O pensamento intelectual, a historiografia e o ensaísmo na produção intelectual brasileira e latino-americana (1870-1960) / Tempos históricos / 2019

I

O presente número da Revista Tempos Históricos, o periódico científico do Programa de Pós-Graduação e do Curso de Graduação em História da Unioeste, apresenta o seguinte dossiê: O pensamento intelectual, a historiografia e o ensaísmo na produção intelectual brasileira e latino-americana (1870-1960).

O objetivo desse dossiê é dar vazão à produção historiográfica fundamentada em fontes de natureza intelectual, ou seja, obras publicadas, destinado aos leitores. Por isso, duas questões logo se impõem: o que é um intelectual e qual seu público?

A ideia do intelectual como agente social aparece primeiro na Europa Ocidental do século XIX, em particular na França. Convém lembrar que não há uma unidade em torno dos intelectuais, dos artistas, ou dos escritores, uma vez que podem assumir diferentes narrativas e posições. Norberto Bobbio (1997: 116) observa os intelectuais como “porta-vozes” da opinião pública, fossem eles “progressistas ou conservadores, radicais ou reacionários, libertários ou autoritários, liberais ou socialistas, céticos ou dogmáticos, laicos ou clericais (…)”. O que os une é o fato de utilizarem o texto como mecanismo de intervenção na vida pública, seja na ciência, na política, nas artes, na literatura, etc.

Os intelectuais, para se expressarem, necessitam um público alfabetizado, sistemas de edição, publicação e distribuição de livros. Precisam também de um complexo conjunto de mediadores, como professores e jornalistas, que divulgam e animam os ambientes letrados.

Em termos políticos, um momento importante de afirmação dos intelectuais foi o célebre caso Dreyfus, na França de 1894, quando um oficial judeu das forças armadas francesas, Alfred Dreyfus, foi injustamente acusado de traição à pátria, por supostamente transmitir informações confidenciais aos alemães. Em 14 de janeiro de 1898, no jornal L’Aurore, o escritor Émile Zola liderou o “Manifesto dos Intelectuais”, que congregava jornalistas, professores, artistas e escritores. O texto mobilizou importantes setores da opinião pública francesa em defensa de Dreyfus, demonizados pelos conservadores franceses (BEGLEY, 2009). [3] O episódio consolidou o papel do intelectual como um agente público importante nas sociedades contemporâneas. O próprio termo intelectual passou a significar não só um profissional que praticava atividades eruditas, em torno do texto, mas também um sujeito que se posicionava politicamente frente às grandes questões de seu tempo (MARLETTI, 1998).

Pierre Bourdieu, ao abordar os intelectuais, menciona a existência de um “microcosmo”, regido por uma lógica e regras próprias. A perspectiva de relativa autonomia do “campo” intelectual contribui na compreensão do funcionamento das disputas e alianças. É importante insistir que os homens de letras estão conectados com as questões amplas da vida social, de seu tempo e de suas circunstâncias.

Ao se fazer História usando como fonte a produção de intelectuais, de escritores ou de artistas, é preciso observar um elemento decisivo: quem escreve, lê. Assim como as opções políticas, estéticas, éticas, os interesses, os pertencimentos institucionais e uma série de outras questões também repercutem no texto, inclusive a recepção que uns autores fazem dos outros. Para Pocock (2003: 45): “todo e qualquer ato de fala que o texto tenha efetuado pode ser re-efetuado pelo leitor de maneiras não idênticas às que o autor pretendeu.” Em outras palavras, as narrativas e perspectivas interpretativas são mais dinâmicas, pois portadas de um complexo sistema de interpretação, apropriação e recepção. Roger Chartier também destaca a historicidade da leitura e não apenas a da escrita. O autor afirma que um livro se transforma justamente pelo fato de não mudar, uma vez que o mundo e os tempos mudam, transformando os significados dos textos (CHARTIER, 1988: 131).

Ainda em termos metodológicos é importante observar o que Jean-François Sirinelli definiu como “estruturas de sociabilidade”, ou seja, os ambientes institucionais nos quais os intelectuais circulam: revistas, academias, universidades, centros de estudo e pesquisa, jornais, associações científicas, etc. Os lugares de formação e difusão de conhecimento e de narrativas, ou mesmo a formação de uma rede de alianças e confrontos é importante para compreender a maneira como os intelectuais interferem no espaço público (SIRINELLI, 2003).

Quando se aborda uma rede de intelectuais ou artistas e escritores é preciso observar que seus integrantes não se resumem aos grandes autores, mas também é também constituída nomes menores, às vezes jovens aspirantes, semelhantemente importantes na difusão de narrativas e na formação das hierarquias e dos grupos, observa Claudia Wasserman (2015: 72).

A consolidação da modernidade oitocentista, sobretudo a partir da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, imprimiu uma inédita aceleração da história, envolvendo um crescente número de pessoas, via ampliação da cidadania, da alfabetização, e da valorização da ciência e dos saberes laicos, tornando a intervenção pública dos homens e das mulheres de letras profundamente associadas às de expansão de futuro e de progresso. “A consciência de que o mundo pode ser transformado numa direção ou outra deu aos chamados “homens de cultura” projeção até então inédita, tornando o engajamento político dos intelectuais particularmente importante, de modo que a história dos intelectuais é uma abordagem relevante na construção de um olhar para sociedades contemporâneas” (SCHNEIDER, 2019).

II

Abrimos o dossiê com o artigo do professor Daniel Pinha (IFCH-UERJ) intitulado “Calcanhar de Aquiles da Geração 1870: Machado de Assis e o problema da recepção do repertório externo”. Nele, o autor parte da crítica feita por Machado de Assis à Geração de 1870, sobretudo no texto “A nova geração” (1879), no qual o Bruxo do Cosme Velho sintetiza na produção letrada de toda uma geração, inclusive Sílvio Romero, marcado pela receptividade do discurso de modernidade no Brasil, impulsionado pela circulação do cientificismo em meio à crise política e ao esgotamento do modelo romântico de fins do Oitocentos. Assim, tomando Romero como “exemplo-síntese” dos letrados dessa época, Pinha analisa o desafio enfrentado por esses homens na adaptação das “novas ideias” que vinham de fora às “particularidades do meio brasileiro” para, somente então, darem origem a uma nova forma. Eis o “Calcanhar de Aquiles da Geração de 1870” descrito neste artigo.

No segundo artigo deste dossiê – “A libertação linguística da literatura nacional: tramas de política, língua e literatura no Brasil (1930-40)” – as historiadoras Gilvana de Fátima Figueiredo Gomes (UNICENTRO) e Maria Paula Costa (UNICENTRO) problematizam as disputas políticas e intelectuais em torno da unidade linguística nacional durante a década de 1930. A preocupação das autoras está em compreender a importância atribuída à unidade linguística nacional por parte de críticos literários, articuladores do Estado Novo e “romancistas sociais”, notadamente Jorge Amado. Desta forma, elas mapeiam textos e pensamentos sobre a temática e revelam as tensões político culturais do período de busca pela definição da identidade nacional, mostrando que os usos da língua presidiam muitas das escolhas políticas e estéticas.

Na sequência, o artigo “As migrações internas à luz do pensamento de Roberto Simonsen: uma análise crítica do ensaio ‘recursos econômicos e movimentos das populações’”, da socióloga Lidiane Maria Maciel (UNIVAP) e do cientista social Arthur de Aquino (UNICAMP), apresenta análise dos debates em torno da formação da mão de obra livre para o desenvolvimento econômico do país no período do Estado Novo. O texto aborda a temática das migrações internas e internacionais através do debate presente na obra de Roberto Simonsen (1889-1948), especialmente do ensaio “Recursos econômicos e movimento de população”, publicado originalmente em 1940. Após empregar uma análise discursiva do texto de Simonsen, os autores chamam atenção para o seu pioneirismo ao apontar para a responsabilidade do Estado na promoção de políticas de planejamento migratório a fim de melhorar os níveis de vida no país.

Já o quarto artigo que compõe o dossiê é de autoria do historiador Cairo de Souza Barbosa. No estudo intitulado “Do ‘vigor democrático’ à floração do golpe: interpretações da crise brasileira no pensamento político-social de Florestan Fernandes e Wanderley Guilherme dos Santos (1954-1962)”, o autor propõe a discussão de duas interpretações sobre a crise brasileira durante as décadas de 1950 e 1960. Ampara-se em premissas da História Intelectual, seu texto empreende uma análise da obra “Existe uma crise de democracia no Brasil?” (1954), de Florestan Fernandes, e “Quem dará o golpe no Brasil?” (1962), de Wanderley Guilherme dos Santos. Barbosa busca explicitar que a visão distinta desses intelectuais sobre a intensificação dos sentimentos de conflitos e impasse na história do Brasil em meados do século XX estava relacionada às grandes transformações no espaço da experiência política, além, é claro, das tradições teóricas às quais cada autor se filiava. Não é por outra razão, portanto, que esses intelectuais acabaram desenhando propostas distintas de superação aos dilemas postos à época para a permanência da democracia no Brasil.

Já o quinto artigo deste dossiê –“O socialismo em movimento (para frente ou para trás) da Revista Movimento Socialista” – assinado pelo historiador Lineker Noberto (UFRGS / UNEB), apresenta um periódico marxista intitulado Movimento Socialista, que teve apenas duas edições: julho e dezembro 1959. A partir de uma ampla análise do conteúdo dessa revista, o autor discute a compreensão teórica da vida nacional apresentada nas páginas do periódico, explicitando uma perspectiva revolucionária do marxismo brasileiro que, segundo o autor, acabou por engendrar as linhas mestras de uma nova experiência na organização do movimento comunista no Brasil.

Fecha o dossiê o artigo “Paranismo: entre a ideologia e o imaginário”, do historiador Fabrício Souza. A pesquisa traz uma análise de dois estudos acerca do movimento paranista: Regionalismo e antirregionalismo no Paraná (1978), do sociólogo Ruben Cesar Keinert, e Paranismo: o Paraná inventado; cultura e imaginário no Paraná da I República (1997), do historiador Luís Fernando Lopes Pereira. Em seu texto, o autor analisa as profundas diferenças verificadas em ambos os trabalhos, centrando foco na comparação das filiações teóricas dos autores, nas fontes empregadas por ambos, nos recortes temporais, nos procedimentos metodológicos e em suas respectivas modalidades de escrita da história.

Esperamos que os leitores apreciem criticamente os trabalhos selecionados, e que eles possam ter recepção fértil, gerar novas pesquisas e outras inquietações.

Notas

3. Sobre as questões histórica envolvidas, destaco o segundo capítulo: “O passado nunca está morto”, p. 57-89.

Referências

BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo: Editora da UNESP, 1997.

BEGLEY, Louis. O Caso Dreyfus: Ilha do Diabo, Guantánamo e o pesadelo da história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.

MARLETTI, Carlo. “Intelectuais”. In BOBBIO, Norberto & Outros. Dicionário de Política. Volume 1. Brasília: Universidade de Brasília, 1998.

POCOCK, John G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003.

SCHNEIDER, Alberto Luiz. Capítulos de história intelectual: racismos, identidades e alteridades na reflexão sobre o Brasil. São Paulo: Alameda, 2019.

SIRINELLI, Jean-François. “Os Intelectuais”. In RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / Editora FGV, 2003.

WASSERMAN, Claudia. História intelectual: origem e abordagens. Tempos Históricos, Marechal Cândido Rondon, vol. 19, 2015, pp. 63-79.

Alberto Luiz Schneider1 -Professor de História do Brasil e do Programa de Estudos Pós-Graduados da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, 2005), com Pós-Doutorado no King’s College London (2008) e no Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP, 2011).

Claércio Ivan Schneider2 – Professor de História do Brasil II no curso de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE. Doutor em História pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita (UNESP, 2009).


SCHNEIDER, Alberto Luiz; SCHNEIDER, Claércio Ivan. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.23, n.2, 2019. Acessar publicação original [DR]

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