Ensino – pesquisa em história: desafios e perspectivas / História & Perspectivas / 2015

Há três décadas a relação entre ensino e pesquisa em História vem ocupando centralidade nas discussões de muitos de nós historiadores. Com o fim dos Estudos Sociais, das licenciaturas curtas e ou plenas nas Universidades Públicas e Privadas, a extinção de disciplinas, como OSPB e Educação Moral e Cívica; o restabelecimento das áreas de História e Geografia e de outras das Ciências Humanas nos currículos do ensino fundamental e ensino médio, são evidências de mudanças. Se alguns desafios foram vencidos outros ainda permanecem no horizonte das nossas práticas de trabalho. Entre tantos está o de firmar a educação como um direito a ser conquistado enquanto dimensão da cidadania.

Por certo ainda se tem muito que avançar quando o tema é a pouca ênfase das políticas publicas na valorização do trabalho docente e no aprendizado dos estudantes, resultando em um cenário recorrente de baixos salários e pouca carga horária das disciplinas de Humanas nas grades curriculares do ensino básico. Há necessidade de se rediscutir o predomínio do mercado editorial eletrônico e ou impresso no âmbito da circulação dos conhecimentos, incidindo na maioria das vezes em práticas de ensinar que sucumbem à relação com o pensar histórico. Ou melhor dizendo: necessidade de questionarmos a permanência, no “chão” de muitas escolas, de práticas de ensino desarticuladas dos processos vividos, da realidade sociocultural dos estudantes e professores, pautadas em bases hierárquicas, cuja sustentação se dá por meio de discursos das “competências, habilidades e meritocracia”. Reflexões que estiveram no cerne das criticas ainda no final dos anos 1980 e que apontavam para a necessidade de trazer o direito a uma educação articulada ao direito à cultura e à cidadania. (Chauí, M., 1980).

No cerne dessas criticas estava a necessidade de pensar a educação como campo onde a difusão dos conhecimentos, que se requerem “competentes”, seja feita ao lado e em concomitância com as dissonâncias vividas em todas as dimensões da cultura e ou das muitas e outras “falas” produzidas no cotidiano das relações vividas pelos estudantes, professores e trabalhadores técnicos.

Essa é uma critica que permanece como desafio e uma esperança, pois, felizmente, tem rendido muitas discussões e publicações. Essas se apresentam como propostas alternativas para democratizar as relações de ensino / pesquisa na formação dos professores, nas suas práticas de ensinar, como modos de se relacionar, de incorporar e difundir saberes que se fazem nos diálogos com os estudantes, na sala de aula e noutras relações que constituem as escolas uma instituição pública e permanentemente moldada pelos processos de criação, de reflexão, cujas autorias pertencem a todos os agentes, que trabalham e estudam nelas. (Arroyo, M., 2011)

Agora falemos das Perspectivas, outra palavra que compõe o titulo do Dossiê. Vale lembrar que em 1992 a Revista História & Perspectivas deu a sua contribuição para lidar com o ensino como pesquisa histórica na edição de um dossiê cujo tema foi Historia e Historiografia. O número contou com a presença de vários autores entre eles o de Déa Ribeiro Fenelon, que na época era professora do Programa de Pós Graduação da PUC-SP e também diretora do Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de São Paulo. O artigo O Historiador e a Cultura Popular: História de classe ou História do povo? foi originalmente apresentado por ela no VI Encontro Estadual de História de Minas Gerais em 1988. Nele várias questões foram trazidas como críticas e como um “chamado” a pensar a função social do historiador e a produção do conhecimento histórico articulado a procedimentos que firmassem a necessidade de valorizar a disciplina História como um campo de muitos fazedores de história em todos os níveis e concepções.

Com essa perspectiva Déa Fenelon apontou alguns problemas nesta questão do ensino / pesquisa em História, aludindo à responsabilidade, de nós historiadores, nas escolhas teóricas pouco debatidas no interior da academia, ou reduzidas aos Eventos da ANPUH. A autora destaca na sua reflexão o fato destes conhecimentos se colocarem como verdades consagradas e ou sacralizadas nos conteúdos curriculares e elencos programáticos, escudados na idéia de que afinal existe toda uma determinada história da humanidade que nossos alunos, futuros professores, precisam dominar para poder transmitir na escola de 1 e 2 graus. Estabelecem-se os conteúdos e a discussão passa a ser apenas sobre a melhor maneira de transmití-los, partindo–se do suposto da hierarquização dos níveis de aprendizagem e de saber que é preciso consagrar. (Fenelon, Déa, 1992, p.8)

A perspectiva apresentada como crítica pela autora era a de buscar uma concepção de História que convivesse com a noção de um tempo / processo histórico indeterminado, o indefinido, o diferenciado, perseguindo assim procedimentos teórico-metodológicos que incorporassem a diversidade e diferença entre sujeitos e grupos, as mudanças e as permanências, reconhecendo que ninguém tem o monopólio do caminho a percorrer para construir a transformação que queremos ver realizada. (Fenelon, Déa, 1992, p.9)

Desse tempo para cá tivemos muitas discussões sobre essa realidade. Elas inclusive deram vazão a diversas propostas inscritas como parâmetros curriculares nacionais, os PCNs, que trazem o movimento de incorporação dessas críticas, por exemplo, ao elencar como trabalho na formação dos nossos estudantes os procedimentos de lidar com a diversidade de linguagens socioculturais. Também tivemos nos anos 1990 muitas mudanças no âmbito da criação de novos cursos de graduação e pós- graduação em História com a incorporação de novos temas nas diferentes abordagens do pensar histórico e historiográfico; a revisão de concepções tradicionais da História Política e Econômica; a emergência de trabalhos no âmbito da Historia Cultural; ao lado da persistência daqueles, na área da Historia Social, que resistem à idéia de que esse campo de investigação é apenas mais uma especialização.

No âmbito das prerrogativas das mudanças institucionais dos currículos da educação básica estão os desafios de problematizar e produzir conhecimentos sobre “cultura afro brasileira e indígena” que envolvem questões a serem enfrentadas. Por isso este dossiê traz artigos que buscam pontuar para fazer avançar nas reflexões sobre o eixo Ensino / pesquisa em História, pensados ainda como desafios e perspectivas.

No conjunto do Dossiê temos 10 artigos diretamente vinculados ao tema. Começamos com o artigo do historiador Michael Merrill que traz a sua experiência de professor nos Estados Unidos junto aos estudantes das classes trabalhadoras. O texto é instigante, pois retoma questões que ainda precisam ser desnaturalizadas, como as perguntas: “O que os trabalhadores sabem da História? O que a História sabe sobre os trabalhadores? No seu texto essas questões atuam como pontos para a sua argumentação de que a História não é fixa e imutável, mas fluida e em constante transformação. Não é o passado. É uma história que nós contamos sobre o passado.

Outro artigo importante para um pensar retrospectivo e prospectivo sobre o ensino / pesquisa em História é o da historiadora Maria do Rosário da Cunha Peixoto. A autora retoma as discussões sobre as diferenças das propostas curriculares realizadas na rede pública, com professores e também com aqueles que eram responsáveis pelo processo de construção das mesmas com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, desde 1986. O objetivo do artigo é discutir o ensino como pesquisa, o que implica considerar a pesquisa o eixo organizador dos currículos escolares dos níveis fundamental e médio e das atividades dos professores de História no exercício da docência e não mais como atividade eventual em sala de aula. Propõe assim o deslocamento do debate – atualmente centrado no confronto das tendências historiográficas e suas formas específicas de escolher e articular as informações ou conteúdos a serem ensinados – para a discussão de metodologias científicas de investigação histórica adequadas aos diferentes níveis de escolaridade.

Numa abordagem diferente o autor Fernando Penna, formado na área da Educação, trata de analisar as concepções de tempo e a percepção da possibilidade da agência no ensino de história. Para tanto, o autor usou como fontes textos de estudantes do ensino fundamental produzidos por um professor da turma, visando tratar a problemática da distância entre passado, presente e futuro em sala de aula, tendo como referencial teórico as propostas de Reinhart Koselleck e Hans Ulrich Gumbrecht. Destaca ainda que as concepções de tempo apresentadas pela maioria dos alunos foram extremamente pessimistas e fatalistas, mas a existência de alguns poucos que acreditavam na responsabilidade de mudar o curso dos acontecimentos aponta para considerações importantes para a prática docente dos professores de história.

Álvaro Nonato Franco Ribeiro e Sônia Aparecida Siquelli, também ligados a área da Educação, apresentam análise das propostas curriculares oficiais que afetam atualmente a educação em Minas Gerais. O objetivo do artigo é argumentar que as idéias neoliberais presentes nas Propostas Curriculares Nacionais (PCN) e no Currículo Básico Comum (CBC / MG) propõem, por meio da adoção de práticas típicas da economia de mercado, desenvolver um sistema educacional pautado na qualidade. Para o ensino de História, essas propostas determinam incluir as fontes históricas em sala de aula e priorizar o desenvolvimento de habilidades e competências que preparem o estudante para o mundo do trabalho. A pesquisa, de natureza qualitativa, realizou uma análise descritiva, crítica e documental dos documentos curriculares oficiais por intermédio da construção de protocolos de análises que evidenciaram pontos convergentes e divergentes entre os PCNs e o CBC / MG.

Carmem Zeli de Vargas Gil, também da área de Educação, com referenciais aportados nos estudos da Historia Cultural, traz como proposta examinar a história de jovens nos conteúdos dos livros didáticos, em especial uma coleção de História para o ensino médio aprovada no Programa Nacional em 2012. O diagnóstico é o de que é possível afirmar que há intencionalidades do editor e do autor em dialogar com situações da vida dos jovens na contemporaneidade, mais do que sua presença na História.

Beatriz Boclin Marques dos Santos, da área de Educação, e Thiago Rodrigues Nascimento, historiador, analisam as controvérsias em relação à memória que associa fortemente os Estudos Sociais apenas ao tempo das propostas dos governos militares. Para os autores essas propostas têm como natureza os contextos dos debates sobre educação ainda nos anos 1920, vinculados aos da Escola Nova. Assim o artigo tem como objetivo analisar a trajetória da disciplina escolar Estudos Sociais no currículo das escolas brasileiras entre as décadas de 1930 e 1970. Com base em uma nova perspectiva historiográfica, resultado de pesquisa em fontes documentais (legislação elaborada pelo CFE) e metodologia da História Oral, bem como por meio de entrevistas com personagens que atuaram como formuladores dessa legislação, salienta-se que a adoção dos Estudos Sociais como disciplina no currículo é uma questão eminentemente pedagógica.

Saindo do foco das retrospectivas e proposições sobre o ensino / pesquisa em Historia, os textos a seguir trazem os desafios postos tanto pela crítica à produção historiográfica, como à produção de materiais para o ensino / pesquisa relacionados ao contexto de aprovação da legislação para as problemáticas das Culturas e Histórias Indígenas e Afro Brasileira, no ensino básico e mais recentemente a obrigatoriedade de disciplinas nos currículos da formação superior.

Carlos José Ferreira dos Santos, historiador e ativista das lutas indígenas, traz importante contribuição no sentido de discutir alguns desafios que dificultam a aplicação da Lei 11.645 / 2008, que tornou obrigatória a temática História e Cultura. Santos destaca a necessidade do diálogo entre o ensino das Histórias e Culturas dos Povos Originários, a produção dos conhecimentos acadêmicos e os saberes / vivências indígenas e, por fim, dos compromissos sociais e culturais dos envolvidos no processo educacional e na produção do conhecimento para enfrentar os desafios na implementação dessa lei. Com esse propósito o texto de Santos possibilita refletir sobre alguns entraves que permanecem na vida social e no horizonte da produção historiográfica quando se trata de produzir pesquisas desencontradas das dimensões das culturas / modos de viver destes povos originários. Por exemplo, a permanência de um olhar externo e classificatório sobre as lutas pelos direitos aos seus territórios, ou ainda, quando fortalecem a invisibilidade no social dessas memórias e dos diferentes protagonistas dessas histórias de lutas.

Nesse sentido o artigo de Santos contribui para problematizar a permanência de um olhar que silencia as diferenças étnicas e culturais quando fixa no imaginário social um olhar político / romântico sobre as ações destes agentes. Um olhar fixado num passado distante e articulado aos marcos das conquistas civilizatórias européias tendo como resultante disso o isolamento, tanto no passado como no presente, de suas existências sociais num processo mais amplo de formação histórica da sociedade brasileira. Já que nesse olhar os indígenas emergem ora como heróis exterminados pela violência dos conquistadores, ora como vitimas e remanescentes de uma cultura em extinção.

O artigo de Susane Rodrigues de Oliveira também contribui para pensar os entraves e os desafios para o ensino da Cultura e História Afro-brasileira e Indígena na educação básica. Partindo das prerrogativas das novas leis sobre a obrigatoriedade destes “conteúdos” nos currículos, a autora analisa os resultados de uma pesquisa realizada por estudantes do curso de História da UnB no estágio supervisionado em escolas do Distrito Federal junto à comunidade escolar da rede pública de Brasília. A sua análise apontou para questões que vão desde a falta de formação dos professores, o enraizamento de preconceitos sociais em relação a alguns conteúdos e a ausência de materiais didáticos livre de alguns paradigmas, até a falta de compromisso da Secretaria da Educação. Esses entraves são para ela alguns dos obstáculos a serem enfrentados.

Desta forma, por diferentes caminhos teóricos os autores relacionados trazem os percursos do debate sobre a relação entre ensino / pesquisa, demonstrando o quão fértil é o campo de diálogo e reflexão, não só para os historiadores como para todos os pesquisadores de outras áreas do conhecimento.

Numa secção de artigos fora do dossiê, este número de História & Perspectivas ainda apresenta as contribuições de autores que trazem diferentes questões relacionadas à formação dos professores; os supostos metodológicos no trato com diferentes linguagens; os desafios no ensino sobre estudos de gênero e a critica à produção historiográfica; bem como os estudos firmados na história local, as problemáticas das fontes e das abordagens. Artigos que ajudam a explicitar o campo diverso das propostas, que instigam debates e revelam diferentes abordagens na produção do conhecimento histórico. Todas estas colocações indicam que os desafios para se trabalhar a formação de professores e pesquisadores continuam no centro das nossas preocupações.

Célia Rocha Calvo


CALVO, Célia Rocha. Ensino – Pesquisa em História: desafios e perspectivas. História & Perspectivas, Uberlândia, v.28, n.53, 2015. Acessar publicação original [DR].

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