História e Multidisciplinariedade nos estudos da religião e religiosidades / Tempo Amazônico / 2019

O campo dos estudos da religião no Brasil tem crescido e se organizado nas últimas décadas, como demonstram a autonomização da área de Teologia e Estudos da Religião e o fortalecimento de programas de pós-graduação, de associações e de revistas diretamente ligadas às pesquisas sobre religiões e religiosidades. Os mais importantes autores, que subsidiam as discussões em nível internacional, já foram ou estão sendo traduzidos e o acumulado de reflexão já nos permite incluir autores brasileiros como referências em vários debates atuais.

Durante um bom tempo, a História (como disciplina) esteve a reboque desses avanços, com abordagens, métodos e fontes ainda muito tradicionais. Hoje, mais francamente abertos às construções interdisciplinares, os historiadores têm se integrado nesse debate e, com eles, muitas Revistas de História (das mais diferentes instituições e colorações) têm dado suas contribuições, especialmente através de dossiês. Interessante, porque nesses casos, mais do que atrair leitores e autores de outras áreas, temos, nós mesmos, nos aproximado das epistemologias e metodologias das humanidades, das artes, da comunicação. Daí termos optado aqui pelo termo multidisciplinaridade, já que ele sugere que cada qual, do seu ponto de vista disciplinar, pode colaborar para a construção de olhares sempre mais perspicazes sobre um determinado objeto – nesse caso, as religiões e religiosidades.

Uma prática ecumênica, que parte tanto da crítica da compartimentação do saber científico quanto das possíveis recomposições em curso, no sentido de produzir inclusive pesquisas com maior relevância acadêmica e social. Um convite à reflexão e ao diálogo, que agrega mais sabor e inventividade à produção do conhecimento histórico.

Foi nessa perspectiva que propusemos esse dossiê e que acolhemos, com alegria, os textos que o compõem. Eles foram organizados de modo que, no todo, o leitor caminhe de discussões mais teóricas para os trabalhos mais empíricos. E entre esses últimos há uma ordem cronológica. Isso não impede, é claro, que se leia apenas um artigo ou que eles sejam lidos aleatoriamente.

O primeiro artigo, de autoria de Alexsandro Melo Medeiros, trata de como Henri Bergson elabora, em sua obra, “o misticismo como uma forma de abordar, experimentalmente, o problema da existência de Deus”. É uma contribuição do campo da filosofia, mas que tem tudo a ver com os debates atuais sobre história da espiritualidade. Como aponta o autor “a teoria evolucionista bergsoniana, que encontramos amplamente esboçada em sua obra A Evolução Criadora é retomada em sua obra As Duas Fontes da Moral e da Religião que amplia a aprofunda a concepção do filósofo a respeito de como o homem pode se colocar em contato com a energia criadora da vida através da experiência religiosa testemunhada pelos místicos das mais diferentes religiões”.

Em seguida, Paulo Vitor Giraldi Pires nos traz um olhar sobre “a religião como interdisciplinaridade da comunicação”, apresentando algumas “aproximações teóricas” possíveis, sobretudo a partir da análise do caso da Igreja Católica nos anos pós-conciliares. O artigo discute um momento no qual a religião entrou em diálogo cada vez mais estreito com o mundo moderno, o que no campo da comunicação implicou em uma aproximação (interdisciplinar) dos estudos científicos sobre os temas comunicacionais, seja com finalidades pastorais ou mesmo acadêmicas.

Um debate entre dois autores bastante atuais – Pierre Bourdieu e Boaventura de Sousa Santos – emerge no artigo de Vitor Hugo Rinaldini Guidotti, intitulado “Teologia hegemônica e contra-hegemônica no campo religioso: breve reflexão sobre as (im)possibilidades em Direitos Humanos”. Ao explorar tanto o conceito de campo religioso do primeiro quanto a leitura crítica da universalidade dos Direitos Humanos do segundo, o autor nos apresenta as possibilidades de que “teologias progressistas, mesmo que colocadas num campo religioso fortemente hostil, podem contribuir para a elaboração de uma nova concepção de direitos humanos, excluindo da base epistemológica desse conceito os interesses econômicos neoliberais, a arrogância científica e a influência das religiões dominantes e reelaborando a partir de uma composição múltipla de saberes, sejam eles seculares ou religiosos”.

Na mesma perspectiva, Diego Omar da Silveira aponta as interconexões possíveis entre “História, Antropologia e Sociologia na compreensão das dinâmicas sociorreligiosas contemporâneas no médio-baixo Amazonas”. Partindo dos estudos culturais, e debruçando-se sobre a contribuição de três autores que são presenças constantes em cursos de teoria antropológica (Erving Goffman, Pierre Bourdieu e Arjun Appadurai), o texto discute a validades dos conceitos operados por esses clássicos (alguns bastante recentes) para analisar as relações entre a religião, a sociedade e a cultura. Longe de uma aplicação automática, o que se propõe é que os conceitos sejam tomados como chaves que permitem problematizar as relações e transformações atuais, ativando assim diferentes fontes e modalidade de olhar para um campo que não cessa de se modificar.

O artigo de Karla D. Martins – “O Apóstolo da Amazônia: D. Macedo Costa e uma versão do ultramontanismo na Província do Pará entre 1861 e 1890” – está mais estritamente no campo da História e disseca, na medida do possível, o quanto esse eclesiástico, que se tornou marcante em seu tempo, foi um homem que “amou, sofreu, irritou-se e se entregou ao trabalho missionário na vasta região amazônica onde viveu a maior parte de sua vida”. As várias dimensões do bispo (“devoto, erudito e leitor de clássicos”) servem assim para elucidar seus “projetos sociais e religiosos”.

João Everton da Cruz, por sua vez, propõe uma leitura transversal do Conselheiro, numa linhagem inaugurada pelo padre Ibiapina e que se estende até o monge Marcelo Barros – “Um Conselheiro do nosso tempo”. Os traços em comum emergiriam da fé popular em um “orientador, mestre e guia, (…) pessoa aonde residiria muita sabedoria. Não somente a sabedoria familiar, transmitida de geração em geração, mas também a sabedoria dos ancestrais, à qual poucas pessoas têm acesso”.

Por fim, Eduardo Gusmão de Quadros e Leksel Nazareno Resende nos trazem uma muito sugestiva análise das imbricações entre “Juventude protestante e musicalidade” por meio de “um estudo sobre os modos de apropriação da MPB durante o final da década de setenta”. O grupo a que se referem é o “Vencedores por Cristo, criado pelo missionário norte-americano Jaime Kemp, em 1968” e que, para além dos hinários tradicionais, encabeçaram uma “proposta radical de musicalidade cristã: usar ritmos e temas brasileiros para dialogar mais profundamente com a cultura brasileira”. Segundo os autores, “a ousadia teve forte oposição dos mais conservadores dentro das instituições, contrabalanceada pela boa aceitação entre a juventude evangélica que passou a produzir e a consumir tal repertório. Muitos que dedicaram a vida a tal proposta acabaram por alterar o jeito de ser evangélico no Brasil”.

Para além do dossiê, a revista traz, ainda, as contribuições de temática livre, fruto de diferentes pesquisas de pós-graduação e que muito têm colaborado para o tipo de trabalho que temos realizado na Tempo Amazônico, qual seja o de estimular o debate acadêmico e historiográfico de forma mais ampla possível, possibilitando a divulgação de pesquisas originais sobre diferentes temas e assuntos, sobretudo os amazônicos.

Desejamos a todos uma boa leitura.

Diego Omar da Silveira (Universidade do Estado do Amazonas)


SILVEIRA, Diego Omar da. Apresentação. Tempo Amazônico, Macapá, v.6, n.2, 2019. Acessar publicação original [DR]

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História cultural & multidisciplinaridade | Fênix – Revista de História e Estudos Culturais | 2007

A história cultural está na ordem do dia. Seu território é vasto, parecendo mesmo não ter limites. Louvada por uns, que a consideram o melhor quinhão da história para ser trabalhado – espécie de “crème de la crème” para o pesquisador –, é seriamente atacada por outros, que a acusam de “modismos”, de apresentar uma certa “inconsistência teórica” ou mesmo chegam a taxa-la com esta palavra que já virou insulto: “pós- moderno”…

A presença marcante dos estudos de história cultural entre os historiadores no Brasil se fez sentir nas duas últimas décadas, expressas na preocupação de seus pesquisadores com questões de natureza teórica e metodológica, bem como da renovação temática de seu campo de trabalho. Leia Mais

Escrita da História: os desafios da multidisciplinaridade / Textos de História/ 2007

Apresentação

Ao desafios que envolvem, contemporaneamente, a escrita da história constituem o eixo que reúne o conjunto de artigos do presente número da Revista Textos de História. São leituras produzidas por historiadores e historiadoras de diversas instituições e que encerram, naquilo que incluem e excluem, uma localização e um modo de inteligibilidade.

Sublinhar a singularidade de cada análise é questionar a possibilidade de uma sistematização totalizante e investir na pluralidade, pois os discursos se inscrevem, como nos ensina Certeau, “eles próprios em seguimento a ou ao lado de muitos outros: enquanto falam da história, estão sempre situados na história”1.

Reconhecer a historicidade da história, implícita no movimento que liga uma prática interpretativa a uma prática social, é uma das exigências colocadas ao campo disciplinar e aos do ofício. Pensar a historiografia a partir da relação paradoxal entre dois termos antinômicos – o real e o discurso –, e de sua “tarefa de articulá-los e, onde este laço não é pensável, fazer como se os articulasse”2, é desafio incontornável à prática de escrita da história. Escrever história, essa operação que estabelece uma relação com o tempo que não é nem a primeira nem a única possível, implica “gerar um passado, circunscrevêlo, organizar o material heterogêneo dos fatos para construir no presente uma razão”3.

A concepção de que a história é plural, assim como o passado que narra, e que não pode, portanto, ser reduzida a uma única forma e conteúdo, norteou a organização da coletânea de estudos que integram o dossiê “A escrita da história: os desafios da multidisciplinaridade”. Além disso, e por conta disso, também o entendimento de que o saber histórico, como qualquer campo de conhecimento, é construção inacabada, regida por regras das instituições e da comunidade que definem o que pode e o que não pode ser aceito como verdade, em cada momento histórico. O reconhecimento, enfim, de que o saber histórico não é relativista, ele é relativo às suas regras de produção; não é arbitrário, mas arbitrado pelos pares4.

Tais questões e perspectivas de abordagens da natureza do conhecimento e do fazer históricos foram objeto de amplo debate no IV Encontro da ANPUH/DF, realizado em Brasília, em maio de 2007, com título homônimo ao do dossiê. Parte significativa das exposições feitas – 02 (duas) conferências, 16 (dezesseis) mesas-redondas, 42 (quarenta e duas) comunicações –, abrigadas sob a ótica da pluralidade definida para o evento, integra a presente coletânea.

Foi evento importante para os historiadores do Distrito Federal por viabilizar um espaço para discussão do tema, compartilhando dúvidas e incertezas, e também direções e posições, acerca dos desafios contemporâneos quanto à escrita da história. Além disso, a possibilidade criada para divulgar pesquisas, para socializar conhecimento produzido. Foi, sem dúvida, um encontro que trouxe conforto aos do ofício, ao possibilitar um “encontro” com a história, pensada não como um “fardo a pesar sobre nós, impondo ao futuro um sentido já inscrito no passado”, mas “como referência para pensarmos com liberdade o futuro que queremos”5.

O viés comemorativo também imprime sua marca na organização desse número da revista, com os artigos das professoras Diva do Couto Gontijo Muniz, em co-autoria com o mestrando Eric de Sales, e Lucília de Almeida Neves Delgado. No primeiro, o esforço em historicizar, em conhecer a história da história do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, com a identificação e análise crítica de sua produção acadêmica, em seus trinta anos de existência (1976-2006). No segundo, uma reflexão sobre 1968, um tempo de transgressão, utopia e engajamento, a partir de um outro mirante temporal, 2008.

O propósito não é, nessa ritualização, o de inscrever atos humanos num tempo mítico, mas o de buscar sua localização como construção ancorada num tempo social e cultural. Há, ainda, o esforço em acionar, para todos nós que vivemos no presente, “um passado a ser permanentemente recordado como forma de manutenção simbólica dos importantes laços de pertencimento coletivo”6.

Os textos foram agrupados segundo o critério de aproximação temática. Assim, a primeira parte do dossiê reúne um conjunto de artigos cuja ênfase comum é a reflexão sobre questões que perpassam a escrita da história e que interpelam os autores: Diva do Couto Gontijo Muniz, Eric de Sales, Estevão Chaves de Rezende Martins, Tereza Cristina Kirschner, José Otávio Nogueira Guimarães, Maria Eurydice de Barros Ribeiro e Ione Oliveira. Abordagens diversas, plurais, mais ou menos disciplinares, problematizando as relações entre história e prática historiográfica, história e memória, história e objetos, história e temporalidades, história e poder, história e verdade.

O enveredamento dessas reflexões para a política de silenciamento, discursivamente produzido, acerca da presença das mulheres na história, bem como para “a produção sexista do conhecimento que descarta o múltiplo nas relações sociais”7, foi o critério de agrupamento de três artigos da segunda parte do dossiê. São perspectivas interdisciplinares de leitura do social e de escrita da história, preocupadas não apenas em conferir visibilidade historiográfica às mulheres, mas, sobretudo, em evidenciar a construção discursiva das identidades sociais, que as autoras, Susane Rodrigues de Oliveira, Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro e Liliane Machado, fizeram uso.

Os diálogos entre história e literatura, história e música, história e arte conformam o desenho da terceira parte e apontam para a ampliação de temas, objetos, problemas e abordagens do campo disciplinar. Movimento dinâmico de diluição de fronteiras e, ao mesmo tempo, de reconfiguração de novas territorialidades, percebido nas reflexões de Cléria Botelho da Costa, Hermenegildo Bastos, Eleonora Zicari Costa de Brito e Paulo Roberto de Deus. Na última parte, os textos de Roberta G. Stumpf e Teresa Cristina de Novaes Marques. Neles, uma prática de escrita da história informada pelos quadros nocionais da História Social, com seus contornos ampliados de modo a contemplar a riqueza, em nuances, da complexidade das relações sociais.

À parte do dossiê, mas que poderiam também estar nele incluídos, os artigos de Lucília de Almeida Neves Delgado, a que já fizemos referência, e o de Marcos Silva, sobre o ensino de história. Afinal, os desafios existem tanto no que concerne à escrita da história como ao seu ensino. As direções tomadas são direções posicionadas, comprometidas com diferentes projetos de história. Finalmente, a criação de um espaço, na revista, para registro das reflexões dos docentes acerca de seu pensamento e ação como historiadores, com a seção de entrevistas. Ela é inaugurada com a entrevista do professor Estevão Chaves de Rezende Martins com Tânia Navarro Swain, professora de Teoria da História no Departamento de História da UnB, que se aposentou em 2007. Revelam-se, no depoimento, o itinerário de uma historiadora e o percurso de interrogação incontornável aos do ofício: que aliança é esta entre a escrita e a história?

Notas

1 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 32.

2 Idem, ibidem.

3 Idem, ibidem, p. 11.

4 ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. O historiador naïf ou a análise historiográfica como prática de excomunhão. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: Letras, 2006, p. 204.

5 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Usos da história: refletindo sobre identidade e sentido. História em Revista. Pelotas: Ed. UFP, v. 6, 2000, p. 21 6 Idem, ibidem.

7 NAVARRO-SWAIN, Tânia. Entrevista. Textos de História: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília. Brasília: UnB/PPGHIS, v. 15, n.1/2, 2008, p. 290.

Diva do Couto Gontijo Muniz

Cléria Botelho da Costa

Organizadoras

Jaime de Almeida

Editor

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