Espada, cobiça e fé: as origens do Brasil | Francisco Wffort

É bem conhecido o gosto com que nossos “homens de letras” e intelectuais sugeriram “sínteses” e interpretações da formação histórica do Brasil, construindo as mais variadas avaliações sobre a colonização ibérica e seus desdobramentos na sociedade do Novo Mundo. A chamada “herança ibérica”, afinal, era a possibilidade de intervenção direta nos debates políticos e sociais referentes à formação do Brasil: é justamente nesse sentido que se situa o mais recente livro de Francisco Weffort (“Espada, cobiça e fé: as origens do Brasil”, editora Civilização Brasileira, 2012).

A ênfase da recente obra de Weffort recai sobre os séculos XVI e XVII (momento central para o entendimento das “origens do Brasil”, segundo o autor) – séculos que nos falam de perto: eles não estão suspensos num passado longínquo, como peças para a curiosidade de um antiquário. Afinal, como o autor explicita na célebre epígrafe retirada de Requiem for a nun, de Faulkner: “o passado não está morto e enterrado; na verdade, ele nem mesmo é passado”. Weffort, nesse sentido, apresenta uma discussão, a um só tempo, historiográfica e sociológica, buscando uma intervenção direta no debate político brasileiro: a proposta é refletir sobre a formação histórica da América Portuguesa, já que “nos primeiros tempos deste novo mundo nascido da violência, da cobiça e da fé, o que mais surpreende é o quanto sua história ajuda a compreender os tempos atuais”.[2]

A obra não se ocupa de pesquisas propriamente arquivísticas, de modo que dialoga fundamentalmente com documentos impressos (portanto, já publicados) da América colonial (Antonil, Gandavo, Barléus, Las Casas, Ruiz de Montoya etc.). As reflexões, a bem da verdade, ganham maior densidade com os diálogos estabelecidos entre os “clássicos” do pensamento brasileiro (Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Afonso Taunay, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Paulo Prado etc.), a historiografia mais recente sobre o período colonial brasileiro (Maria Fernanda Bicalho, Leslie Bethel, João Fragoso, Arno Wehling) e alguns nomes das ciências humanas em geral (Marc Bloch, C. Boxer, R. Blackburn, Norbert Elias, O. Patterson, Lewis Hanke, Q. Skinner, D. Brading). O autor, nesse sentido, empreende um significativo esforço em uma ampla análise preocupada em ressaltar as principais linhas de força (tendências históricas, por assim dizer) da formação sociopolítica brasileira.

A síntese sugerida por Weffort para o entendimento dos séculos XVI e XVII toma como ponto de partida o conceito de “conquista”: “sabemos que o Brasil, como os demais países ibero-americanos e o Novo Mundo em geral, foi conquistado em meio a guerras quase permanentes”.[3] A conquista da América Portuguesa seria um processo de dois séculos, de modo que, alimentada pela violência e pela fé, ela teria sido “um fenômeno geral das Américas, estabelecendo um padrão histórico que se prolongou além do século XVII”.[4] A abordagem sugere um interessante contraponto teórico com a própria historiografia brasileira: ao passo que, por meio do conceito de “colonização”, Fernando Novais destacava, no entendimento da formação colonial brasileira, a ocupação e a valorização das novas terras nas coordenadas socioeconômicas estruturais da Época Moderna (o “Sistema colonial”),[5] a ideia de “conquista” realçada por Weffort circunscreve a própria ocupação lusa das novas terras em um processo demarcado pela posse do território, conquista de riquezas e dominação dos povos indígenas. Além da cobiça pelo enriquecimento, o Brasil de Weffort foi profundamente marcado pela violência.

A conquista da América “nasceu, sobretudo, das memórias de um cruzadismo que, tendo sido um fenômeno geral da Europa nos séculos XI e XII, durou na Ibéria muito mais tempo do que se costuma admitir”.[6] A história da América, para o autor, está profundamente entrelaçada com a própria história Ibérica. Os séculos XVI e XVII de Weffort, portanto, estão tomados do espírito da longa Reconquista ibérica dos séculos VIII-XV: “a América Ibérica surgiu de um medievalismo, talvez já em decadência a partir do século XVI, mas que ainda trazia muito dos entusiasmos da Reconquista”,[7] de modo que a nova sociedade foi construída sobre um “rude medievalismo, agressivo e violento, que estabeleceu os inícios eminentemente rústicos de uma sociedade que tomará muito tempo para sofisticar-se e refinar-se”.[8]

Os ecos “medievais” destacados por Weffort nos primeiros séculos da “conquista”, bem entendido, não implicam necessariamente uma retomada do longo debate sobre as origens feudais, capitalistas ou escravistas do Brasil. Antes de privilegiar a estrutura socioeconômica, o “medievalismo” dos primeiros tempos dizia respeito às formas socioculturais introduzidas no Novo Mundo: é nesse sentido que se situa, por exemplo, o que o autor chama de “personalismo de fundo senhorial” da formação brasileira. Explorando o clássico debate espanhol entre Américo Castro e Sánchez-Albornoz, Weffort extrai da própria Reconquista o sobrepeso cultural e sociológico da pessoa no mundo ibérico, já que os cristãos “[…] acreditavam que sua crença na consciência da dimensão imperativa da pessoa (lhes) permitiria ascender da gleba ao poderio. Para eles, o fundamento da verdade estava em Deus e na pessoa do homem”.[9] Nesse sentido, em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, Weffort enfatizaria que “o personalismo é uma dimensão fundamental de nossa identidade”:[10] afinal, “encontra-se aí a raiz fundamental da subvalorização das normas e das leis, típica da cultura brasileira e hispano-americana em geral” (Weffort, aqui, não está tão distante da “cordialidade” magistralmente discutida por Sérgio Buarque de Holanda).[11] O autor, inclusive, assinala algumas implicações políticas desastrosas daquela crença senhorial no valor da pessoa no continente, construindo uma espécie de cultura do “casuísmo” que, contorcendo a lógica impessoal de leis e instituições às circunstâncias e aos interesses pessoais, teria algum peso no sem-número de “caudilhos”, ditadores e golpes que, de alguma forma, ainda assombram a América Latina.

A América de Weffort, no entanto, não se construiu apenas sobre as ruínas do passado ibérico. O dilema da própria “modernidade” americana, por assim dizer, está situado no que o autor chama de “paradoxos das origens”, ou seja, a complexa interação entre as heranças do Velho Mundo e a possibilidade de construção de uma sociedade peculiar, contando com elementos, instituições e processos sociais praticamente desconhecidos na composição social do mundo aquém-Pirineus. Base dessa espécie de “experimento americano” foi o complexo contato cultural entre europeus, indígenas e negros. Nesse sentido, a atuação de dominicanos e jesuítas junto às monarquias católicas ibéricas é central: tratava-se de uma concepção de império na qual “os sacerdotes se tornaram assessores das respectivas Coroas […] Assim, os dois países católicos tomaram trajetórias que os tornaram semelhantes a estados teocráticos”.[12] A visão de Weffort, aqui, parece excessivamente generalista, perdendo de vista, no caso português, por exemplo, as complexas inter-relações entre a Coroa e os jesuítas (relações que, a bem da verdade, nem sempre foram tão amigáveis). No entanto, apesar de perder nas nuanças, o autor ganha na abrangência explicativa: para Weffort, a conquista territorial, além da espada, fundamentou-se na própria “conquista espiritual” dos povos indígenas, sacramentando o domínio ibérico.

Especialmente no caso brasileiro, tratava-se de um domínio, aliás, bastante singular, já que se assentava em uma sociedade escravista, construída sobre um amplo processo de exploração da mão de obra africana. Após analisar as polêmicas e as indisposições de missionários portugueses e espanhóis em relação à escravidão indígena, Weffort assevera que “diferentemente da escravização dos índios, a escravidão dos negros […] tornou-se, de certo modo, invisível”.[13] Para o autor, isso “significa que essa parte fundamental da mentalidade colonial se manteve durante quase todo o primeiro século do país independente e se prolongou no racismo que conhecemos, em formas mitigadas, às vezes apenas disfarçadas, do Brasil contemporâneo.[14]

A própria peculiaridade das raízes ibéricas no Novo Mundo situa a formação do Brasil como um mundo de fronteira. Weffort, nesse sentido, mescla os Capítulos de história colonial, de Capistrano de Abreu, com as reflexões do clássico trabalho de Frederik Turner sobre a fronteira na expansão norte-americana ao Oeste: trata-se de definir a “fronteira”, a princípio, como um conceito de base sociológica, evidenciando o contato entre culturas como processo criador de interações e relações sociais. Weffort adensa o enfoque sociológico ressaltando fundamentalmente sua situação histórica na formação brasileira: “no sentido moderno, esse ponto de encontro entre a barbárie e a civilização é um fenômeno do mundo europeu em expansão. Tipicamente, é um fenômeno da chegada e do avanço dos europeus sobre o Novo Mundo”.[15] É justamente nesse sentido que a mescla entre Capistrano e Turner ganha sentido: ao passo que, nos Estados Unidos, a fronteira define-se na expansão oeste, “o Brasil tornou-se brasileiro” nas várias frentes (norte, sul e oeste) para o interior.

Na porção norte da América Portuguesa (sobretudo com as ocupações de Sergipe, Rio Grande do Norte, Maranhão e Pará) e nas terras mais ao sul (com as investidas sobre São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), Weffort destaca a ação de povoadores e o papel do bandeirismo, entendendo os séculos XVI e XVII como centrais para a definição moderna das fronteiras: “o sentido histórico mais abrangente que se atribui à noção de fronteira é a de um fator determinante da moderna civilização ocidental”.[16] O espaço americano – a um só tempo fronteira da conquista ibérica e fronteira sociológica do contato entre povos diversos – permite, segundo o autor, desdobrar a ideia de que “as sociedades modernas são em geral sociedades de fronteira, nascidas do influxo de centros mais modernos”.[17] Afinal, assevera Weffort, “no caso do Brasil, e talvez de outros países ibero-americanos, a fronteira sociológica criou as bases das fronteiras políticas, firmadas nos séculos XVIII e XIX”.[18]

A própria formação da estrutura política e social do Brasil, nesse sentido, situa-se justamente no entrelaçamento da “conquista” e da “fronteira” nos séculos XVI e XVII: “aqui, o sistema de produção não antecedeu ao sistema de dominação, mas criaram-se juntos”.[19] Portanto, dentro do processo mais amplo da conquista, o autor circunscreve a efetiva construção de uma nova experiência social nas novas terras – experiência fronteiriça que, torneada pela violência na subjugação da mão de obra (indígena e posteriormente africana) e pela cobiça de riquezas, logrou construir um domínio sobre a terra. Do processo sociopolítico mais amplo da conquista, o autor deriva toda uma forma social do “mando” e do “poder”, sintetizando um arco cronológico bastante extenso e complexo da história brasileira: para o autor, essa estrutura social foi projetada, em tempos mais recentes, sobre a “aristocracia” imperial e o “coronelismo” da República Velha. Nessa expansão da perspectiva cronológica, Weffort perde as mediações que marcam o exercício do poder político em diferentes contextos da história brasileira (Império e República, no caso): sacrifica, por assim dizer, a complexidade dos matizes, em prol da ênfase sobre uma forma mais geral do próprio exercício social da política.

De que modo, portanto, a história da própria América Portuguesa traz os dilemas do futuro Brasil? O livro de Weffort ensaia algumas observações sobre esta incômoda pergunta: a nova sociedade não rompeu com o passado, mas foi agregada a ele. “A nova sociedade nasceu da busca do futuro, e persiste até hoje nessa busca. Mas jamais rompeu, pelo menos não inteiramente, seus vínculos mais profundos com a tradição”.20 Escrito em tom ensaístico, extrapolando a formalidade acadêmica na análise dos textos de época e dos autores, o texto não hesita em fazer ousadas conexões com suas preocupações políticas do presente, buscando um entendimento da formação de um país construído sobre a espada, a cobiça e a fé – enfim, sobre uma ampla “conquista” (quase aventureira) militar, econômica e espiritual. Sintomático que, ao lado de Faulkner, o autor tenha colocado junto à epígrafe a conhecida passagem das Teses, de Walter Benjamin: “não existe documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie”. O ensaio de Weffort sugere uma necessária reflexão sobre os impasses e os fantasmas da nossa própria “modernidade”.

Notas

2. WEFFORT, Francisco. Espada, cobiça e fé: as origens do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012b. p. 11.

3. Ibid., p.17.

4. Ibid., p.21.

5. NOVAIS, Fernando. Colonização e Sistema Colonial: discussão de conceitos e perspectiva histórica. In: NOVAIS, Fernando. Aproximações: ensaios de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

6. WEFFORT, 2012b, p.27.

7. Ibid., p.64.

8. Ibid., p.29.

9. Ibid., p.70.

10. WEFFORT, Francisco. A capacidade prática deste país de fazer sem saber é enorme. Folha de S. Paulo, São Paulo, dez. 2012a.

11. WEFFORT, 2012b, p.70.

12. Ibid., p.39.

13. Ibid., p.48.

14. Ibid., p.49.

15. Ibid., p.59.

16. Ibid., p.60.

17. Ibid., p.60.

18. Ibid., p.60.

19. Ibid, p.174.

20. Ibid., p.217.

Felipe Ziotti Narita –  Professor Bolsista – Departamento de História – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais / UNESP. Doutorando em História – FCHS / UNESP. E-mail: [email protected]


WEFFORT, Francisco. Espada, cobiça e fé: as origens do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. Resenha de: NARITA, Felipe Ziotti. As heranças ibéricas revisitadas. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.13, p.299-303, ago./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]