão a visada epistemológica das obras ulteriores” (BRAUNSTEIN 2000, 11).

A obra é composta basicamente de artigos filosóficos, resenhas, conferências e alguns textos polêmicos publicados em diferentes jornais e revistas, mas, principalmente, no Libre propos, o jornal de Alain, cujo pacifismo antimilitarista, determinado fundamentalmente pelas atrocidades da Primeira Guerra Mundial, marcou profundamente o pensamento de Canguilhem, sobretudo, em sua primeira juventude; e na revista Europe, da qual foi um dos fundadores.

Além destes textos mais curtos, vale mencionar três trabalhos particularmente significativos, até então quase, se não totalmente desconhecidos: a brochura Le fascisme et les paysans, o Traité de logique et de morale e a tradução da tese da tese latina de Émile Boutroux, Des vérités éternélles chez Descartes. Como destaca J.-Fr. Braunstein no artigo citado há pouco, antes da edição de sua tese de medicina, Essai sur quelques problèmes concernant le normal et le pathologique, em 1943, Canguilhem já havia, portanto, publicado muito, até mesmo um livro, e este primeiro volume de suas Obras Completas permite, com efeito, “retificar a imagem corrente que faz de Canguilhem um puro historiador das ciências ou um simples continuador da obra de Gaston Bachelard” (BRAUNSTEIN 2000, 10).

Escritos filosóficos e políticos: o período que completa o título deste primeiro volume, “1926-1939”, não é trivial; não é um mero recorte didático. O texto que abre o livro é uma resposta do então jovem estudante da Escola Normal Superior, à questão proposta pela seção “La chronique internationale” da Revue de Genève, mesma questão à qual já haviam respondido Raymond Aron e Daniel Lagache, sobre “o que pensa a juventude universitária francesa”. Neste artigo já se podem identificar certos traços da personalidade de Canguilhem, sempre lembrada por seus comentadores, como o estilo provocador, incisivo e de uma petulância “rústica” e mordaz, o que, diríamos nós, o filósofo fez questão de cultivar como demonstração de sua forte ligação com suas origens campesinas. O modo como assina este artigo costuma ser mencionado sempre como exemplo disso: “Georges Canguilhem, languedociano, aluno da Escola Normal Superior onde se prepara para o concurso de agregação de filosofia.

No tempo que sobra, no labor do campo” (p. 152).2Este traço, que também evidencia a influência de Alain, se refletirá mais tarde na brochura de 1935, Le fascisme et les paysans, publicada clandestinamente pelo CVIA (Comité de vigilance des intellectuels antifascistes), na qual analisa a questão agrária na França frente ao desenvolvimento dos regimes fascistas que, na Itália e na Alemanha, buscavam valerse da crise agrária que, devido a suas especificidades, na década de 1930 atingiu particularmente os produtores rurais franceses, forjando uma ideologia de retomada de valores – diríamos nós: campestres – usurpados pelo rápido desenvolvimento das técnicas de agricultura e pelos grandes produtores, a fim de atrair essa força importante e, a esta altura, bastante organizada. Percebe-se, então, que neste momento, 1935, Canguilhem já enxergava os traços particulares do fascismo que é o que determinará sua ruptura com as posições pacifistas. Mas foi sob a influência de Silvio Trentin que Canguilhem pode perceber o quanto o cenário político internacional repudiava que se continuasse professando “A paz sem reservas” (este é o título do artigo que Canguilhem publica em 1932 tomando posição na polêmica entre Félicien Challaye e Théodor Ruyssen a propósito da questão do “pacifismo integral”), pois estava em curso um fenômeno que não tinha paralelo, nem com os acontecimentos da Primeira Guerra, nem com nenhum outro acontecimento anterior. A seguinte passagem deste artigo permite perceber, ao mesmo tempo, o teor do pacifismo que Canguilhem ainda professava em 1932, e a necessidade de uma ruptura total com ele, ruptura esta determinada pelos acontecimentos, ou melhor, pelos fatos:

Ora, a guerra, que cada vez mais se tornou um extermínio radical de tudo o que é jovem e generoso e, por isso, capaz de criação, – se for verdade que a criação é a mesma coisa que o porvir –, suprime aquilo pelo que a vida do homem ganha uma significação. […] Para que seja dado algum valor à vida e à justiça, é preciso que primeiro a vida seja. E para que eu possa mudar esse mundo, eu quero primeiramente – o que não quer dizer nem unicamente nem principalmente – viver nele. Sem dúvida, a morte é sempre possível. E a morte, pois que vem aniquilar o esforço do dever, é o mal absoluto. Mas esta morte que nos chega sempre do fundo de um acidente que vai de par com o de nossa existência, este próprio acidente abranda para nós o gosto amargo que ela tem. O que é horrível, não é a morte pelas coisas e pelo mecanismo, é a morte dada por um homem. O que é horrível, não é a morte, é a matança. Ora, a guerra é o assassinato e a morte preparados, paramentados, honrados. É a consciência tornada instrumento de sua negação, o aniquilamento de consciências por suas decisões recíprocas. Eis por que, como Challaye, eu digo: a guerra é o mal absoluto, sendo a morte tomada pela vontade como a saída a ser buscada e não como acidente possível. (p. 404)

O mal absoluto e a morte degradante, o esfarrapamento de toda humanidade pelo absurdo de uma vontade doentia, enfim, a aniquilação de toda possibilidade de criação da novidade, como se vê, na verdade, ainda estava por vir. E é a Trentin, em Toulouse, que Canguilhem deve a tomada de consciência que o levou romper com o pacifismo, poupando- o de seguir a deriva de outros que, fiéis à distinção defendida por Alain entre política interna e política externa, acreditavam, por exemplo, poder negociar com a Alemanha hitlerista.

Durante este período, e face a estes acontecimentos [afirma Canguilhem numa entrevista de 1991], muitas atitudes e convicções políticas que convinha chamar ‘de esquerda’ deram ensejo a confusões, a amálgamas, a mal-entendidos cuja interpretação e apreciação ainda alimentam querelas ideológicas. Viram-se socialistas tomarem distância em relação ao antifascismo. Viram-se pacifistas compreensivos com o hitlerismo. Viram-se intelectuais marxistas aprovarem o pacto germano-soviético. No entanto, aqueles que tiveram a sorte – e eu acrescentaria: a honra – de ouvir Trentin em suas analises, de seguilo em suas iniciativas, por vezes de acompanha-lo em suas investidas, devem agradecê-lo por terem podido, graças a ele, evitar as armadilhas de que comumente são vítimas os de boa vontade sem experiência política crítica.3

A partir de daí, é a volta ao concreto, à experiência concreta, o que se dá pela resistência e pela medicina. Neste sentido é que devemos reconhecer que, apesar da dificuldade em determinar quando ocorre efetivamente esta transição, o ano de 1939, com o Traité de logique et de morale, escrito em parceria com Camille Planet, marca, com ressalta Xavier Roth em sua Introdução ao texto, o fim do período de juventude, pois representa um ponto de inflexão no itinerário filosófico de Canguilhem “que testemunha menos uma doutrina definitivamente estabilizada, que uma filosofia do julgamento se orientando paulatinamente para um encontro decisivo – o encontro com a vida – que fornecerá a esta filosofia em devir, a um só tempo, uma base e uma ocasião de deslocamento” (p. 615). Neste sentido é que, ao final do Tratado, temos a constatação de que “para construir relações internacionais outras que as que existiram até o momento, é necessário primeiro determinar as condições do conflito. A ideia de Paz de nada serve a esta determinação”.

E logo em seguida:

Em resumo, dada a aspiração humana a uma sociedade verdadeiramente pacífica, dado o fato das soberanias nacionais e dos imperialismos concorrentes, recusando antecipadamente toda limitação do direito às suas pretensões e a sua autonomia, como subordinar o fato à aspiração? Haveremos de convir que os meios ficam por serem definidos e que, nestas circunstâncias, os fatos pesam mais que a aspiração. O realismo condicional é, neste caso, mais urgente que nunca (p. 921).

Este realismo condicional é o que determina a escolha, que é um aspecto decisivo desta “filosofia axiológica” para a qual, como afirmam os autores do Tratado de lógica de moral, o Valor prima em relação ao Ser (Cf. p. 793).

O período de juventude, portanto, entre os anos de 1926 e 1939, é um período marcado pela reflexão filosófica e política e, ao mesmo tempo, é um período de formação que resultará nos trabalhos mais conhecidos do filósofo, sobretudo, naturalmente, a tese Ensaio sobre alguns problemas concernentes ao normal e ao patológico, republicada mais tarde com o título reduzido, O normal e o patológico, acrescido de “novas reflexões” sobre o tema. Neste período está manifesto o grande interesse de Canguilhem, por exemplo, pela filosofia de Kant e, sobretudo, Descartes (além da tradução da tese de E. Boutroux, são deste período os dois importantes artigos “Descartes et la technique” e “Activité technique et création”). Como afirma Braunstein, alguns combates deste período de juventude continuarão, de fato, a orientar o pensamento maduro de Canguilhem, e não apenas as posições filosóficas defendidas no Tratado de 1939.

Neste sentido, destacaria a resenha do livro de Alain, Onze chapitres sur Platon, intitulada “O sorriso de Platão”, que, em 1929, Canguilhem publica na revista Europe. Este artigo, como outros reunidos neste volume, mereceria um estudo completo. Para o que nos interessa destacar aqui, no entanto, bastará a seguinte passagem:

Platão, tendo feito da metafísica o tecido das coisas positivas, levou, sem dúvida e de um só golpe, a irreligião ao seu estágio máximo, recusando- se desatar o drama humano através de um Deus que surgisse da transcendência como se de um céu de teatro. O deus ex machina da comédia antiga é um símbolo tão profundo quanto se queira e sem qualquer erro, pois falar de transcendência é falar do espírito em termos de carne e num lugar. Mas em Platão, e talvez apenas nele, nenhuma comédia. Compreendemos nós este sorriso e que não estamos, de modo algum, diante do espetáculo de nossa vida? A metafísica nas coisas positivas, eis novamente Platão”. (p. 236)

Para Platão, assim como para Canguilhem, o idealismo é um racionalismo; idealismo altamente irreligioso, na medida em que, nele, os dramas humanos se desatam numa busca do espiritual nas coisas, no mundo da vida, se for possível dar um sentido não fenomenológico a este termo.

Para Canguilhem, assim como para Platão e para Spinoza, o racionalismo deve ser, portanto, engajado; contra o deus ex maquina que acorre quando o drama da existência é transformado em espetáculo, o Deus sive natura insere e a metafísica nas coisas positivas e obriga o pensamento a “falar de espírito em termos de carne e de lugar”. Esse racionalismo, que será mais elaborado mais tarde através dos estudos de filosofia das ciências e que se recrudescerá pela influência cada vez mais marcante de Gaston Bachelard, enfim, este idealismo em sentido altamente platônico, caminha lado a lado com aquele “realismo condicional” de que nos fala o Tratado de 1939. E não é precisamente isso que se reflete na conhecida passagem da Introdução a Le normal et le pathologique, quando Canguilhem afirma que “a filosofia é uma reflexão para a qual toda matéria estranha serve e, diríamos até, é uma reflexão para a qual só serve a matéria que for estranha”? Na continuação deste parágrafo inicial da obra, a coerência entre a resistência na qual ingressou e os estudos de medicina que abraçou na mesma época fica ainda mais evidente: “Não é necessariamente para melhor conhecer as doenças mentais que um professor de filosofia pode se interessar pela medicina. Tampouco é para necessariamente se dedicar a uma disciplina científica. O que esperávamos precisamente da medicina é uma introdução a problemas humanos concretos” (CANGUILHEM 2009, 7).

É este idealismo platônico, que nos permitiremos identificar em Canguilhem como um racionalismo engajado, que configura aquele realismo condicional e seu enorme interesse pelos problemas humanos concretos. Esta conjunção, como se vê, profundamente filosófica, se realizará, enfim, nos maquis de Auvergne e pela medicina, a cujos estudos se consagra a partir de 1940, quando solicita afastamento de seu cargo de professor de liceu em Toulouse, cargo que, afirma ele, demorou muito a conseguir e que o único que realmente almejou em sua vida4, “a fim de não ter de ensinar o que parecia se preparar, isto é, a moral do marechal Pétain” (BING; BRAUNSTEIN 1998, 122). A respeito deste duplo engajamento, Elizabeth Roudinesco tem uma observação precisa no artigo Georges Canguilhem, de la médecine à la résistence: destin du concept de normalité, referindo- se à tese de 1943:

Nada deixava supor, à leitura deste texto magistral, que Canguilhem e Lafont [codinome de resistente] pudessem ser uma única e mesma pessoa. A clivagem entre as brilhantes hipóteses do filósofo e o contexto exterior, totalmente ausente de seu raciocínio, era tamanha que temos dificuldade em acreditar, ainda hoje, que uma tese dessa natureza tenha sido defendida em plena guerra, num momento em que, com a derrocada das potências do Eixo na África e o desembarque aliado na Itália, já se esboçava a derrota do fascismo na Europa.

E, entretanto, a reflexão empreendida pelo filósofo não era estranha às atividades do maquisard. […] No maquis, ele se encarregou essencialmente de atividades humanitárias, exercendo a medicina sob risco de morte. E este foi o único momento de sua vida em que praticou a medicina. Em outras palavras, foi médico apenas na guerra e pela guerra: um médico de urgência e do trauma. (BING; BRAUNSTEIN 1998, 25-26)

Estas circunstâncias da volta para o concreto, nos ajuda ainda a entender a reabilitação de uma referência filosófica importante para o Canguilhem da maturidade: Henri Bergson.

Depois de uma elogiosa resenha, publicada em 1929, do panfleto antibergsoniano de Georges Politzer, La fin d’une parade philosophique: le bergsonisme, no qual se leem afirmações rudes, como a seguinte: “À parte a mentira, somente a mediocridade poder erigir o bergsonismo em grade filosofia” (POLITZER 1967, 149), Canguilhem afirma a Fr.Bing e J.Fr. Braunstein, quando perguntado sobre o papel de Bergson em sua filosofia: “Eu o li melhor depois de meus estudos de medicina”. E logo em seguida: “Quando éramos alainistas, finalmente (risos), tínhamos poucos relacionamentos, éramos muito exigentes. Isso ficou pra trás, e o que me fez deixar isso para trás foi precisamente a ocupação, a resistência e o que se seguiu… a medicina” (BING; BRAUNSTEIN 1998, 129).5 Como se vê, de fato, o ano de 1939, com a ocupação, a resistência e os estudos de medicina, marca, ainda que de maneira imprecisa, o fim destes anos de formação. A partir daí, é uma obra, nos dizeres de Michel Foucault, “austera, voluntária e cuidadosamente limitada a um domínio particular de uma história das ciências que, em todo caso, não se coaduna com uma disciplina de grande espetáculo” (FOUCAULT 2008, 1582).

O que nos prometem os próximos cinco volumes das obras completas de Georges Canguilhem é precisamente a reunião dos trabalhos em que o rigor desta obra reflete, antes de tudo, a ação do pensamento. Maduro o pensamento, ele não se deixará levar pelas modas, nem seduzir por uma filosofia da ação, nem por uma filosofia do engajamento. A volta para o concreto oferece isso que aqueles que Canguilhem gostava de chamar “terroristas literários”, não puderam perceber, pois, quando uma tarefa essencial se apresenta ao espírito, é muito confortável separar da palavra e da escrita a mão e o gesto. Se Canguilhem sempre foi, ao longo da vida, discreto a respeito de sua atividade como resistente, seus escritos sobre o amigo e companheiro de maquis, Jean Cavaillès não cessarão de lembrar aos incautos que “a luta contra o inaceitável [é] inelutável” (CANGUILHEM 2004, 34). Neste sentido, a ação não é uma escolha, mas uma necessidade lógica, pois, como afirma em sua conclusão a conferência intitulada Vie et mort de Jean Cavaillès, “antes de ser irmã do sonho, ação deve ser filha do rigor” (Idem, 30) – o que, bem entendido, não vai sem poesia. Canguilhem nos ensina, seguindo Cavaillès, mas também Bachelard (não por acaso, é Canguilhem quem organiza a publicação, em 1972, da coletânea de artigos de Bachelard à qual intitula L’engagement rationaliste), que, se há ainda um problema filosófico importante em nossos dias, este problema é o do engajamento! * Por fim, é preciso assinalar o aspecto didático dado a este primeiro volume. Cada seção é precedida por uma longa e erudita Introdução e os textos são rica e cuidadosamente anotados. Abrem o volume um prefácio, quase que exclusivamente autobiográfico, de Jacques Bouveresse e uma Apresentação geral que destaca os aspectos centrais deste período, intitulada “Jeunesse d’un philosophe”, por Yves Schwartz. Nos anexos, nos são dados o texto de Félicien Challaye, ao qual Canguilhem reagiu com o artigo “La paix sans reserve? Oui”, bem como as respostas de Théodor Ruyssen, e ainda o artigo “Réflexions sur le pacifisme intégral”, publicado em 1933 no Libres propos, no qual Raymond Aron se manifesta a respeito deste debate.

Assim, este primeiro volume, sem dúvida, deixa-nos na expectativa dos próximo cinco que completarão a edição definitiva das Obras Completas de Georges Canguilhem (que inclui uma “Bibliografia crítica”, a cargo de Camille Limoges, como VI volume). Através delas se poderá finalmente perceber a dimensão da obra deste filósofo que, conhecido mais pelas referências feitas por aqueles a quem ele influenciou que pelos seus próprios trabalhos, tem a atualidade perene de todo grande pensamento.

Notas

1  No Brasil, data do final dos anos 1970 a tradução de O normal e o patológico, que é, com efeito, sua obra mais significativa. Publicou-se, tempos mais tarde, o pequeno Escritos sobre a medicina (2005) e, recentemente, os Estudos de história e filosofia das ciências e O conhecimento da vida, ambos em 2012.

2 Vale a pena aqui remeter o leitor à bela fotografia que abre a seção de “Artigos, discursos e conferências (1926-1938)”, primeira do livro, na qual Canguilhem aparece precisamente neste labor, empurrando o arado puxado por duas reses.

3 CANGUILHEM, G. citado por Jean-François Braunstein na Introdução à Obras completas intitulada “À la découverte d’un ‘Canguilhem perdu’”, p.112.

4 Canguilhem o reconhece na entrevista a François Bing e a Jean-François Braunstein, em 1991, publicada em Actualité de Georges Canguilhem, p.121.

5 Já em Le normal et le pathologique podemos ler, por exemplo: “Pelo menos potencialmente, as normas são relativas umas às outras num sistema. Sua correlatividade num sistema social tende a fazer desse sistema uma organização, isto é, uma unidade em si, senão por si e para si. Pelo menos um filósofo percebeu e trouxe à luz o caráter orgânico das normas morais na medida em que elas são, em primeiro lugar, normas sociais. Foi Bergson, analisando em Les deux sources de la morale et de la réligion, o que chama de ‘o todo da obrigação’.” (CANGUILHEN 2009, 185)

Referências

BRAUNSTEIN, Jean-François. Canguilhem avant Canguilhem. In: Revue d’histoire des sciences, 2000, tome 53, n°1, pp. 9-26.

BRAUNSTEIN, J.-Fr.; BING, Fr.; et alii. Actualité de Georges Canguilhem. Le Plessis-Robinson: Les Empêcheurs de Penser en Rond, 1998.

CANGUILHEM, Georges. Le normal et le pathologique. Paris: PUF, 2009.

CANGUILHEM, Georges. Vie et mort de Jean Cavaillès. Paris: Allia, 2004.

FOUCAULT, Michel. La vie: l’expérience et la science. In:___. Dits et écrits II, Paris: Gallimard, 2008, pp. 1582-1595 (texte361).

POLITZER, Georges. La fin d’une parade philosophique: le bergsonisme. S.l.: J. J. Pauvert Éditeurs, 1967.

Fábio Ferreira de Almeida – Professor adjunto da Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, Goiás, Brasil.

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La idea de principio en Leibniz y la evolución de la teoría deductiva. obras completas – ORTEGA Y GASSET (Ph)

ORTEGA Y GASSET, Jose. La idea de principio en Leibniz y la evolución de la teoría deductiva. obras completas. 2. reimpresión. V. 8. Madrid: Alianza, 1994. Resenha de: CARVALHO, José Maurício de. Philósophos, Goiânia, v.16, n. 2, p.387-396, jul./dez., 2011.

O livro de Ortega y Gasset, escrito no verão de 1947, em Lisboa, expressa sua maturidade intelectual, período inicia-do com a publicação de Meditaciones del Quijote e desenvolvido durante a escrita dos oito livros de El Especta-dor (1916-1934). Nesta obra o autor aprofunda, de modo único, o historicismo raciovitalista, aplicado às questões de epistemologia e lógica. Daí a importância deste livro para o entendimento de seu pensamento filosófico.

Ortega y Gasset examina, na obra, o conceito de expe-riência básico para a ciência moderna, que se torna assunto central da filosofia durante a modernidade. No livro, o au-tor compara a forma moderna de pensar o mundo, representada pelas ideias de Descartes e Leibniz, com a ma-neira tradicional utilizada por Aristóteles e Euclides. Também aprofunda a noção de crença, que para ele é as-sunto fundamental do conhecimento humano, como indicaremos adiante.

A referência a Leibniz como o autor em torno do qual Ortega y Gasset desenvolve suas considerações sobre o co-nhecimento humano deve-se ao pensador alemão ser, por excelência, um filósofo de princípios, ou de fazer com ma-estria o que todo filósofo espera realizar: propor princípios que forneçam certezas para pensar o real. O conhecimento, para Ortega y Gasset (1994, 63), é atividade que se faz com princípios. Ele afirma: ―Em filosofia isto se leva a extremos […], se exige dos princípios que sejam últimos, isto é, em sentido radical, princípios‖. Leibniz, avalia o autor, é ainda o filósofo mais completo da modernidade e, pela extensão de seus interesses e estudos, pode ser comparado ao que A-ristóteles representou na Idade Antiga. O estudo de Leibniz, o confronto de suas teses com Aristóteles, pede que se separe o aristotelismo de suas interpretações escolás-ticas. Ortega y Gasset entende que os princípios construídos em determinado tempo cristalizam uma con-cepção de mundo e que essa solidificação é a base das crenças que representam a forma de pensar de certo tempo.

Na tentativa de estabelecer princípios radicais para es-truturar o real cada filósofo desenvolve um método novo, uma forma própria de pensar, ainda que como filosofar conserve algo da tradição. A filosofia antiga pensa que as coisas são ou parecem ser de determinado modo, não fala de necessidades, ―as coisas não dependem de nosso arbítrio reconhecer ou não‖ (p. 72), elas são como são. Quando do surgimento da ciência moderna, Galileu afirmou que os te-oremas geométricos valem para os fenômenos físicos, isto é, ―basta a Física supô-los para eles serem válidos‖ (p. 76). Essa forma de pensar o mundo foi modificada nos séculos se-guintes, chegando-se à conclusão de que apenas alguns pontos da teoria coincidem com a realidade. A mudança fez surgir os símbolos e, mais recentemente, a ideia de probabi-lidade.

No momento em que viveu Leibniz, a Física já fazia um discurso aceito como verdadeiro sobre a realidade. Leibniz é um filósofo de princípios e representa bem a visão que a nova ciência tem do mundo, ou melhor, ―a Filosofia tem que contar com o modo de pensar destas ciências, quer di-zer, tem que se considerar Ciência‖ (p. 90).

René Descartes, ao lado de Leibniz, é outro pensador importante daquele século e está envolvido com a revisão da álgebra. A álgebra parte de uma intuição básica, a saber, a possibilidade de o número traduzir o real, isto é, ―há uma correspondência entre o número e a extensão‖ (p. 98). Des-cartes utilizou tal entendimento e percebeu que ele abria infinitas possibilidades, dando início à Geometria Analíti-ca. O resultado é que a busca da verdade e da relação entre as coisas ganhou, com o propósito de precisão da lógica, uma nova possibilidade nas formulações da ciência e filoso-fia modernas.

A tradição matemática euclidiana e aristotélica pensa o mundo com um princípio tido como verdadeiro, usado pa-ra justificar outros princípios. O exame da matemática aristotélico-euclidiana nos permite uma comparação com o modo de pensar moderno. Eis como Ortega y Gasset (1994, 127) se refere a essa tradição: ―A teoria dedutiva do tipo aristotélico-euclidiana consiste em deduzir proposições par-tindo de princípios cuja verdade é evidente‖. Essa forma de pensar se aproxima do procedimento dedutivo usado pelos filósofos, mas possui caráter próprio. A definição de ponto, por exemplo, possui significado puramente lógico, não é al-go que se refira a um ente que exista no mundo. Logo, uma verdade anunciada por Euclides não assegura a existência da coisa. A verdade que traduz a expressão matemática não tem coincidência exata com as coisas do mundo, pois a ex-pressão matemática quer possuir uma exatidão que o olhar humano não possui. No caso das formulações de Descartes e Leibniz, os princípios matemáticos se comparam não com a intuição dos seres, mas com uma visão íntima que a cons-ciência forma do mundo. Nem uma maneira nem outra conseguem a exatidão que pretende possuir a geometria. As duas posições: a antiga e a moderna, ainda que com este as-pecto semelhante, a saber, a falta de correspondência entre o mecanismo do mundo e a representação matemática, dei-xam ver uma diferença fundamental: os antigos pensam a partir dos seres, os modernos tomam as ideias como ponto de partida. A teoria aristotélico-euclidiana parte do real, tentando extrair das coisas o que há de comum entre elas. O problema dessa forma de pensar é entender como se ex-trai o universal do que nos vem pela sensibilidade. Ao sugerir esse caminho, Aristóteles entende que a razão toca o ser, o que dá aos dados sensíveis uma nova função e sugere uma continuidade entre a ordem sensível e a espiritual. Os princípios aristotélicos devem estar sob a forma inteligível retirada dos dados sensíveis. Para Aristóteles, é pela defini-ção das coisas que o raciocínio deve começar, buscando apreender o que é invariável no que se modifica no mundo. Os modernos seguem outra trilha, eles se perguntam como fazer para chegar ao essencial das coisas a partir da imagina-ção.

Antes de prosseguir a comparação entre as formas de proceder à dedução no mundo antigo e moderno, o autor considera essencial esclarecer um aspecto fundamental de seu pensamento historicista: separar o aristotelismo de suas interpretações medievais. O fato parece-lhe inevitável e ne-cessário porque os escolásticos não eram capazes de penetrar na circunstância em que se formou o modo de pensar dos gregos. Dito de outra forma: ―Os frades da Idade Média recebem a filosofia grega, porém não recebem, claro está, os pressupostos, as peripécias históricas que obrigaram os gregos a criar a filosofia‖ (p. 215). A escolástica foi uma espécie de recepção de ideias desconectadas da realidade histórica em que foram pensadas e isso é uma tragédia na avaliação orteguiana. O filosofar não pode ser separado dos desafios do tempo. Ortega y Gasset denominará escolásticas todas as tentativas existentes, ao longo da história da filoso-fia, para reproduzir elaborações filosóficas fora do contexto em que foram concebidas. Ele afirma, a título de exemplo: ―a Ontologia é uma coisa que se passou aos gregos, e não pode voltar a se passar a ninguém‖ (p. 217).

O pensamento escolástico e as limitações decorrentes de sua inadequada apropriação de ideias fora do contexto foram abandonados pelos modernos. O autor do livro ob-serva que: ―Descartes começa esvaziando a tradição cultural européia, isolando-a, aniquilando-a‖ (p. 225). Lembramos que Aristóteles estabelece uma continuidade entre a maté-ria e os números, procedimento euclidiano que ganhou continuidade na Idade Média. O pensamento analógico não tinha força científica para Aristóteles, afastava-se da rea-lidade e é esse caminho, rejeitado por Aristóteles, que foi seguido por René Descartes, para quem as coisas aparecem como relações. Escreve o autor: ―Descartes toma as correla-ções como correlações, enquanto Aristóteles as toma como se fossem coisas não relativas, mas absolutas independentes da relação, quer dizer, formalmente como coisa‖ (p. 238). Assumida como forma de entendimento, Descartes entende a dedução como um método válido para aplicação em qualquer ciência e propõe o método como preâmbulo da ciência. Ele não necessita valer-se da Metafísica, como fizera Aristóteles. Eis a razão pela qual ―a nova ciência não se o-cupa das coisas como coisas, mas como suas relações e proporções‖ (p. 244). Reside nisso a diferença fundamental entre a antiga e a nova ciência.

A evolução do aristotelismo produziu, no decorrer da história, outro problema que Descartes e Leibniz precisa-ram superar: a aproximação entre o sensualismo e o materialismo. Esse vínculo entre essas teorias, assumido pe-la escola estoica, era uma espécie de extensão do aristotelismo e consiste em uma crença. O critério de ver-dade do estoicismo é uma crença usada na relação com o mundo. Quem não vive na crença mergulha na dúvida. Ao tratar da concepção estoica de mundo, Ortega y Gasset des-cobre que a crença é um importante elemento cognitivo de uma pessoa ou geração, sendo uma verdade vivida pelas pessoas sem o menor questionamento.

A inserção das crenças na concepção historicista de Or-tega y Gasset se explicita no uso dos conceitos ideoma e draoma. Toda teoria filosófica se apresenta em proposições, um conjunto sistemático de ideias ou ideoma. A filosofia é a reunião de ideias, mas o conjunto de proposições elabora-das por um filósofo tem pressupostos implícitos que ele toma como absolutamente certos. Essas assertivas não são sequer pensadas porque parecem absolutamente evidentes ao pensador e aos seus contemporâneos, isto é, o draoma. O draoma não é a crença, mas sim o ingrediente dela. Os pres-supostos, as verdades vividas e nem sequer pensadas são os componentes das crenças. Como a crença se explicita no es-tudo dos filósofos? Ortega y Gasset assim exemplifica: ―As causas mais radicais em que Aristóteles acreditava, isto é, que os sentidos nos mostram verdadeiramente o ser […] elas estão, não em Aristóteles, mas em toda a vida grega de três séculos anteriores a ele‖ (p. 259). O draoma é, portanto, uma ação vivente ou um ingrediente dela.

Entendida a relação entre o ideoma e o draoma nos de-paramos com outro aspecto fundamental do historicismo raciovitalista, a explicação para a origem do filosofar. Quando o filósofo se coloca a pensar e a descobrir os prin-cípios capazes de conferir entendimento ao mundo ele responde a problemas vitais, a questões impossíveis de pas-sar adiante sem novas considerações. Essas questões já não podem ser respondidas pelas filosofias elaboradas em ou-tros tempos porque elas já não respondem às necessidades vitais do novo tempo. Assim, o filosofar significa a busca de princípios que respondem às necessidades vitais do pensa-dor, uma vez que ele já não encontra na tradição resposta para seus problemas.

O entendimento orteguiano de que o filosofar é uma resposta aos problemas vitais nos coloca diante do filosofar. Trata-a como parte do esforço que o homem faz para dar um sentido à sua vida. Em outras palavras, ―o homem se dedica a esta estranha ocupação que é filosofar quando, por haver perdido as crenças tradicionais, se encontra perdido na vida‖ (p. 267). O que o faz filosofar não é, portanto, uma espécie de disposição natural para investigar o que é ser. Essa dúvida não consiste no mais radical problema que o homem pode formular. Essa é a razão do afastamento de Ortega y Gasset das posições heideggerianas: ―O fenômeno sistemático é a vida humana e é de sua intuição e análise que temos que partir‖ (p. 273). Chegamos ao núcleo do en-tendimento raciovitalista: é a vida o desafio e o problema a ser enfrentado.

Ortega y Gasset considera Wilhelm Dilthey um grande filósofo porque ele intuiu, antes de todos, que era a vida o grande problema a ser meditado. Apesar disso, Dilthey não chega ao núcleo do raciovitalismo porque tratou o filosofar como uma disposição natural, e esta só nasce quando há desencanto com uma crença. Quando uma crença já não responde aos problemas vitais, ela e o sistema de ideias ao qual se associa são questionados. Diz o filósofo: ―Uma ânsia de certeza se apodera dele e ele viverá sem sossego, cutuca-do, em grande perturbação, até que consiga fabricar para a crença fraturada o aparelho ortopédico que é uma certeza‖ (p. 290).

Ao referir-se à vida como problema radical do filosofar o filósofo rejeita a tese heideggeriana de que o componente essencial do viver é a angústia. Se a tanto se resumisse o vi-ver, o caminho natural para todo homem seria o suicídio, mas a vida não é só desespero. Existe a tragédia na vida, mas a vida é também esportiva. O sentimento trágico da vi-da foi uma invenção romântica que precisa ser superada. Entre os gregos o sentido do filosofar era diverso do roman-tismo. A filosofia é a combinação de ideias, ―sua índole própria é jovial como corresponde a um jogo‖ (p. 305). Daí o apelo do filósofo: ―Deixemos, pois, de intempestivos me-lodramas e filosofemos jovialmente, que dizer, como é devido‖ (p. 316).

Feitos esses esclarecimentos, volta Ortega y Gasset à his-tória da filosofia para concluir. A diferença do pensamento moderno de Descartes e Leibniz do aristotélico-euclidiano revela uma diferença básica. Para os antigos, a proposição trata da coisa mesma; para os modernos, a relação descrita do mundo é uma ideia e a verdade uma relação entre idei-as.

O livro termina com dois textos em forma de apêndice colocados pela editora. No primeiro, escrito também em 1947 para o XIX Congresso Espanhol Para o Progresso da Ciên-cia, Ortega y Gasset reafirma que Leibniz representa o momento de reintegração cultural depois da desintegração ocorrida ao final da Idade Média, ocasião em que as antigas crenças já não diziam nada às novas gerações. A verdade desse tempo, bem expressa por Leibniz, é a verdade de uma proposição. Quanto ao entendimento de mundo, estáva-mos diante do melhor dos mundos possíveis porque ele foi o escolhido por Deus. O racionalismo da época exigia para tudo uma explicação. O segundo texto, deixado de lado por Ortega, era provavelmente um parágrafo do livro. Ele trata o Renascimento como um momento de rompimento com a escolástica, avaliada como um cadáver ao final da Idade Média. O mundo pedia novas formas de entendimento e foi o que tentou fazer o pensamento moderno, conclui Or-tega y Gasset.

O livro, por sua extensão, detalhamento de assuntos fundamentais no raciovitalismo, como a origem desportiva do filosofar, a formação e o papel das crenças na vida hu-mana, a evolução da consciência humana ao longo da história como resposta a desafios específicos das circunstân-cias, a diferença entre o mundo moderno e o antigo, tem um papel de destaque na reflexão orteguiana. O método historicista do raciovitalismo, tema de Historia como sistema, aqui é retomado e contrasta com o racionalismo do século XVII, tão bem estudado no livro. Essa razão não consegue alcançar a realidade cambiante e temporal da vida humana, a vida só pode ser compreendida em sua evolução histórica. Também fica bem esclarecida a razão pela qual o homem fi-losofa, assunto tratado no ensaio Apuntes sobre el pensamiento, pois, depois de desaparecida uma crença, este se acha perdido e precisa descobrir novas razões às quais se dedicar.

José Maurício de Carvalho – Professor titular da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ)., São João Del-Rei, Goiás. E-mail:  [email protected]

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Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna – WILLER (Ph)

WILLER, Cláudio. Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna. São Paulo: Editora Civilização Brasileira, 2010. Resenha de: ALMEIDA, Fábio Ferreira de. Philósophos, Goiânia, v.15, n. 2, p.161-167, jul./dez., 2010.

É sem dúvida o caráter místico-esotérico, um seu lado meio mágico meio tolo, que nos faz torcer o nariz para os termos Gnose e Gnosticismo e, certamente, tal não é sem razão. Pierre Hadot, em seu livro sobre Plotino, Plotin ou la simplicité du regard, afirma a certa altura que “o gnóstico não sabe olhar o mundo” (HADOT, p., p.48), afirmação que é sem dúvida baseada na filosofia plotiniana que combateu com vigor o gnosticismo. O livro do tradutor, poeta e ensaísta Cláudio Willer retoma o debate acerca da Gnose e do Gnosticismo pelo viés da crítica literária que, abrindo mão do aspecto propriamente filosófico e das questões inerentes a uma história das religiões, pretende suprir uma carência da qual, em sua opinião, padecem os estudantes de Letras quando se deparam com autores tais que Blake, Baudelaire, Nerval, Rimbaud e outros (p. 31).

Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna (2010) é resultado da tese de doutoramento defendida pelo autor em 2008 na Universidade de São Paulo e suas mais de quatrocentas páginas estão divididas em duas partes. Na primeira, intitulada “Gnose e Gnosticismo”, temos uma exposição dos aspectos mais centrais da doutrina gnóstica para o que, além da bibliografia gnóstica básica (Pagels, Dorese, Layton, Puech e outros), o autor se vale principalmente dos trabalhos de Mircea Eliade e Hans Jonas, o que indica um parti pris que tem a virtude de ser conscientemente assumido. A pouca atenção dispensada à obra de Eric Voegelin, que não aparece na bibliografia, embora mencionada de passagem, assim como ao ácido ataque do “respeitado poeta” Bruno Tolentino (ver p. 40) ao gnosticismo moderno, revela que o autor de Anotações para um Apocalipse, A volta, Dias circulares e Jardins da provocação adere à doutrina.  O que, entretanto, precisa ser notado, é que o estudo não é panfletário nem tampouco tenta se aproveitar deste irritante “gnosticismo midiático” atual. O estudo de C. Wil-ler, com efeito, está bem longe das “apropriações incorretas e superficiais” (p. 22-3) denunciadas – um tanto desnecessariamente, pois já de saída deixa ver a que veio – por ele próprio. Na companhia de nomes como Octavio Paz e Harold Bloom, a aposta de Willer é na importância da gnose e do gnosticismo para a crítica ou, se quisermos, para a compreensão da poesia moderna. Entenda-se por poesia moderna, a produzida a partir do século XIX até nossos dias. É o que mostra a segunda parte de Um obscuro encanto, intitulada “Poetas gnósticos”, composta na verdade de pequenos ensaios sobre estes poetas dentre os quais, além dos já mencionados, figuram Novalis, Goethe, Victor Hugo, Lautréamont, Pessoa, e ainda os brasileiros Dario Veloso, Sousândrade, Hilda Hilst, entre outros aos quais é dedicado o último capítulo do livro, “Gnósticos brasileiros, do simbolismo até hoje”.  A partir da tese de Willer, podemos afirmar que toda poesia é em maior ou menor medida gnóstica, mas isso, naturalmente, se se admitir que a poesia – e a literatura de modo geral – é algo recente, um fenômeno da linguagem que só tem lugar neste espaço epistemológico preciso: data precisamente do século XIX, uma idéia de modernidade assumida bem claramente pelo autor. E o que marca o nascimento da literatura? Bem se vê, colocamo-nos aqui na trilha de Michel Foucault que, em seu As palavras e as coisas, afirma:

A partir do século XIX, a literatura repõe à luz a linguagem no seu ser: não, porém, tal como ela ainda aparecia no final do Renascimento. Porque agora não há mais aquela palavra primeira, absolutamente inicial, pela qual se achava fundado e limitado o movimento infinito do discurso; doravante a linguagem vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa. É o percurso desse espaço vão e fundamental que traça, dia a dia, o texto da literatura. (FOUCAULT, M., 1995, p.60)

É, portanto, este novo sistema dos signos, dos símbolos e do significado, enfim, um novo regime na ordem do dizer o que se vê – ou sente – e, em última instância, um novo regime do pensamento, que determina aquilo que Foucault chama de experiência moderna da linguagem, a literatura moderna, à qual se ligam o Surrealismo, Kafka, Blanchot, Bataille, Artaud: “experiência da morte (e no elemento da morte), do pensamento impensável (e na sua presença inacessível), da repetição (da inocência originária, sempre lá, no extremo mais próximo da linguagem e sempre o mais afastado); como experiência da finitude (apreendida na abertura e na coerção dessa finitude)”. (Idem, p.401) Encontra-se aí tudo aquilo que Willer pretende mostrar ao longo de seu ensaio e demonstrar através das análises que faz dos autores escolhidos por ele. Várias passagens o demonstram. Vejamos esta, do capítulo 19, intitulado “O Surrealismo e suas imediações”, quando está em questão precisamente a obra de Artaud e sua associação ao gnosticismo que, como destaca o autor, já havia sido vista por Susan Sontag, em seu Sob o signo de Saturno:

Não só pelo dualismo, pela expressão do contraste radical com o mundo e o corpo; mas pela idéia de uma gnose, acesso a um conhecimento superior. Podem-se apontar dois caminhos para a gnose em Artaud. Um deles, do xamanismo, da iniciação através do ritual tribal e da experiência alucinógena: é aquele relatado em Viagem ao país dos taraumaras, efetivamente vivido, incluindo o culto ao peiote. Outro, o do teatro: como deixou claro em O teatro e seu duplo, seria equivalente a uma cerimônia mágica, através de uma linguagem poética que pudesse ―exprimir objetivamente verdades secretas, fazer vir à luz, por gestos ativos, essa porção de verdade oculta sob as formas que se confrontam com o Devir‖. Mas a leitura do que escreveria depois sobre os taraumaras (em suas cartas, em “Para acabar com o julgamento de Deus” e outros textos) sugere que seu ―rito do sol negro‖ foi, para ele, a realização autêntica do Teatro da Crueldade. (p. 381)

Como se vê, embora a tese de Willer diga fundamentalmente respeito à crítica literária e esteja, assim, mais preocupada com a discussão dos autores e suas obras do que com a escansão ou produção de conceitos, sobressai de seu trabalho um importante elemento banido do austero ambiente acadêmico no qual sobrevive a crítica, preocupada em preservar a todo custo as honras científicas de sua profissão e a racionalidade supostamente necessária ao trato com o objeto que escolheu, a literatura: o fato de que ela é, não menos do que a ciência, a moral e a filosofia, conhecimento. Ao ressaltar a importância da gnose para a poesia moderna, o que está em jogo é o conhecimento mesmo que se alcança através da poesia. De modo que não se trata de defender que o gnosticismo, aquela primitiva mistura de um platonismo recém vulgarizado com o cristianismo nascente – “cristianismo e gnosticismo nasceram juntos”, afirma Willer (p. 61) –, que a alquimia e o hermetismo, determinantes do espaço epistemológico daquela época, devam ser recuperados para nossa visão de mundo. Não nos parece, assim, apesar de sua reserva com relação a ele, que o estudo de Cláudio Willer ou, talvez possamos dizê-lo, seu gnosticismo, se enquadre neste gnosticismo moderno que B. Tolentino enxerga como “transformação de mero sistema de magias numa sofisticada auto-hipnose coletiva, daí em cultura-de-massas e mais adiante (por que não?) em mass murder”. (TOLENTINO, B. 2002, p.47) Trata-se, de fato, da poesia moderna e de nela reconhecer, como indica a palavra, conhecimento.1Neste sentido, “ao gnosticismo dos poetas não poderia faltar a gnose: é a própria poesia, identificada com o conhecimento”. (p. 444)

Diríamos, pois, que o interesse dos poetas pelo conhecimento é o que faz deles gnósticos e a consciência de que só é possível levar adiante esse interesse pela poesia, pela linguagem literária, o que faz deles modernos. Certamente a forma, determinada pelo conteúdo, atua sobre ele, e é neste sentido que, por exemplo, W. Blake ―interpretou o Novo Testamento de modo afim a um gnóstico marcionita, um adepto da separação total entre a doutrina cristã e a lei mosaica. E de heréticos que viriam a encabeçar a reforma protestante […] em nome do que proclamavam como o verdadeiro ensinamento de Cristo‖. E é assim que, segundo Willer, devem-se passagens como esta, da obra O casamento do céu e do inferno: ―Não existe virtude possível que não possa romper as leis desses dez mandamentos. Jesus Cristo era totalmente virtuoso, mas agia por impulso e não por regras‖ (p. 202). Orgulho, sem dúvida, mas orgulho estudioso; o sapere aude característico da poesia moderna.  Deste modo, ninguém pode acusar num Baudelaire, num Lautréamont ou num Rimbaud, desleixo de análise ou ligeireza no trato de tais questões; a ninguém será dado duvidar do rigor metódico nem do trabalho árduo destes poetas, o que seria desconhecer completamente suas obras. O problema é que, mais do que preocupado com o conhecimento, o poeta é atormentado por ele e, nisso, vive integralmente a angústia de tal experiência, o que Georges Bataille chamou de ―experiência interior‖. Com isto, aquela enfermidade de orgulho do homem moderno, no âmbito mesmo da literatura, parece dever ser compreendido como experiência do impensável do pensamento. “A experiência é o encarar a questão (o fardo), na febre e na angústia, do que um homem sabe do fato de ser”. (BATAILLE, G. 2004, p.16) Esta parece ser a sabedoria (a sophia) que buscam os poetas, sabedoria rebelde, transgressora.

Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna é um livro, sem dúvida, muito útil para os estudantes aspirantes a críticos, mas é também um livro que deve ser lido com cuidado. É útil na medida em que reivindica para a crítica o estatuto que é o dela, ou seja, a exigência de reconhecer na literatura, na poesia, pensamento; reconhecer que se está diante de reflexão, talvez a mais difícil, acerca de questões fundamentais. Willer tem razão ao afirmar que tão eclética e variada quanto o gnosticismo, é a própria poesia! De modo que, assim como o gnosticismo, a literatura não cabe numa ciência. Mas é também perigoso, pois, de certa maneira, expõe a poesia à insanidade midiática deste nosso gnosticismo moderno ou, antes, adolescente. Não que a poesia seja, ela mesma, susceptível à ignorância; mas como nada grassa mais facilmente que a estultícia, o gnosticismo pode ser tomado como arma para que ela amplie seus domínios e torne ainda mais perene seu reinado. Com este tema controverso, Cláudio Willer nos apresenta uma outra face sua: a de teórico acadêmico, ainda que malgré lui. Só podemos nos alegrar com esta obra instigante ao encarar este registro luminoso e encantador do conhecimento, que é o da poesia moderna.

Nota

1 Penso que é, assim, num outro registro que Tolentino, próximo em seu catolicismo do neoplatônico Plotino, afirma que “gnosis, apesar do termo grego original significar ‘conhecimento‘, é hoje o que em realidade sempre foi: a revolta, a sanha do arcanjo caído, o furto, tão inútil quanto impossível, do fogo do Céu por um Prometeu. Sob a roupagem ilustre de algumas das mais sofisticadas construções da mente humana, não em seu amor ao saber (philo-sophia), mas em seu ódio a este saber (phobo-sophia), que a ultrapassa de fato e de natura, em certas colocações esconde-se, hoje como antes, sempre a mesma antiguíssima modalidade do absurdo: a absurda vontade do homem enfermo de orgulho, a sede de um ‘saber‘ que desminta ou, melhor ainda, substitua a divina sabedoria”. (Op. Cit., p.45).

REFERÊNCIAS

BATAILLE, Georges. L´expérience intérieure. Paris: Galli-mard/Tel, 2004.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. bras.: Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

HADOT, Pierre. Plotin ou la simplicité du regard. Paris: Gal-limard/Folio, 2008.TOLENTINO, Bruno. O mundo como idéia. São Paulo: Globo, 2002.

Fábio Ferreira de Almeida – Professor-adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG)., Goiânia, Goiás.   E-mail:  [email protected]

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Platão – BENSON (Ph)

BENSON, Hugh H. (ED.) Et al. Platão. Tradução de Marco Zingano. Porto Alegre: Artmed, 2011 1.  Resenha de: BORGES Anderson de Paula. Philósophos, Goiânia, v.15, n. 1, p.197-202, jan./jun, 2010.

O público brasileiro, interessado no estudo de Platão, que queira consultar uma introdução de primeira linha conta com mais um título no mercado nacional. O professor Marco Zingano (e a editora Artmed) nos prestou um ótimo serviço ao traduzir o volume dedicado a Platão, o (37°) da coleção Blackwell Companions to Philosophy. O livro foi lançado em 2006 sob o título A Companion to Plato, com edição de Hugh H. Benson. Trata-se de um guia atualizado e abrangente na abordagem dos problemas investigados pelos estudiosos do platonismo. O roteiro de temas e o método de análise empregado vêm sendo firmados há cerca de 60 anos por meio de uma produção intensa de livros e artigos no cenário da ancient philosophy. O guia de Benson sintetiza esse trabalho em 29 ensaios inéditos produzidos por 30 especialistas em filosofia antiga.

Antes de comentar o conteúdo de alguns capítulos, quero enfatizar a linha editorial adotada. O volume se dis-tingue de outros guias similares como o The Oxford Handbook of Platonism, editado por Gail Fine em 2008 e o The Cambridge Companion to Plato, editado por Richard Kraut em 1992. O guia de Fine apresenta seus artigos em dois níveis que se complementam: uma parte dos capítulos explora tópicos filosóficos na economia interna do plato-nismo e outra parte examina a estrutura de alguns diálogos. O volume da coleção Cambridge Companions, por seu lado, traz artigos sobre temas específicos, num projeto que privi-legia a abordagem do autor do ensaio. O resultado é útil pela qualidade do time de ensaístas, mas certas lacunas fica-ram evidentes. Sente-se a necessidade de um tratamento mais profundo da epistemologia do Fédon, da República e do Teeteto. Falta também um conjunto de ensaios sobre alguns diálogos centrais. No projeto de Benson, por outro lado, optou-se por dar a cada colaborador um formato exíguo nos capítulos, permitindo explorar um domínio bem mais ex-tenso. Quem desejar garimpar os tópicos nos diálogos terá muitas opções no índice remissivo. No prefácio Benson a-nuncia seu critério editorial: selecionar os temas por sua relevância “filosófica em oposição à relevância histórica” (p. X).

Um aspecto menos virtuoso do conjunto é a opção por especialistas do circuito anglo-saxão. Com exceção das edi-ções críticas consultadas e de alguns títulos de alemães e franceses nas indicações de literatura secundária, o corpo dos ensaios pode induzir o leitor a pensar que a pesquisa de ponta no platonismo está toda concentrada nos Estados Unidos e na Inglaterra, o que é enganador. Itália, França e Alemanha possuem expoentes na atual indústria do comentário em filosofia antiga. Mais recentemente, alguns países da América do Sul, entre eles o Brasil, estão se destacando pela qualidade de seus pesquisadores na área. É interessante comparar com a edição, um pouco mais “democrática” no convite aos scholars, de Sara Ahbel-Rappe e Rachana Kam-tekar no A Companion to Socrates, também da coleção Blackwell Companions.
A seguir vou enfatizar alguns recursos e argumentos dos primeiros ensaios, sem pretender, obviamente, uma análise mais profunda. Minha intenção é temperar o interesse do leitor e induzi-lo à leitura, destes que destaco, bem como dos que não poderei mencionar devido aos limites dessa re-senha.
Após um breve prefácio no qual o editor explica sua es-tratégia na concepção do livro, três ensaios abrem o volume: “A vida de Platão de Atenas”, de D. Nails, “Inter-pretando Platão”, de C. Rowe e “O problema socrático”, de W. Prior. Nails sintetiza com habilidade traços da biografia de Platão, como a ambientação aristocrática, os irmãos, a vida política e os acontecimentos históricos que marcaram Atenas na primeira parte da vida do filósofo. Destaca-se a opção por atrelar tais aspectos a algumas obras, como Euti-demo e Carta VII, certamente uma estratégia segura para dar consistência ao cruzamento entre os acontecimentos da vi-da de Platão e a rica ambientação dramática que caracteriza sua produção filosófica. Rowe, com sua prosa sempre de al-to nível, reúne em poucas linhas a defesa de um socratismo que permearia toda a obra de Platão. Ele firma aí uma posi-ção moderada, se a comparamos com o extremismo das tendências desenvolvimentista e unitária. Já o ensaio de Prior pode parecer deslocado no lugar onde está, a apresen-tação do livro, mas não é um deslize. Como argumentou Rowe no capítulo anterior, tendemos a ver isso como um efeito do fato de que a obra platônica, em linhas gerais, não se afasta do programa filosófico socrático, nem mesmo na chamada fase “madura”.
Depois dessa abertura, o livro se divide em seis partes apresentando oito tópicos do platonismo: método, epistemo-logia, metafísica, psicologia, ética, política, estética e legado. O método e a forma do diálogo são tratados pelos ensaios “A forma e os diálogos platônicos”, de M. M. McCabe, “O E-lenchus Socrático”, de C. Yang, “Definições platônicas e formas”, de R. M. Dancy e “o método da dialética platôni-ca”, do editor. McCabe examina o gênero adotado pelo filósofo e identifica fases de maior e menor presença da forma “diálogo”. Ela especula que Platão pode ter sido ins-pirado pela própria evolução da prosa grega que, apesar de ter culminado num material de tipo argumentativo, não se desvencilhou do apreço dos gregos pelo teatro. A proposta da autora é problematizar esse quadro com a complexa tra-ma dos diálogos. Enquanto “encartados” no quadro, os diálogos não se permitem uma interpretação simplista nos moldes da que os vê, fundamentalmente, como reprodução de um método, proposto por Sócrates, de fazer filosofia.

O ensaio de Charles Young examina o elenchus. É um capítulo com duas qualidades muito úteis: explicita com fô-lego as principais passagens onde o elenchus está em ação no corpus e avalia criticamente a clássica tese de Vlastos sobre os dois tipos de elenchus. Já o artigo de Dancy persegue a i-deia de “definição” em textos como Carmides, Eutifron, Hípias Maior, Laques, Lísis, Protágoras e República I. Seu estilo é árido. O uso de acrônimos, recurso que Jonathan Barnes chamou de “SSPCU style” (in: Philosophy and Phenomenological Research, vol. 56, 1996, p. 489-491) e de símbolos da ló-gica moderna obrigam o leitor não-especialista a retomar certos parágrafos no curso da leitura. Esse detalhe não ate-nua a relevância do objetivo do autor: trata-se de identificar certos procedimentos típicos nas passagens sobre “o que é x” e retirar destes lugares as condições necessárias e sufici-entes do tipo de definição ideal que os diálogos buscam. No detalhe, porém, Dancy defende interpretações que precisam de mais argumentação (cf. a p. 84 ele está consciente disso) como, por exemplo, sua tese de que a terceira condição de uma boa definição, que ele nomeia “Requerimento de Ex-plicação”, envolve alguma conexão causal entre a definição e suas instâncias. Não está claro de modo algum no texto de Dancy que tipo de causalidade é essa.
A dialética é examinada por Benson, fechando o pri-meiro bloco. O autor apresenta soluções para resolver os impasses sobre a conexão entre o método dos primeiros di-álogos e o dos diálogos médios. Destaca-se o esforço para explicar a continuidade entre “metodologias” de hipóteses presentes em Mênon, Fédon e República.

A segunda parte aborda a epistemologia platônica. G. Matthews assina “a ignorância socrática”, C. Kahn “Platão e a Reminiscência”, D. Modrak “Platão: uma teoria da per-cepção ou um aceno à sensação?” e M. Ferejohn “O conhecimento e as formas em Platão”. Na terceira parte, dedicada à metafísica, T. Penner escreve sobre “As formas e as ciências em Sócrates e Platão”, M. L. Gill propõe “Pro-blemas para as formas”, C. Freeland “o papel da cosmologia na filosofia de Platão, D. Sedley “Platão e a Linguagem”, M. White “Platão e a matemática” e M. McPherran “a religião platônica”.

A psicologia de Platão, na quarta parte, traz os ensaios “os paradoxos socráticos” (Brickhouse e Smith), “A alma platônica” (F. Miller jr.), “Eros e amizade em Platão” (C. D. C. Reeve) e “Platão e o prazer como o bem humano” (G. Santas). Ética, política e estética são contemplados com “a unidade da virtudes”, de D. Devereux, “Platão e a justiça” de D. Keyt, “O conceito de bem em Platão”, de N. White, “Platão e a lei”, de S. S. Meyer e “Platão e as artes”, de C. Janaway. A última parte é consagrada às influências do pla-tonismo na tradição filosófica posterior. C. Shields escreve “Aprendendo sobre Platão com Aristóteles”, A. Long “Pla-tão e a filosofia helenística” e S. Ahbel-Rappe termina o livro com “a influência de Platão na filosofia judaica, cristã e islâmica”.

O livro “Platão”, de Hugh H. Benson e colaboradores, é extremamente útil, tanto para especialistas quanto para es-tudantes de filosofia. Os primeiros vão gostar de ver seus focos de interesse sendo comentados de modo inteligente e eficaz. Os demais terão no livro uma orientação que lhes permitirá conhecer o modo mais profícuo de se abordar Platão, hoje. Por isso, trata-se de um livro indispensável.

Nota

1 Tradução feita a partir do original: “A Companion do Plato”, publicado pela Blackwell e organizado Hugh H. Benson.

Anderson de Paula Borges – Professor-adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás. E-mail: [email protected]

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Observações filosóficas – WITTGENSTEIN (Ph)

WITTGENSTEIN, Ludwig. Observações filosóficas. Trad. por Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2005. Resenha de: PORTO, André. Philósophos, Goiânia, v.14, n. 2, p.209-217, jul./dez., 2009

Reza a “versão oficial” da história da filosofia, do final do século XIX para cá, que o ponto de separação entre as duas grandes tradições filosóficas do século XX – a tradição analítica e a fenomenológica – teria se dado após a publicação da resenha de (FREGE, 1997) à Filosofia da Aritmética de (HUSSERL, 2006). Daí em diante, segundo a versão normalmente aceita, essas duas tradições teriam tomado caminhos divergentes e até opostos. Tentativas (tímidas) de reaproximação só teriam começado a se dar no final do século XX.

De certa forma, o volume Observações Filosóficas, publicado em tradução brasileira em 2005 pela Loyola, desmente essa versão oficial. Nessa obra (e no Big Typescript), ambas do assim chamado “período intermediário” de Wittgenstein, encontramos o autor se aproximando de temas tradicionais da filosofia moderna tais como o problema do Idealismo e do Solipsismo3 e, mais surpreendente ainda, se aproximando de temas caros à fenomenologia de Husserl, como o problema da temporalidade da experiência imediata. Não exageremos a convergência. Para Wittgenstein, ainda se trata de “esclarecer a gramática” desses vários tipos de proposições e não de “descrever a estrutura da subjetividade imediata”, como em Husserl. Ainda assim, é difícil de não se perceber uma agenda de questões comuns entre, digamos, as famosas Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo, de Husserl (HUSSERL, 1994), e os capítulos V e VI das Observações Filosóficas, de Wittgenstein.

Esse surpreendente envolvimento do filósofo com temas advindos do coração da filosofia da consciência parece, por vezes, ter produzido reações estranhas nos seguidores do autor do famoso argumento contra a linguagem privada. Até onde vai o conhecimento desse resenhista, o primeiro volume que se dedica diretamente à exegese desse material foi publicado apenas em 1995, por David Stern (STERN, 1995). E até os dias de hoje, não parece exagero dizer-se que o trabalho de análise mais aprofundada dessas ideias ainda se encontra em seus estágios iniciais4.

Até mesmo do ponto de vista de acesso bibliográfico, o trabalho dos comentadores estava, até há bem pouco tempo, dificultado. A publicação em inglês de Philosophical Re-marks data 1975. Mas a obra fundamental do período intermediário, o monumental Big Typescript, só foi efetivada em 2005. Antes disso, tínhamos apenas o estranho pastiche chamado de Philsophical Grammar.5 Ora, naquela obra, ape-nas uma das duas partes (a parte II), trás textos extraídos do Big Typescript. O resto do material, incluindo temas como Idealismo, Fenomenologia, Tempo da Memória, foram deixados de lado. No lugar deles, encontramos uma reconstrução, feita por Rush Rhees, a partir de várias revisões diferentes de Wittgenstein do material do Big Typescript, algumas delas contemporâneas ao Livro Azul! (VON WRIGHT, 1982, p.50; STERN, 1996). Além disso, o acesso aos outros numerosos manuscritos do período só foi viabilizado de forma mais geral a partir da publicação (em alemão) de (WITTGENSTEIN, 1999) e da Edição Berger (WITTGENSTEIN, 2000). Tem-se por vezes a impressão de que os executores do testamento de Wittgenstein hesitavam em tornar público esses embaraçosos envolvimentos de seu mestre com a famigerada filosofia da consciência6.

Passemos ao texto de Wittgenstein. As Observações Filosóficas são a reunião, um tanto apressada, dos resultados das pesquisas filosóficas do filósofo, de seu retorno a Cambridge em Janeiro de 1929, até Maio de 1930. Como nos informa Rhees, nessa última data o Conselho do Trinity College solicitou a Russell um parecer sobre os progressos de Wittgenstein, com vistas à renovação de sua bolsa de pesquisador (WITTGENSTEIN, 2005, p.287). O texto das Observações Filosóficas é fundamentalmente uma reunião e organização do material filosófico constante de 4 cadernos manuscritos por Wittgenstein, os manuscritos 105 até 109 com vistas a esse parecer. No material original, não havia nenhuma marcação de interrupção no texto. A organização atual em capítulos, e o sumário detalhado que encontramos no início da obra (WITTGENSTEIN, 2005, pp. 11-33) foram feitos por Rhees, mas já estão consagrados pela comunidade filosófica. De fato, eles ajudam muito a visão sinóptica da obra, tão cara a Wittgenstein7.

Em uma famosa carta a Schlick, Wittgenstein afirma que havia retornado a Cambridge e à pesquisa filosófica para “trabalhar sobre o espaço visual e outros assuntos”. (WAISMANN, 1979, p.17) A observação nos dá uma chave para uma das linhas de desenvolvimento principais da obra. Como muito do que ocorre nesse período intermediário, as origens da preocupação de Wittgenstein com o espaço visual estão no Tractatus. Como sabemos, segundo aquela obra, por trás de nossas proposições ordinárias se esconderia uma intrincada forma lógica, complexas estruturas puramente verofuncionais de proposições elementares, não passíveis de ulterior análise. Essas proposições elementares, por sua vez, projetariam estados de coisas atômicos, eventos mínimos do espaço lógico tractariano.

Pois bem. Uma mutação filosófica importante que abre o período intermediário é a definição, por Wittgenstein, da natureza desses eventos mínimos, os estados de coisas. 8 Em 1929, esses eventos mínimos são claramente determinados como sendo fenômenos, ocorrências em nossos espaços sensoriais. Daí o interesse de Wittgenstein no espaço visual como espaço fenomênico por excelência. Dada essa mutação, o processo de análise preconizado pelo Tractatus transforma-se então em descrição fenomênica. É isso que encontramos nos primeiros manuscritos de Wittgenstein na época (MS105 e 106) e no famoso artigo de Wittgenstein Some Remarks on Logical Form de Junho de 1929: o uso extensivo de coordenadas para empreender uma descrição fenomenológica com a “correta multiplicidade” e assim fornecer uma análise (ainda final) das proposições ordinárias. (WITTGENSTEIN, 1993, p.31)

Rapidamente, a própria possibilidade de se postular uma análise assim é posta em dúvida por Wittgenstein. Ao invés de encontrarmos a linguagem primária (fenomênica) postulada por Wittgenstein como resultante da análise lógica das proposições ordinárias (chamada na época de linguagem secundária), essas duas linguagens ganham independência uma da outra. A linguagem primária mantém com a secundária apenas uma relação na verificação: os conteúdos da linguagem ordinária fisicalista (secundária), uma vez restringidos às suas implicações estritamente fenomênicas, dariam lugar a expressões da linguagem primária que, por sua vez, seria então verificada ou falseada pela experiência.

O projeto original de Wittgenstein tem uma série muito rápida de desdobramentos e alterações, no período. O problema das coordenadas desencadeia uma longa investigação, na filosofia da matemática, sobre os números irracionais e sobre a noção de número em geral. Por sua vez, o abandono da ideia de uma única sintaxe lógica em prol de uma multiplicidade de gramáticas lógicas independentes oferece a Wittgenstein uma nova maneira de tratar os problemas fundamentais da filosofia da consciência que mencionamos no início dessa resenha: o problema da subjetividade, da temporalidade, etc. O período intermediário é muito rico e de extraordinária importância para se aquilatar corretamente, não somente o período final, maduro, da filosofia de Wittgenstein, mas, como antecipamos, para lançar uma nova luz sobre as relações entre a filosofia analítica e fenomenológica no século XX.

Uma nota sobre a tradução brasileira. Infelizmente, como tantas vezes acontece em nosso país, a presente tradução deixa a desejar em muitos aspectos. Uma primeira deficiência decorre do fato dessa tradução ser indireta. Ao invés de usar o texto original, em alemão, empreendeu-se uma tradução da versão inglesa (WITTGENSTEIN, 1975). Ora, a tradução de 1975 não prima pela precisão, tanto na escolha dos termos equivalentes, mas até mesmo do trabalho editorial geral: há uma frase interia do parágrafo 48 do original alemão que foi omitida, por descuido, na versão inglesa (a omissão foi repetida na versão brasileira).

As deficiências da tradução inglesa foram multiplicadas na brasileira. Tomemos como exemplo, os termos alemães Bild e Vorstellung. Na Nota do tradutor do texto inglês para o português, no final do volume (WITTGENSTEIN, Observações Filosóficas, 2005) os tradutores corretamente elegem a tradução de Bild por afiguração (proposta consagrada na tradução do Tractatus do professor Luiz Henrique dos Santos). Porém, em parte seguindo as opções de seus colegas ingleses, os tradutores brasileiros traduzem Bild algumas vezes por imagens [figurações]. A confusão atinge o clímax quando o termo Vorstellung também é traduzido por imagem e até mesmo por imagens [figurações]! Assim, por exemplo, temos o trecho:

Sabemos o que é uma imagem [figuração], mas as imagens [figurações], com certeza, não são nenhum tipo de imagem [figuração] (Sic) (WITTGENSTEIN, 2005, p.66).

Notas

1 Esses temas já tinham sido enunciados nos parágrafos 5.6 do Tractatus, mas é nesse período intermediário que eles recebem uma atenção não dividida por parte de Wittgenstein.

2 Em nossa língua, temos o importante trabalho do professor Bento Prado Neto (PRADO NETO, 2003).

3Traduzido em Português como (WITTGENSTEIN, 2003).

4 Von Wright é taxativo em classificar esse material como sendo de “valor intrínseco menor” (VON WRIGHT G., 1984, p.13).

5 Uma divisão em capítulos e seções do Big Typescript, semelhante a das Observações Filosóficas, é feita diretamente por Wittgenstein.

6 Ou a explicitação de uma definição que já estava implícita no Tractatus, segundo alguns autores.

7 Essa confusão tem início na tradução inglesa, que verte o termo Bild algumas vezes por image ao invés de Picture.

REFERÊNCIAS

FREGE, G. (1997). Review of E.G. Husserl ‘Philosophie der Arithmetik’. In: M. BEANEY, Frege Reader (pp. 224-226). Oxford: Blackwell.

HUSSERL, E. (1994). Lições para uma fenomenologia da Consciência Interna do Tempo. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda.

HUSSERL, E. (2006). Philosophy of Arithmetic. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers.

KENNY, A. (1976). From the Big Typescript to the Philosophical Grammar. In: G. H. VON WRIGHT, Essays on Wittgenstein in honour of G. H. von Wright (pp. 41-59). Amsterdam: North Holand.

PRADO NETO, B. (2003). Fenomenologia em Wittgenstein: Tempo, Cor e Figuração. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

STERN, D. (1996). The availability of Wittgenstein’s Philosophy. In: H. SLUGA, & D. STERN, The Cambridge Companion to Wittgenstein (pp. 442-76). Cambridge: Cambridge University Press.

STERN, D. (1995). Wittgenstein on Ming and Language.  Oxford: Oxford University Press.

VON WRIGHT, G. (1984). A Biographical Sketh. In: N. MALCOLM, Ludwig Wittgenstein, a memoir (pp. 3-20). Oxford: Oxford University Press.

VON WRIGHT, G. (1982). The Wittgenstein Papers. In: G. VON WRIGHT, Wittgenstein (pp. 35-62). Minneapolis: University of Minesota Press.

WAISMANN, F. (1979). Wittgenstein and the Viena Circle. Oxford: Basil Blackwell.

WITTGENSTEIN, L. (2003). Gramática Filosófica. São Paulo: Edições Loyola.

_____. (2005). Observações Filosóficas. São Paulo: Edições Loyola.

WITTGENSTEIN, L. (1974). Philosophical Grammar. Oxford: Basil Blackwell.

WITTGENSTEIN, L. (1975). Philosophical Remarks. Oxford: Basil Blackwell.

WITTGENSTEIN, L. (1993). Some Remaks on Logical Form. In: L. WITTGENSTEIN, Philosophical Occasions, 1912-1951 (pp. 28-36). Indianapolis: Hacket Publishing Company.

WITTGENSTEIN, L. (2005). The Big Typescript. Oxford: Basil Blackwell.

WITTGENSTEIN, L. (1994). Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp.

WITTGENSTEIN, L. (1999). Wiener Ausgabe Studien  Texte: Band 4: Bemerkungen zur Philosophie. Bemerkungen zur philosophischen Grammatik . Nova Iorque: Springer.

WITTGENSTEIN, L. (2000). Wittgenstein’s Nachlass: The Berger Edition. Oxford: Oxford University Press.

André Porto – Professor-adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UGF), Goiânia, Goiás. E-mail: [email protected]

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El genocidio como práctica social. Entre el nazismo y la experiencia argentina – FEIERSTEIN (Ph)

FEIERSTEIN, D. El genocidio como práctica social. Entre el nazismo y la experiencia argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2008. Resenha de: MARTÍNEZ, Horacio Luján.  Philósophos, Goiânia, v.14, n. 1, p.211-218, jan./jun., 2009.

O autor deste estimulante e também inquietante livro é Daniel Feierstein, professor da disciplina “Análisis de las prácticas sociales genocidas”, na Faculdade de Ciências Sociais da Universidad de Buenos Aires, e diretor do Centro de Estudios sobre Genocidio e do Mestrado em Diversidad Cultural na Universidad de Tres de Febrero.  O livro procura compreender o genocidio como o “aniquilamento de coletivos humanos”: um modo específico de destruição e reorganização das relações sociais. Isto é, trata-se de observar esses processos de aniquilamento não como uma exceção na história contemporânea, mas como uma tecnologia de poder peculiar.  O conceito de “tecnologia de poder” é entendido aqui como uma forma peculiar de estruturar – seja através da criação, destruição ou reorganização – as relações sociais em uma sociedade determinada, os modos em que os grupos se vinculam entre si e consigo mesmos e os através dos quais constroem sua própria identidade, a identidade de seus semelhantes e a alteridade dos outros. Isso não implicará, como veremos, em dizer que o genocídio é somente um modo de reorganização de relações sociais, nem que esta somente opere através de práticas sociais genocidas.  Pode-se dizer que há consenso entre os historiadores acerca de que o termo “genocídio” surge como um neologismo criado pelo jurista Raphael Lemkin. Dito neologismo se estrutura com o sufixo latino cidio (aniquilamento) e o prefixo grego genos, que tem dado muito mais lugar à discussão, uma vez que não parece fácil decidir se remete a uma origem tribal comum, à comunhão de características genéticas (raciais) ou às simples características comuns compartilhadas por um grupo. Esses dois últimos significados se acham presentes no termo grego genos e em seu herdeiro latino gens, ligado aos clãs familiares.  O trabalho de Feierstein pretende esboçar a possibilidade de que o genocídio – pelo menos na sua forma mais ou menos recente – constitui uma prática social característica da modernidade (de uma modernidade que poderia ter os seus antecedentes ao final do século XV – 1492, talvez –, mas cuja aparição definitivamente moderna se centra nos séculos XIX e XX). Assim, não se trata somente do “aniquilamento de populações”, mas do modo peculiar com que isso é levado a cabo. Os tipos de legitimação a partir dos quais se logra consenso e obediência, as consequências que produz – a morte ou a sobrevivência – nos grupos vitimizados e também as consequências nos mesmos perpetradores e testemunhas, que veem modificadas suas relações sociais a partir da emergência dessa prática.

A ideia de conceber o genocídio como uma prática social evita aquelas perspectivas que tendem a coisificar os processos genocidas, equiparando-os a fenômenos climáticos naturais (ou que formariam parte de certa natureza do homem) e que seriam algo assim como um “exabrupto” nessa natureza. Uma prática social implica um processo levado a cabo por seres humanos e requer modos de treinamento, aperfeiçoamento, legitimação e consenso que diferem de sua prática automática ou espontânea.  Uma prática social genocida, então, é tanto aquela que tende e/ou colabora no desenvolvimento do genocídio como aquela que o realiza simbolicamente através de modelos de representação ou narração dessa experiência. Essa ideia permite conceber o genocídio como um processo que se inicia muito antes do aniquilamento e que se encerra muito depois, mesmo que as ideias de início e conclusão sejam relativas a uma prática social.  O conceito de genocídio, embora apareça pela primeira vez no nível legal na Convenção para a Prevenção e a Sanção do Delito de Genocídio aprovada pelas Nações Unidas em dezembro de 1948, tem sua história iniciada no direito internacional um par de anos antes, com a resolução 96 (I) das Nações Unidas, pela qual se convocava os Estados membros a reunir-se para definir esse novo tipo penal, como consequência direta dos assassinatos massivos levados a cabo pelo nazismo. Essa resolução declara que:

El genocidio es la negación del derecho a la existencia de grupos humanos enteros, como el homicidio es la negación del derecho a la vida de seres humanos individuales; tal negación del derecho a la existencia conmueve la conciencia humana, causa grandes pérdidas a la humanidad en la forma de contribuciones culturales y de otro tipo representadas por esos grupos humanos y es contraria a la ley moral y  al espíritu y los objetivos de las Naciones Unidas. Muchos crímenes de genocidio han ocurrido al ser destruidos completamente o en par-te grupos raciales, religiosos, políticos y otros. El castigo del crimen de genocidio es cuestión de preocupación internacional. (FEIERS-TEIN, 2008, p.38)

Cabe destacar que o genocídio de grupos políticos se encontrava presente nessa resolução, e o que resulta ainda mais importante, se definia o crime em analogia com o homicídio, estabelecendo as características do fato pela tipologia da ação (morte coletiva frente à morte individual) e não pelas características da vítima. Essas características são citadas apenas para dar um exemplo: raciais, religiosas, políticas e outras, onde o termo “outras” completa a tipificação ao estabelecer que não é a identidade da vítima a que especifica o delito, senão as características da ação material cometida.  Porém, no marco das discussões às que deu lugar o tratamento desse projeto, foi o próprio Raphael Lemkin quem expôs suas dúvidas acerca da inclusão dos grupos políticos entre aqueles que deviam ser protegidos pela Convenção, dado que se afirmava que esses grupos “carecem da persistência, firmeza ou permanência que outros grupos oferecem”. Muitos dos próprios estados que assinavam a Convenção disseram que a inclusão dos grupos políticos poderia pôr em risco a aceitação desta por parte de grande quantidade de estados, porque estes não queriam envolver a comunidade internacional nas suas lutas políticas internas. Outras posições sustentaram que a inclusão dos grupos políticos abriria portas para a proteção de outros grupos, como os econômicos e profissionais.  Apesar das propostas prévias postularem o contrário, os grupos políticos foram finalmente excluídos da definição na sua última versão, na qual culminou a passagem de uma primeira definição “extensiva” a uma cada vez mais restritiva. Por outra parte, a restrição estabelecida finalmente na Convenção resultou arbitrária, ao incluir-se dentro dos “grupos protegidos” a quem possui uma “ideologia religiosa”, mas não a quem compartilha uma “ideologia política”, quando – salienta Feierstein – ambos constituem, para além de suas importantes diferenças, dois sistemas de crenças.  Assim, chegamos à definição de genocídio:

1) se chamará genocídio pré-estatal toda prática social genocida vinculada à destruição de um grupo humano, realizada antes da existência dos Estados-nação modernos.  Genocídio moderno:

2) Genocídio constituinte: se refere à aniquilação cujo objetivo é a conformação de um Estado-Nação, o qual requer o aniquilamento de todas aquelas frações excluídas do pacto estatal, tanto as populações originárias como núcleos políticos opositores ao novo pacto estatal.

3) Genocídio colonialista: é o que envolve a aniquilação de populações autóctones, basicamente como necessidade de utilização dos recursos naturais dos territórios que ocupam e/ou como estratégia de subordinação da população originária, seja para tolerar a espoliação ou para utilizá-los como mão de obra.

4) Genocídio pós-colonial: se refere especificamente ao aniquilamento da população produto da repressão às lutas de liberação nacional.

5) Genocídio reorganizador: remete à aniquilação, cujo objetivo é a transformação das relações sociais hegemônicas ao interior de um Estado-Nação preexistente.

Este último tipo – o genocídio reorganizador – logra agir especificamente sobre as relações sociais no contexto de uma sociedade existente, com o objetivo de clausular aquelas relações que geram fricção ou mediações ao exercício do poder – contestatárias, críticas, solidárias – e substituí-las por uma relação unidirecional com o poder, através do procedimento da delação e da desconfiança. A ruptura das “relações de reciprocidade” entre os seres humanos constitui o objetivo central desta modalidade genocida que opera “reorganizando” a sociedade, estruturando outro tipo de vínculos hegemônicos.  As mortes do genocídio reorganizador cobram, por isso, o seu caráter de meios e já não de fins. O desaparecimento daqueles que encarnam determinadas relações sociais é condição necessária, mas não suficiente, para a clausura de tais relações. Na verdade, o processo se encontra dirigido ao conjunto social. O terror, nesta modalidade genocida, não opera tão somente sobre as vítimas, mas, fundamentalmente, sobre o conjunto social, buscando desterrar e clausular determinadas relações sociais e, ao mesmo tempo, fundar outras.  Nesse sentido, o nazismo traz uma nova modalidade na prática do genocídio: “Ya no sólo el surgimiento de un nuevo Estado, ya no sólo una política colonialista, sino que ahora el genocidio se estructura como un modo de transformar un Estado preexistente” (FEIERSTEIN, 2008, p.99-100). O nazismo tinha um arquétipo da vítima ideal, que  não era somente o judeu, mas o “judeu bolchevique”. Desse modo, se combatia o comunismo – o que favoreceu a conivência de tantos países no começo do Terceiro Reich – mas esse comunismo tinha caraterísticas raciais, isto é, originárias, radicais e inassimiláveis. O aparelho retórico do nazismo, que se apoiava no biológico, tornava a dissidência política um caso patológico. É esse modelo degenerativo que repete o terrorismo de Estado na Argentina da ditadura de 1976-1983. Tanto a “judeidade” na Alemanha dos anos 30 e 40 quanto o caráter “subversivo” na Argentina da década de setenta atentavam contra um modo de vida considerado tradicional e, pior, irreversível. Não é difícil pensar que o roubo sistemático de filhos de militantes desaparecidos, levado a cabo na Argentina por famílias militares, teve a cínica justificativa de uma salvação da criança por uma “reversão” da semente subversiva.

A comparação dos dois casos, o alemão e o argentino, realizada pelo autor, superou o que se chamou de a “unicidade” (uniqueness) do genocídio nazista. Esse caráter único outorgado ao holocausto, ou shoá, somente isolou essa experiência, declarando-a quase que ontologicamente irreproduzível.

Nos dois casos comparados, tão importante quanto a aniquilação material do inimigo é sua aniquilação simbólica. É isso o que representa a negação da shoá. O que nunca deveu ser – a existência do “judeu bolchevique” –, nunca foi. Portanto, as câmeras de gás nunca existiram.

Na Argentina, o processo de negação se encarna na demonização absoluta dos que participaram da repressão. Tornar ao outro um monstro, torná-lo o “Outro absoluto”, o afasta da vida cotidiana. Mais uma vez, como no caso da  “unicidade” do genocídio nazista, o que aconteceu foi o delírio sádico de alguns poucos, contra a vontade e a credulidade geral. O que coroa esse mecanismo de negação é a “angelização” da vítima: assim, o desaparecido na Argentina “não tinha feito nada”. Ao massacre absoluto só corresponde a inocência absoluta. Feierstein chama a atenção para o fato de que, desse modo, o genocídio cumpre seu objetivo: a negação simbólica das práticas de resistência políticas (FEIERSTEIN, 2008, p.129).

As leituras de Hanna Arendt e Michel Foucault ecoam claramente no livro. A noção de um poder produtivo com uma ideologia do terror como argumento de coesão e coerção social não é algo tão estranho para nós nestes tempos chamados de “terrorismo globalizado”.

Sabemos que os números e a política sempre mantiveram uma relação perversa da qual a estatística é seu filho bobo. Talvez seja importante pensar que, considerando o genocídio uma prática que procura a reorganização de uma sociedade, aquilo torna algo um massacre premeditado não é o número de suas vítimas, senão as características destas.

Isto é importante sobretudo no Brasil, onde todo debate sobre desaparecimento e tortura na última ditadura é rapidamente abafado com a magra escusa, que mal esconde uma ameaça, de que nos países vizinhos foi muito pior

Referências

FEIERSTEIN, D. El genocidio como práctica social. Entre el nazismo y la experiencia argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2008. 405p.

Horacio Luján Martínez – Professor-adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Cascavel, Paraná. E-mail:  [email protected]

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