Escrita da História: os desafios da multidisciplinaridade / Textos de História/ 2007

Apresentação

Ao desafios que envolvem, contemporaneamente, a escrita da história constituem o eixo que reúne o conjunto de artigos do presente número da Revista Textos de História. São leituras produzidas por historiadores e historiadoras de diversas instituições e que encerram, naquilo que incluem e excluem, uma localização e um modo de inteligibilidade.

Sublinhar a singularidade de cada análise é questionar a possibilidade de uma sistematização totalizante e investir na pluralidade, pois os discursos se inscrevem, como nos ensina Certeau, “eles próprios em seguimento a ou ao lado de muitos outros: enquanto falam da história, estão sempre situados na história”1.

Reconhecer a historicidade da história, implícita no movimento que liga uma prática interpretativa a uma prática social, é uma das exigências colocadas ao campo disciplinar e aos do ofício. Pensar a historiografia a partir da relação paradoxal entre dois termos antinômicos – o real e o discurso –, e de sua “tarefa de articulá-los e, onde este laço não é pensável, fazer como se os articulasse”2, é desafio incontornável à prática de escrita da história. Escrever história, essa operação que estabelece uma relação com o tempo que não é nem a primeira nem a única possível, implica “gerar um passado, circunscrevêlo, organizar o material heterogêneo dos fatos para construir no presente uma razão”3.

A concepção de que a história é plural, assim como o passado que narra, e que não pode, portanto, ser reduzida a uma única forma e conteúdo, norteou a organização da coletânea de estudos que integram o dossiê “A escrita da história: os desafios da multidisciplinaridade”. Além disso, e por conta disso, também o entendimento de que o saber histórico, como qualquer campo de conhecimento, é construção inacabada, regida por regras das instituições e da comunidade que definem o que pode e o que não pode ser aceito como verdade, em cada momento histórico. O reconhecimento, enfim, de que o saber histórico não é relativista, ele é relativo às suas regras de produção; não é arbitrário, mas arbitrado pelos pares4.

Tais questões e perspectivas de abordagens da natureza do conhecimento e do fazer históricos foram objeto de amplo debate no IV Encontro da ANPUH/DF, realizado em Brasília, em maio de 2007, com título homônimo ao do dossiê. Parte significativa das exposições feitas – 02 (duas) conferências, 16 (dezesseis) mesas-redondas, 42 (quarenta e duas) comunicações –, abrigadas sob a ótica da pluralidade definida para o evento, integra a presente coletânea.

Foi evento importante para os historiadores do Distrito Federal por viabilizar um espaço para discussão do tema, compartilhando dúvidas e incertezas, e também direções e posições, acerca dos desafios contemporâneos quanto à escrita da história. Além disso, a possibilidade criada para divulgar pesquisas, para socializar conhecimento produzido. Foi, sem dúvida, um encontro que trouxe conforto aos do ofício, ao possibilitar um “encontro” com a história, pensada não como um “fardo a pesar sobre nós, impondo ao futuro um sentido já inscrito no passado”, mas “como referência para pensarmos com liberdade o futuro que queremos”5.

O viés comemorativo também imprime sua marca na organização desse número da revista, com os artigos das professoras Diva do Couto Gontijo Muniz, em co-autoria com o mestrando Eric de Sales, e Lucília de Almeida Neves Delgado. No primeiro, o esforço em historicizar, em conhecer a história da história do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, com a identificação e análise crítica de sua produção acadêmica, em seus trinta anos de existência (1976-2006). No segundo, uma reflexão sobre 1968, um tempo de transgressão, utopia e engajamento, a partir de um outro mirante temporal, 2008.

O propósito não é, nessa ritualização, o de inscrever atos humanos num tempo mítico, mas o de buscar sua localização como construção ancorada num tempo social e cultural. Há, ainda, o esforço em acionar, para todos nós que vivemos no presente, “um passado a ser permanentemente recordado como forma de manutenção simbólica dos importantes laços de pertencimento coletivo”6.

Os textos foram agrupados segundo o critério de aproximação temática. Assim, a primeira parte do dossiê reúne um conjunto de artigos cuja ênfase comum é a reflexão sobre questões que perpassam a escrita da história e que interpelam os autores: Diva do Couto Gontijo Muniz, Eric de Sales, Estevão Chaves de Rezende Martins, Tereza Cristina Kirschner, José Otávio Nogueira Guimarães, Maria Eurydice de Barros Ribeiro e Ione Oliveira. Abordagens diversas, plurais, mais ou menos disciplinares, problematizando as relações entre história e prática historiográfica, história e memória, história e objetos, história e temporalidades, história e poder, história e verdade.

O enveredamento dessas reflexões para a política de silenciamento, discursivamente produzido, acerca da presença das mulheres na história, bem como para “a produção sexista do conhecimento que descarta o múltiplo nas relações sociais”7, foi o critério de agrupamento de três artigos da segunda parte do dossiê. São perspectivas interdisciplinares de leitura do social e de escrita da história, preocupadas não apenas em conferir visibilidade historiográfica às mulheres, mas, sobretudo, em evidenciar a construção discursiva das identidades sociais, que as autoras, Susane Rodrigues de Oliveira, Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro e Liliane Machado, fizeram uso.

Os diálogos entre história e literatura, história e música, história e arte conformam o desenho da terceira parte e apontam para a ampliação de temas, objetos, problemas e abordagens do campo disciplinar. Movimento dinâmico de diluição de fronteiras e, ao mesmo tempo, de reconfiguração de novas territorialidades, percebido nas reflexões de Cléria Botelho da Costa, Hermenegildo Bastos, Eleonora Zicari Costa de Brito e Paulo Roberto de Deus. Na última parte, os textos de Roberta G. Stumpf e Teresa Cristina de Novaes Marques. Neles, uma prática de escrita da história informada pelos quadros nocionais da História Social, com seus contornos ampliados de modo a contemplar a riqueza, em nuances, da complexidade das relações sociais.

À parte do dossiê, mas que poderiam também estar nele incluídos, os artigos de Lucília de Almeida Neves Delgado, a que já fizemos referência, e o de Marcos Silva, sobre o ensino de história. Afinal, os desafios existem tanto no que concerne à escrita da história como ao seu ensino. As direções tomadas são direções posicionadas, comprometidas com diferentes projetos de história. Finalmente, a criação de um espaço, na revista, para registro das reflexões dos docentes acerca de seu pensamento e ação como historiadores, com a seção de entrevistas. Ela é inaugurada com a entrevista do professor Estevão Chaves de Rezende Martins com Tânia Navarro Swain, professora de Teoria da História no Departamento de História da UnB, que se aposentou em 2007. Revelam-se, no depoimento, o itinerário de uma historiadora e o percurso de interrogação incontornável aos do ofício: que aliança é esta entre a escrita e a história?

Notas

1 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 32.

2 Idem, ibidem.

3 Idem, ibidem, p. 11.

4 ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. O historiador naïf ou a análise historiográfica como prática de excomunhão. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: Letras, 2006, p. 204.

5 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Usos da história: refletindo sobre identidade e sentido. História em Revista. Pelotas: Ed. UFP, v. 6, 2000, p. 21 6 Idem, ibidem.

7 NAVARRO-SWAIN, Tânia. Entrevista. Textos de História: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília. Brasília: UnB/PPGHIS, v. 15, n.1/2, 2008, p. 290.

Diva do Couto Gontijo Muniz

Cléria Botelho da Costa

Organizadoras

Jaime de Almeida

Editor

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