Protagonismos indígenas: diálogos entre História & Ciências Sociais em diferentes tempos e espaços coloniais / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2018

Na organização da coletânea História dos Índios no Brasil (1992), a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha atentava para o problema das fontes sobre o passado dos povos indígenas. Por meio de esforços de diversos pesquisadores, desde então, tem havido muitos avanços nesse sentido. O saudoso John Manuel Monteiro, um dos precursores mais atuantes nocampo da história indígena e do indigenismo no Brasil, contribuiu sistematicamente na organização de informações sobre as fontes em arquivos públicos nas capitaispaís, tendo coordenado a elaboração de um Guia de fontes para a história indígena e do indigenismo (1994). Mais recentemente, vale lembrar os esforços realizados na organização dolivro-catálogo resultante do projeto Catálogo Geral dos Manuscritos Avulsos e em Códices Referentes à História Indígena e Escravidão Negra no Brasil (RICARTE, 2017), que se somaàprodução de catálogo de fontes específico para o Estado do Rio de Janeiro (FREIRE, 1995 / 96).

Algumas facetas importantes do impacto da história sobre os povos indígenas podem ser observadas, por exemplo, em estudos a respeito de etnogênesese de processos de territorialização, que configuram a agência de homens e mulheres indígenas em relações sociaisgeradas no interior desituações coloniais.

Reunimosnesta primeira parte do dossiê sobre protagonismos ameríndios em diferentes tempos e espaços, trabalhos que abrangem questões referentes às inúmeras lacunas até hoje existentes sobre a indelével presença destes processosna história das Américas, no passado colonial, em fecundos diálogos entre História e Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia e Ciência Política).

Com imensa satisfaçãoapresentamos esta primeira parte do dossiê Protagonismos ameríndiosem diferentes tempos e espaços, composto por oito artigos que revelam diálogos transdisciplinares entre História e Antropologia a partir de pesquisas cujos marcos espaço-temporais se conformam ao período colonial nas Américas (séculos XVI ao início do XIX). O primeiro artigo, de autoria de Chantal Cramaussel Vallet e Celso Carrillo Valdez, trata dos indígenas do Bolsón de Mapimí, que eram caçadores e coletores e compreendiam múltiplas parcialidades que receberam dos espanhóis distintos nomes. Por meio da biografia deSantiago Alonso os autores mostramcomoas lideranças entre aqueles povosforamduradourase contavam com uma ampla rede de alianças que lhes permitiam reunir forças bélicas consideráveis e escapar com facilidadepara fora do domínio espanhol.

Em “„A persuasão (que?) fazem os índios a este Governo‟: os Kiriri e os conflitos no „sertão de dentro‟ da América portuguesa (1677-1679)”, Ane Mecenas aponta que na segunda metade do século XVII, após a Restauração Portuguesa, intensificou-se o povoamento do sertão da América portuguesa. O processo visava à constituição de aldeamentos e à formação de alianças, com o intuito de garantir segurança no acesso comercial às rotas dos criadores de gado que seguiam da Bahia ao Piauí, bem como a constituição de um grupo de índios Kiriri que coibisse a formação de quilombos nas impenetráveis rotas do sertão. Ordens religiosas foram incumbidas da tarefa de organizar as aldeias, “disciplinar as almas” e fornecer mão de obra nas entradas para o sertão.

O terceiro artigo, intitulado “A evangelização calvinista dos indígenas no Brasil holandês: o poder cristalizador da leitura”, de Maria Aparecida de Araújo Barreto Ribas, aborda a evangelização calvinista dos indígenas pelos neerlandeses no Brasil holandês (1630-1654) e a especificidade de tal projeto que teve como característica fundamental a alfabetização dos nativos.

Rafael Ale Rocha, em “Os Aruã: políticas indígenas e políticas indigenistas na Amazônia portuguesa (século XVII)”, analisa a política adotada por grupos indígenas Aruã durante o século XVII. Tratava-se de uma “nação” que habitava a Ilha de Joanes (Marajó), o Cabo Norte (Amapá) e arredores e interagia com os mais diversos indivíduos e / ou grupos – portugueses, ingleses, holandeses, franceses, negros, mestiços, outros indígenas. O autor prioriza as respostas dos Aruã às políticas indigenistas adotadas pela Coroa portuguesa naquele rincão da Amazônia.

Leandro Goya Fontella, por sua vez, trata de uma análise demográfica em perspectiva comparativa, afirmando que entre as últimas décadas do século XVIII e as primeiras do XIX uma complexa trama histórica mergulhou a região platina em um contexto de endemia bélica que provocou a decadência demográfica do complexo guaranítico-missioneiro. A partir do tratamento serial dos assentos de batismos da Matriz de São Francisco de Borja e de informações censitárias coevas, é analisado como se desenrolou tal processo nas reduções orientais do rio Uruguai.

No artigo “Índios independentes, fronteiras coloniais e missões jesuíticas”, Maria Cristina Bohn Martins propõe-se a examinar o caso da “misión del sur” dos jesuítas no século XVIII, fazendo-o a partir de uma perspectiva que privilegia as expectativas dos nativos relativamente a ela. Isto é, através de uma inversão de enfoque e ponto de vista, a autora revisita um tema clássico retirando os indígenas da situação de invisibilidade em que eles foram colocados pelas fontes e pelas narrativas históricas tradicionais.

Max Roberto Pereira Ribeiro, em “MbabuçúOiconê: a profecia de Felicitas, tempo e história nas reduções do Paraguai”, trata das disputas coloniais entre Espanha e Portugal no século XVIII que resultaram em um novo tratado de limites na América meridional, firmado em 1750, em Madrid (Tratado de Madrid). O acordo entre as Coroas estabeleceu que a Espanha entregasse a Portugal um território composto por sete missões indígenas e houve da parte dos Guarani grande resistência àquele acordo, resultando em inúmeros conflitos.

Finalmente, em “A execução do Tratado de Santo Ildefonso e as atuações indígenas na fronteira platina”, Karina Moreira Ribeiro da Silva e Melo analisa como os indígenas envolveram-se ativamente nos trabalhos da comissão demarcadoradurante a execução do Tratado de Santo Ildefonso. Ao localizar os pontos por onde passaria a linha divisória, abastecer partidas com recursos oriundos dos povos, patrulhar e arriar gado nos territórios indivisos pertencentes aos seus departamentos, os indígenas demonstraram sua inserção em redes comerciais e políticas bastante amplas.

Os artigos reunidos para este primeiro volume do dossiê Protagonismos ameríndios em diferentes tempos e espaços retratam o vigor da História Indígena no Brasil e nas Américas no início do século XXI. Passados mais de 25 anos de sistemática produção historiográfica sobre os ameríndios no Brasil percebe-se queo palco da História– em feliz expressão tomada por empréstimo de Maria Regina Celestino de Almeida – passou a ser ocupado por estes importantes atores, há muito deixados nos bastidores. Como alertava John Monteiro, para que as trajetórias espaço-temporais tanto de indígenas, africanos e seus descendentes ou migrantes de partes do mundo não europeu não sejam mais invisibilizadas, contudo, ainda há muito a ser feito.

Esperamos cumprir com uma parte importante da divulgação técnica e científica da produção mais recente e qualificada, neste ano em que é celebrada uma década da existência da lei 11.645 / 2008, que obriga a transversalização de conteúdos em todos os componentes curriculares da Educação Básica com as temáticas indígenas e afro-brasileiras, notadamente a História, e que se celebra ainda 30 anos da primeira Carta Constitucional brasileira em que os povos indígenas surgem como sujeitos de direitos. Oxalá que as lutas travadas inicialmente por John Monteiro e outros para que a História Indígena fosse vista com a importância que lhe é devida não esmoreçam.

Boas leituras!

Giovani José da Silva – Professor Doutor (UNIFAP)

Izabel Missagia de Mattos – Professora Doutora (UFRRJ)

Organizadores


SILVA, Giovani José da; MATTOS, Izabel Missagia de. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.10, n. 19, jan. / jun., 2018. Acessar publicação original [DR]

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