Paisagens brasileiras: narrativas históricas / Textos de História / 2009

Apresentação

O presente número da revista Textos de História, intitulado Paisagens brasileiras: narrativas históricas, tem como temática a história dos rios e das paisagens brasileiras. Buscou-se, com tal eixo, ampliar espaços de interlocução e divulgação do debate acadêmico em torno da história do meio ambiente, das relações entre história e natureza. Vivemos um momento de tomada de consciência do grave problema ambiental na sociedade brasileira, como ressaltam colaboradores/autores desse dossiê. Em suas reflexões, eles contribuem, com suas experiências e seus diferentes pontos de vista, para o estudo de tal objeto e para o alargamento do campo historiográfico brasileiro.

As afinidades mais aparentes entre os diversos artigos permitiram-nos identificar dois conjuntos de reflexões sobre o tema: os rios e as paisagens.

Nesse sentido, dividimos o conjunto de trabalhos em duas seções, cada uma delas com o enfoque que lhe é específico. Em uma delas, agrupamos um conjunto de textos que abordam a temática ambiental, como são os artigos de José Luis de Andrade Franco e José Augusto Drummond, Sandro Dutra e Silva, Antônio Fernando de Araújo Sá e Tereza Marta Pressotti. Os autores debatem questões teóricas relacionadas aos conceitos de memória, sertão e natureza, meio ambiente, bem como os problemas e desafios quanto à conservação, preservação e expansão das regiões brasileiras frente ao “progresso”.

Em outra, reunimos os estudos voltados para os rios brasileiros em diferentes perspectivas e a partir de diferentes diálogos, como são as narrativas de Vanessa Maria Brasil, Gercinair Silvério Gandara, Ana Cristina Mandarino e Estélio Gomberg.

Em continuidade à produção e publicação da revista Textos de História, esse número inclui, na seção Artigos Avulsos, o texto do pesquisador cubano Alejandro F. Dias Palácios, com um ensaio sobre a crise econômica mundial capitalista.

Por último, as resenhas do doutorando Tiago Gomes de Araújo e da mestranda Ada Dias Pinto Vitenti, ambos do PPGHIS/UnB, área História Social, integram a última seção da revista.

O conjunto de trabalhos apresentado mostra a diversidade de pensamento e o esforço coletivo e contínuo dos demais envolvidos, como os leitores/ leitoras poderão facilmente constatar.

Vanessa Maria Brasil

Organizadora

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Brasil-Alemanha: Imigração, Cidadania e Cooperação / Textos de História / 2008

Apresentação

Os temas imigração, cidadania e cooperação entre povos e nações vêm adquirindo renovada relevância na historiografia acompanhando a tendência de outras disciplinas como a sociologia, a antropologia e a geografia, em primeira linha em face das novas dimensões colocadas por esses fenômenos em um mundo globalizado.

O presente número da revista Textos de História enfoca esses três temas a partir do aspecto bilateral teuto-brasileiro; melhor dizendo, do ângulo brasileiro sobre a imigração alemã, a luta pela cidadania desses imigrantes e seus descendentes na terra receptora e da cooperação no sentido Alemanha- Brasil.

Alemães no Brasil aportaram desde Cabral, haja vista o piloto Mestre João. Não obstante, os textos do presente Dossiê tratam, preponderantemente, da emigração alemã no período que corresponde à grande onda migratória na época da revolução industrial do século XIX.

Os anos de 1840 a 1890 correlacionam-se à aludida fase da migração em massa motivada por busca de melhores condições de vida, fuga de anos de fome, revoluções, mecanização do campo. Tudo isso em um contexto marcado pelas novas condições de deslocamento proporcionadas pelas novas tecnologias nos meios de transporte de massa – navios a vapor fabricados com placas de aço, trens de ferro que transportavam os migrantes para os portos de embarque ou para o interior dos países de destino. Não obstante, outras experiências que extrapolam esse período são também abordadas.

Os fluxos migratórios dirigiam-se majoritariamente aos Estados do Sul, mas, em pequena escala, espalharam-se por pontos de praticamente todo o território brasileiro, em especial, nas cidades portuárias.

Facetas dessa imigração são abordadas por Mercedes Gassen Kothe, que mostra a situação que os imigrantes alemães encontraram em São Paulo, nas fazendas de café e nos núcleos coloniais nas primeiras décadas da Primeira República.

A tentativa de assentar imigrantes alemães no sul da Bahia, nos anos 1920, é tema narrado por Albene Miriam Menezes em uma abordagem fundamentada no contexto histórico da questão migratória no mundo do pós Primeira Guerra Mundial e das especificidades daquele Estado.

A inserção desses imigrantes e seus descendentes nas respectivas comunidades possui características diferenciadas na dependência direta do desenvolvimento econômico, social e político das regiões nas quais se localizavam os seus núcleos populacionais.

Desse modo, a luta pela construção da cidadania encontra-se, assim, diretamente condicionada à uma gama multifacetada de vetores formais, legais, políticos, sociais econômicos e autárquicos.

Aspectos desse processo são tratados no texto de Ryan de Sousa Oliveira, que traz reflexão sobre o exercício da cidadania política entre os teutobrasileiros no Rio Grande do Sul, ao longo do século XIX, e busca contribuir para o debate de algumas questões controversas sobre o processo de integração do grupo dos teuto-brasileiros no jogo político brasileiro. Silvana Krause avalia a diversidade do comportamento político das zonas coloniais alemãs no sul do Brasil sob uma perspectiva histórica, além de fazer uma reflexão sobre identidade étnica e como esta se relaciona e se situa em outras esferas da construção de identidades.

E por fim, René Gertz analisa a possível influência positiva e negativa da presença de descendentes de alemães no Brasil sobre as relações com a Alemanha, no decorrer do tempo. Essa abordagem estende-se da segunda metade do século XIX até a Segunda Guerra Mundial, compreendendo também a tentativa de verificar como esse tema foi visto pela historiografia pertinente.

Outra dimensão desses entrelaçamentos teuto-brasileiros é a da cooperação, que por si só tem largo escopo; ela pode ser identificada, por exemplo, no âmbito das próprias comunidades de alemães e seus descendentes.

Sem embargo, ao longo dos dois séculos em tela, a cooperação adquire muitos aspectos. Nesse sentido, as diferentes modalidades de cooperação da Alemanha com o Brasil ocorrem ao longo do período, desde o envio de livros didáticos, instrumentos musicais e implementos agrícolas até excursões de cientistas para observar as lavoras brasileiras e propor soluções para alguns de seus problemas. Essa cooperação dá-se tanto no nível dos atores sociais como dos governos. No campo do saber, a exemplo das áreas filosófica, jurídica, técnica, artística e científica, observa-se uma clara influência alemã no Brasil.

Assim, Cláudia de Rezende Machado de Araújo analisa a influência do direito alemão no direito brasileiro. Fato esse observável desde o tempo colonial, haja vista a influência daquele nas Ordenações portuguesas. Destaque é dado para a influência do constitucionalismo alemão, em particular da Constituição da República de Weimar (1919), sobre as Constituições brasileiras de 1935 e 1988.

Por seu turno, Marina Helena Silva aborda a situação do Brasil na conjuntura econômica internacional, no período anterior à Segunda Guerra Mundial, demonstrando sua inter-relação com o mercado interno e baiano.

Trazendo para o debate aspectos dos dias atuais, Carla Miranda enfoca o tema da cooperação técnica entre os dois países; seu estudo identifica uma mudança nessa cooperação a qual, a partir da década de 1980, volta a centrar a cooperação técnica à capacitação para o desenvolvimento, partindo de uma dimensão político-estratégica alemã.

Além das reflexões explicitadas nos textos, uma das contribuições subjacentes, até onde os estudos aqui apresentados podem permitir, vem a ser a identificação da necessidade de enfoques desses temas em uma perspectiva comparada. Certamente, o cotejamento da problematização dos temas em uma dimensão de reciprocidade aprofundaria a abordagem dos mesmos. Ilustrativamente, o tema da cidadania urge estudos que abordem os problemas a ele relacionados tanto no Brasil, país de destino dos migrantes, como na Alemanha, terra de origem do fluxo migratório.

Desse modo, o presente dossiê, longe de esgotar os assuntos tratados, pretende de alguma forma contribuir com informações e abordagens específicas para o debate na seara histórica acerca da imigração, cidadania e cooperação entre povos e países de um modo geral e mais especificamente ao que reporta os aspectos relacionados com os alemães e seus descendentes no Brasil, assim como ao que se consubstancia no contexto da cooperação entre o Brasil e a Alemanha, particularmente ao que diz respeito à faceta da cooperação técnica.

A todas as autoras e autores o agradecimento cordial da Textos de História e particularmente da organizadora do presente dossiê, com a esperança de que suas contribuições possam animar o debate acadêmico, mesmo que de forma pontual, e ser útil de alguma forma para o leitor interessado em História.

Albene Miriam F. Menezes

Organizadora

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História e polissemia da imagem / Textos de História / 2008

Apresentação

O dossiê temático deste número foi concebido durante o Seminário Internacional História e polissemia da imagem, coordenado por Nancy Alessio Magalhães, e realizado em novembro de 2007 pelo Programa de Pós- Graduação em História da Universidade de Brasília. O evento contou com patrocínio da CAPES e apoio do Decanato de Pesquisa e Pós-Graduação e do NECOIM1.

Durante dois dias de intenso trabalho, foram expostos e debatidos os papers aqui publicados, que propiciaram um diálogo muito estimulante entre historiadores e colegas de outras áreas acadêmicas, nacionais e internacionais, acerca de metodologias interpretativas da imagem, considerada esta em suas possibilidades instituintes de um tônus de conhecimento.

A crescente percepção de ausência de sentido do mundo moderno pela dupla perda – da natureza e da obra humana, que inclui toda a história, – tão sublinhada, por exemplo, por Hannah Arendt, estimula a interpretação de diferentes linguagens como a oralidade, a escrita, a visualidade, a sonoridade e a cênica, como processos de se expressar e de criar o mundo. Este dossiê temático assume e enfatiza a condição polissêmica da imagem, e convida-nos a problematizar registros/linguagens visuais e audiovisuais que materializam temporalidades em construções narrativas. Em especial, aquelas narrativas que se referem aos modos pelos quais cada um(a) pode representar a si e ao outro na (re)construção de identidades, de historicidades.

A ciência e a tecnologia têm sido entendidas pelo senso comum como apologias do presente, e a imagem visual apresentada como a superação da oralidade e da escrita, vistas como traços de um passado em extinção. Essa hierarquização das linguagens obstaculiza o processo de conhecimento. Frente a tais desafios impõe-se a discussão das opções teórico-metodológicas no tratamento da imagem na escrita da História.

Este dossiê retoma e amplia os objetivos do seminário, disponibilizando agora para um público mais amplo os textos autorizados pelas quatro expositoras e os comentários dos seis debatedores.

O ensaio “La fotografía como memoria: reflexiones en/desde el siglo XXI” de Laura González Flores (Universidade Autônoma do México) propõe repensar a fotografia a partir de uma prática construtiva do imaginário social, questionando dimensões teoricamente supostas como inerentes à documentação fotográfica, apontadas entre os anos 60 e 90 do século passado. Os comentários de Marcelo Feijó “Iconografia e imagem”, e de Eleonora Zicari Costa de Brito “Fotografia, testemunho, documento”, apontam importantes questões para o aprofundamento desse debate.

Maria Bernardete Ramos Flores, da Universidade Federal de Santa Catarina, com o ensaio “Nacional versus internacional no modernismo brasileiro: a propósito da obra plástica de Ismael Nery”, abre uma discussão muito oportuna no campo da história das artes plásticas. Os comentários de Jaime de Almeida “O prazer de compartilhar”, e de Cléria Botelho da Costa, “Da tela ao texto” convidam os leitores a incorporar-se ao debate.

O dossiê conclui com uma estimulante incursão na complexa relação entre história, sociedades e linguagem fílmica, a partir de dois ensaios voltados para a problemática da presença das mulheres nas narrativas cinematográficas. O primeiro é “Imágenes patriarcalizadas y codificación fílmica en el cine cubano” de Brígida M. Pastor (Universidade de Glasgow), comentado por José Walter Nunes. Segue o ensaio “Vozes femininas no Dez de Abbas Kiarostamide Célia Toledo Lucena (Universidade de São Paulo), comentado por Diva do Couto Gontijo Muniz.

Permanece, assim, a expectativa de que as questões aqui tratadas se desdobrem em infinitas outras, na desafiante tarefa do ofício de interpretação, que envolve qualquer cotidiano de pesquisa.

Notas 1 Núcleo de Estudos da Cultura, Oralidade, Imagem e Memória no Centro Oeste, vinculado ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da Universidade de Brasília.

Nancy Alessio Magalhães

Organizadora

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Escrita da História: os desafios da multidisciplinaridade / Textos de História/ 2007

Apresentação

Ao desafios que envolvem, contemporaneamente, a escrita da história constituem o eixo que reúne o conjunto de artigos do presente número da Revista Textos de História. São leituras produzidas por historiadores e historiadoras de diversas instituições e que encerram, naquilo que incluem e excluem, uma localização e um modo de inteligibilidade.

Sublinhar a singularidade de cada análise é questionar a possibilidade de uma sistematização totalizante e investir na pluralidade, pois os discursos se inscrevem, como nos ensina Certeau, “eles próprios em seguimento a ou ao lado de muitos outros: enquanto falam da história, estão sempre situados na história”1.

Reconhecer a historicidade da história, implícita no movimento que liga uma prática interpretativa a uma prática social, é uma das exigências colocadas ao campo disciplinar e aos do ofício. Pensar a historiografia a partir da relação paradoxal entre dois termos antinômicos – o real e o discurso –, e de sua “tarefa de articulá-los e, onde este laço não é pensável, fazer como se os articulasse”2, é desafio incontornável à prática de escrita da história. Escrever história, essa operação que estabelece uma relação com o tempo que não é nem a primeira nem a única possível, implica “gerar um passado, circunscrevêlo, organizar o material heterogêneo dos fatos para construir no presente uma razão”3.

A concepção de que a história é plural, assim como o passado que narra, e que não pode, portanto, ser reduzida a uma única forma e conteúdo, norteou a organização da coletânea de estudos que integram o dossiê “A escrita da história: os desafios da multidisciplinaridade”. Além disso, e por conta disso, também o entendimento de que o saber histórico, como qualquer campo de conhecimento, é construção inacabada, regida por regras das instituições e da comunidade que definem o que pode e o que não pode ser aceito como verdade, em cada momento histórico. O reconhecimento, enfim, de que o saber histórico não é relativista, ele é relativo às suas regras de produção; não é arbitrário, mas arbitrado pelos pares4.

Tais questões e perspectivas de abordagens da natureza do conhecimento e do fazer históricos foram objeto de amplo debate no IV Encontro da ANPUH/DF, realizado em Brasília, em maio de 2007, com título homônimo ao do dossiê. Parte significativa das exposições feitas – 02 (duas) conferências, 16 (dezesseis) mesas-redondas, 42 (quarenta e duas) comunicações –, abrigadas sob a ótica da pluralidade definida para o evento, integra a presente coletânea.

Foi evento importante para os historiadores do Distrito Federal por viabilizar um espaço para discussão do tema, compartilhando dúvidas e incertezas, e também direções e posições, acerca dos desafios contemporâneos quanto à escrita da história. Além disso, a possibilidade criada para divulgar pesquisas, para socializar conhecimento produzido. Foi, sem dúvida, um encontro que trouxe conforto aos do ofício, ao possibilitar um “encontro” com a história, pensada não como um “fardo a pesar sobre nós, impondo ao futuro um sentido já inscrito no passado”, mas “como referência para pensarmos com liberdade o futuro que queremos”5.

O viés comemorativo também imprime sua marca na organização desse número da revista, com os artigos das professoras Diva do Couto Gontijo Muniz, em co-autoria com o mestrando Eric de Sales, e Lucília de Almeida Neves Delgado. No primeiro, o esforço em historicizar, em conhecer a história da história do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, com a identificação e análise crítica de sua produção acadêmica, em seus trinta anos de existência (1976-2006). No segundo, uma reflexão sobre 1968, um tempo de transgressão, utopia e engajamento, a partir de um outro mirante temporal, 2008.

O propósito não é, nessa ritualização, o de inscrever atos humanos num tempo mítico, mas o de buscar sua localização como construção ancorada num tempo social e cultural. Há, ainda, o esforço em acionar, para todos nós que vivemos no presente, “um passado a ser permanentemente recordado como forma de manutenção simbólica dos importantes laços de pertencimento coletivo”6.

Os textos foram agrupados segundo o critério de aproximação temática. Assim, a primeira parte do dossiê reúne um conjunto de artigos cuja ênfase comum é a reflexão sobre questões que perpassam a escrita da história e que interpelam os autores: Diva do Couto Gontijo Muniz, Eric de Sales, Estevão Chaves de Rezende Martins, Tereza Cristina Kirschner, José Otávio Nogueira Guimarães, Maria Eurydice de Barros Ribeiro e Ione Oliveira. Abordagens diversas, plurais, mais ou menos disciplinares, problematizando as relações entre história e prática historiográfica, história e memória, história e objetos, história e temporalidades, história e poder, história e verdade.

O enveredamento dessas reflexões para a política de silenciamento, discursivamente produzido, acerca da presença das mulheres na história, bem como para “a produção sexista do conhecimento que descarta o múltiplo nas relações sociais”7, foi o critério de agrupamento de três artigos da segunda parte do dossiê. São perspectivas interdisciplinares de leitura do social e de escrita da história, preocupadas não apenas em conferir visibilidade historiográfica às mulheres, mas, sobretudo, em evidenciar a construção discursiva das identidades sociais, que as autoras, Susane Rodrigues de Oliveira, Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro e Liliane Machado, fizeram uso.

Os diálogos entre história e literatura, história e música, história e arte conformam o desenho da terceira parte e apontam para a ampliação de temas, objetos, problemas e abordagens do campo disciplinar. Movimento dinâmico de diluição de fronteiras e, ao mesmo tempo, de reconfiguração de novas territorialidades, percebido nas reflexões de Cléria Botelho da Costa, Hermenegildo Bastos, Eleonora Zicari Costa de Brito e Paulo Roberto de Deus. Na última parte, os textos de Roberta G. Stumpf e Teresa Cristina de Novaes Marques. Neles, uma prática de escrita da história informada pelos quadros nocionais da História Social, com seus contornos ampliados de modo a contemplar a riqueza, em nuances, da complexidade das relações sociais.

À parte do dossiê, mas que poderiam também estar nele incluídos, os artigos de Lucília de Almeida Neves Delgado, a que já fizemos referência, e o de Marcos Silva, sobre o ensino de história. Afinal, os desafios existem tanto no que concerne à escrita da história como ao seu ensino. As direções tomadas são direções posicionadas, comprometidas com diferentes projetos de história. Finalmente, a criação de um espaço, na revista, para registro das reflexões dos docentes acerca de seu pensamento e ação como historiadores, com a seção de entrevistas. Ela é inaugurada com a entrevista do professor Estevão Chaves de Rezende Martins com Tânia Navarro Swain, professora de Teoria da História no Departamento de História da UnB, que se aposentou em 2007. Revelam-se, no depoimento, o itinerário de uma historiadora e o percurso de interrogação incontornável aos do ofício: que aliança é esta entre a escrita e a história?

Notas

1 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 32.

2 Idem, ibidem.

3 Idem, ibidem, p. 11.

4 ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. O historiador naïf ou a análise historiográfica como prática de excomunhão. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: Letras, 2006, p. 204.

5 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Usos da história: refletindo sobre identidade e sentido. História em Revista. Pelotas: Ed. UFP, v. 6, 2000, p. 21 6 Idem, ibidem.

7 NAVARRO-SWAIN, Tânia. Entrevista. Textos de História: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília. Brasília: UnB/PPGHIS, v. 15, n.1/2, 2008, p. 290.

Diva do Couto Gontijo Muniz

Cléria Botelho da Costa

Organizadoras

Jaime de Almeida

Editor

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Transgressão e Normalização na formação da Sociedade Brasileira / Textos de História / 2006

Apresentação

Este Dossiê foi concebido durante os trabalhos realizados por ocasião do Seminário Internacional Marcas da Transgressão e Ações Normalizadoras na Formação da Sociedade Brasileira, evento realizado pelo PPGHIS, em setembro de 2005, que contou com financiamento da CAPES. Concluiu-se, à ocasião, que os trabalhos apresentados deveriam ser publicados de forma a permitir que mais pessoas pudessem ter acesso às informações que por ali circularam nos dois dias de intenso trabalho.

Diante da anuência dos autores, empenhamo-nos, então, em organizar o Dossiê.

Locus da experiência moderna de colonização, o Brasil serviu de palco para a encenação de um verdadeiro “teatro dos vícios”, na feliz expressão recuperada pelo nosso saudoso colega Emanuel Araújo. Na condição de colônia portuguesa, teve que se ajustar como podia às diretrizes da metrópole, mas não sem dar, à leitura que fazia da “ordem”, o tom próprio daqueles que vivem “fora do lugar” e que, por isso mesmo, podem arriscar mais, muito embora a colônia portuguesa estivesse longe de configurar-se como uma terra livre de vigilância e de castigos.

Reunimos, então, importantes estudiosos do assunto, colocando para dialogar, sempre à luz de suas pesquisas, professores do PPGHIS e de outros centros acadêmicos. A uni-los, a mesma preocupação em discutir a formação da sociedade colonial brasileira, privilegiando questões pertinentes ao imaginário mágico-religioso, a partir da ótica de seus agentes, ou seja, aqueles considerados transgressores, e dos representantes das instituições encarregadas de sua repressão.

O artigo que abre o Dossiê-Os BISPOS DO BRASIL E A F< IRMA< \< > DA SOCIEDADE < < »L< )\IAI. (1551-1706), é uma colaboração do professor Doutor José Pedro Paiva, da Universidade de Coimbra, e trata de investigar as práticas que envolveram a presença dos bispos do Brasil entre 1551 e 1706, procurando desvelar que impactos a ação desse episcopado pode ter alcançado junto à sociedade colonial. Trata-se da antecipação de alguns resultados parciais de uma pesquisa mais ampla que vem sendo desenvolvida por esse importante pesquisador.

Em seguida, Helen Ulhôa Pimentel, Doutora em História pelo PPGHIS, e professora do UNICEUB, apresenta-nos o artigo intitulado SOB A LENTE DO SANTO OFÍCIO: UM VISITADOR NA BERLINDA, cujo objetivo é analisar a primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil, e como essa visitação foi examinada pelo Conselho Geral tio Santo Ofício, momento privilegiado para se acompanhar a forma crítica como esse Conselho avaliava a prática de seus visitadores.

Na seqüência, voltamo-nos ao diálogo interdisciplinar com o antropólogo da Universidade Federal da Bahia, professor Doutor Luiz Mott, que apresenta um estudo dedicado à análise de um sabá, ocorrido no século XVIII – TR \NSGRESS V I NA (.ALADA DA NOITE: UM SABÁ DL FEITICEIRAS L DEMÔNIOS No PlALÍ COLONIAL.

Pautado pela rica documentação que fundamentou seu estudo, o autor conclui que a crença nos congressos de feiticeiras e demônios também migrou para a América 10 Portuguesa, fazendo parte do cotidiano dos colonos daquela metrópole.

Fecha o Dossiê o instigante artigo do professor Doutor Ronaldo Vainfas, da Universidade federal Fluminense – INQUISIÇÃO I |i DEI S NOVOS NO CONTEXTO DAS oCERRAS HOLANDESAS —, voltado à reflexão sobre o episódio da prisão de um grupo de judeus, os “dez cativos do Rio Francisco”, ocorrida durante a Insurreição Pernambucana, em 1645, e que foi objeto de exame do Tribunal da Inquisição de Uisboa. A partir da documentação compilada e do fino trabalho de interpretação do autor, é possível entrever algumas tramas que explicitam importantes pontos referentes à formação desse grupo, assim como a existência de redes voltadas à socialização de judeus em fuga.

Esperamos que esta publicação atenda aos objetivos a que se propôs, divulgando para um publico mais amplo o rico universo de discussões que marcou os trabalhos durante o evento.

Eleonora Zicari Costa de Brito

Organizadora

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Caribe(s) / Textos de História / 2005

Apresentação

Os Programas de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília e da Universidade Federal de Goiás e o Centro de Pesquisa c Pós-Graduação sobre as Américas — Ccppac — da Universidade de Brasília desenvolveram conjuntamente o projeto “Fronteiras: Espaços Imaginados, Lugares Concretos” nos quadros do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica (Procad), entre 2001 e 2005.

Esta experiência de cooperação acadêmica tinha como preocupação teórica mais geral as regiões de fronteira e os imaginários construídos sobre elas e, em particular, as problemáticas postas pelo chamado mediterrâneo caribenho. Dentre os objetivos do projeto, destacava-se a contribuição para a criação do curso de doutorado em história da Universidade Federal de Goiás.

Como equipe líder do projeto, o PPGHIS da UnB passou a receber um número significativo de estudantes de mestrado e de doutorado com projetos voltados para os referenciais espaciais, teóricos c metodológicos do projeto Fronteiras. Cuba, Jamaica, o Haiti, as Güianas, as regiões caribenhas do México, da Colômbia e da Venezuela, bem como as dinâmicas e complexas relações entre o Caribe, a África, os Estados Unidos, o Brasil e a Europa, tornaram-se questões recorrentes em nossos seminários, especialmente na área de concentração em história cultural.

Este dossiê apresenta uma nova contribuição aos estudos caribenhos, na esteira de uma série de publicações articuladas ao projeto Fronteiras} O ensaio ” O conceito de fronteira em Deleuze e Sarduy” do professor Luís Sérgio Duarte, da UFG, indica um dos mais fecundos caminhos que vêm sendo trilhados pelos pesquisadores reunidos no referido projeto: a reflexão crítica acerca das múltiplas dimensões do fenômeno fronteira. Relacionando as obras de Gilles Deleuze e de Severo Sarduy, a partir do conceito de fronteira, Luís Sérgio Duarte procura definir as características de uma epistemologia neobarroca (“o método da fronteira”), mostrando sua validade para uma teoria pós-moderna da história.

Olga Cabrera, também da U FG e principal responsável pelo dinamismo do projeto Fronteiras, expressa, com o artigo ” E l proyecto pedagógico de Ias lecturas de tabaquerías: de la búsqueda de la igualdad a la consolidación de la diferencia”, uma inquietação que já estava presente na sua dissertação de Mestrado,2 e que permanece evidente em meio à grande variedade de projetos que tem orientado e coordenado: a investigação dos processos de construção e reconstrução de identidades, explorando as fronteiras entre escritura e oralidade, entre discursos hegemônicos e subalternos, entre a história e a literatura.

O historiador haitiano Vertus Saint-Louis visitou Brasília pela primeira vez em 2005, quando participou do seminário internacional Saídas da Escravidão e Políticas Públicas, aproveitando para estabelecer contato com o Departamento de História da UnB. A conclusão de seu texto, intitulado “A Guerra do Sul c as apostas do comércio internacional”, conserva o t om e o estilo adequados ao momento em que foi apresentado ao público haitiano: durante as comemorações do bicentenário da morte de Toussaint Louverture (e dois anos antes do bicentenário da independência do Haiti).3 É muito reconfortantc a oportunidade de reconhecer um certo “ar de família” neste artigo, que renova o diálogo da historiografia c om a opinião pública, trazendo, da pesquisa sistemática em arquivos, a evidência da necessidade de uma postura crítica frente aos mitos construídos pelo sistema político haitiano.

O professor Dinair Andrade da Silva, que atuou por muitos anos na área de História da América do curso de História da UnB, e que agora colabora como pesquisador associado ao programa de pós-graduação, na área de concentração em história social, apresenta um extenso e criterioso painel, construído em torno de um personagem emblemático: “Aproximação a Félix Varela, fundador da nacionalidade cubana e reformador social nos Estados Unidos”. O padre Félix Varela, cuja ação internacionalista deixou marcas indeléveis na sua pátria, na América Latina, na Espanha e nos Estados Unidos, como aponta com propriedade Dinair Andrade da Silva, merece a atenção de todos os que acompanham a inquietação contemporânea das comunidades cubana, latino-americana, e mesmo norte-americana, em relação ao futuro imediato da nacionalidade e da cultura cubanas.

Esperamos que este dossiê amplie o círculo de leitura que, até o presente momento, vem acompanhando a produção historiográfica da equipe de professores e estudantes vinculados ao projeto Fronteiras: espaços imaginados, lugares concretos, e também que estimule novos projetos, intensificando a inserção da pós-graduação brasileira no cenário internacional.

Notas

1 CABRERA, Olga, CORTÊS ZAVALA, Maria Teresa; UR1BE SALAS, José Alfredo (org.). Región, frontera yprácticas cnltnrales en la historia de América Latinay el Caribe. Morelia: Universidad Michoacana dc San Nicolás de Hidalgo; Goiânia: Cecab, 2002. ALMEIDA, Jaime de; CABRERA, Olga; CORTÊS ZAVALA, Maria Teresa (org.). Cenários Caribenhos.

Brasília: Paralelo 15, 2003. CABRERA, Olga; ALMEIDA, Jaime dc (org.). Caribe, sintonias e dissonâncias. Goiânia: CECAB, 2004. Alem dessas três coletâneas, cabe ressaltar a também a Revista Brasileira do Caribe, publicada regularmente desde 2000, pelo Centro de Estudos do Caribe no Brasil (CECAB), dirigido por Olga Cabrera.

2 CABRERA, Olga. Historia dei movimiento obero cubano. La Habana, Universidad de la Habana. Dissertação de Mestrado, 1968.

3 Cf., a propósito, ALMEIDA, Jaime de. Há duzentos anos, o Haiti: a historiografia diante da comemoração. In ALMEIDA, Jaime de; CABRERA, Olga (org.), op. cit. p.

312-332. Acerca da relação histografia/comemoração, v. também SÁ, Antônio Fernando Araújo. “Canudos Plural: memórias em confronto nas comemorações dos centenários de Canudos (1993-1997)” in Textos de História vol. 5, n. 1, 1997; e ANKERSMIT, Franck.

“Commemoration and national identity” in Textos de História vol. 10, n. 1/2, 2002.

Jaime de Almeida

Cléria Botelho da Costa

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História Atlântica / Textos de História / 2004

Apresentação

Muito se tem falado das relações entre os continentes africano e americano, mas ainda há muito a desvelar sobre essas relações transatlânticas enquanto um universo em movimento. As análises tomaram como objeto o mundo moderno e a migração gigantesca de africanos para o continente americano e assim iniciaram-se as primeiras revisões conjugando escravidão e identidade na diáspora africana. O oceano já era navegado pelos povos, apenas o Atlântico não era cruzado por rotas marítimas contínuas; mesmo assim, nele a navegação costeira era uma prática comum. Uma específica e renovadora literatura aponta na direção de uma história peculiar a esse mundo construído numa determinada época, com histórias próprias e do período, chamado, moderno. A modernidade trouxe a esses mundos proximidades deixando atrás de si rastros desses intensos contatos vividos durante séculos.

Na busca desses rastros encontramos trajetórias traçadas por homens e mulheres. A possibilidade de reconstruir identidades nestes espaços depende de minuciosos trabalhos assentes no cruzamento de fontes e no uso dos mais variados tipos de documentação que faça emergir os personagens centrais nesses cenários oceânicos. Histórias de vidas que atravessaram os mares, viajaram distâncias fabulosas por terras adentro. Histórias de grupos, comunidades se redefinindo a cada passo entre Áfricas e Américas. Desse passado, até hoje, encontramos os testemunhos dessas presenças evidenciadas nos trabalhos de historiadores sobre os cantos mais diversificados desses continentes.

A bibliografia preocupada com a articulação desses espaços de massas oceânicas torna-se importante no sentido de recuperar uma dimensão ainda não integrada à historiografia de língua portuguesa. A proposta visa retomar as relações estreitas entre os continentes africano, americano e europeu, revelar as circunstâncias e especificidades dessas vivências nesta dimensão Atlântica, no chamado mundo pré-capitalista.

Há mais de uma década, alguns autores formularam a idéia de uma História Atlântica num contexto africano e americano. A possibilidade de pies expansão de uma venerável tradição de história de ‘Impérios’ – seja britânico, espanhol, português ou holandês, ela significa novos paradigmas.

Nesse movimento de busca de peculiaridades e de unidades distintas, nesse mar de histórias, os textos aqui apresentados fazem suas conexões com esse conceito ampliado de História Atlântica. Dessa perspectiva, Isabel Castro Henriques apresenta sua leitura dos marcadores territoriais e simbólicos na organização do universo africano, resultante do choque entre o Fato Colonial português e a emergência das formas autônomas angolanas. Gerhard Seibert discute as polêmicas hipóteses explicativas da origem dos angolares, grupo sócio-cultural e lingüísticos distintos na Ilha de São Tome, abordando para isso justificativas que até então têm sido apresentadas como identificadoras para as identidades angolares. Nas rotas das travessias e retornos, Gomes, Soares e Farias fazem uma reflexão sobre os Cabindas, sua inserção nas amplas redes recriadoras de identidades conectando áreas do tráfico, como do rio Zaire, litoral norte de Angola, com a demografia da escravidão do Rio de Janeiro. Em ampla sintonia com os três textos apontados, o Dossiê do Atlântico apresenta, também, as resenhas de obras que remetem para a face atlântica da África. Cristina Wissembach comenta a obra, recentemente traduzida para o português, de John Thornton que defende em seu livro o argumento da majoritária participação dos africanos na construção do mundo Atlântico; enquanto Selma Pantoja resenha a obra da historiadora Beatrix Heitez sobre as caravanas que cortaram os sertões da África Central Ocidental , no século X I X , e o papel dos africanos nesse evento de interiorização da presença européia na região. D o ângulo das relações de gênero Philip Havik comenta a coletânea organizada por Geiger & Musisi, sobre o impacto do colonialismo na vida das mulheres africanas em várias partes do continente, com base nos mais variados papéis desempenhados por essas mulheres e em abordagens profundamente interdisciplinares.

Esperamos que esta oportunidade de reflexão sobre mais uma pequena porção desse mundo oceânico, permita integrar nossa historiografia nesse novíssimo debate da História Atlântica.

[Sem indicação de autoria]

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Justiça do Antigo Regime / Textos de História / 2003

Apresentação

Enquanto na Europa é crescente o interesse pela História do Direito, no Brasil esta vertente da produção histonográfica encontra-se ainda em fase rudimentar. Especialmente para o período moderno, no qual o Brasil se insere em seu momento colonial, as pesquisas são ainda escassas.

Embora seja digna de destaque a recente obra de Amo Wheling e Maria José Wheling — Direito e justiça no Brasil colonial —, 1 a questão do direito e da justiça neste período tem despertado pouco interesse entre os pesquisadores.

Quando abordada, a administração da justiça na colônia é pensada em geral fora dos referenciais da cultura política e jurídica do antigo regime português e tem sido interpretada como “irracional”, “caótica” e até mesmo “esquizofrênica”. Sem dúvida, assim poderia ser interpretada, se orientada, anacrônicamente, pelos parâmetros do direito moderno, marcado pela racionalismo e pelo papel central atribuído ao Estado, fenômeno para o qual as pesquisas de Antônio Manuel Hespanha sobre as práticas da justiça no Portugal moderno têm chamado a atenção2.

Até a segunda metade do século XVIII, no âmbito da cultura jurídica portuguesa, a lei era uma fonte de menor importância no campo de um direito cuja natureza era basicamente doutrinai. E, além de fenômeno minoritário, a lei era também um fenômeno subordinado. De um lado, o soberano era limitado pelo direito natural e divino, de outro, os juizes não eram obrigados a seguir aquilo que lhes parecia contrário ao direito doutrinai.

Por outro lado, a ordenação dos corpos políticos inferiores e os privilégios também impunham limitações à lei. Assim, a lei situava-se entre a doutrina do direito comum que a limitava por cima e um direito dos corpos políticos que a esvaziava por baixo3.

Embora no período pombalino tenha havido uma valorização da lei, interpretada como manifestação da vontade do monarca, as reformas realizadas no âmbito do direito parecem ter tido impacto reduzido. Permaneceram muitos obstáculos para uma eficácia ampliada da lei, como, por exemplo, o número insuficiente de funcionários administrativos para exercer controle sobre a sua aplicação, as deficiências de comunicações, a permanência de juizes iletrados na maior parte das câmaras municipais e o peso do direito costumeiro nas regiões do interior. Para completar, predominou em Portugal, até a revolução vintista do século XIX, a idéia de uma justiça cristã voltada prioritariamente para o bem comum que revestia o monarca do poder, não apenas de punir exemplarmente seus vassalos, como de agraciar e perdoar.

A idéia de bem comum, embora re-atualizada pela noção de progresso no final do século XVIII, estimulava a prática de uma justiça que priorizava a conciliação em situações de conflito.

Os textos reunidos neste dossiê tratam, sob ângulos diferentes, e em contextos também distintos, da questão da justiça no Antigo Regime, expressão que, embora originária do final do século XVIII e estreitamente associada à Revolução Francesa, é hoje de uso corrente na historiografia para designar os regimes políticos da Europa moderna. Com a preocupação de fugir ao anacronismo, os textos resgatam antigas maneiras de se conceber a justiça, que não apenas foram hegemônicas no passado como se prolongaram no período de transição para o Estado Liberal.

O artigo de Benoít Garnot trata da justiça no antigo regime francês e propõe a interpretação das relações justiça-sociedade a partir das práticas sociais e não apenas das normas jurídicas. O autor insere-se no grupo de autores que tem renovado a história da justiça e da criminalidade na França.

Os demais artigos abordam a questão da justiça no Brasil. Maria • Filomena Nascimento examina a questão da corrupção e do suborno no contexto de uma cultura jurídica que coexistia com as lógicas do privilégio e da hierarquia. Sua reflexão tem como suporte documentação relativa à capitania de Pernambuco dos meados do século XVIII.

Tereza Cristina Kirschner salienta a importância dos canais de comunicação entre vassalos e soberanos na Bahia do final do século XVIII e a associação presente no imaginário social entre a figura do soberano e a justiça.

Entre o rei e a lei interpunha-se a justiça cristã, o bem comum e a graça.

O artigo de Jean-Phüippe Challandes procura mostrar a permanência de antiga concepção da justiça, associada à moral e ao bem comum, no período de formação do Estado nacional brasileiro. Articulada ao Estado constitucional, a justiça assim concebida constituía a base de um dos projetos políticos para o Brasil na primeira metade do século XIX.

Notas

1 WHELING, Arno e JOSÉ, Maria. Direito e justiça no Brasil colonial. 0 Tribunal da Relação do Rio de janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

2 HESPANHA, Antônio Manuel, justiça e ütigiosidade: História eprospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993; As vésperas do heiiathã,. Instituições e poder político.

Portugal, século XVII. Coimbra: Almedina, 1994; Panorama histórico da cultura juríàca européia. Lisboa: Europa- América, 1998 e Guiando a mão invisível. Direitos, Estado e lei no liberalismo monárquico português, Coimbra: Almedina, 2004.

3 HESPANHA, Antônio Manuel, justiça e ütigiosidade. História e prospectiva. op.át.

Tereza Cristina Kirschner

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Memória, Identidade e Historiografia / Textos de História / 2002

Apresentação

Tempo e Memória

A tarefa de assenhorear-se do tempo pela memória, de o inserir na consciência histórica e de dar-lhe um sentido aceitável é uma constante da atividade humana. O agente racional humano busca, ininterruptamente, atribuir sentido ao que faz. Isso ocorre no plano intencional: valores, idéias ou interesses fundamentam e orientam o agir. Esse plano antecede, ao menos logicamente, o agir concreto. No plano interpretativo, existe a mesma preocupação com o estabelecimento de um sentido plausível para o agir constatado pela pesquisa. Em ambos os casos, dá-se o esforço por construir um tempo histórico em que a existência e a ação tenham sentido e produzam sentido. Esse sentido atribuído à memória histórica ou construído para ela desempenha um papel decisivo para a identidade de cada um, do grupo a que pertence e da sociedade que forma. Origem cultural, estratificação social, sistema de produção, linguagem, religião, organização e hierarquia, e tantos outros elementos consagrados nesse processo são definidos, delimitados, investigados, interpretados, estruturados e articulados.

A memória e a identidade estabelecem uma encruzilhada em que as diversas perspectivas do senso comum como do conhecimento científico se encontram. História, psicologia, literatura, economia, sociologia, filosofia, antropologia e tantas mais concorrem, umas e outras, para que se constitua um feixe de fatores em cuja intersecção se reconhece o sujeito. Nesse ponto focai, memória individual, tempo coletivo e espaço social se associam para formar a cultura histórica com a qual a identidade se forja, consolida, atua e reproduz. A memória pessoal, associada à memória coletiva inscrita na historicidade do espaço social em que cada indivíduo emerge, marca não apenas a identidade particular do sujeito agente, mas também a coletividade identitária com que cada um se depara e que cada um quer assumir, modificar, transformar e mesmo rejeitar. Está-se aqui inserido em uma dinâmica que se pode chamar, com Jõrn Rüsen, de constante antropológica da cultura histórica. O que significa isso? Tal realidade é a de todos, e a de cada um: a cada instante todos os instantes precisam (ou são, de fato) processados idealmente em um construto significativo que apelidamos “história”. Passado, presente e futuro são fatores da cultura histórica operado pela síntese ativa do agente racional humano como cenário, encontrado e produzido, da vida concreta. Independentemente de essa operação ser efetuada por um “leigo” ou por um “profissional”.

Entender como a memória histórica se compõe e forma, como ela é operada e que efeitos provoca, como ela é entendida e administrada pelos homens de cada tempo e de todos os tempos, é um efeito, no campo da ciência histórica, da dinâmica da história de todos os campos. Como, de que forma e porquê ficam registrados — tirando a obviedade dos documentos e monumentos — pessoas, objetos, acontecimentos? Essa memória histórica, que parece tão personalizada (tão subjetiva, diriam alguns), é forjada também pela experiência coletiva e pelas representações públicas. Meio-ambiente familiar, língua, cultura, meios de comunicação, celebrações e comemorações influenciam, e mesmo marcam, não apenas o quê os indivíduos e as sociedades são, mas certamente também o que foram, o que serão e em que contexto vivem e viverão.

O 19° Congresso Mundial de História realizado em 2000, em Oslo, dedicou um amplo espaço de discussão ao tema da memória e da consciência histórica. Organizados a cada cinco anos pelo Comitê Internacional de Ciências Históricas, os congressos mundiais reúnem expressivo número de historiadores de todo o mundo, representando a suma da historiografia e de seus avanços. Foi-me dado organizar um tema especializado sobre “Memória e Identidade Coletiva: como as sociedades constróem e administram seu passado.” A vinculação da memória à representação coletiva da identidade sugere a perspectiva de uma percepção social da inserção das pessoas no plano da identidade. Evitar-se-ia, por conseguinte, a tentação de deslizar para o campo da subjetividade individual como eixo de referência, embora não se a possa excluir. A segunda parte do título apresenta à reflexão a questão ativa, mutante, dos processos sociais de elaboração da consciência histórica.

A intenção foi a de provocar o debate em torno do aspecto empírico e ficcional subsumidos nos sistemas de memória — pública e privada — das sociedades, e acerca da sua gestão no quotidiano.

Para permitir um amplo leque de alternativas de análise, o tema foi tratado por especialistas de diversas procedências e de diferentes opções teórico-metodológicas. Brasil (Estevão de Rezende Martins), Argentina (Dora Schwarzstein), Alemanha (Jórn Rüsen), Israel (Moshe Zimmerman), Espanha (Joseba Agirreazkuenaga), índia (Shradda Sahasrabuddhe), Austrália (Joan Beaumont), Bélgica (Chantal Kesteloot), França (Henry Rousso), Holanda (Frank Ankersmit) trouxeram sua reflexões a um público de mais de 500 pessoas que lotou o auditório em que teve lugar o debate, na Universidade de Oslo. A Universidade de Brasília, por seu Programa de Pós-Graduação em História, traz agora a lume, na primeira parte deste volume, o conjunto dos textos preparados pelos participantes, oferecendo essas contribuições a um círculo ainda mais largo de interessados e estudiosos.

As questões de fundo suscitadas e debatidas desde Oslo vieram também à discussão no 21° Simpósio Nacional de História, organizado pela Associação Nacional de História (ANPUH), na Universidade Federal Fluminense, em julho de 2001. O papel da organização mental da consciência histórica, sob a forma da narrativa historiográfica e de suas variantes ao longo do tempo foi objeto de debates intensos, com forte participação. Os textos apresentados à reflexão por Estevão de Rezende Martins (Brasília), José Carlos Reis (Belo Horizonte), Astor A. Diehl (Passo Fundo) e Jurandir Malerba (então João Pessoa, hoje Washington), estão reunidos na segunda parte deste volume, consolidando mais uma etapa da contribuição brasileira para a análise e a crítica teórica e historiográfica contemporâneas. A inserção internacional da produção historiográfica brasileira recebe, com o presente volume, um significativo campo de ressonância. Essa difusão é assim apoiada pela iniciativa do Programa de Mestrado e Doutorado em História da Universidade de Brasília, de publicar este 10° volume da “Textos de História” coligindo essas contribuições.

Estevão Chaves de Rezende Martins

Organizador

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Saber na Idade Média / Textos de História / 2001

Apresentação

Na abertura do colóquio de Cerisy- la -salle em 1991, Jacques Le Goff,’ ao falar da evolução da historiografia medieval enfatizou como esta evolução se fez sempre com a aproximação de outros campos do conhecimento. A história medieval constituiu-se, assim, ao longo dos anos, um lugar de confluência de várias disciplinas e de distintas práticas metodológicas, que transformaram a Idade Média em lugar — objeto de reflexão —.

De fato a Idade Média que vem suscitando um grande interesse, colocou a história medieval como disciplina mestra da história; inovou na escolha dos objetos; ditou regras com propostas metodológicas arrojadas; ampliou a relação com outras disciplinas. Converteu-se em última palavra, em um campo interdisciplinar por excelência. Atualmente, a Idade Média não só serve de ponto de referência para o estudo de outras épocas, como a proposta metodológica dos medievalistas inspira, com freqüência, os demais historiadores.

De Marc Bloch a Georges Duby, na França, a história medieval ganhou uma grande importância graças ao desenvolvimento de pesquisas, que sem abandonar a erudição, derrubaram os antigos chavões. Prova disso, é a extensa bibliografia do Grupo Antropologia Histórica liderado por Jacques Le Goff, que vem demonstrando a importância dos tempos medievais na construção das sociedades modernas. A repercussão foi imediata, ultrapassou as fronteiras européias e conquistou historiadores no novo mundo. Os trabalhos de Patrick Geary e Andrew Lewis nos Estados Unidos ganharam merecida notoriedade; e na América Latina, as associações de estudos medievais revelam grande vitalidade.

No Brasil têm-se, seguidamente, discutido os obstáculos enfrentados pelos medievalistas. Dentre os mais apontados, salienta-se a indisponibilidade de fontes primárias, a pouca dedicação dos estudantes no estudo do latim, ou mesmo de línguas estrangeiras, a situação subalterna que a disciplina se encontra na maior parte das universidades brasileiras2 Na verdade, formou-se um ciclo vicioso difícil de ser vencido. Na medida em que a disciplina não é valorizada no ensino secundário, acentua- se a tendência à generalização. Ao ingressar no curso de História, não é apenas o domínio do ladm ou de línguas estrangeiras que falta aos jovens calouros. Boa parte não domina, como se desejaria, o conhecimento de história. A pouca importância, ou mesmo o ínfimo valor atribuído a Idade Média, faz com que a matéria seja ministrada de forma descuidada. Uma simples leitura nos programas de ensino de primeiro e segundo graus do Distrito Federal permite constatar a permanência de preconceitos.

Na universidade o desconhecimento da história medieval é um fato. É significativo o número daqueles que consideram que “não temos nada a ver com a Idade Média” e, que, em situações precisas, decida-se da superioridade ou peso de tal disciplina sobre os remotos tempos medievais.

Nos guetos formados pelas áreas de conhecimento, perdeu-se a noção elementar de que a história é um processo e que a especialização não implica na ignorância do processo histórico em sua totalidade. Nesse sentido, Maria Guadalupe Pedrero-Sánchez referindo-se a legitimidade dos estudos medievais no Brasil, afirmou que: a História do Brasil somente será compreendida partindo-se dos antecedentes da sua inserção na chamada Civilização Ocidental. Dessa maneira, sem boas aulas de História Medieval – ou Antiga – o futuro investigador, no Brasil, deixará de captar aspectos diversos e relevantes da própria história.

3 A despeito da ampla reflexão que vem se desenvolvendo acerca do ensino e da pesquisa da história medieval no Brasil, constata-se porém, que é dura a resistência no interior dos departamentos de História do país afora. Os dados são claros: muitos departamentos não possuem medievalistas e não é raro o caso em que o professor de história medieval acumula o ensino da disciplina, com a de Antigüidade ou com a de Idade Moderna.

Necessário se faz reconhecer que a Universidade deve assumir o seu compromisso na formação de pesquisadores, mas também de professores para o ensino secundário. Nos Estados Unidos tem-se constatado que a especialização crescente dos professores universitários, muito mais voltados para a pesquisa do que para o ensino, tem resultado no quase abandono da formação básica. A busca de financiamento para a pesquisa, mas também de prestígio pessoal, distanciaram o professor do ensino.

No máximo ele comunica a seus alunos o resultado e o método da pesquisa que, no momento, desenvolve4 . Na França, os pais da História Nova expressaram sua preocupação com a maneira bastante perigosa que a Nova História penetrou no ensino secundário5 . No Brasil a situação é análoga, provocando uma série de distorções. No que toca à Idade Média, forçoso é reconhecer que não nos livramos dos preconceitos, nem fora, nem dentro das instituições.

Os textos aqui apresentados resultam do esforço que os seus autores vêm realizando nos últimos anos, no sentido de demonstrar as possibilidades da pesquisa sobre a Idade Média no Brasil e o espaço que a disciplina deve assumir no interior das universidades. A maioria dos trabalhos foram apresentados na I I I Semana de Estudos Medievais6, realizada em Brasília, em outubro de 1996. Incorporaram-se também, outras colaborações, que pertencem a membros do Programa de Estudos Medievais, PEM/UnB-UFG’. Os textos reunidos tratam da produção do saber na Idade Média, revelando também, o lado prático deste saber, posto em prática na organização da vida no interior dos conventos, seja do ponto de vista da produção da sua própria regra, seja do ponto de vista da vida material. Na primeira parte, intitulada “O universo feminino”, Dulce Oliveira Amarante dos Santos analisa as representações corporais e a discussão sobre os pecados, apoiando-se em duas obras eclesiásdcas ibéricas da primeira metade do século X I V : o Livro das Confissões de Marfim Pere% e o Status et Planctus Ec/esiae, de Á l v a r o Pais. Em “A querelle des femmes”, Claudia Costa Brochado demonstra como, a partir do século X I I , as mulheres passaram a ocupar espaços tradicionalmente masculinos, aumentando a tensão entre os sexos. O movimento denominado querelle des femmes é abordado por Claudia Brochado, tomando como referência, a participação de Isabel de Villena, autora de Protagonistes Femenines a la Vita Christi; espécie de resposta a misoginia literária da Baixa Idade Média. No artigo seguinte, “Clara de Assis, a presença feminina no movimento franciscano”, Teresinha Duarte demonstra a luta de Clara de Assis para formação de sua Ordem e aprovação de uma Regra, que não se enquadrava na observância de uma Regra monástica tradicional. Clara logrou elaborar uma Regra específica, que foi aprovada por Inocêncio IV em 1253, mas apenas para o mosteiro de São Dam ão.

Os mosteiros encontram-se no cenrro das preocupações dos textos que compõem a segunda parte, “Monaquismo e cristandade ocidental”.

Considerando ser redutor e equivocado supor que o monaquismo nasceu da função protestatória contra o sistema de Cristandade ou Império cristão, e que, o protesto destinava-se contra a Igreja ou o clero, Francisco José Silva Gomes, em “Peregrinado e Stabilitas: monaquismo e cristandade ocidental nos séculos V I a V I I I ” , afirma que o protesto destinava- se contra o que era considerado, por alguns cristãos, como uma mundanização do cristianismo e da Igreja. Francisco Gomes dedica-se à análise de dois modelos da espiritualidade monástica na Cristandade Ocidental da Alta Idade Média — peregrinatio e stabilitas – modelos anteriores ao monaquismo, mas, que foram apropriados e redefinidos para servirem à espiritualidade monástica. Em “O Couto de Alcobaça: matriz de um novo ordenamento sócio — econômico na Estremadura Portuguesa”, Celso Silva Fonseca contextualiza os princípios de defesa, ampliação e colonização do limes portucalense à partir do século X I . Dentro deste contexto foram doadas, no início do século seguinte, as terras de Alcobaça a Bernardo de Claraval. Tal doação teve importantes conseqüências para todo o reino português. Os monges cistercienses, afirma o autor, por princípios doutrinários e pelos conhecimentos técnico — agrícolas, obtiveram excedentes de produção que foram comercializados. A ascensão da Ordem Cisterciense, graças a sua autonomia e centralização, garantiu o desenvolvimento dessa colonização até meados do século XIV. “A Regra de São Bento e a arte: questões acerca do não dito”, de Maria Cristina Pereira analisa a contradição entre a Regra de São Bento, que praticamente ignora a produção artística — apenas um capítulo é dedicado aos artífices do mosteiro —, e a inspiração, que ainda assim, encontra na Regra a Ordem de Cluny, produtora e patrocinadora da arte na Idade Média. O objetivo de Cristina Pereira é discutir esse alheamento e analisar as sutilezas do não dito. Ela busca desvendar a leitura que a Ordem de Cluny fez da Regra de São Bento em relação à arte e à iconografia.

A terceira parte volta-se para o ato de pensar e representar. “Realidade e sonho nas representações dramádcas medievais”, cuja autoria é de José Carlos Gimenez, tem o propósito de estudar as imagens da sociedade castelhana no final da Idade Média. Gimenez toma como base as imagens construídas pelos autores do teatro natalino nas representações dramáticas.

Para o autor é possível, a partir dessas representações e imagens, fazer uma leitura da sociedade e aproximar-se da mentalidade dos protagonistas.

J o s é Carlos Gimenez considera os autos natalinos como uma prática cultural e social religiosa, que concebia uma sociedade inalterável e que, como tal, não devia ser transgredida pelos seus membros. Tomando como fonte os Cosrumes de Beauvaisis, uma das mais importantes obras do século X I I I , Ana Catarina Zema Rezende analisa a obra cuja autoria pertence a Felipe de Beaumanoir e que coloca no papel os hábitos e os costumes já ha muito conhecidos. Chamando a atenção para a influência do direito romano no pensamento jurídico do século X I I I e sua preocupação com a escrita, a autora aborda os direitos senhoriais do conde de Beauvaisis, adotando a c l a s s i f i c a ç ã o proposta por Pierre Charbonnier. Zema Rezende conclui que o coutumier de Felipe de Beaumanoir, enquadra-se historicamente no movimento determinado pelas modificações da organização do senhorio e que as prerrogativas do poder do conde de Beauvaisis eram bastante amplas.

Na última parte, “A Idade Média: em torno da historiografia”, a preocupação dos autores é de ordem historiográfica. No primeiro artigo, “Vocabulário de História Medieval”, Celso Taveira propõe-se a elucidar o vocabulário empregado pelos medievalistas tomando como ponto de parüda 0 Ano Mil de Georges Duby. Trata-se de algumas reflexões anteriormente desenvolvidas em sala de aula, que o autor apresenta, tendo como meta a elaboração de um glossário, que pretende ampliar o universo conceituai das úlümas décadas do século X e o século X I . O último artigo, “Controvérsias historiográficas acerca da doutrina gregoriana” é de Marcelo Cândido da Silva que discute as diferentes abordagens historiográficas acerca da doutrina gregoriana. O autor localiza as raízes das controvérsias, em uma certa ambigüidade presente nos textos de Gregório V I I , a Segunda Sentença contra Henrique IV e a Segunda Carta à Hermann de Met\. Concluindo, para ele, a doutrina gregoriana, na medida em que procurou estabelecer as fronteiras entre os poderes temporal e espiritual, buscou dessacralizar este último. Isto, porém, não implica que desconsiderasse a origem divina do poder imperial.

Notas

1 Jacques Le Goff, “Prefacio”, in: Le mqyen âge aujourd’hui. Paris, Le léopard d’or, 1998.

2 Consultar a respeito José Roberto Melo e Ivone Marques Dias, Anais da II Semana Medievais, Brasília, PEM, 1994, pp 44 – 48.

3 Maria Guadalupe Predrero Sánchez, História da Idade Media, Textos e Testemunhos, São Paulo, Unesp, 1999.

* Cf. A introdução de Júlio Trebolle Barrera em A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã, Petrópolis.Verbo, 1993, p. 7.

3 Jacques Le Goff, A Nora História, Lisboa, Ed.70, s/d.

6 Os Anais da I Semana e da II Semana, foram publicados respectivamente, em A vida na Idade Média, Brasília, Edunb, 1998 e Anais da II Semana, Brasília PEM, 1994.

Desde 1999 o PEM, Programa de Estudos Medievais – UnB, inter-institucionalizou-se ligando-se à equipe de medievalistas da Universidade Federal de Goiás.

Maria Eurydice de Barros Ribeiro – Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Gradução em Artes da Universidade de Brasília.

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Feminismos: Teorias e perspectivas / Textos de História / 2000 

Apresentação

O feminismo acabou? Importantes igualdades já não foram obtidas? Porque insistir neste termo, cujas conotações pejorativas dele afastam mulheres que se definem como “femininas”? Justamente porque denegrir o feminismo é negar a atuação das i r . ii i I mulheres que, ao risco de suas próprias vidas, de sua integridade física e moral, ousaram afirmar sua existência enquanto seres humanos, ousaram questionar e desmantelar todo um edifício teórico-filosófico patriarcal, um estado social considerado natural, cujas bases hierárquicas e assimétricas, desenhando relações de sexo, fundavam-se nas “leis da natureza”.

Falamos aqui de feminismo na recusa ao pejorativo do termo, que não passa de assujeitamento a um discurso social, negando à mulher um lugar de fala, rejeitando suas reivindicações ao domínio de histeria ou do antagonismo simplório ao masculino.

Mostrando que os papéis sociais são construídos, que o próprio discurso da “natureza” dos sexos é um artifício do poder marcado de historicidade, o feminismo vem mudando aos poucos a face do mundo.

Ilumina-se assim a ação e a presença da metade da humanidade na história, escamoteada, obscurecida e inferiorizada pelas representações definidoras do feminino, pela divisão do mundo em público e privado, pela importância dada a um detalhe biológico como definição do ser e de sua essência.

Hoje não é mais necessário apontar os discursos religiosos, filosóficos e políticos que construíram as mulheres, dotadando-as de uma essência única, fazendo delas A mulher, o Outro absoluto, oposto e negativo em relação ao masculino, criado à “imagem e semelhança”. A reflexão e análise feministas aí estão, tirando a máscara do poder que se esconde sob o discurso do “natural”, desmistificando as imagens, desfazendo as representações reivindicadoras de universalidade.

Fragilidade, irresponsabilidade, irracionalidade, passividade, incapacidade física, desregramento moral, superficialidade, estas, entre tantas outras, as características atribuídas ao feminino, ancoradas no sexo biológico, desdobrando- se em sedução, artimanhas, armadilhas para os incautos. Estas são as representações que o feminismo rejeita. Nas práticas sociais, a violência, o abuso sexual, a prostituição, reduzindo o feminino a um corpo sobre o qual não tem ingerência: esta é uma realidade que o feminismo vem tentando transformar.

Escrito na carne e traduzido em prosa e verso, o destino manisfesto, a função maior: a maternidade. No casamento e na heterossexualidade o caminho, a ordem. Contra o discurso do unívoco, o feminismo aponta para relações plurais, para corpos que, ao contrário da cristalização identitária, percorrem uma cartografia nômade do ser. Pensando o mundo, agindo contra o peso da norma, contra a violência das essências e contra as práticas de poder, os movimentos e as teorias feministas abrem passagem no traçado de um novo perfil do humano.

Mas pode-se falar de UM feminismo? Quem tem alguma familiaridade com a extensa produção teórica feminista sabe que, entre suas características, encontram-se a diversidade e o desejo de transformação. De fato, correntes e estratégias entrecruzam-se, opõem-se, negam-se ou reafirmam-se; os paradoxos e contradições muitas vezes encontrados tem servido como estímulo ao aprofundamento da reflexão e à afirmação da multiplicidade. Desvendando os mecanismos de produção e representação do mundo, os feminismos insistem que as relações e representações sociais/sexuais pedem para ser desconstruídas.

De um lugar de fala preciso, de uma subjetividade enfim encontrada, as críticas feministas do social se debruçam sobre seus próprios instrumentos de reflexão e fazem do dinamismo sua característica principal. O ec-centric subject é aquela que, inserida em um regime de circulação de verdades e evidências, atua para modificá-lo; designada enquanto “mulher”, em um sistema político de hierarquias sociais, age na direção de uma desintegração dos sentidos galvanizados em torno do binarismo sexual. Conscientes de sua incontornável experiência de ser sexuado no social, as teóricas e os movimentos feministas não cessam de aprofundar a crítica aos paradigmas, valores e normas, que fazem da sexualidade e do sexo o parâmetro maior de definição dos seres, quebrando assim, aos poucos, a iteração que faz do contingente, a essência do humano.

Feminismos: teorias e perspectivas. Este número temático em uma revista de História vem abrir aos feminismos, enquanto movimentos sociais de primeira grandeza no século XX e como crítica epistemológica aos sistemas de produção do conhecimento e do real, um espaço de visibilidade e talvez, de interlocução acadêmica. Com a participação de autoras feministas do Canadá francês (Quebec) e do Brasil, este número registra uma colaboração internacional e interdisciplinar, situando nesta História presente, análises que não fazem senão sublinhar a incontornável historicidade das relações humanas.

Na parte consagrada à teoria, Francine Descarnes (Sociologia, UQAM) faz um apanhado das diversas tendências e objetivos das correntes feministas contemporâneas; Angela Arruda (Psicologia, UFRJ) reflete sobre o encontro profícuo entre as teorias feministas e a teoria das representações sociais; Anick Druelle, por sua vez (Sociologia, UQAM) observa os movimentos sociais das mulheres como táticas de transformação identitária e reformulação do social; Marie-France Dépêche (Línguas Estrangeiras e Tradução.UnB) analisa a tradução como uma estratégia de intervenção feminista; Denyse Baillargeon (História, UdM) transita pelos estudos feministas relativos â maternidade, em suas diferentes abordagens; Tânia Navarro Swain (História, UnB) interroga os mecanismos de construção generizada em torno do sexo e da sexualidade; Colette Saint-Hilaire (Sociologia, UQAM) trabalha a questão das identidades sexuais à luz de novas visibilidades.

Perspectivas, os lugares de fala são demarcados: mulheres que fazem a história, tenham elas um nome ou surjam apenas na densidade ativa de um grupo. Margareth Rago (História, Unicamp) nos fascina com Luce Fabbri, reinventando o mundo no anarquismo; Diva do Couto Gontijo Muniz (História, UnB) aponta para a construção do binarismo sexuado nos processos de socialização escolar; Maria Izilda Matos (História, PUC/SP) fala-nos de movimentos de mulheres, de resistência e luta, que, obscurecidos pela história, desaparecem dos registros da memória.

Este número é de fato uma homenagem às feministas que mudam a história e não transigem face às “evidências” do natural, não se acovardam face ao preconceito e à surda oposição à fala das mulheres, face às tentativas de silenciamento, pela ironia, que escondem o medo da transformação. Homenagem ainda àquelas que não receiam se dizer feministas hoje, pois diante da violência material e simbólica exercida sobre as mulheres, persistem em fraturar a ordem do discurso.

Tânia Navarro Swain Brasília, 2001.

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Textos de História | UnB | 1993-2009

Textos de Historia Textos de História

Textos de História (Brasília, 1993-2009) foi um periódico acadêmico do Programa de Pós-graduação em História da UnB. A revista publicou artigos e resenhas bibliográficas.

Periodicidade semestral.

Acesso livre

ISSN 0104-1487

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