Elisa Branco: uma vida em vermelho | Jorge Ferreira

A biografia é um gênero antigo, que tem forte apelo entre os leitores. Segundo informações de um dos nossos mais importantes autores do gênero, o jornalista Lira Neto (2022, p. 41), a mais antiga publicação desta modalidade de que se tem notícia foi escrita há 2.500 anos, uma autobiografia, talhada em pedra, na antiga Pérsia. A partir daí, trajetórias de vida nunca deixaram de ser objeto de interesse dos leitores. Leia Mais

Pacientes que curam: o cotidiano de uma médica do SUS | Júlia Rocha (R)

Bilros 4 o cotidiano de uma médica do SUS
Júlia Rocha | Imagem: Canal Júlia Rocha |

Critica Historiografica capas 9 o cotidiano de uma médica do SUSEstá expresso na constituição brasileira, conhecida como constituição cidadã, promulgada em 1988, que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” [2]. Entretanto, para que a saúde se tornasse direito de todos e dever do Estado houve um longo processo de reformas e lutas políticas e sociais. O Sistema Único de Saúde (SUS) é o coroamento desse processo, já que a saúde como um direito da população pode ser acessada por meio dele um sistema que se pretende “público, universal e descentralizado” (PAIVA & TEIXEIRA, 2014). Fortalecê-lo, portanto, é assegurar que brasileiros e brasileiras possam exercer plenamente a sua cidadania.

O livro “Pacientes que Curam: O cotidiano de uma médica do SUS”, não narra uma experiência ou um ambiente exclusivamente de assistência hospitalar – como o título pode sugerir. Em vez disso, nos apresenta as vivências de Júlia Rocha – mulher, negra que trabalha como médica de família e comunidade no SUS [3] – com pouco mais de 10 anos de carreira. Graduada em medicina no ano de 2010 e com residência médica concluída em 2015, a autora destaca a partir de sua formação e experiência profissional que o “cuidado em saúde é algo impossível de se fazer só” (ROCHA, 2020, p: 301). Assim, embora o livro não faça referência à história institucional do SUS, ele nos apresenta questões fundamentais para a reflexão sobre a importância desse sistema e sua atuação diante das mais profundas contradições brasileiras. Leia Mais

Revolucionário e gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel – pioneiro na luta pela democracia/ diversidade e inclusão | James N. Green

James N. Green nasceu no ano de 1951 em Baltimore nos EUA e é atualmente professor de História Latino-Americana na Brown University, além de ativista de causas políticas e LGBTQ+. Green é diretor de um dos mais importantes centros de estudos sobre o Brasil no exterior, e está à frente do Projeto Opening Archives, programa que tem milhares de documentos sobre o período da ditadura militar brasileira. Green é homossexual e um dos maiores brasilianistas dos EUA, características que se refletem em suas obras.

O livro “Revolucionário e Gay: A vida extraordinária de Herbert Daniel – Pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão”, lançado no ano de 2018, é uma obra biográfica sobre Herbert Eustáquio de Carvalho, mais conhecido como Herbert Daniel (Daniel era um de seus codinomes) – um complexo personagem da esquerda revolucionária no contexto político da década de 1960, falecido em 1992. Intelectual e guerrilheiro, Daniel fez parte de diversos grupos políticos, como Colina, VAR-Palmares, e VPR. Leia Mais

Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa da assembleia / Judith Butler

Conhecida internacionalmente pelo livro Problemas de gênero: feminismo e a subversão da identidade2, publicado no início da década de 1990 e lançado no Brasil apenas em 2003, a filósofa estadunidense Judith Butler se dedica às análises sobre feminismos, gêneros, corpos e sexualidades. Sua obra, que mantém fluxo entre teoria e engajamento político, exerce significativa influência, tanto nos debates acadêmicos em diferentes áreas do conhecimento quanto nos movimentos sociais e em setores da sociedade civil. Suas teorias, em destaque sobre a performatividade dos gêneros, ensejaram um intenso debate e tensões, por deslocar certezas naturalizadas como a do sexo biológico. Na sua perspectiva, há um esforço em retirar o caráter ontológico das interpretações sobre as identidades de gênero e sobre o sexo, gerando uma dissociação entre o sexo, gênero e desejo.

Nos últimos títulos publicados pela autora, como Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?3 e Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia4, há o interesse em discutir sobre formas de inserção políticas contemporâneas, violências institucionalizadas ou não e sobre a precariedade a que determinados conjunto de sujeitos são induzidos e que limitam a prática efetiva da democracia e que encontram no gênero e na experiência corporificada espaços privilegiados de acontecimento.

O livro Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia reúne seis capítulos que possuem como eixo norteador a relação entre os corpos, suas performances em assembleias e a ocupação de espaços públicos promovida pelas manifestações que se multiplicaram em vários países do mundo, desde 2010, quando cerca de um milhão de pessoas se reuniram na Praça Tahrir no centro do Cairo, no que ficou conhecido como Primavera Árabe. Para a autora, as manifestações no Egito, além de servirem de exemplo para lutas políticas em outros países, renovaram o interesse de pesquisadores de várias partes do mundo sobre o estudo de assembleias públicas e de movimentos sociais que tomaram como fator estimulante a condição precária a que muitos corpos são submetidos, nas chamadas democracias neoliberais.

Para iniciar a reflexão, Butler apresenta algumas categorias importantes para pensar os temas desenvolvidos ao longo dos capítulos, entre elas: democracia, povo, precariedade e performance. A autora sofistica a análise dessas categorias, considerando a polifonia à qual são sujeitas. No que se refere à conceitualização de democracia, é apontada a necessidade de pensá-la, para além de uma abordagem nominalista que não considera os limites da prática democrática em contextos neoliberais que operam pela precarização da vida, limitando o direito à existência de grupos. Em outros termos, para pensar em democracia na contemporaneidade é necessário ir além de estruturas governamentais que se autoproclamam democráticas, discutindo a inserção de práticas em assembleia que reivindicam formas de existência não precárias. Verticalizando ainda mais a análise sobre esse aspecto, Butler aponta que os discursos que se apoiam no marketing e na propaganda são os definidores de quais movimentos populares podem ou não serem chamados de democráticos.

Nesse debate, emerge a segunda categoria problematizada pela autora: povo. Seu interesse é responder às seguintes questões: quem realmente é o povo? Que operações de poder discursivo e com que intencionalidades se constrói essa categoria? A resposta que a autora constrói para essas perguntas é a de que não existe “povo” sem uma fronteira discursiva, ou seja, sua definição é um ato de autodemarcação que corresponderia a uma “vontade popular”. Aplicando à análise dos movimentos contra a condição precária, como a Primavera Árabe e o Occupy the Wall Street, a autora conclui que é necessário “ler tais cenas não apenas através da versão de povo que eles enunciam, mas das relações de poder por meio das quais são representadas”5.

Por precariedade, Butler entende uma condição induzida por violência a grupos vulneráveis ou ainda a ausência de políticas protetivas. Sua análise situa em torno das economias neoliberais que cada vez mais retira direitos – previdenciários, trabalhistas, de moradia – e acesso a serviços públicos como escolas e universidades.

A última categoria basilar para entender as discussões que seguem nos seis capítulos do livro é a de performance, já discutida pela autora em outros textos, mas que, nesta obra, é pensada através do viés das coletividades e para além do gênero. Em outros termos, Butler incorpora o seu conceito de performance para entender como os corpos agem de forma coordenada em assembleias. Para a autora, podemos perceber as manifestações de massa como uma rejeição coletiva à precariedade e, mais que isso, como um exercício performativo do direito de aparecer, “uma demanda corporal por um conjunto de vidas mais vivíveis”6.

A tese sobre a qual os capítulos versam é a de que, quando os corpos se reúnem em assembleias, quer sejam em praças, ruas ou mesmo no ambiente virtual, eles estão exercitando o direito plural e performativo de aparecer e de exigir formas menos precárias de existência. Os objetivos dessas assembleias são desde oposição a governos autoritários até redução de desigualdades sociais, questões ecológicas ou de gênero. Pensar sobre elas e sobre a pluralidade que incorporam é discutir como a condição precária é representada e antagonizada nesses movimentos e como se materializam na expressão de corpos que entram em alianças.

Os capítulos deste livro “buscam antes de tudo compreender as funções expressivas e significantes das formas improvisadas de assembleias públicas, mas também questionar o que conta como público e quem pode ser considerado povo.”7 Os primeiros capítulos se concentram na discussão sobre formas de assembleia que possuem modos de pertencimento e que ocorrem em locais específicos. Já os últimos capítulos discutem movimentações que acontecem entre aqueles que não compartilham um sentido de pertencimento geográfico ou linguístico.

No capítulo 1, intitulado “Políticas de gênero e o direito de aparecer”, Butler discute as manifestações de massa, com destaque àquelas que pautam as questões de gênero, como uma rejeição coletiva à precariedade de corpos que se reúnem por meio de um exercício performativo do direito de aparecer. Nesse sentido, a autora insere a discussão sobre o reconhecimento com um dos cernes dessas manifestações públicas. Segundo ela, os sujeitos estariam lutando por reconhecimento em um campo altamente regulado e demarcado de zonas que permitem ou interditam formas corporificadas. No capítulo, a autora ainda se lança a responder questões como: por que esse campo é regulado de tal modo que determinados tipos de seres podem aparecer como sujeitos reconhecíveis e outros tantos não podem? Quais humanos contam como humanos? Quais humanos são dignos na esfera do aparecimento e quais não são? Para a autora, o reconhecimento passa pela noção de poder que segmenta e classifica os sujeitos de acordo com as normas dominantes que buscam normalizar determinadas versões de humanos em detrimentos a outras. A autora avança ainda mais: a necessidade de se questionar como as normas são instaladas é o começo para não as tomar como algo certo/ um dado.

Utilizando o gênero para pensar essa questão, Butler argumenta que as normas de gênero são transmitidas por meio de fantasias psicossomáticas como patologização e a criminalização, que buscam normalizar determinadas práticas e versões do humano em relação às outras, basta pensar que há formas de sexualidade para as quais não existe um vocabulário adequado porque as lógicas como pensamos sobre o desejo, orientação, atos sexuais e prazeres não permitem que elas se tornem inteligíveis. Nesse processo de apagamento, o que se observa é a luta em assembleia pelo direito de viver uma vida visível e reconhecível que opera por meio de rompimentos no campo do poder.

No segundo capítulo, “Corpos em aliança e a política das ruas”, é dada visibilidade para os significados das manifestações no espaço público que articulam pluralidades de corpos que compartilham a experiência da precariedade e que se exibem e lutam por direito de existir. Para a autora, a política nas ruas deve congregar uma luta mais ampla contra a precariedade, sem que sejam apagadas as especificidades e pluralidades identitárias. Para tanto, há a necessidade de uma luta mais articulada que requer uma “ética de coabitação”. A ideia não é de “se reunir por modos de igualdade que nos mergulhariam a todos em condição igualmente não vivíveis”8, mas sim de “exigir uma vida igualmente possível de ser vivida”9.

Para pensar no espaço de aparecimento, Butler recorre e questiona Hanna Arendt que pensa o espaço a partir da perspectiva da pólis, onde a ação política é sine qua non ao aparecimento do corpo no espaço público. Para Butler, o direito de ter direitos não depende de nenhuma organização política particular para sua legitimação, pois antecede qualquer instituição política. O direito, então, passa a existir quando é exercido por aqueles que estão unidos em alianças e que foram excluídos da esfera pública, que é marcada por exclusões constitutivas e por formas de negação. Isso fica claro quando:

Ocupantes reivindicam prédios na Argentina como uma maneira de exercer o direito a uma moradia habitável; quando populações reclamam para si uma praça pública que pertenceu aos militares; quando refugiados participam de revoltas coletivas por habitação, alimento e direito a asilo; quando populações se unem, sem a proteção da lei e sem permissão para se manifestar, com o objetivo de derrubar um regime legal injusto ou criminoso, ou para protestar contra medidas de austeridade que destroem a possibilidade de emprego e de educação para muitos. Ou quando aqueles cujo aparecimento público é criminoso – pessoas transgênero na Turquia ou mulheres que usam véu na França – aparecem para contestar esse estatuto criminoso e reafirmar o seu direito de aparecer10.

Em outros termos, o espaço público é tomado por aqueles que não possuem nenhum direito de se reunir nele. Indivíduos que emergem de zonas de invisibilidade para tomarem o espaço, ao mesmo tempo em que se tornam vulneráveis às formas de violência que tentam reduzi-los ao desaparecimento. Neste capítulo, a autora discute o direito de ter direitos não como uma questão natural ou metafísica, mas como uma persistência dos corpos contra as forças que buscam sua erradicação.

No terceiro capítulo chamado “A vida precária e a ética da convivência”, Butler discute os significados de aparecer na política contemporânea e as possibilidades de aproximação entre corpos identitariamente diferentes e espacialmente separados, unidos apenas pela experiência da globalização e mediados pelos fenômenos tecnológicos e comunicacionais atuais, como as redes sociais. Para Butler, “alguma coisa diferente está acontecendo quando uma parte do globo, moralmente ultrajada, se insurge contra as ações e os eventos que acontecem em outra parte do globo”11. Para a autora, trata-se de laços de solidariedade que emergem através do espaço e do tempo, ou seja, uma forma de indignação que não depende da proximidade física ou do compartilhamento de um língua. Em outros termos, as obrigações éticas são surgem apenas nos contextos de comunidades “paroquiais” que estão reunidas dentro das mesmas fronteiras, constituintes de um povo ou uma nação.

Em parte, essas experiências compartilhadas são possibilitadas pelas novas mídias que, além de espaço de mobilização, se configuram também como uma potente possibilidade de transpor a cena, simultaneamente, para vários outros lugares. De outro modo, “quando o evento viaja e consegue convocar e sustentar indignação e pressão globais, o que inclui o poder de parar mercados ou de romper relações diplomáticas, então o local terá que ser estabelecido, repetidas vezes, em um circuito que o ultrapassa a cada instante”12. Assim:

Quando a cena é transmitida, está ao mesmo tempo lá e aqui, e se não estivesse abrangendo ambas as localizações – na verdade, múltiplas localizações – não seria a cena que é. A sua localidade não é negada pelo fato de que a cena é comunicada para além de si mesma e assim constituída em mídia global; ela depende dessa mediação para acontecer como o evento que é. Isso significa que o local tem que ser reformulado para fora de si mesmo a fim de ser estabelecido como local, o que significa que é apenas por meio da mídia globalizante que o local pode ser estabelecido e que alguma coisa pode realmente acontecer ali. […] As cenas das ruas se tornam politicamente potentes apenas quando – e se – temos uma versão visual e audível da cena comunicada ao vivo ou em tempo imediato, de modo que a mídia não apenas reporta a cena, mas é parte da cena e da ação; na verdade, a mídia é a cena ou o espaço em suas dimensões visuais e audíveis estendidas e replicáveis. Quando a cena é transmitida, está ao mesmo tempo lá e aqui, e se não estivesse abrangendo ambas as localizações – na verdade, múltiplas localizações […]13

O quarto capítulo – “A vulnerabilidade corporal e a política de coligação” – estrutura-se em torno de três questões fundamentais: vulnerabilidade corporal, coligações e políticas das ruas. A vulnerabilidade é uma experiência corpórea de exposição a possíveis formas de violências como conflitos entre manifestantes, violência policial ou violência de gênero, pois “algumas vezes o objetivo de uma luta política é exatamente superar as condições indesejadas da exposição corporal. Outras vezes a exposição deliberada do corpo a uma possível violência faz parte do próprio significado de resistência política”14. Para a autora, essa vulnerabilidade torna-se menos problemática quando os coletivos criam redes de proteção. A multidão, então, assumiria a função de suporte coletivo, pois:

Quando os corpos daqueles que são considerados “dispensáveis” se reúnem em público (como acontece de tempos em tempos quando os imigrantes ilegais vão às ruas nos Estados Unidos como parte de manifestações públicas), eles estão dizendo: “Não nos recolhemos silenciosamente nas sombras da vida pública: não nos tornamos a ausência flagrante que estrutura a vida pública de vocês.” De certa maneira, a reunião coletiva dos corpos em assembleia é um exercício da vontade popular, a ocupação e a tomada de uma rua que parece pertencer a outro público, uma apropriação da pavimentação com o objetivo de agir e discursar que pressiona contra os limites da condição de ser reconhecido em sociedade. Mas as ruas e a praça não são a única maneira de as pessoas se reunirem em assembleia, e sabemos que uma rede social produz ligações de solidariedade que podem ser bastante impressionantes e efetivas no domínio virtual15.

No quinto capítulo intitulado “Nós, o povo – considerações sobre a liberdade de assembleia”, Butler discute a categorização e a reivindicação da ideia de “povo”, em meio às lutas políticas, problematizando concepções restritivas de povo, como no caso da Constituição dos Estados Unidos. Necessário pensar que a construção de “povo” é uma autodenominação que opera por meio de uma construção discursiva, integrando e excluindo grupos que estão ou não dentro dessa categoria. Ainda no capítulo, a autora discute as privatizações no contexto neoliberal, que minimiza a proteção do Estado e enseja formas de alianças nas ruas que lutam contra o precário.

No último capítulo, intitulado “É possível viver uma vida boa em uma vida ruim?”, Butler aborda, a partir da proposta analítica de Adorno, sobre as possibilidades de vida em um mundo marcado pela condição de desigualdade. Para a autora, a luta política e a performance coletiva em assembleia são ações que vão de encontro à lógica da precarização e que podem ser uma alternativa no contexto neoliberal de diminuição de direitos.

O fio que costura toda a argumentação do livro é o da necessidade de criar condições coletivas de existência e de visibilidade de corpos contra as formas de precariedade que limitam a vida de vários sujeitos. A proposta da autora é a criação de alianças políticas que incluam várias pautas e demandas no contexto das democracias neoliberais. Butler revisita alguns conceitos como de performatividade e de precariedade, já utilizados em outras obras, aplicando-os às questões contemporâneas. Nessa obra, Butler extrapola a análise teórica acerca das assembleias contemporâneas e assume uma postura política de incitação à luta por democracia e direitos sociais no contexto de precarização provocada pelo neoliberalismo.

Laura Lene Lima Brandão – Doutoranda/Universidade Federal do Piauí. Teresina/ Piauí/ Brasil. E-mail: [email protected].


BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa da assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. Resenha de: BRANDÃO, Laura Lene Lima. Pelo direito de (r)existir: os corpos nas ruas. Outros Tempos, São Luís, v.17, n.29, p.396-342, 2020. Acessar publicação original. [IF].

O Brasil Republicano (vol.5). O tempo da Nova República: da transição democrática à crise política de 2016: Quinta República (1985-2016) | Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Neves

É inegável que a História do Tempo Presente desponta como um dos campos que mais cresce na historiografia brasileira desde a última década. Ao contar com objetos de pesquisa até então poucos explorados e ao propor instigantes debates em torno da função social do historiador, esse campo vive um momento de intensa produção intelectual. Na sua busca por encontrar um espaço particular dentro de um campo historiográfico nacional já demarcado por correntes consolidadas, como a História Política, a História Cultural e a História Social, a História do Tempo Presente aparenta estar conquistando grande receptividade, tanto entre historiadores e historiadoras de gerações mais recentes, como entre nomes já consagrados da área que buscam tecer diálogos com essa vertente. Leia Mais

Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVI e XVII – FRAGOSO; MONTEIRO (LH)

FRAGOSO, João; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Org). Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2017, 476 pp. Resenha de: SUBTIL, José. Ler História, v.75, p. 279-283, 2019.

1 O tema da comunicação política, entre o reino e o Brasil, no interior do próprio reino e no Brasil, durante o Antigo Regime, tratado de forma quantitativa, é um projeto valioso pelas consequências que poderá ter na avaliação dos sistemas de decisão, taxonomia das tipologias peticionárias e processuais, assuntos de governo, atores políticos envolvidos e qualidade dos circuitos e das tramitações documentais. Sendo assim, os resultados dos programas de investigação que estão na origem do livro aqui recenseado ganhariam tanta mais relevância quanto maior fosse a evidência dos mesmos, a organização coerente dos temas, o desenvolvimento dos seus conteúdos e a metodologia de análise. Como veremos mais adiante, o critério seguido na sucessão dos capítulos e nas temáticas abordadas não acompanhou esta opção metodológica.

2 Na apresentação do livro, organizado por João Fragoso e Nuno Monteiro, somos levados a crer que o mesmo assenta no projeto financiado pela FCT “Comunicação Política na Monarquia Pluricontinental Portuguesa (1580-1808) : Reino, Atlântico e Brasil” (Projeto 1, P1), submetido em 2008. No entanto, aparece também a referência a um outro, do mesmo ano, de João Fragoso, Isabel dos Guimarães Sá e Nuno Monteiro, “A Monarquia e Seus Idiomas : Corte, Governos Ultramarinos, Negociantes, Régulos e Escravos no Mundo Português, Séculos XVI a XIX” (Projeto 2, P2), financiado por um convénio FCT/CAPES. Teria sido oportuno que se tivesse explicitado, com clareza, quais os registos documentais de cada projeto que suportaram os vários capítulos da obra como, também, o uso das confluências de informação e dos períodos temporais, justamente por terem enquadramentos diferentes.

3 No guião de recolha da informação do projeto P1, segundo o quadro 2, foram definidas 11 categorias de emissores (governo, justiça, igreja, municípios, irmandades e confrarias, militar, mecânicos, comércio, fazenda, particulares e outros) e, pelo quadro 3, ficamos a conhecer as tipologias de assuntos, enquanto a tabela 5 justifica a seleção dos períodos escolhidos por razões políticas e “operacionais”. As fontes utilizadas para o Brasil foram o espólio do Arquivo Histórico Ultramarino, a documentação microfilmada pelo Projeto Resgate e, para o reino e Açores, os livros de registo de alvarás, provisões e cartas à guarda dos respetivos arquivos municipais. A base de dados criada conta com 38.060 registos, sendo 11.347 para o reino (período 1621-1807, 187 anos), referentes às câmaras de Viana, Évora, Vila Viçosa, Faro e Ponta Delgada, e 26.713 para as capitanias de Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, Grão-Pará, Maranhão, Minas Gerais, S. Paulo e o Reino de Angola durante o século XVII (1640-1656 e 1680-1690, 28 anos) e o século XVIII (1725/26, 1735/36,1755/56,1763/64 e 1785-95, 19 anos).

4 A tabela 8 expressa a grandeza dos dados das capitanias. Apesar dos erros evitáveis nas somas das colunas e de a tabela contemplar uma rubrica designada por “Demais anos” (quais ?), ficamos a saber que o ritmo médio da comunicação política global foi, no século XVII, de 12 documentos por mês e, no século XVIII, de 70 por mês, embora a população do Brasil tenha aumentado em quase 12 vezes. No encalce de mais dados compulsados em vários outros quadros, o certo é que não há uma conclusão geral ou conclusões parciais sobre o significado das tendências que se verificaram no plano burocrático. Evoluções que possam, inclusive, traduzir mudanças políticas e administrativas nos órgãos da administração central da coroa e, no Brasil, nos governos das capitanias, nos municípios e no governo central. Por outras palavras, as informações avançadas ganhariam muito se tivessem sido mais bem contextualizadas e comparadas.

5 A equipa de investigação do projeto P1 contou com 33 investigadores, 23 eram alunos de universidades brasileiras, três bolseiros da FCT e sete professores. A redação dos 12 capítulos foi da responsabilidade de oito destes investigadores, a que se juntaram outros oito que não fizeram parte da equipa. Temos, portanto, 25 investigadores que recolheram dados e 16 autores de textos, num total de 41 colaboradores. Das 467 páginas (12 capítulos e uma apresentação), 67 páginas (14 %) são de notas e bibliografia por cada capítulo, 64 tabelas, 67 gráficos e 3 quadros, a que correspondem cerca de 80 páginas (17 %). Se ficamos sem saber o nível de envolvimento dos investigadores da equipa do projeto P2, só esta revelação acentua a grandiosidade do programa de investigação em que o livro se fundamenta e, sem dúvida, a complexidade da sua coordenação, o que, em parte, pode explicar alguns dos reparos feitos à organização da obra. Também por tudo isto se justificava que a base de dados fosse disponibilizada online de forma a servir toda a comunidade de investigadores, no Brasil e em Portugal, à semelhança de outros programas financiados pela FCT.

6 Por várias razões, que adiante se verão, não é fácil descortinar uma justificação para alguns capítulos, tendo em conta que não acompanham o guião do projeto quanto às tipologias, os períodos cronológicos e a escolha dos emissores, e outros capítulos utilizam bases de dados diferentes, o que dificulta a perceção da coerência dos dados. Também parece que ficaram comprometidas algumas promessas, como a “matriz institucional da administração”, a “multiplicidade de atores e de mudanças ocorridas na comunicação”, o “estatuto político das câmaras municipais ultramarinas com as situadas no Reino e nas Ilhas”, as “variações no tempo e, sobretudo, apreender as diversidades geográficas e a mediação dos agentes […] produtores, os ritmos de produção, os canais de circulação, a tipologia dos assuntos, e, por fim, o destino final das solicitações feitas das periferias para o centro, e deste para as periferias”.

7 No que respeita às tipologias anunciadas na apresentação, apenas os capítulos 5, 6 e 7 tratam de algumas, como a fiscalidade, assuntos militares, economia e comércio. E o capítulo 1, que aborda um dos temas centrais do livro, a economia das mercês, utiliza dados do projeto P2 e não do projeto P1, o que deveria ser devidamente explicado. Os capítulos 2 e 4 aparentemente não decorrem do guião referente ao programa da investigação por abordarem, respetivamente, o tema da representação política e a difusão da legislação régia sem utilização dos dados do projeto e, por isso, surgirem como peças avulsas. A matriz institucional apresentada e trabalhada nos capítulos 3, 8, 9 e 10 aborda o Conselho Ultramarino, a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, os governadores reinóis e ultramarinos, corregedores, ouvidores e senados municipais.

8 Sabe-se hoje, com razoável conhecimento, que esta rede institucional não reflete a complexidade da comunicação política nem elenca a singularidade brasileira. A esmagadora maioria das petições e/ou processos fazia o trânsito de pareceres e/ou consultas por vários tribunais e conselhos, entre os quais o Conselho Ultramarino era, sem dúvida, um dos polos, mas que foi sistematicamente desautorizado com os conflitos jurisdicionais com o Desembargo do Paço, que nunca perderia a jurisdição dos provimentos de lugares de letras (ouvidores, intendentes, provedores e juízes de fora), com o Conselho da Fazenda, que manteria a jurisdição sobre os assuntos da fazenda real, e com a Mesa da Consciência e Ordens, que tratava as questões relacionadas com a natureza dos índios, a legalidade do comércio dos escravos ou o problema da chamada “guerra justa” e tinha jurisdição sobre parte do clero. Tudo isto sem esquecer a indispensável intervenção dos procuradores da coroa com assento em cada tribunal e conselho. Será certamente pelo facto de a centralidade da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar e da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, a partir do pombalismo, estar evidenciada nos núcleos do ANTT e não no AHU que não terá sido dado o destaque quantitativo a esta mudança política.

9 Os governadores das capitanias e os governadores reinóis são dois cargos com funções muito distintas. Enquanto no reino se ocupavam de assuntos militares, no Brasil governavam. Sobre corregedores e ouvidores, que não comunicaram, obviamente, com o Conselho Ultramarino, só podem ser comparados com muita reserva. A existência de um ouvidor-geral na sede da capitania, e não de um ouvidor de comarca (exceção para Minas Gerais), conferia a estes magistrados uma abrangência territorial imensa, de onde que a diferença com os corregedores decorria, sobretudo, das escalas cartográficas, mobilidade das fronteiras e ambientes rústicos, com consequências na configuração das pluralidades e autonomias jurisdicionais. Sobre os municípios (capítulo 10), com uma abordagem temporal também diferente do projeto P1, sobressai a ideia de que as câmaras, quase todas de juízes ordinários, produziram uma média de quatro documentos por ano para comunicarem com a coroa. Nos dois últimos capítulos, um sobre Luanda, indica-se uma produção de um a sete requerimentos por ano, enquanto um outro capítulo reserva a atenção para as petições em grupo (moradores, nobreza, lavradores, confrarias, misericórdias e câmaras).

10 De notar, ainda, omissões importantes na matriz institucional apresentada, talvez por razões documentais. Não é invocada a modalidade inusitada de juízes ordinários sem câmaras (desde 1732), que a coroa aceitou como “provisional”, e a rede de juízes de vintena (ambos eletivos), como não são referidos os (super)intendentes que respondiam diretamente à corte e não obedeciam aos governadores nem aos ouvidores e, também, o expediente de governar através de juntas colegiais (à maneira das Cortes), provisórias e ocasionais (camarárias, de capitania, fazenda, comércio e justiça), embora tenha sido anotada a sua emergência no capítulo 2. Mas estas foram, sem dúvida, as grandes novidades político-institucionais ensaiadas na colónia que, pelas suas caraterísticas e idiossincrasias, deixaram poucos artefactos arquivísticos, embora possam influenciar a apreciação e a crítica aos dados recolhidos pelo(s) programa(s) de investigação.

11 Do ponto de vista historiográfico, o livro assume como estratégico evidenciar a existência de uma “monarquia pluricontinental” que se terá cimentado à custa da economia das mercês, das suas dependências e obediências, desenvolvendo uma centralidade no príncipe para satisfação de serviços e privilégios. No primeiro e maior capítulo sobre as mercês, a tabela 1.3 diz-nos que o ritmo das petições de mercês foi de 4,5 por mês e não ultrapassou 10 % do conjunto das tipologias (governo, fiscalidade, economia, escravidão, câmaras). Verificamos, também, ao longo das estatísticas produzidas que a comunicação política foi de baixa intensidade. Entre 1621 e 1808, no que aos municípios diz respeito (reino e Brasil), excluindo o governo da câmara, temos uma média de cerca de duas remessas por ano (ou quatro se incluirmos o governo das câmaras), enquanto as capitanias produziram perto de dez remessas por mês.

12 Sobre os provimentos de ofícios sabe-se hoje, relativamente bem, que encontraram imensas dificuldades para serem satisfeitos, pese o esforço na divulgação dos concursos, obrigando, portanto, à prorrogação dos mandatos. Este bloqueio levou os governadores das capitanias e os senados das câmaras a usarem, com grande autonomia e arbitrariedade, o mecanismo ilegal de atribuição de ofícios cujos encartes passaram, desta forma, a promover e a consolidar redes clientelares de favores, compensações e concessões de privilégios locais e regionais, fugindo à consagração simbólica do monarca. E esta desvalorização do exercício da graça cresceu, também, por causa do regime da venalidade. Desde o início do século XVIII que os ofícios a criar ou já criados, excluídos os da fazenda, podiam ser vendidos em leilão a quem oferecesse um “donativo” à coroa que justificasse o encarte (“direito antidoral e consuetudinário”). Esta singularidade não foi desenvolvida no livro nem foi explicada a sua ausência.

13 Talvez possamos dizer, em síntese, que, devido aos propósitos anunciados no(s) programa(s), ao enorme caudal de informação disponibilizada, embora com o desencontro de alguns dados, ao meritório e significativo problema historiográfico levantado, se justificaria uma conclusão geral mais desenvolvida com a retoma da tese da proeminência das mercês (economia da graça) como aglutinadora, por um lado, de uma monarquia pluricontinental e, por outro, como o cimento da comunicação política com a coroa. A demonstração desta tese não nos parece que esteja suficientemente evidenciada nos diversos textos da obra, alguns mesmo contraditórios com o propósito da mesma, nem tão-pouco está revelada nos dados quantitativos e nas análises qualitativas. Seria, obviamente, uma grande novidade historiográfica que mudaria diversas perspetivas políticas sobre o império e, por isso mesmo, pedia e merecia uma abordagem eminentemente estruturante.

José Subtil – Universidade Autónoma de Lisboa. E-mail: [email protected].

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Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVI e XVII – FRAGOSO; MONTEIRO (LH)

FRAGOSO, João; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Org). Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2017, 476 pp. Resenha de: VAINFAS, Ronaldo. Ler História, v.75, p. 275-279, 2019.

1 O livro organizado por João Fragoso e Nuno Gonçalo Monteiro recoloca a problemática do império marítimo português, em particular aquela dedicada a investigar as dinâmicas imperiais nos séculos XVII e XVIII. O título, é certo, evita a palavra império e adota uma fórmula original, “um reino e suas repúblicas no Atlântico”. O termo república, aliás, como bem sabem os especialistas, procura exprimir o que, na documentação da época, aparecia como conquistas ou domínios ultramarinos, raramente como colónias, exceto a partir do final do século XVIII. É opção interessante, pois além de mais ou menos frequente em documentos coevos, tal nomenclatura ilustra a perspectiva jurisdicional, uma vez focada nos sistemas e agentes da comunicação entre as diversas esferas de poder, desde as instituições administrativas do reino às agências locais, a exemplo das câmaras municipais, passando pelas governanças coloniais, fossem estados ou vice-reinos, sem prejuízo de outras instâncias de peso, como juizados vários, tribunais de segunda instância e corporações militares.

2 A obra se insere, portanto, na corrente revisionista da história portuguesa e ultramarina do Antigo Regime, embora também este conceito seja motivo de polêmica entre os historiadores, nos últimos vinte anos, quando aplicado às sociedades coloniais da época moderna. Polêmicas sobre a nomenclatura têm sido, de facto, muito intensas neste campo de estudos, e se, por vezes, exprimem divergências meramente nominalistas, outras vezes se relacionam a questões relevantes de ordem conceitual, tingidas por colorações políticas e ideológicas, em maior ou menor grau. Exceções à parte, as polêmicas deste campo de estudos me parecem cientificamente elevadas e se relacionam ao nó da questão. Trata-se, antes de tudo, de definir o estatuto das relações entre a coroa portuguesa e suas possessões marítimas. Trata-se, ainda, de compreender a dinâmica dessas relações que, obviamente, se modificaram ao longo dos séculos. Trata-se, em especial, de relacionar esta dinâmica com as diversas territorialidades, com as instâncias hierarquicamente graduadas de governança e com os agentes de poder em vários graus. Em uma fórmula banal : identificar quem mandava em quem, quando, onde e porquê ; e, sobretudo, como se comunicavam as diferentes esferas de poder, sobre quais temas, com que frequência, quem as protagonizava.

3 Claro está que o objeto de investigação em causa pressupõe a delimitação do todo e das partes. Da unidade e de seus componentes. Um reino e suas repúblicas é título sugestivo, como já disse, mas não pretende, quero crer, dar conta do imbróglio conceptual que a questão encerra. Diversos livros, seja os da historiografia tradicional, seja os da revisionista, recorrem à palavra reino para aludir à cabeça deste complexo sociopolítico, palavra que se reveza com coroa, monarquia, metrópole e império. A problemática de fundo reside nos nexos entre o centro e as periferias do mundo português, como sugeriu Russel-Wood, em texto clássico, embora o mesmo autor aponte que tais vínculos eram complexos, dinâmicos e relacionais. Determinada periferia poderia funcionar como centro de outras periferias do ponto de vista comercial, administrativo ou jurisdicional. O próprio Portugal, centro inconteste de suas conquistas ultramarinas, passou à órbita das monarquias secundárias da Europa após 1640, justamente na época em que o reino brigantino buscou incrementar seus mecanismos de controle, em especial sobre o Brasil e a África centro-ocidental.

4 Império ? Eis-nos diante de um conceito tremendamente complicador nas definições da unidade, decerto maior, dos dilemas relacionados às periferias. No livro em causa, evita-se o império no título, bem como na excelente apresentação dos autores sobre as pesquisas nele contidas. No prefácio assinado por António Manuel Hespanha, porém, “império português” é expressão usada sem hesitação, embora o autor a utilize exatamente para sublinhar o descentramento dele, considerado o “desenho de centros de decisão de vários níveis, interconectados segundo uma geometria variada…”. Um império fragmentado, descentralizado. Império sem unidade. Não é de estranhar que Hespanha assim o defina, sendo autor de obra matriz do revisionismo historiográfico português quanto ao caráter absolutista da monarquia, definindo-a como polissinodal, para sublinhar a pluralidade, quando não justaposição, das jurisdições decisórias até meados do século XVIII. Poucos estudos do livro adotam o império como referência e apenas um o estampa no título.

5 O conceito, ou apenas a expressão, de império português é aspecto central desta temática, considerada a trajetória de seu uso e a claudicação dos historiadores atuais em adotá-la. O livro em foco ilustra o dilema, embora prevaleça alguma parcimônia na utilização do termo, que perde, em menções, para a noção de reino. Mas, paradoxalmente, a restauração inovadora do conceito de império faz parte do revisionismo historiográfico das últimas décadas, seja do lado português, seja do brasileiro. Os organizadores se referem ao império a propósito da unidade que o mundo português teria eventualmente construído na época estudada : “no Setecentos, o termo ‘império’ parece ter tido uma utilização escassa, sobretudo literária, tornando-se mais frequënte em finais do século, também por influência da economia política”.

6 Estão certíssimos, se lembrarmos que D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro da coroa, foi quem praticamente cunhou o termo “império luso-brasileiro”, em sua memória de 1797. Considerando que, após a independência das colônias inglesas da América do Norte, o império português corria o risco de fragmentar-se, sustentou a necessidade de reformas que aliviassem a pressão, sobretudo fiscais, sobre os colonos do Brasil. Recorrendo ao pensamento dos fisiocratas e de Adam Smith, pretendeu reforçar a unidade das conquistas como um todo. Concebeu um império que apostasse nas horizontalidades territoriais, sem destroçar a verticalidade inerente a um império colonial. “Afrouxar os laços para manter o enlace”, assim Fernando Novais se referiu ao projeto setecentista do Conde de Linhares. Quase sessenta anos antes de D. Rodrigo, D. Luís da Cunha havia exposto tese semelhante, nas Instruções Inéditas a Marco António de Azevedo Coutinho, de 1736, que viu no Rio de Janeiro a vocação para encabeçar um império atlântico português, no lugar de Lisboa. Romero de Magalhães o definiu, por isso, como um “visionário radical”, embora fosse ele, D. Luís, um ilustrado calculista. Chegou D. Luís a escrever que, por ser “florentíssimo e bem povoado aquele imenso continente do Brasil”, deveria o rei de Portugal tomar o título de “imperador do Ocidente” e ali estabelecer-se. O historiador brasileiro Evaldo Cabral de Mello abriu com D. Luís da Cunha um texto intitulado “Antevisões imperiais”, publicado em Um imenso Portugal (2002). De sorte que Fragoso e Monteiro estão certos ao indicar que o conceito de império, em Portugal, foi uma formulação tardia. O império luso-brasileiro, ao concretizar-se nos primeiros anos do XIX, preludiou a emancipação política do Brasil, como afirmou Emília Vitti da Costa.

7 Na historiografia brasileira dos anos 1930-1940, empenhada em desvelar a identidade brasileira, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. sequer mencionaram o império português. Estavam, os dois primeiros, empenhados em discutir o maior ou menor peso da cultura portuguesa na formação do país. Gilberto Freyre ao exaltar a plasticidade do português, embora realçando o triunfo das africanidades na identidade brasileira. Sérgio Buarque ao desmerecer o legado lusitano – predatório – mas reconhecendo que tudo, na formação histórica brasileira, foi adaptação maior ou menor da portugalidade. Caio Prado, por sua vez, marxista por vocação e formação, concentrou o foco nas contradições entre metrópole e colônia, ao destacar a exploração mercantil do Brasil em um sistema orquestrado pelo capital comercial europeu. Buscava as origens do subdesenvolvimento, do atraso e da pobreza brasileiras à luz do conceito leninista de imperialismo, ajustado para o período colonial. A mesma interpretação foi aggiornata nos anos 1970 por meio do conceito de Antigo Sistema Colonial, cunhado por Fernando Novais. Irrigou inúmeras pesquisas e livros didáticos brasileiros até o final do século passado.

8 Do lado português, o problema parece ser mais complexo. A noção de império colonial encorpou-se nas primeiras décadas do XX. Ainda na Ditadura Militar portuguesa (1926-1933), o ministro das colónias, Armindo Monteiro, defendeu a organização de um verdadeiro império, que Portugal não estruturara, apesar de possuir “um conjunto de parcelas espalhadas pelo mundo”. No Estado Novo esta ideia deslanchou. O própro Salazar publicou diversos textos em que celebrou a unidade do império português. Bastaria examinar as divisões e propósitos da Agência Geral das Colónias, fundada em 1924 e agigantada no salazarismo. Bastaria citar os eventos da Agência nos anos 1930, a exemplo do Congresso da Expansão Portuguesa no Mundo (1937). A Agência Geral das Colónias patrocinou centenas de publicações e criou colecções tipicamente colonialistas ou imperialistas, a exemplo de “Pelo império”.

9 É verdade que a Agência também publicou estudos de interesse, mas seu engajamento ideológico era indiscutivelmente salazarista, imperialista. Não admira que os historiadores à esquerda, como o grande Vitorino de Magalhães Godinho, jamais tenham utilizado o conceito de “império colonial”. Não admira que os historiadores formados ou consolidados após a “Revolução dos Cravos”, tenham seguido este caminho cético quanto à legitimidade do conceito de “império português”. Citemos a coleção História da Expansão Portuguesa, organizada por Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri a partir de 1998. O conceito de império serve de referência, quiçá eixo da obra, figurando no título de várias partes ou capítulos. Um império entendido em sentido abrangente, abrigando não apenas os fluxos mercantis, mas também as configurações políticas e culturais. Diria que a obra aprofunda no conteúdo, e alarga na temporalidade, o que Charles Boxer ofereceu no clássico O império marítimo português (1969). Porém, não obstante a excelência da colecção, os autores evitam discutir o conceito de império e o não explicitam no título, se é que chegaram a cogitar da hipótese.

10 A partir dos anos 1990, do lado de cá e de lá do Atlântico, os historiadores passaram a valorizar a perspectiva imperial de Boxer, que nada tinha que ver com os dilemas políticos portugueses ou brasileiros. Uma tentativa de, mutatis mutandis, pensar a experiência imperialista portuguesa à luz da britânica e da holandesa, por ele estudadas desde os anos 1950. A afirmação de Boxer de que as câmaras e as misericórdias foram pilares do império português tornou-se clássica, inspirando várias investigações. Um incentivo aos estudos dos poderes locais na configuração do império lusitano. Mas penso que os estudos sobre impérios coloniais na época moderna tiveram peso na recuperação do conceito de império, como no livro de Jack Greene, Peripheries and Center : Constitutional Development in the Extended Polities of the British Empire and the United States, 1607-1789 (1990).

11 A obra em análise evita o conceito de império, mas flerta com ele. O próprio Fragoso adotou, sem pejo, o conceito de “império”, quer no pioneiro O Antigo Regime nos trópicos (2001) quer em A trama das redes : política e negócios no império português (2010), ambos organizados em parceria com Maria de Fátima Gouvêa. Em Um reino e suas repúblicas, evita-se o império em favor de conceito novo, da lavra de Monteiro : monarquia pluricontinental. Conceito adequado à realidade factual, que deve ser a mais importante para os historiadores. No entanto, para polemizar, diria que a monarquia hispânica possuía perfil similar, não obstante John Elliot a ter definido como monarquia compósita. Pois quem haverá de duvidar que Castela encabeçava uma monarquia pluricontinental no mesmo período, com o trunfo de ter engolido o império português entre 1580 e 1640 ?

12 Em todo caso, os critérios adotados para delimitar os “períodos de comunicação” são muito inovadores (p. 27). Os organizadores multiplicam as fases e, ao mesmo tempo, alargam as perspectivas para a investigação das dinâmicas imperiais no Atlântico português pós-restauração. Isto porque se ancoram na empiria (fluxo e disponibilidade das fontes) ; atentam para as conjunturas políticas e econômicas portuguesas do período ; procuram destacar os aspectos relacionais entre os vasos comunicantes no Atlântico português em várias escalas de poder. Oferecem uma tipologia arguta das dimensões do poder : a do reino, a da conquista, a donatorial, a local, a privada ou doméstica. Reconhecem, ainda, que a pesquisa deixa quase de fora a dimensão doméstica de poder, exceto quanto à incidência de solicitações de mercês pelas elites coloniais à monarquia. Um paradoxo formidável, considerado que o exercício do poder, no âmbito doméstico, era decisivo na estruturação das relações sociopolíticas da monarquia pluricontinental.

13 Vale indagar se, por deixar à sombra a esfera do poder senhorial no Brasil ou a dos potentados africanos que organizavam o tráfico, a obra se preocupa apenas com a face formal da comunicação política. Não penso ser este o caso, sobretudo porque alguns capítulos tangenciam a dimensão privada do poder, ao desvendarem malhas locais, como no texto de Roberto Guedes sobre a câmara de Luanda. Em segundo lugar, porque o relativo eclipse da esfera doméstica de poder resulta não de qualquer parti pris, senão do que as fontes oferecem. Em terceiro, porque a esfera jurisdicional, privilegiada na obra, verticaliza a fisiologia política do império. Círculos de poder com ligames formais de comunicação. Círculos concêntricos ? Talvez não, considerado o compromisso teórico dos autores com o descentramento. Talvez sim, se admitida alguma centralidade da coroa. Dilemas à parte, estamos diante de um grande livro. Pesquisa financiada por várias top agências de fomento. Inovação no tratamento da problemática. Equilíbrio entre a informação quantitativa e a interpretação qualitativa, erudita. Aproveitamento à exaustão das fontes disponíveis, com destaque para as do Arquivo Histórico Ultramarino. Historiadores e historiadoras de ponta, nos dois lados do Atlântico. Paixão pelo ofício em cada um dos trabalhos da obra.

Ronaldo Vainfas – Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ-FFP) e Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil. E-mail: [email protected]

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O aberto: o homem e o animal – AGAMBEN (SY)

AGAMBEN, Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes – 2 ed. – Edição revista – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Synesis, Petrópolis, v.10, n.2, p.181-187, ago./dez., 2018.

As obras de Giorgio Agamben (1942) vêm ganhando espaço na academia brasileira não só a partir da tradução das mesmas, mas também a partir da publicação de trabalhos, da realização de eventos e da organização de grupos de pesquisa que se propõem a debater as temáticas suscitadas por este autor. Pode-se afirmar, na verdade, que as obras de Agamben estão sendo lidas sob diferentes matizes, tais como o da filosofia, da política, do direito, da economia, da teologia e das ciências da religião. O conteúdo trazido por Agamben permite essas diferentes abordagens porque está intimamente associado à interpretação dos problemas presentes na contemporaneidade. O diferencial das obras de Agamben, no entanto, está na capacidade de realizar uma arqueologia da contemporaneidade, de modo que sua análise não fica somente na superfície do problema: o que lhe interessa, de fato, é buscar o cerne do problema, ou seja, sua intenção está muito mais direcionada à compreensão do próprio problema do que propriamente buscar uma resposta para o mesmo. Essa é uma característica fundamental para se compreender as obras de Agamben de maneira geral, à qual se associam os múltiplos matizes de interpretação: eles se justificam porque os problemas da contemporaneidade estão fundados, basicamente, sob o eixo filosofia, teologia, direito, isto é, sob o pensar (razão), crer (religião) e legislar (lei).

A obra O aberto: o homem e o animal não está cindida dessa dinâmica. Ela está assim estruturada: vinte capítulos, seguidos da bibliografia utilizada pelo autor. O principal objetivo da obra: compreender como é possível distinguir o homem do animal, a humanidade da animalidade. Note-se: seu propósito está muito mais direcionado à compreensão de como é possível afirmar tal distinção do que propor um parâmetro para que ela seja realizada. Nesse sentido, o método arqueológico de investigação permite ao autor um regresso às fontes da distinção. Contudo, o olhar de Agamben não está no passado, mas no contemporâneo: trata-se de uma arqueologia da contemporaneidade. O que isso significa? A princípio: o problema da distinção homem-animal não é algo superado, de modo que buscar compreendê-lo já é um exercício válido para se compreender o homem contemporâneo. Esse é o principal pressuposto de qual parte Agamben: a distinção entre homem e animal não é algo de todo resolvida.

Nesse sentido, a obra pode ser dividida em quatro partes: a primeira abarca o trecho entre os capítulos um e três, a segunda se dá entre os capítulos quatro e onze, a terceira entre o doze e o dezesseis, a quarta entre o dezessete e o vinte. Pode-se dizer, na verdade, que tal reorganização da obra pode ser realizada mediante quatro objetivos específicos propostos por seu autor: 1) expor seu pressuposto principal, a saber, a distinção entre humanidade e animalidade não é algo de todo resolvido; 2) a dificuldade de se afirmar algo como o ser humano; 3) investigar como é possível distinguir o homem do animal; 4) mostrar de maneira crítica os desdobramentos da afirmação da distinção entre homem e animal.

Interessa ainda perceber que as quatro partes possuem interlocutores diferentes: a primeira está em interlocução com uma iluminura presente em uma Bíblia hebraica do século XIII, na qual se “representa o banquete messiânico dos justos no último dia” (AGAMBEN, 2017, p. 10)1. A segunda parte está em interlocução com a possibilidade de distinguir o homem do animal: aqui se percebe com maior nitidez o uso do método arqueológico. Nessa segunda parte ainda se vê que, pelo fato de a discussão de Agamben estar direcionada à dificuldade de se fixar uma definição, há uma interlocução com vários autores, dos quais se destaca a figura de Aristóteles. A terceira parte se põe em interlocução com o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), do qual Agamben foi aluno em 1966 e 1968, nos seminários sobre Heráclito e Hegel. A interlocução com Heidegger se dá a partir da problemática da linguagem. Ela é trazida por Agamben ao final da segunda parte da obra como o ponto nevrálgico da distinção entre o homem e o animal. A quarta parte se inicia com o levantamento de alguns resultados da obra e conclui apontando para o fato de ainda se continuar pensando o homem como um ato de separação.

Atenta-se aqui para o fato de que essa divisão em quatro partes é assumida por essa resenha como uma chave de leitura para a obra O aberto: o homem e o animal. Abaixo, então, seguem alguns apontamentos a respeito dessas quatro partes, mostrando suas principais abordagens e como elas estão interligadas, perfazendo, assim, a obra como um todo.

Como dito acima, o principal objetivo da primeira parte da obra é apresentar a discussão a respeito da cisão entre animalidade e humanidade como um ponto nada pacífico. À interlocução com a iluminura do século XIII se soma a pergunta: como pensar o problema da cisão humanidade-animalidade nos dias atuais? A iluminura destacada pelo autor traz animais em formas humanas como sendo os justos que participam do banquete messiânico. A hipótese levantada por Agamben a partir disso: o artista tenta retratar uma reconciliação entre o homem e sua natureza animal (AGAMBEN, 2017, p. 12). Aqui se realiza um salto: Agamben traz, mesmo que brevemente, as figuras de Georges Bataille (1897-1962) e Alexander Kojève (1902-1968), mostrando diferentes modos de compreender (e, talvez, responder) a questão sobre o que resta do homem após o fim da história. O que é e como se dá o fim da história, porém, não é algo com o qual Agamben se ocupa aqui. Na verdade, o leitor não irá encontrar nada explícito a respeito disso; há somente indicações indiretas, tal como se pode ver mais adiante no capítulo dezesseis – Animalização (AGAMBEN, 2017, p. 119-122).

Note-se: a primeira parte da obra não busca esclarecer a cisão entre homem e animal, mas mostrar que, enquanto problemática, ela ainda é vigente. Dessa maneira, a primeira afirmação a respeito do homem é que ele existe de maneira histórica somente enquanto mantém essa tensão entre a humanidade que pretende afirmar e a animalidade que pretende negar. Leia-se: “ele pode ser humano apenas na medida em que transcende e transforma o animal antropóforo que o sustenta, somente porque, por meio da ação negadora, é capaz de dominar e, eventualmente, destruir a sua própria animalidade” (AGAMBEN, 2017, p. 24). Aqui se dá a passagem da primeira para a segunda parte da obra. Ela acontece quando se nota nas entrelinhas do texto a presença de uma pergunta: o que torna possível a afirmação da humanidade mediante a negação da animalidade?

A segunda parte do texto se inicia com uma constatação fundamental: o conceito de “vida” é aquilo que permanece como indeterminado na história do Ocidente, devendo, pois, ser sempre de novo articulado. Agamben destaca o texto De anima de Aristóteles como um momento decisivo: nele acontece a divisão entre os seres animados e inanimados. A partir de tal divisão se fazem outras: vida vegetal, animal, humana. O que é “vida”, porém, permanece sem definição. Define-se a vida humana mediante a divisão. Aí está o interesse de Agamben: pensar a afirmação do humano a partir da divisão, isto é, da separação com o animal. Pensar a separação permite, pois, pensar também a proximidade. Nesse sentido, se a noção de “vida” deve ser constantemente conquistada –definida sempre de novo, na verdade –, então, a arqueologia como método coincide com uma antropogênese. Em outras palavras: fazer uma arqueologia da vida é compreender o advento do homem se afirmando humano, logo, negando a animalidade. A arqueologia da vida é antropogênese.

Os capítulos cinco e seis se propõem a discutir a noção de identidade a partir de tratados medievais: há aí nas entrelinhas a tentativa de mostrar que a decisão a respeito do humano e do inumano – palavra que aparece pela primeira vez no texto – se aproxima, e muito, do conhecimento experimental de um campo de concentração. Esse ponto é decisivo para que no interior da segunda parte da obra apareça a dificuldade de uma classificação do que é o homem: “Homo sapiens não é, portanto, nem uma substância nem uma espécie claramente definida: é, sobretudo, uma máquina ou um artifício para produzir o reconhecimento do humano” (AGAMBEN, 2017, p. 48). O que é o humano, então? É um animal que, para ser humano, precisa se reconhecer em um não-humano. A pergunta ganha nova forma: o que distingue o humano do não-humano? A linguagem. Ela é a marca do humano (AGAMBEN, 2017, p. 55-63).

Decisivo, no entanto, é o modo como Agamben compreende a linguagem: não um dado natural, mas uma produção histórica. A linguagem, portanto, não pode ser associada nem à natureza animal, nem à natureza humana, dado que é uma construção. Suspender a linguagem significa, pois, suspender a diferença entre homem e animal. Pensar um homem pré-linguístico é pensar o animal, ou seja, a afirmação do humano implica em ter o próprio humano mesmo como pressuposto. Essa “máquina antropológica” (AGAMBEN, 2017, p. 61) funciona necessariamente por meio de uma inclusão e exclusão. A distinção entre humano e animal possui uma “zona de indiferença”. A segunda parte da obra caminha para seu fechamento afirmando que o animal é aquele que consegue sobreviver em um mundo ambiente (Umwelt), mas não se decide por ele.

O humano, assim, é aquele capaz da decisão, sempre rearticulada e atualizada. Aqui se faz a passagem para a terceira parte da obra, na qual o principal interlocutor será Heidegger. De antemão se adverte: Agamben não faz comentários à filosofia de Heidegger. Trata-se, na verdade, de perceber que Agamben está desenvolvendo sua obra de maneira autônoma, permitindo-se encontrar com Heidegger. A partir disso, pode-se dizer que há diálogo, confronto, tessitura de críticas, concordâncias e discordâncias. Querer encontrar em O aberto: o homem e o animalum comentário a Heidegger é reduzir a amplitude e a originalidade da obra.

Interessa ainda perceber o seguinte a respeito dessa terceira parte: o encontro com Heidegger se dá n]ao só a partir da noção de linguagem como uma construção histórica, mas também a partir da noção de tédio como uma disposição afetiva (Stimmung) própria do homem. Dessa maneira, Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão – preleções ministradas por Heidegger em 1929-1930 – é a principal obra do filósofo alemão mencionada, sendo decisiva para Agamben porque a partir dela o autor pode afirmar, de fato, que o aberto diferencia homem e animal: “o aberto nomeia o desvelamento do ente, somente o homem, e mais, apenas o olhar essencial do pensamento autêntico, o pode ver” (AGAMBEN, 2017, p. 92). E mais adiante: “o lugar dessa operação é o tédio” (AGAMBEN, 2017, p. 99).

O capítulo catorze – Tédio profundo – permite perceber que Agamben dá especial atenção à esfera da decisão, justamente porque nela está implicada a possibilidade. Disso se pode concluir que o aberto é o local da possibilidade. A possibilidade de escolha é o que diferencia homem e animal. Ter a possibilidade de escolha é estar no aberto. Estar aberto a quê, porém? A um fechamento, pois o animal não está no aberto: “aquele que observa no aberto vê apenas um fechar-se, apenas um não-ver” (AGAMBEN, 2017, p. 109). Essa abertura a um fechamento mostra, de acordo com Agamben, a luta entre o homem e o animal. Dessa maneira, estar no aberto não significa ser na condição humana de maneira decisiva: estar no aberto é ter a possibilidade da decisão.

Agamben pretende mostrar, assim, que algo como o humano só pode advir na medida em que pode ser escolhido. Erradicar a animalidade é, pois, um fechar-se ao fechamento. O mesmo vale para a tentativa de uma humanização integral do animal que é o homem. A tensão entre animal e homem precisa ser mantida para que o aberto seja, de fato, o lócus do humano. A partir desse ponto a obra caminha para seu fechamento.

O capítulo dezessete inicia a quarta parte da obra fazendo um levantamento de alguns resultados até aqui alcançados. Percebe-se que esses resultados estão aí postos muito a partir da interlocução com Heidegger, o que leva a concluir que o filósofo alemão é uma peça decisiva para se compreender a obra O aberto: o homem e o animal como um todo. O capítulo dezoito – Entre – entra numa breve interlocução com Walter Benjamin (1892-1940) e está intimamente associado ao capítulo subsequente, no qual Agamben traz a imagem de duas pinturas –Ninfa e pastor e As três idades–para discutir, também de modo breve, a sexualidade. O último capítulo aponta que deixar ser o animal significa deixá-lo ser fora do ser, ou seja, deixar ser o animal significa estar em uma zona de não-conhecimento, que, por sua vez, “está para além tanto do conhecer quanto do não-conhecer […]. Mas aquilo que é deixado, assim, ser fora do ser não é, por isto, negado ou removido, não é, por isto, inexistente. É um existente, um real, que está para além da diferença entre ser e ente” (AGAMBEN, 2017, p. 743). Agamben retorna, ao fim, à iluminura com a qual se iniciou a obra: ela talvez aponte para a superação da máquina antropológica.

Afirma-se, então: a divisão aqui apresentada da obra O aberto: o homem e o animal em quatro partes pretende ser justamente uma chave de leitura, uma vez que, como se percebe pela leitura da obra, é difícil querer lê-la a partir de outro ponto específico que não o seu início. A divisão aqui apresentada não pretende tornar a obra mais “fácil” de se compreender, mas tão somente situar o leitor que se sinta mais próximo de algum capítulo específico. Por fim, recomenda-se a leitura dessa obra, pois somente assim o leitor irá se deparar com a profundidade da discussão trazida por Agamben, bem como irá perceber porque este pensador italiano suscita discussões em diferentes áreas. As obras de Agamben trazem, de fato, uma riqueza epistemológica que também pode ser percebida em O aberto: o homem e o animal seja respeito ao método de investigação, seja respeito ao conteúdo aí abordado. Além disso, O aberto: o homem e o animal pode servir como porta de entrada para a leitura e investigação das demais obras desse autor que vem ganhando espaço nas discussões acadêmicas brasileiras.

Nota

1 A presente edição revista da tradução brasileira traz a iluminura destacada por Agamben no verso da capa. A iluminura foi impressa em cores, o que facilita ao leitor perceber algumas características destacadas por Agamben em seu texto.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes – 2ª ed. – Edição revista – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017. 162p.

Luís Gabriel Provinciatto – Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8472704203242937. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

Um reino e suas repúblicas no Atlântico: comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII – FRAGOSO; MONTEIRO (RG)

FRAGOSO, João Fragoso; MONTEIRO, Nuno Gonçalo Monteiro (Eds.). Um reino e suas repúblicas no Atlântico: comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 2017, 475 p. Resenha de: CABRAL, Machado; CÉSAR, Gustavo. Forging an Empire in Writing. Rechtsgeschichte – Legal History, v. 26 p.434-436, 2018.

The Portuguese crown held considerable territory in the early modern period and sought measures to preserve its political power, as in any other extended empire. A strategy based on official communications, particularly letters, was a very important instrument to govern not only the overseas territories, but also those in Europe located far from Lisbon. Understanding the role of these communications, as well as their practical application, is the focus of Um reino e suas repúblicas do Atlântico: comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII (»A kingdom and its republics in the Atlantic: Political Communication between Portugal, Brazil and Angola during the 17th and 18th Centuries«). Applying a transatlantic perspective, João Fragoso and Nuno Gonçalo Monteiro, the editors, generally study the political institutions of the Portuguese Empire, which were founded on a common architecture that included every single village in all territories of the kingdom as well as in America, Africa, and Asia. This particular analysis, however, is restricted to the states of Brazil and Maranhão in America and Angola on the Atlantic coast of Africa. In this context, the official communications played an important role in connecting the central authority to local powers, both by hearing and by commanding when necessary. This is exactly what the book intends to demonstrate.

We can clearly notice a common background, which the sources confirm throughout the book, in all the published texts. First, all of them refer to the cities and villages in the Portuguese Empire as communities with a considerable level of autonomy from the crown, constituting the »republics« mentioned in the title, in an unequivocal reference to the political thought of Aquinas and the scholastics, especially authors like Francisco Suárez. Local communities shaped social life most of the time, but this did not mean that the crown was powerless or irrelevant. As the editors write explicitly, the municipal councils were the heads of political communities endowed with jurisdiction.

On the other hand, all articles prove that intense contact between Lisbon and the »republics« of the kingdom was the key to this model’s success. With its foundation after the Portuguese Restoration in 1640 and at least until the ascension of King Joseph I and the Marquis of Pombal in 1750, the Conselho Ultramarino became the center of political communication with the overseas possessions. Within the relevant Projeto Resgate Barão do Rio Branco, hundreds of thousands of documents of the Arquivo Histórico Ultramarino (where these docu | ments were archived in Portugal) are now available electronically. Many monographs about the colonial institutions, particularly theses and dissertations, published in the last two decades have been based on these documents. Despite the use of the same database, this volume has a different aim, which is not only to understand the nature and features of the documents written in America or Angola and sent to the kingdom, but also to see them as part of imperial governance, which depended on formal instruments, such as consultations answered by the council.

The book is divided into three parts, and the first one, Arquitetura da Monarquia e circulação da comunicação, is divided into three chapters, opening with a study by João Fragoso about »mercies« (i.e. grants of offices and gifts by the crown to vassals and their families) and their relevance for the relations between the center and the periphery in Portugal. According to the author, successful petitions for an office as compensation for vassal services to the commonwealth were clear manifestations of a »sentiment of belonging« to the Portuguese monarchy. People felt they were part of the empire, which is why Fragoso believes that the mercês were a crucial element in maintaining a »pluricontinental« and corporatist monarchy based on a negotiated coexistence of powers. The predominance of the mercês as a subject of correspondence corroborates this view in most of the captaincies analyzed. The two following chapters deal with the institutions involved in communication. Maria Fernanda Bicalho, José Damião Rodrigues, and Pedro Cardim look into the role of cortes (assemblies of states), juntas (boards of municipal councils and the governor of a captaincy) and of the procurators in political communication, noting their objective to pay attention to the local powers. The presence of representatives (procurators) of some overseas municipal councils in the Portuguese cortes after the Restoration and the organization of juntas as local assemblies in America can be seen as a means of managing the interests of cities and villages that reinforced the position of local institutions in guaranteeing royal authority. After that, Maria Fernanda Bicalho and André Costa discuss the Conselho Ultramarino as the institution responsible for overseas affairs, tracking the number of consultations documented in the database over time. This diachronic survey reveals the decrease in importance this Council suffered when the Secretariat of State was created, which centralized most decisions about public affairs in the kingdom in the mid-18th century.

Part two, Temas da comunicação, starts with an impressive article by Pedro Cardim and Miguel Baltazar on the diffusion of Portuguese royal legislation. The authors discuss the complex typology of royal norms and use the database Ius Lusitaniae, which holds 6 574 laws enacted by the Portuguese kings between 1621 and 1808, to analyze the most repetitive themes, the process of publication, and how these norms circulated, were compiled and became mandatory in local juridical spaces, especially in the overseas territories. Carla Almeida, Antonio Carlo Jucá de Sampaio, and André Costa have prepared a chapter about the fiscal issues and how they can be understood from the perspective of political communication. Bearing in mind that the municipal councils also had the power to institute taxes, the authors realized, using the database, that some aspects of fiscal practice, such as the public sale of the right to levy and collect taxes, were usually based on urgent necessities and in agreement with local powers. War and military affairs are discussed by Roberto Guedes Ferreira and Mafalda Soares da Cunha in a chapter that highlights their relevance even during peacetime, when providing military offices according to local requirements was a common theme. Here we can also observe the logic of the mercês. Ending this part, Antonio Carlos Jucá de Sampaio debates issues of economic history, namely currency and commerce, in order to understand the practices of social life in an economy with scarce currency and dependence on exchanges. Such dependence explains why sugar became an important element of credit and sometimes an unofficial (though recognized by the crown) medium of exchange in many areas of Brazil until the development of mining during the 18th century.

Focusing on agents and institutional spaces of communication, part three begins with a chapter by Francisco Cosentino, Mafalda Soares da Cunha, Antônio Castro Nunes, and Ronald Raminelli about the governors and their duty of communicating with the crown. Almost one-fifth of the documents in the database were issued by governors, a general category that included viceroys, governors-general, governors of captaincies and capitães-mores. Therefore, most of them deal with questions of government. Mafalda Soares da Cunha, Maria Fernanda Bicalho, Antônio Castro Nunes, and Isabele Mello look into the administration | of justice in their chapter about the corregedores and ouvidores as agents in political communication. Their description leaves no doubt about how these documents were used juridically: they were not sources to reconstruct the content of lawsuits or procedural details (e.g. producing evidence and decision-making), but a consistent means to grasp some practical questions and the relations between the crown-appointed judge (ouvidores) and the central power. The chapter by Ronald Raminelli concerns the political power of the municipal councils, which their correspondence with Lisbon reveals. The growing amount of documents sent by the cities, according Raminelli, corresponds to their ability to negotiate with the crown, although this changed from 1750 on, when the Secretariat of State started dealing directly and more frequently with the governors. A specific analysis of the Angolan experience, mixing the databases of the Arquivo Histórico Ultramarino and the Biblioteca Municipal de Luanda, appears in the chapter by Roberto Guedes Ferreira about political communication in the municipal councils of Luanda and Benguela and the Governor of Angola, predominantly in the second half of the 18th century. Finally, the chapter by Nuno Gonçalo Monteiro and Francisco Cosentino tackles the petitions from corporative groups in some cities of the kingdom (Évora, Faro, Viana, and Vila Viçosa) and in the most important captaincies of America. These petitions, which were collective requirements from groups of interest (many of them popular economic activities such as tailors, carpenters, and blacksmiths), indicate intense correspondence with the center independent of individual requirements.

All contributions to this volume pay special attention to an important question that has recently been discussed in legal theory1 and in a few works by António Manuel Hespanha.2 This book brings legal history into the very fruitful debate on the role of political communication, particularly the dynamics of power in the relations between the center and the peripheries of the empire, since localities asked for solutions and seemed to behave according to the answers they received. Furthermore, these studies enable a detailed look at the social (and juridical) life in many areas of the empire, even the farthest, and they are all integrated into a logic of belonging to the same political institutions. The crown and its possessions established much more complex relations than the simple reductions traditional historiography describe.

Even without stating it expressly, law is a central concern of this book, and this is why it is extremely relevant for legal historians studying the early modern period. There are some aspects, however, in which the legal-historical approach could go further, such as in conceptualizing law or describing what can be understood as contemporary law and sources of law, which is one of the central, but commonly neglected, issues in analyzing law in Portuguese America.3 Legal historiography mostly identifies law and legal norms with those enacted by the king – a very restrictive concept that is not sufficient to describe other normativities that coexisted in the same juridical space4 and cannot explain coherently, for example, the nature of the answers to consultations of the Conselho Ultramarino. A few problems of legal theory must be solved in order to understand the nature of these sources, but works like this book are a helpful starting point for this research agenda.

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Raízes do conservadorismo brasileiro: a abolição na imprensa e no imaginário social | Juremir Machado da Silva

Em linguagem ágil, narrativa vertiginosa, Juremir Machado da Silva, em 38 capítulos, leva o leitor às páginas de jornais que interpretavam os significados dados por autores de notícias acerca do dia da abolição definitiva da escravidão no Brasil, e também eventos variados que ajudariam a compreender o 13 de maio de 1888. Contudo, os capítulos, cuja organização não compreendi o sentido, falam de tudo um pouco em termos de notícias da defesa ou ataque ao regime escravista. Como o livro não tem uma hipótese a ser trabalhada, uma questão a ser respondida, então, o leitor se depara com um circuito aberto de idas e vindas a jornais do século XIX: notícias sobre escravidão e situações ocorridas em anos posteriores, como o golpe militar-empresarial de 1964, e a ditadura então instalada, constituem boa parte do estilo narrativo da obra. Comentários para lá de genéricos e senso comum completam o quadro, como o da abertura do capítulo dezesseis: Leia Mais

Impasses da democracia no Brasil – AVRITZER (NE-C)

AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. Resenha de: SZWAKO, José; SANTOS, Fabiano. Dos impasses aos desafios de reconstrução da democracia no Brasil. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, v. 35, n.3, Nov., 2016.

O contexto sociopolítico brasileiro pós-2013 colocou dilemas práticos e teóricos incontornáveis para nossas ciências sociais. Como chegamos até aqui? Quais atores, instituições e processos levaram ao impeachment da presidente Dilma Rousseff? Dispomos ainda de categorias e dimensões de análise adequadas à complexidade desse evento? A sucessão presidencial foi legítima? Foi, ao menos, legal? Olhando para trás, o encanto de parte dos analistas com os protestos de junho de 2013 virou perplexidade, quando não o triste pesadelo, de muitos: haveria, porém, continuidade entre 2013 e 2016? E, mirando-se adiante: quais são os reflexos do Regresso (para lembrar o opúsculo de Wanderley Guilherme dos Santos)1 encarnado no golpe parlamentar de agosto de 2016 em nossa prática política?

Como se vê,não são poucas as questões a serem urgentemente por nós encaradas e respondidas. É no rol desses dilemas que se inscreve Impasses da democracia no Brasil, de Leonardo Avritzer. Escrito no final de 2015, o livro traz a marca das tensões sociais e partidárias, expressas de modo mais evidente no ranço antipetista e antigovernista dos protestos massivos de março, abril e agosto daquele ano; “o governo da presidenta Dilma Rousseff passa por uma forte crise da qual não é possível saber se sobreviverá” (p.109) – como de fato não sobreviveu. Na pequena resenha que se segue,tentaremos tirar proveito do conhecimento prévio do evento.

O ar de análise de conjuntura do livro não faz dele menor porquanto conjuga em estilo acessível política e teoria política. Isto é, visa dar respostas teoricamente adequadas a questões da ordem do dia vis-à-vis alguns dos diagnósticos disponíveis sobre a qualidade da democracia brasileira, especialmente os elaborados por Paulo Arantes e Marcos Nobre,que tendem a enfatizar supostos déficits democráticos.

Impasses é crítico de feição frankfurtiana. Sua postura não se rende às páginas das sempre evocadas insuficiências, sejam elas institucionais ou culturais, brasileiras. Se nosso sistema político tem falhas, e Avritzer tem hipóteses robustas para mostrá-las, cabe ao analista completar sua crítica,quer dizer,fazer o diagnóstico das limitações do sistema vigente impreterivelmente seguido das fissuras e alternativas também por ele trazidas à baila. Destrinchado ao longo do livro, o diagnóstico se distribui em cinco elementos, quais sejam:

i) os limites do presidencialismo de coalizão, isto é, a deslegitimação da forma de fazer alianças, característica da democracia brasileira desde 1994; ii) os limites da participação popular na política, que tem crescido desde 1990 e é bem-vista pela população, mas não logra modificar sua relação com a representação; iii) os paradoxos do combate à corrupção, que avança e revela elementos dramáticos da privatização do setor público no país, os quais terminaram por deslegitimar ainda mais o sistema político; iv) as consequências da perda de status das camadas médias que passaram a estar mais próximas das camadas populares a partir do reordenamento social provocado pela queda de desigualdade; v) por fim, o novo papel do Poder Judiciário na política[p. 9].

Avritzer articula em pente-fino essas dimensões de seu diagnóstico somando,no terceiro capítulo,as causas e efeitos do ciclo de protestos de 2013.Sob risco de simplificar seu argumento,poderíamos dizer que a imbricação de uma dinâmica institucional de alianças (fundamentalmente ambivalente dado que virtuosa e custosa) com a percepção de corrupção (generalizada porém enviesada em desfavor do Partido dos Trabalhadores) opera no sentido de deslegitimar, aos olhos de uma classe média reconfigurada devido às políticas distributivas pós-2003, o sistema político como um todo, mas, mais danosamente, o próprio PT.Ao par presidencialismo de coalizão e corrupção,é somada uma análise da limitação das formas institucionais de participação, que,embora tenham deixado sua marca em parte das políticas sociais, não chegaram a permear áreas estratégicas do Estado brasileiro,levando a uma dupla “ruptura” (p. 66) no campo das mobilizações do país – à esquerda e,como se nota desde 2013,também à direita.Complexo, esse diagnóstico é complementado por uma saída de tom republicano: ampliar, aprofundar e tornar mais eficaz a participação popular – um pacote institucional que, como hipótese e potência, melhoraria tanto um suposto déficit de representação quanto o combate à corrupção. “Assim, a primeira agenda importante de um processo de reorganização do sistema político poderia ser uma extensão da participação social para a área de infraestrutura com o objetivo de democratizar essas obras e torná-las mais transparentes” (p. 121).

Três tópicos nos parecem centrais na argumentação contida no livro, a saber, o presidencialismo de coalizão, a herança de 2013 e os paradoxos resultantes da política de combate à corrupção dos três últimos mandatos democraticamente eleitos.

Sobre o presidencialismo de coalizão, parece-nos que Avritzer adota e reproduz uma definição mais ampla do conceito, definição que acaba por imputar a esse modelo institucional um grande conjunto de vícios do qual a política brasileira seria vítima. Falamos de definição mais ampla porque,em verdade,o termo presidencialismo de coalizão, numa visão mais restrita e, a nosso ver, mais precisa, tal como utilizado na literatura institucionalista stricto sensu, denota tão somente a conjugação da separação de poderes,característica do sistema presidencial, com o multipartidarismo, comumente derivado da adoção do sistema proporcional para o preenchimento das cadeiras no Legislativo.

Aqueles que criticam nosso modelo institucional, chamado de presidencialismo de coalizão, estabelecem uma espécie indevida de relação de causalidade entre a dinâmica de tal modelo e uma prática política que não só corrói os princípios, digamos, programáticos dos partidos que lideram a coalizão governamental como, no limite, compromete a legitimidade do sistema institucional em seu conjunto (ver p. 38 e seguintes). Ora, segundo nosso ponto de vista, e nisso seguindo análises mais recentes sobre o presidencialismo de coalizão,2 nada autorizaria, de uma perspectiva conceitual ou empírica, colocar na conta do modelo fenômenos políticos complexos e reconhecidamente ruins, tais como corrupção, descrença popular e profusão de escândalos aproveitados, e não raro produzidos, pela mídia.

Aqui é fundamental discernir dois elementos que são frequentemente sobrepostos na análise política:atores e instituições.Embora empiricamente e em todos os casos seja difícil identificar onde um ou outro esteja preponderando no desdobramento da conjuntura política, não se pode inferir a legitimidade ou eficiência das instituições a partir do uso que delas fazem os principais atores em cena. Em nossa avaliação, o exemplo brasileiro recente mostra exatamente isto: desde fins de 2014, a cada passo da conjuntura, e à medida que as crises econômica e social se aprofundavam, as cúpulas do PMDB e do PSDB se articulavam e se utilizavam das regras do jogo tendo em vista construir as condições ótimas para a consecução do golpe parlamentar que redundou no impeachment. Nada inerente ao desenho institucional brasileiro permitiria prever um comportamento desestabilizador assim assumido, desde o resultado das eleições daquele ano, por uma oposição até aquele momento leal à democracia e por lideranças de um partido até aquele momento parceiro na coalizão.

Rótulo alternativo para o que vem ocorrendo na política brasileira é amalgamado na ideia de uma suposta crise de representação. É inegável a existência de insatisfação de parte significativa das elites judiciárias, midiáticas, empresariais e de setores importantes das classes médias com os marcos centrais da democracia tal como consagrados na Constituição de 1988. Todavia, concomitantes à expressão de tais sentimentos, a ampliação e a pluralização da capacidade de representação externa ao Congresso,mas no interior do Estado brasileiro,têm sido ressaltadas em diversos trabalhos atinentes às interações Estado-sociedade.3 Se a inclusão de temas e atores da sociedade civil nos processos decisórios é alvo de crítica, como bem mostra Avritzer no livro, isso não infirma o diagnóstico – pouco conhecido, diga-se de passagem – de que as políticas públicas têm sido, desde a redemocratização,cada vez mais interpeladas e modificadas por organizações e movimentos sociais. Em suma, a agenda de pesquisa mais atual sobre os efeitos da institucionalização da participação denota não a limitação, mas antes a indagação sobre a efetividade das instituições participativas no Brasil.4

Enfim, e não obstante a riqueza da análise de Avritzer, entendemos que nada há de conclusivo, seja em torno do diagnóstico da corrosão institucional inerente ao presidencialismo de coalizão e por ele supostamente produzida, diagnóstico de resto conveniente a versões legitimadoras do golpe parlamentar, seja ainda no que tange à existência de uma crise de representação afetando o quadro político institucional brasileiro.

Outro tópico central no ensaio de Avritzer consiste no impacto do ciclo de protestos de 2013 sobre o processo político brasileiro. Quanto a esse tópico, parece-nos fundamental notar, primeiramente, que os significados e raízes da convulsão social experimentada em junho de 2013 ainda estão para ser descobertos e explicados. Nesse quesito, fatores sociais e institucionais, entre os quais destacaríamos a atuação dos agentes repressivos do aparelho de Estado, se misturam, dificultando um diagnóstico claro e consistente do perfil dos manifestantes e, portanto, da manifestação em jogo. A contribuição de Avritzer, aqui, caminha no sentido de mostrar como operou uma espécie de quebra do monopólio exercido pelas forças civis e políticas de esquerda sobre a mobilização de rua em nosso país. O desafio, em nossa visão, é explicitar claramente em que medida aquela profusão de bandeiras e vozes realmente se articula com os vetores recentes e regressivos assumidos pela política institucional. Nesse sentido, Impasses se torna de saída leitura incontornável para quem quiser entender, por exemplo, se e como se entrelaçam 2013, a acirrada disputa presidencial de 2014 e o triste episódio do golpe parlamentar.

Por último, e no que entendemos ser um dos pontos altos de Impasses, a questão do combate à corrupção e dos poderes a ele ligados. A citação é longa, mas necessária e algo premonitória:

A forma como no primeiro semestre de 2015 o Poder Judiciário colocou o Executivo na defensiva com práticas políticas questionáveis, como o vazamento seletivo de informações da Operação Lava-Jato e um abuso de prisões preventivas e de delações que têm como objetivo desestabilizar o campo político,mostra o perigo de uma solução para os impasses que não transite pelos poderes constituídos pelo voto popular [p. 116].

Tal intervenção, politizada e espúria, de agentes e instituições de controle, sejam ou não do Judiciário, frente a órgãos do Executivo e do Legislativo nos remete diretamente ao alerta imprescindível dado por Max Weber5 a seus contemporâneos da República de Weimar: ao funcionário público não cabe a disputa política nem a respectiva convicção. As alçadas do funcionário e do político profissional são distintas, assim como são distintas as responsabilidades estatuídas a cada posto. Que a política de seu país se tornasse refém da burocracia era um dos maiores temores de Weber – essa lição não pode ser hoje olvidada por aqueles que, como nós e Avritzer, entendem o potencial nefasto contido numa instância de poder que,em nome do combate à corrupção, atua de modo ilegal.

Ironicamente, se podemos falar de crise institucional de nosso modelo político, esta não emerge do presidencialismo de coalizão. A leitura de Impasses é mais uma confirmação,a nosso ver,de que graves distorções atingem o desenho mesmo de nossas instituições de controle, tal como inscrito na Constituição de 1988. Nesse particular, as recentes intervenções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE),por exemplo, nas regras eleitorais e partidárias, bem como os ataques seletiva e partidariamente orientados do Ministério Público contra lideranças políticas ressoam uma das mais famosas preocupações madisonianas: quem controla os controladores? A ingerência administrativa sobre a disputa política exige não só sua crítica teórica. Exige, antes, a ação política daquele que é, ao fim e a cabo, o principal afetado pela instabilidade do jogo democrático judicialmente instilada e também o único soberano desse mesmo jogo: a vontade popular. Nesse sentido, e aprofundando uma pista dada por Avritzer, dois caminhos necessários e convergentes para a pacificação do Judiciário e das instâncias de controle no Executivo são o aprofundamento de mecanismos de controle tanto institucionalizados como externos às instituições.

A despeito das eventuais discordâncias interpretativas, Impasses se coloca como obra seminal nos projetos de reconstrução da democracia brasileira. A tarefa não será fácil, como não foi fácil a redemocratização consagrada na Carta de 1988. O primeiro desafio, certamente, passa pela responsabilização dos atores que desestabilizaram e usurparam a dinâmica democrática até aqui conquistada. No plano da disputa político-institucional, máscaras de atores que defendem um liberalismo douto requentado, quando não somente neoliberal, deverão ser reconhecidas enquanto tais.Já no plano da cultura política, o fenômeno é ainda mais complexo: o crescente fascismo das classes médias, alimentado não somente pela crise econômica mas também pelo Judiciário e por mídias hegemônicas, é realidade que julgamos imprescindível conhecer e combater. Em verdade, não é outra a questão maior que atravessa, além e aquém de Impasses, toda a obra de Leonardo Avritzer: a cultura política brasileira e sua contribuição para nossa história democrática – ou ainda democrática.

Referências

AVRITZER, Leonardo; Souza, Clóvis (Org.). Conferências nacionais: atores, dinâmicas participativas e efetividade. Brasília: Ipea, 2013. [ Links ]

FREITAS, Andréa. O presidencialismo da coalizão. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2016. [ Links ]

GURZA LAVALLE, Adrian; Szwako, José. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, v. 21, n. 1, pp. 157-187, 2015. [ Links ]

PIRES, Roberto (Org.). Efetividade das instituições participativas no Brasil: estratégias de avaliação. Brasília: Ipea , 2011. [ Links ]

POGREBINSCHI, Thamy; Santos, Fabiano. “Participação como representação: o impacto das conferências nacionais de políticas públicas no Congresso Nacional”. Dados, v. 54, n. 3, pp. 259-305, 2011. [ Links ]

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Regresso: máscaras institucionais do liberalismo oligárquico. Rio de Janeiro: Opera Nostra, 1994. [ Links ]

WEBER, Max. Parlamento e governo na Alemanha reordenada: crítica política do funcionalismo e da natureza dos partidos. Petrópolis: Vozes, 1993. [ Links ]

Notas

1 Santos, 1994.

2 Freitas, 2016.

3 Ver, entre outros, Pogrebinschi e Santos, 2011.; Avritzer e Souza, 2013Gurza Lavalle e Szwako, 2015.

4 Ver Pires, 2011.

5 Weber, 1993.

José Szwako – Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Fabiano Santos- Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ação política – GOMES; HANSEN (RTA)

GOMES, Angela de Castro; HANSEN, Patricia Santos (Orgs.). Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 488p. Resenha de: SANTOS, Márcia Regina dos. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.8, n.19, p.374-379, set./dez., 2016.

A obra Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ação política, organizada pelas historiadoras Angela de Castro Gomes e Patricia Santos Hansen reuniu um total de quatorze autores, os quais se dedicaram a ampliar o debate sobre as questões que tratam das práticas culturais protagonizadas por sujeitos históricos identificados como intelectuais. Angela de Castro Gomes, graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (1969), Mestra e Doutora em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia) pela Sociedade Brasileira de Instrução (SBI/IUPERJ-1987), constituiu-se uma importante referência com pesquisas nos temas de história política do Brasil República, história de intelectuais, cidadania e direitos do trabalho, Justiça do Trabalho, historiografia, memória e ensino de história. É o seu quinquagésimo livro entre publicações, organizações e edições e, foi organizado em parceria com a também historiadora Patricia Santos Hansen, graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio, 1998), Mestra em História Social da Cultura pela mesma instituição (2000) e Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP, 2007). O livro apresenta uma proposta de refinamento teórico, o qual visa a debater as operações culturais que foram multiplicando e diversificando as formas de disseminar conhecimentos e a mediação cultural que ocorre por diversos meios, sujeitos e escalas. Num movimento de ampliar a significação do intelectual contemporâneo, a autora denomina-os como “homens da produção de conhecimento e comunicação de ideias, direta ou indiretamente vinculados à intervenção político-social” (p. 10). Dessa forma, oferece estudos desenvolvidos na mesma direção, a qual problematiza e debate a ação de alguns homens e mulheres como mediadores culturais.

Os artigos que compõem a obra estão organizados em três partes. A primeira parte do livro, nomeada de Trajetórias e projetos, agrupou textos sob a perspectiva da ação de intelectuais no âmbito da tradução e edição, bem como, os percursos por eles realizados num processo de disseminação de livros e textos. O artigo de Kaomi Kodama delineia o campo de atuação do ator social, o qual compreendeu como “vulgarizador” (p. 42), a partir das traduções da obra de Louis Figuier que circularam no Brasil. A ideia de mediação estava focada em apresentar as novidades científicas para um público não especializado com objetivo de educar pela ciência. A autora Patrícia Tavares Raffaini  utilizou dois livros franceses para crianças no intuito de abordar a questão das traduções e a dimensão das escolhas editoriais. Nesse sentido, editores e tradutores atuam na construção de imaginários sociais oferecendo aos leitores as suas escolhas, projetando produções de sentidos. O artigo de Ângela de Castro Gomes apresenta a mediação entrecruzada por um projeto literário de intercâmbio luso-brasileiro infantil promovido pela autora/editora lusa Ana de Castro Osório. Por meio de obras que têm personagens viajantes que vivenciam a cultura do outro, a autora/editora investe seus esforços em projetos que poderiam ser nomeados de mediação cultural transnacional.

No âmbito educacional, evidenciando uma dimensão política na mediação cultural, a autora Gabriela Pellegrino Soares debate a atuação de professores em diferentes regiões do Vice-Reino da Nova Espanha (hoje, região do México), no sentido de que disseminaram ferramentas culturais – e também políticas – as quais contribuíram nos sentidos e práticas da participação camponesa na Revolução Mexicana, deflagrada em 1910. Diferentemente do olhar coletivo sobre uma classe de intelectuais, o autor Joaquim Pintassilgo estudou o percurso biográfico de Orbelino Geraldes Ferreira e a sua relação com o estabelecimento de uma vertente pedagógica chamada “escola ativa” (p. 148), em Portugal, durante o regime salazarista. Os dois últimos artigos dialogam no sentido de discutirem diferentes escalas de mediação, em diferentes lugares sociais. No primeiro caso, a mediação promovida na região rural, com materiais distribuídos para o letramento de populações com dificuldades de recursos e, no segundo caso, a mediação promovida a partir de cargos docentes que possibilitaram a produção de livros e a disseminação de ideias. No entanto, ambos ocorrem em situações adversas, nas quais os mediadores oscilaram entre promover a ilustração e não se expor às austeridades políticas do período.

A segunda parte da obra nomeada Lugares e mídias aborda a ação dos intelectuais mediadores por meio dos suportes de divulgação utilizados. O artigo de Ana Paula Sampaio Caldeira discutiu a atuação de Benjamin Franklin Ramiz, quando esteve à frente da Biblioteca Nacional, na concretização do projeto editorial dos Anais da Biblioteca Nacional. Num esforço de inserir a Biblioteca nas práticas internacionais de circulação e divulgação cultural, Ramiz mobilizou outros intelectuais da época para contribuir nas diversas edições dos Anais durante a sua gestão. A autora chama a atenção para a ausência de Capistrano de Abreu – funcionário da Biblioteca Nacional à época – nas edições organizadas por Ramiz, uma vez que, Capistrano de Abreu se tornaria uma referência como intelectual de sua geração. O artigo de Eliana Dutra discutiu os contextos de mediação intelectual. Nesse sentido, abordou o caráter transnacional e transcultural da mediação por meio da circulação das revistas elaboradas para disseminar entre os países o que era produzido. Foram analisadas revistas do Brasil, Argentina e França para pensar uma possível triangulação de produções literárias que, por conseguinte, divulgavam concepções identitárias. O artigo de Francisco Palomanes Martinho tratou da mediação na questão dos discursos disseminados pela revista antiliberal e antidemocrática intitulada “Ordem Nova”. Os redatores da revista, em especial Marcello Caetano apoiavam um retorno monárquico às vésperas do golpe de Estado que mergulharia Portugal num período ditatorial. Revisitando teorias e acontecimentos históricos que se reportavam aos primórdios do liberalismo, os redatores elaboravam uma mediação político-cultural, com vistas a fortalecer sua ideologia antidemocrática. Sob a perspectiva da mediação pela oralidade, o artigo de Giovane José da Silva analisa os scripts dos programas de “Metodologia da História do Brasil” do projeto “Universidade no Ar”, escritos e narrados por Jonathas Serrano. Nesse contexto, ainda que a mediação ocorresse pela oralidade transmitida pelo rádio, foi privilegiada a perenidade do suporte escrito utilizando o envio de materiais aos inscritos na formação por meio do sistema de correios, configurando assim, um aprendizado específico, mesclado por narrativas orais e escritas.

Na terceira e última parte da obra, nomeada Leituras e ressonâncias, o conjunto de textos tem como foco as apropriações, releituras e aproximações feitas acerca de obras, autores e veículos de comunicação em relação às conjunturas vigentes em tempos e espaços demarcados. O artigo de Mara Cristina de Matos Rodrigues problematiza a noção de intelectual mediador a partir da articulação entre criação e mediação intelectual na trajetória de Érico Veríssimo. A autora discute os múltiplos tempos e lugares experienciados pelo autor, os quais lhe conferiram atuação tanto na mediação de conhecimentos históricos para um público infantil escolar, no diálogo cultural transnacional a partir de sua estada nos EUA, quanto na criação de uma literatura com “uma sofisticada arquitetura temporal” (p. 347) como a obra de sua maturidade O tempo e o vento. A autora elucida o trânsito possível inscrito na condição de intelectual e infere sobre a ampliação do entendimento de mediação. O artigo de Luciano Mendes de Faria Filho aborda a problemática da elaboração dos prefácios para obras já escritas e como as redes de sociabilidades podem interferir na produção de sentidos. O projeto em questão se refere à publicação das obras completas de Rui Barbosa. A sociabilidade do responsável pelo projeto editorial – Gustavo Capanema – mobilizou intelectuais que corroborassem com a política da publicação, incidindo sobre a forma como a obra foi prefaciada e os direcionamentos da leitura. Esse tipo de mediação intelectual tem, inclusive, argumentos para descaracterizar o próprio conteúdo da obra, uma vez que, os prefácios funcionam como protocolos de leitura. Nessa mesma clave, o artigo de Patricia Santos Hansen aborda a edição da obra A defesa nacional em comemoração ao centenário de seu autor, Olavo Bilac. A autora debate a problemática da apropriação dos escritos numa perspectiva de atender demandas políticas posteriores à publicação em, pelo menos, meio século. Da mesma forma, é possível perceber uma subversão narrativa na mediação entre diferentes culturas políticas.

Os dois últimos artigos são convergentes na questão da identificação de sujeitos históricos como intelectuais. O artigo de Giselle Martins Venâncio destaca as tensões da “fundação de uma prática historiográfica dita moderna” (p. 437) por meio da análise da mediação intelectual elaborada no âmbito das publicações de coleções e revistas científicas que se mobilizaram em notabilizar uma historiografia nacional. Nesse sentido, a autora aponta a emergência de nomes e grupos que estabilizaram como referenciais ao passo que outros, permaneceram invisibilizados. Por fim, a historiadora Libânia Nacif Xavier propõe em seu artigo a construção de “interfaces entre a história da educação e a história social e política dos intelectuais” (p. 464). Num diálogo acerca dos conceitos de redes de sociabilidade, trajetórias intelectuais e geração, a autora problematiza o lugar dos sujeitos classificados como intelectuais e a sua atuação na mediação. Num esforço teórico de ampliar o entendimento do conceito de intelectuais mediadores como categoria de análise nas pesquisas, a autora infere sobre a necessidade de construir uma sensibilidade para que o historiador, ao munir-se de fontes, conceitos e pesquisas, priorize as escolhas que melhor contribuam para os seus objetivos. E, nesse sentido, compreender e visibilizar os homens e mulheres que atuaram na produção e disseminação cultural do país e do mundo.

Márcia Regina dos Santos – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Brasil. E-mail: [email protected]

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Em busca do tempo sagrado: Tiago de Varazze e a Lenda dourada | Jacques Le Goff

O livro A la recherche du temps sacré ou, na edição brasileira, Em busca do tempo sagrado: Tiago de Varazze e a Lenda dourada foi uma das últimas obras produzidas pelo historiador Jacques Le Goff a ser traduzida para o português. Lançada originalmente em francês no ano de 2011, a produção foi mais uma contribuição do autor para os estudos medievais. O texto foi traduzido e publicado no Brasil apenas em 2014, pela editora Civilização Brasileira.

Jacques Le Goff é considerado pela comunidade acadêmica como um dos principais historiadores do século XX. Foi diretor da École des Hautes Études en Sciences Sociales – sucedendo Fernand Braudel – e, ao lado de nomes como Georges Duby, Pierre Chaunu, Le Roy Ladurie, entre outros, esteve à frente da chamada terceira geração da Escola dos Annales. No campo bibliográfico, Le Goff desenvolveu uma vasta produção – entre artigos, capítulos, livros, etc. – dentre a qual podemos mencionar, apenas para citar alguns títulos já traduzidos para o português: Os Intelectuais na Idade Média; O nascimento do purgatório; São Francisco de Assis; Homens e mulheres na Idade Média; A Civilização do Ocidente Medieval. Como reconhecimento de sua atuação, recebeu, em 2004, o prêmio Dr. A. H. Heineken de História, atribuído pela Academia Real das Artes e Ciências dos Países Baixos. Leia Mais

A Idade Média e o Dinheiro – ensaio de antropologia histórica | Jacques Le Goff

O último livro do historiador francês Jacques Le Goff foi publicado originalmente em 2010. Traduzido por Marcos de Castro, foi publicado no Brasil em 2014. “A Idade Média e o Dinheiro” não deve ser interpretado como uma obra que contém uma reviravolta na historiografia de Le Goff, mas como uma síntese das ideias que nortearam o autor em sua carreira acadêmica. Desta forma, os elementos que compuseram seus traços característicos se expressam na obra de forma bem clara: o interesse em problemas e questões de longa duração; a proeminência e o impacto das questões subjetivas ou mentais; a ênfase nas instituições e transformações urbanas; a relação entre a mentalidade e a religião; as ordens eclesiásticas; a relação com o dinheiro e o tempo (a partir da usura); uma Idade Média de longa duração e sua possível relação com o capitalismo.

Conforme o subtítulo anuncia, sua preocupação é estabelecer um ‘ensaio de antropologia histórica’. Desta forma, compreende-se que a obra priorize os elementos culturais (ou mentais) do significado do dinheiro para o medievo. Isso não significa, no entanto, que a materialidade seja totalmente descartada na obra. A forma como esta é trabalhada, contudo, ficará mais clara ao longo da exposição da obra. Leia Mais

O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta | Beatriz Bissio

Nos últimos anos, o Brasil tem se inserido no mundo na condição de potência emergente, buscando consolidar-se no espaço internacional. Na academia, este processo tem se refletido na ampliação dos temas de pesquisas, destacadamente nas Humanidades. Notamse esforços em incorporar África e América Latina na agenda de estudos, produzindo diálogos e comparações úteis ao acréscimo do conhecimento e incorporação da diversidade. Entretanto, outras regiões do globo, como o mundo árabe-islâmico, permanecem menos exploradas. Entre os trabalhos dedicados a este tema, destaca-se a contribuição da professora do Departamento de Ciência Política da UFRJ, Beatriz Bissio, aqui resenhada.

O livro O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta é marcado pela trajetória da autora. Uruguaia naturalizada brasileira, Bissio atuou muitos anos como jornalista. Cobriu guerras de libertação nacional em Angola e em Moçambique, registrou o apartheid sul-africano e noticiou conflitos no Oriente Médio. Ao percorrer os países islâmicos, diz-nos que ficou profundamente marcada pela errônea tese de que existe uma profunda alteridade entre o mundo árabe-islâmico e o Ocidente. Munida desta inquietação, graduou-se em Ciências Sociais (PUC-RJ) e doutorou-se em História (UFF). Fruto de pesquisa realizada no doutorado, o livro analisa a civilização árabe-islâmica no século XIV, destacando o espaço como categoria apta à integração do mundo muçulmano, num período de fragilização política e cultural do Magrebe.

Afastando-se da perspectiva orientalista que circunscreve o mundo árabe-muçulmano à condição de exótico [2], Beatriz Bissio busca compreendê-lo a partir de dois de seus próprios pensadores: Ibn Battuta e Ibn Khaldun. O primeiro foi um viajante marroquino nascido em Tânger, em 1304, autor de Através do Islã, um relato de suas extensas viagens, aproximadamente 120 mil quilômetros percorridos em quase três décadas. O outro, Ibn Khaldun, era historiador e também viajante, nascido em Túnis, em 1332, autor do Livro das Experiências, em cuja primeira parte, Muqaddimah (ou Os prolegômenos da história universal) está o foco da autora, que complementa suas análises com as outras partes da obra, a História dos Berberes e a Autobiografia.

Dividido em duas partes e sete capítulos, o livro traz a preocupação de quem escreve sabendo que grande parte de seu público tem pouco domínio do assunto sem, no entanto, frustrar aqueles já versados no tema. Nos três capítulos da primeira parte, Bissio apresenta o mundo árabe-islâmico, localiza o leitor no Mediterrâneo do século XIV (com vários mapas) e apresenta suas personagens e fontes. A segunda parte é formada por quatro capítulos, dedicada à verticalização da análise das representações do espaço no medievo islâmico. A autora analisa o conceito de civilização presente nas obras, sobretudo na Muqaddimah, o papel da viagem na compreensão e internalização do espaço no mundo árabe-muçulmano, suas formas de representação na cartografia e nos saberes científicos da época e a hierarquização do espaço: o urbano, em função da mesquita; o território em função de Meca.

No século IX, desenvolvia-se na Espanha e no Magrebe islâmicos um gênero literário dedicado a descrever o espaço: os relatos de viagem. Decorrentes da exigência religiosa de realizar a peregrinação a Meca, aplicável a todo fiel saudável e com condições financeiras, os relatos foram produzidos por vários agentes: viajantes, espiões, mercadores, embaixadores. A palavra rihla, termo árabe para viagem, périplo, logo se tornou o nome do gênero. No século XIV, a rihla de Ibn Battuta tornava-se excepcional: saindo do Marrocos, o autor percorreu Egito, Palestina, Síria, Iraque, Irã, península Arábica, China, Índia, Afeganistão, Turquia, Rússia, Iêmen, Omã… motivado pela busca por conhecimento ao longo espaço islâmico.

O espaço é definido através da oposição entre os territórios do islamismo (dar alIslam) e aqueles ocupados pelos infiéis (dar al-kfur) e dedicados à guerra (dar al-harb), cuja incorporação nas terras do islã, acreditava-se, aconteceria mais cedo ou mais tarde. Essas definições acerca da natureza do espaço são importantes para a compreensão das obras de Khaldun e Battuta. O primeiro, modelo de sábio erudito islâmico, dedica-se na Muqaddimah a compreender as leis universais da sociedade – ciência que afirma ser sua criação – através do estudo e da viagem pelos espaços islâmicos, tendo o Magrebe como seu grande laboratório. Já Battuta dedica-se a analisar e vivenciar a unidade formada neste espaço. Apesar de cultural e historicamente heterogêneo, a fé islâmica e a língua árabe fizeram dele um território.

Recorrendo a edições dos textos de Battuta e Khaldun em diferentes idiomas, embora não no árabe, Bissio destaca o papel do espaço e da viagem na caracterização da identidade muçulmana do século XIV e anteriores, apontando a valoração atribuída pela religião islâmica à busca do conhecimento. Através da expansão muçulmana, desde o século VII, formou-se um extenso tecido social que, embora forjado sobre diversos ecossistemas e integrando povos culturalmente muito distintos – desde a Índia até a Espanha – manteve elementos de uma identidade comum: o idioma árabe, considerado sagrado e perfeito por ter sido a escolha de Deus para anunciar sua mensagem ao mundo, através de Maomé; e a fé islâmica, responsável pela unidade dos fiéis no corpo da Umma, a comunidade muçulmana que supera fronteiras políticas e étnicas diante da supremacia religiosa.

Dada a amplitude desta ocupação, a análise de referenciais da geografia cultural é central à discussão de Bissio. Conceitos como espaço social e lugar, aplicados à concepção da identidade, permeiam sua discussão, marcando o pertencimento e a exclusão na sociedade islâmica. Centrada no processo de urbanização, a fé muçulmana encontrou local privilegiado para sua divulgação nas cidades, organizando o espaço e caracterizando as relações sociais ali estabelecidas. A cidade construiu-se em torno da mesquita, onde coabitavam profissão de fé, exercício do poder político e jurídico e práticas educacionais. No plano territorial, o desenvolvimento da cartografia manteve-se ativo durante a expansão muçulmana, vistas as exigências dos Cinco Pilares do islamismo [3], dentre as quais se destacam a necessidade de orar cinco vezes ao dia na direção de Meca e realizar, ao menos uma vez na vida, a peregrinação aos lugares sagrados do Islã. O domínio do espaço era condição para exercício da fé e foi a comunhão religiosa sobre o espaço que garantiu a continuidade da Umma.

O exercício da justiça árabe-muçulmana fazia-se a partir do Corão, o livro sagrado, e da Sunna, a compilação dos ditos e feitos do Profeta. Com o aumento da complexidade social árabe-islâmica, fazia-se necessário coletar o máximo de informações úteis à construção da jurisprudência, visto esta basear-se nos exemplos advindos da vida e obra de Maomé. O objetivo inicial da viagem, portanto, era a coleta dos hadiths: atitudes, decisões e silêncios de Maomé, que compõem a Sunna e caracterizam o exercício da justiça islâmica na xaria. Através da viagem, buscava-se reconstruir as experiências do Profeta, pela coleta de tradições junto aos familiares daqueles que conviveram com ele. A viagem levava ao conhecimento.

Além do acesso ao saber, a escrita geográfica trazia à luz a grandiosidade do mundo construído pelos muçulmanos. Este, entretanto, vivia momentos de crise. No século XIV, o Mediterrâneo árabe caia diante dos impactos da Peste Negra e da fragmentação política. Com este pano de fundo, Bissio aborda o contexto histórico vivenciado por Khaldun e Battuta, importantes na configuração de suas obras. A autora argumenta que se vivia um período no qual o passado glorioso era mais importante que o incerto futuro, inspirando os escritores muçulmanos a produzir textos que garantissem à posteridade o conhecimento daquele momento histórico.

Ibn Khaldun, sobre quem já se disse ter sido o criador da Sociologia, se propôs a produzir uma obra de História peculiar à época: os homens eram o sujeito histórico e o objeto de estudo era a sociedade muçulmana. Partindo da trajetória de vida deste autor, o impacto da Peste Negra em sua formação e sua atuação política no Magrebe, na Espanha (Al-Andaluz) e no Egito, Bissio destaca a contribuição de Khaldun às Ciências Humanas, pouco estudada na tradição ocidental. O deslocamento da História para o mundo dos homens, em detrimento de ser realização da vontade divina; a compreensão da unidade do gênero humano e a explicação do desenvolvimento das civilizações através da geografia, ecologia e biologia caracterizam grande ruptura com a epistemologia vigente no período, muito embora alimentada pelas concepções muçulmanas acerca do mundo.

Documentos produzidos para serem monumentos4 de uma sociedade em decadência, os textos de Battuta e Khaldun apontam o uso pragmático da escrita como recurso à integração dos espaços e entendimento da sociedade, aproximando homens e Estados que, embora não mais organizados numa estrutura política única, o califado, seguiam na comunhão de uma identidade linguístico-religiosa (apesar das dissidências, como sunitas e xiitas). Um dos conceitos desenvolvidos por Ibn Khaldun – assabiyya, o espírito do corpo político – decorre de suas experiências ao percorrer o Magrebe neste momento, dado à derrocada de Estados e ao sentimento, captado por ele, de deslocamento do eixo civilizacional, que se movia do sul para o norte, com a emergência da Cristandade europeia e a redução das cidades muçulmanas, outrora as mais populosas, urbanizadas e ativas do período.

Na teoria das civilizações de Khaldun, o conceito umran tem sentido em civilização, seja na universalidade da sociedade humana ou na concretude de uma população sobre um território. A vida em sociedade é condição da existência humana, conforme Khaldun, e sua essência está na complementaridade entre o polo rural e o urbano. No primeiro residem os valores como força, lealdade, temperança, que fortalecem o espírito político (assabiyya); no segundo está o luxo, os excessos e prazeres, que o enfraquecem. Contudo, o urbano é o espaço central da vida social e religiosa. O equilíbrio se constitui na trajetória cíclica da história, com ascensão e queda de impérios que conquistam as cidades, se apoderam delas e se enfraquecem nelas. A umran é transmitida de um império a outro, resultando num sistema de civilização bipolar, cíclico e relativamente estável.

Enquanto Khaldun busca compreender as leis que regem a sociedade, Battuta aponta a unidade da umma como ponto central de sua análise. Ao longo da rihla na qual descreve o périplo realizado, o viajante marroquino dedica-se a apresentar a universalidade da umma. Sua narrativa, exposta por Bissio, conjuga as necessidades do saber com a atenção dedicada ao mundo do islã, seus prazeres, aromas e sabores. A manifestação da fé muçulmana nos lugares pelos quais passou, a solidariedade amparada no pertencimento à comunidade religiosa e a peregrinação como lugar do encontro são destacados por Battuta. Meca é o centro da umma e, para os muçulmanos do século XIV, as terras do islã eram a única parte do mundo que importava, pois nelas estava a verdade da revelação a ser levada a outros lugares ao redor do globo. Não obstante a desagregação política do califado abássida, a unidade linguístico-religiosa foi capaz de manter-se, tendo a referência ao espaço como eixo central de sua organização, na vida diária – através da mesquita – e na umma, por meio de Meca.

O sentido das viagens realizadas por Khaldun e Battuta pode ser melhor compreendido se colocado em termos da teoria do conhecimento do islamismo. Diferentemente do cristianismo, que prega separação entre mundo temporal e espiritual, o islã define a unidade entre essas realidades. O Corão incita os fiéis a olharem o mundo com curiosidade, pois nele se expressa a palavra de Deus. A religião estimula a ciência e, no período do medievo, a produção científica muçulmana era enorme, legando às estantes da Cristandade a maior parte das traduções da filosofia grega, que chegaram à língua latina através do árabe. A incorporação dos conhecimentos e sua transformação, buscando atender às necessidades da comunidade muçulmana, geraram um período de grande riqueza intelectual, expressa no universalismo científico e religioso da umma.

Ao romper estereótipos e preconceitos acerca do islamismo, Beatriz Bissio convidanos a um novo olhar sobre o Oriente. Ao dialogar com Ibn Khaldun, repete-lhe as conclusões: “o mundo parece estar mudando de natureza” [5], bem como é preciso que mudemos a natureza de nosso olhar sobre ele. Sua leitura apresenta-nos a possibilidade de reflexão sobre mundo além do panóptico europeu. Relações que se tecem e se reproduzem sem, necessariamente, ter o Ocidente como causa ou objeto. Somos apresentados ao islã com olhar de proximidade, de encanto e encontro. Unidos na natureza humana, mas também herdeiros do legado árabemuçulmano que nossa cultura ocidentalizante insiste em invisibilizar, vislumbramos um mundo criativo, dinâmico, parte de nossa formação histórica. Um mundo que vai muito além da sombra do Ocidente.

Notas

1. Doutorando em História na Universidade Federal de Minas Gerais com bolsa oferecida pela Fapemig, agência a qual o autor remete seus agradecimentos. Contato: [email protected].

2. SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras. 1990.

3. PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização, Uma Abordagem Antropológica. Aparecida: Santuário, 2010.

4. LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp. 2003.

5. BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p.292.

Thiago Henrique Mota1 – Doutorando em História na Universidade Federal de Minas Gerais com bolsa oferecida pela Fapemig, agência a qual o autor remete seus agradecimentos. Contato: [email protected]


BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.  Resenha de: MOTA, Thiago Henrique. Além da sombra do Ocidente: o mundo árabe que nós desconhecemos. Aedos. Porto Alegre, v.7, n.16, p.502-507, jul.,2015. Acessar publicação original [DR]

O Brasil Colonial – Volume 1, 1443-1580 | João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa

A apresentação da coleção O Brasil Colonial, organizada pelos professores João Fragoso (professor titular da UFRJ) e Maria de Fátima Gouvêa (professora da UFF, falecida precocemente em 2009) tem como título La guerre est finie. Provocante expressão para designar os últimos 20 anos de um debate historiográfico, às vezes acirrados, no qual os estudiosos sobre o Brasil no período colonial têm travado, a partir da crítica feita à concepção de um Antigo Sistema Colonial, consagrada por Fernando Novais, Professor da USP e do Instituto de economia/UNICAMP, por um grupo de professores do Rio de Janeiro, professores da UFRJ, UFF e UFRRJ, bem como de colegas portugueses, como o Prof. António Manuel Hespanha. A expressão também sugere uma ideia de que os organizadores têm sobre o atual estágio da historiografia brasileira, ou seja, os conceitos utilizados e a discussão trazida por ambos fossem a vitoriosa no meio acadêmico nacional.

Não se tem dúvidas que desde a publicação, no ano 2001, do livro O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa: (séculos XVI-XVIII), organizados pelos mesmos autores mais a Maria Fernanda Bicalho, Professora da UFF, juntamente com o acesso aos milhares de documentos da coleção Resgate, que contém a documentação riquíssima do Arquivo Histórico Ultramarino, houve um boom dos estudos sobre a colônia portuguesa na América. O grupo do ART, Antigo Regime nos Trópicos, como é conhecido no meio universitário especializado, de fato trouxe novas abordagens, a luz de conceitos discutidos em Portugal, Espanha e Estados Unidos, trazendo para o Brasil e para a história do Brasil novas possibilidades de análise. O grupo lançou outras coletâneas, no qual os participantes não necessariamente compactuam piamente com as ideias dos nomes mais conhecidos, e mesmo após 15 anos do marco inicial, algumas noções foram modificadas ou aprofundadas, felizmente, visto que a história é dinâmica. Leia Mais

Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética – SANDEL (C)

SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. Trad. de Ana Carolina Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Resenha de: MEURER, Quétlin Nicole. Conjectura, Caxias do Sul, v. 20, n. 2, p. 230-237, maio/ago, 2015.

Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética é fruto de vários estudos e principalmente da participação do autor no Conselho de Bioética criado pelo presidente George W. Bush em 2001, com o intuito de refletir em torno de temas controversos ligados à engenharia genética. Por isso, o autor explora dilemas morais relacionados à busca do ser humano para aperfeiçoar a espécie.

O livro é dividido em cinco capítulos: a ética do melhoramento; atletas biônicos; filhos projetados, pais projetistas; a nova e a velha eugenia; e domínio e talento; além do epílogo. Também conta com notas e índice remissivo, o que permite melhor manuseio da obra.

O primeiro capítulo abre-se com reportagens de jornais, como do Washington Post, que relatam histórias sobre escolhas genéticas. O autor se pergunta: O que há exatamente de errado em gerar um filho que seja um gêmeo idêntico do pai ou da mãe, de um irmão mais velho que morreu tragicamente ou, até mesmo, de um cientista, um atleta ou uma celebridade admirada? Discute, a partir de então, o porquê de nos sentirmos perturbados com essa ideia. O problema inicial estaria na falta de autonomia dessas crianças que nasceriam predeterminadas, ou seja, não inteiramente livres. Entretanto, posteriormente, desfaz esse argumento, uma vez que, mesmo não havendo um projetista (nesse caso os pais), ninguém escolhe sua herança genética. Mesmo assim, o fato de crianças poderem ser geradas sob encomenda nos causa uma imensa inquietude moral. Segundo o autor, existem exemplos de biotecnologia desenhados no horizonte: melhoramento muscular, da memória, da altura e escolha do sexo, sendo eles uma escolha de consumo.

Então, apesar de todos os melhoramentos genéticos começarem na tentativa de prevenir uma doença ou um distúrbio genético, hoje são instrumentos de melhoria da espécie. A diferença, portanto, entre curar e melhorar tem cunho moral. Logicamente, é sabido que, quando a ciência avança mais depressa do que a compreensão moral, a humanidade luta para articular seu mal-estar com conceitos de justiça, autonomia e direitos humanos. Porém, nos parece, assim como para o autor, que o melhoramento de músculos em atletas para torná-los mais competitivos, por exemplo, não está relacionado com uma questão de justiça. Já existem atletas mais aptos geneticamente, simplesmente por herança e se esse fosse o principal argumento, se essas modificações estivessem disponíveis a todos, não haveria problemas a serem discutidos. Isso, no entanto, não acontece. A questão censurável, portanto, está voltada a motivos que vão além da justiça e da igualdade.

No segundo capítulo, analisa nossa resposta moral ao melhoramento, isto é, não haveria mais dedicação e talento; significa que daríamos mais importância ao farmacêutico do que ao jogador, por exemplo, uma vez que treinamento e disciplina não teriam mais importância, mas sim, o melhoramento genético a que foi submetido o atleta. O problema estaria no que Sandel chama de “superoperação, uma aspiração prometeica de remodelar a natureza, incluindo a natureza humana, para servir aos nossos propósitos e satisfazer os nossos desejos”. (p. 40). Não haveria mais dádiva na natureza humana. Reconhecer que a vida é uma dádiva é reconhecer que nossos talentos não são mérito unicamente nosso. Isso nos conduz à humildade e, apesar de parecer religioso, tem efeitos para além da religião. Entretanto, tem-se percebido diversas formas de “alterar” atletas sem esteroides ou qualquer outro medicamento ou mesmo sem modificações genéticas. Os casos apresentados pelo autor são a dieta hipercalórica para ganho de peso de alguns jogadores de futebol americano e da casa da Nike nos EUA, que possui oxigênio limitado, a fim de simular grandes altitudes e aumentar, desta forma, a produção de glóbulos vermelhos nos atletas. Esse aumento os tornaria mais aptos à corrida, uma vez que estariam acostumando seu corpo à reduzida oxigenação. Desse ponto, faz uma análise sob duas perspectivas: se, por um lado, considerarmos o esporte como sendo uma disputa de talentos, esse ficaria prejudicado com as modificações genéticas.

Entretanto, por outro, se fosse apenas um entretenimento, em que regras são pouco importantes, e o que faz a diferença é a quantidade de público que atrai, poderia ficar beneficiado caso atraísse mais pessoas. Porém, é óbvio que o esporte evidencia uma disputa de talentos e que, se fosse apenas um passatempo, não existiriam regras nem torcida e, tampouco, disputa admirada pelos espectadores. Os jogadores seriam nivelados, de certa forma, pela engenharia genética.

Em “Filhos projetados, pais projetistas” fica evidente a intenção do autor em demonstrar o lado perturbador da eugenia. Para ele, os filhos sempre foram dádivas e merecedores de amor incondicional dos pais. O amor destinado aos filhos nunca foi dependente das qualidades e talentos que esses, porventura, pudessem possuir ou vir a adquirir. Não escolhemos, em suma, nossos filhos e, tampouco, o seu futuro.

Entretanto, há pelo menos uma década, os pais resolveram se tornar maestros da vida dos filhos. Além de exercerem sua função natural de educadores, interferem de modo pontual na vida deles: matriculam-nos nas melhores escolas, em alguma atividade esportiva, em aulas de balé, contratam professores particulares e, inclusive, encaminham-nos a curso pré-vestibular para que possam frequentar as melhores universidades.

O autor aponta que nos Estados Unidos os administradores de faculdades precisam ser treinados para controlar pais dominadores que chegam a fazer as monografias dos filhos e dormir em conjuntos habitacionais estudantis para averiguar exatamente como os filhos estão se portando.

Outro apontamento é o uso excessivo de medicamentos como a Ritalina. Tal medicamento que anteriormente era utilizado apenas para tratar distúrbios de deficit de atenção, hoje, é utilizado em pessoas perfeitamente saudáveis para aumentar a sua concentração. É claro que o amor incondicional não impede que os pais moldem e dirijam a vida de seus filhos de modo a desenvolvê-los da melhor maneira possível. Por isso, a pergunta central deste capítulo é: Qual a diferença que há entre oferecer ajuda aos filhos por meio de educação e disciplina e fornecê-las por meio do melhoramento genético? A diferença, segundo o autor, reside no fato de que os pais que desejam melhorar os filhos tendem a exagerar e a converter os mesmos em produtos da sua vontade ou instrumentos da sua ambição: pais alucinados por algum tipo de esporte acabam determinados a transformar os filhos em campeões. Há, também, aqueles que predeterminam a profissão da criança. O autor termina o capítulo  com a opinião de que, no campo da moral, a eugenia e a educação fornecidas por pais ansiosos em moldar seus filhos não apresentam grande distanciamento. Ao mesmo tempo, porém, não devemos abraçar, por isso, a eugenia. Devemos, sim, questionar essa dominação dos pais que deixam de lado o sentido de dádiva da vida.

A velha e a nova eugenias demonstram que não há grande diferença entre o que se pensava e o que se pensa hoje em termos de engenharia genética. Primeiramente, cabe destacar que o termo eugenia foi criado pelo cientista Francis Galton com o sentido de bem-nascido. Ele entendia que o principal papel da racionalidade era o aprimoramento da raça humana, e que essa ideia deveria ser uma nova religião. Em nome disso, inúmeras pessoas (para catalogar e coletar dados) foram encaminhadas a prisões, hospitais, asilos e sanatórios, juntamente com outras que já se encontravam nesses lugares, após serem consideradas defeituosas, foram esterilizadas. Destaca-se que em 1927, a Suprema Corte dos Estados Unidos defendeu a constitucionalidade das leis de esterilização dos mais diversos Estados do país em nome da não propagação de uma raça de manifestamente inadequados. Da mesma forma, em 1933, quando conquistou o poder, Adolf Hitler promulgou uma lei de esterilização na Alemanha sobre a qual orgulhosamente se manifestou em Mein Kampf [Minha luta]. Contudo, como se sabe, a eugenia alemã foi muito além da esterilização, com assassinatos em massa. Em momento mais recente, por volta de 1980, o governo de Cingapura ofertava dinheiro às famílias pobres que se submetessem à esterilização e estimulava, ao mesmo tempo, mulheres de nível universitário a terem mais filhos. Isso tudo em nome da preservação dos padrões de educação. Apenas a título de curiosidade, somente em 2003 (após reportagens investigativas) os americanos fizeram pedidos formais de desculpas aos esterilizados compulsoriamente. Assim, o termo eugenia, no passado, passou a ter um sentido repugnante. Hoje, não está mais ligada ao Estado, mas às ambições humanas e, consequentemente, ao comércio de genes. Pais podem comprar óvulos e espermatozoides com características genéticas que desejam para os filhos e procederem a uma inseminação artificial, sem qualquer coerção. Isso demonstra que não era a coerção do Estado o único problema. Com a liberdade de escolha, as intenções eugênicas do passado não foram deixadas de lado, o que provoca um mal-estar social. Os bancos de semên catalogam apenas doadores com características exigidas pelos clientes, entre elas, formação universitária. É claro que há biótipos determinados  também. Assim, o discurso sobre a biotecnologia vem sendo revivido principalmente no que diz respeito a uma eugenia liberal. Geneticistas, atualmente, acreditam que se os melhoramentos fossem distribuídos de modo igualitário, as medidas eugênicas não seriam censuráveis, mas moralmente necessárias. Para endossar essa ideia, o autor cita John Rawls (Teoria da Justiça) e Ronald Dworkin (Playing God: Genes, Clones and Luck). A diferença primordial entre a eugenia do passado e a atual está no individualismo. Antes se tinha um Estado autoritário e disposto a melhorar a sociedade como um todo e com métodos discutíveis, é claro.

Hoje, se trata de pais abonados financeiramente e dispostos a pagar quantias altas para terem filhos conforme desejam e armá-los para uma sociedade competitiva. O autor destaca que os eugenistas liberais, em sua maioria, defendem, também, que essas modificações devem deixar em aberto o futuro dessas crianças, ou seja, não podem determinar carreiras ou modos de vida. Embora com defensores de peso já citados anteriormente, é trazido à baila um importante filósofo alemão contrário a essa permissividade. Trata-se de Jürgen Habermas. Sandel informa que, na teoria de Habermas, a eugenia liberal não pode ser permitida, uma vez que desconsidera conceitos espirituais e teológicos, além da autonomia e da liberdade – não depende de nenhuma concepção particular de bem-viver. Prejudicaria a autonomia uma vez que esses indivíduos não seriam autores da própria história e, quanto à liberdade, na medida em que destrói relações simétricas entre seres humanos livres e iguais. Termina esse capítulo informando que a teoria de Habermas é muito mais profunda, pois leva em conta, ainda, talentos adquiridos e conquistas humanas, bem como a postura dos pais diante do mundo e suas atitudes de dominação dos filhos.

No último capítulo, “Domínio e talento”, as questões centrais são a humildade, a responsabilidade e a solidariedade diante da possibilidade de a biotecnologia dissolver nosso senso de dádiva em relação à vida.

Sob a ótica da religião, não compreender que nossos talentos e nossas potências não se devem unicamente a nós mesmos é não compreender nosso lugar na criação e confundir nosso papel com o de Deus. Mas não é só sob o ponto de vista da religião que podemos descrever nossa relação com a humildade, com a responsabilidade e com a solidariedade. Em um mundo social que preza o domínio e o controle, a experiência de ser pai ou mãe é uma escola de humildade, já que não podemos escolher os filhos que teremos. Essa também seria diminuída ao passo que nos  acostumaríamos ao automelhoramos ou deixássemos de escolher determinadas características: mestres de nossas cargas genéticas, maior o fardo que carregaremos em relação às qualidades que não possuímos.

Isso, paradoxalmente, poderá reduzir nosso grau de solidariedade com os mais carentes. O autor aponta (como exemplo) os planos de saúde. Os saudáveis acabam subsidiando os doentes, uma vez que unem seus recursos e riscos. Isso só acontece porque as pessoas não conhecem nem controlam os próprios fatores de risco. Se conhecessem, provavelmente, não nutririam qualquer sentimento moral que a solidariedade social requer. Os bem-sucedidos não sustentariam a noção de dádiva (que nenhum de nós é completamente responsável pelo próprio sucesso) que os premiou e não sentiriam qualquer responsabilidade moral em relação aos menos afortunados na loteria genética. Por se tratar do último capítulo, o autor defende seus argumentos contra o melhoramento genético pressupondo as objeções que outros autores poderiam fazer a tais argumentos. Em relação à vida ser uma dádiva, explicita que não há, necessariamente, uma questão religiosa relacionada, pois, embora alguns creiam que Deus é o responsável pela nossa vida, não é preciso acreditar nele para valorizar a vida e a reverenciar. Podemos compreender a vida como um direito inalienável e inviolável sem, necessariamente, abraçar os conceitos de santidade. Após, Sandel argumenta que não deseja provar que o custo da biotecnologia é maior que o benefício.

Apenas acredita na ponderação, uma vez que as modificações genéticas são aparentemente uma forma de nos dominarmos para nos encaixar no mundo. Isso não é autonomia; é apenas contemplar nossa vontade. Além disso, poderá significar um retrocesso, uma vez que, após décadas, o homem percebeu que não precisa dominar a natureza, mas apenas juntar-se a ela como parte dela.

Para finalizar, no epílogo, cujo título inicial refere-se à ética embrionária, o autor defende que há diferença entre curar e melhorar. Defende a pesquisa com células-tronco para a cura de doenças, argumentando que nem tudo que nos é dado é uma dádiva e que, para a cura de determinadas doenças, é necessária tal manipulação de genes.

Nesse sentindo, não seria uma conduta antiética. Porém, tal questão retoma antigas discussões sobre a existência (ou não) de vida nesse estágio do embrião. Além disso, questiona-se a existência de diferença na conduta humana: se esses embriões fossem excedentes e descartados de tratamentos para infertilidade ou se fossem clones, a conduta humana na pesquisa seria eticamente louvável? O projeto de lei sobre células-tronco votado pelo Congresso americano (vetado por Bush em 2006) fazia distinção e só permitia pesquisas com embriões excedentes de tratamentos de infertilidade. Aparentemente, essa distinção parece moralmente defensável, mas não se sustenta sob o ponto de vista de que não deveria haver embriões excedentes (na Alemanha há lei que proíbe os médicos de fertilizarem óvulos que não serão implantados). Destaca-se, que para fins de pesquisa, o embrião acaba por ser destruído na fase de blastócito (células das quais se pode reproduzir tecidos humanos).

Assim, parece-nos um tanto mórbido, ao menos, criar vidas humanas para destruí-las com o único propósito de explorá-las. Alguns senadores norte-americanos, à época, justificaram seu voto desfavorável afirmando que não se pode considerar aceitável matar deliberadamente um ser humano para ajudar outro. Porém, os que eram a favor da pesquisa argumentavam que a Fecundação In Vitro (FIV) produz inúmeros embriões excedentes para aumentar as probabilidades de uma gravidez bem-sucedida, já sabendo que vários serão descartados. Então, se poderia utilizar esses excedentes, que teoricamente serão descartados, para salvar vidas. Segundo dados trazidos pelo autor, um estudo recente revelou que 400 mil embriões congelados estão definhando nos Estados Unidos.

Assim, uma vez que esses embriões já existem, não haveria nada a perder. Entretanto, quanto ao embrião-clone ou ao excedente, como bem argumenta o autor, não há diferença. Se considerarmos antiética a destruição de embriões excedentes para fins de pesquisa por já haver vida, da mesma forma temos que considerar na clonagem. Não há como fazer diferença sobre esse aspecto, uma vez que o cerne da questão é a existência de vida na fase em que são destruídos os embriões. Para Sandel, blastócitos são apenas células e não um bebê propriamente dito, considerando falha a crença religiosa de que a alma surge no momento da concepção, e que a vida humana é inviolável desde essa mesma concepção, já que não há uma linha para delimitar o início da personalidade. Para ele o blastócito é como uma célula epitelial. Ninguém negaria que é humana e viva, mas também ninguém tentaria argumentar que se trata de um ser humano propriamente dito. Sustenta que o fato de toda pessoa ter sido um dia um embrião não prova que o embrião é pessoa, são apenas seres humanos em potencial. A vida humana se desenvolve em níveis. O fato de haver um desenvolvimento contínuo que transforma o blastócito em embrião, esse em feto e, finalmente, em recém-nascido, não determinaria que um bebê e um blastócito fossem, no sentido moral, equivalentes. Na verdade, se estivéssemos convencidos de que são equivalentes, proibiríamos as pesquisas com células-tronco e baniríamos tratamentos de fertilidade que produzem e descartam embriões excedentes, tratando como assassinato e sujeitando os cientistas à punição criminal.

Outro argumento do autor é o de que muitos embriões são perdidos durante uma gestação natural, ou por aborto, ou por não conseguirem se fixar no útero, e, em nenhum desses casos, a religião (maior defensora da vida incipiente) prega que se façam os rituais funerários que se fariam para a morte de um bebê. Deixa claro, entretanto, que os embriões não são objetos ao nosso dispor. Devem ser respeitados como vida em potencial, e só não devem ser considerados pessoas. Para ele não devemos partir da alegação kantiana de que o universo moral se divide em termos binários: tudo é pessoa ou coisa. Afirma, ainda, que a pesquisa com células-tronco voltada à cura de doenças debilitantes é um exercício nobre do engenho humano para promover a cura e desempenhar nosso papel de reparar o mundo dado. A única ressalva é a necessidade de leis que regulamentem essas pesquisas para tornar o progresso da biomedicina uma bênção para a saúde e frear o uso descontrolado da vida humana.

Quétlin Nicole Meurer – Mestranda em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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Dinheiro, Deuses e Poder. 2.500 anos de lendas, mitos, símbolos, fatos e História Política das moedas – SPINOLA (RMA)

SPINOLA, Noenio. Dinheiro, Deuses e Poder. 2.500 anos de lendas, mitos, símbolos, fatos e História Política das moedas. São Paulo: Civilização Brasileira, 2011. Resenha de: CARLAN, Claudio Umpierre. Revista Mundo Antigo, ano III, v. 3, n 05, jul., 2014.

Termo bárbaro, de uma maneira em geral foi utilizado para definir os povos germânicos, eslavos e tártaros-mongóis, que invadiram Mundo Romano, a partir do século III da era Cristã. A tradução tradicional, idealizada por gregos e, mais tarde, romanos, eram povos que não falavam latim ou grego, usavam calças compridas.

Essa construção, do século XIX, contou com apoio do historiador alemão Leopold Von Ranke (1795 – 1886), quando afirmou que a História não nasceu ciência, mas foi transformada em uma disciplina científica. Ranke defendia o uso apenas de fontes escritas, baseadas no rigor científico newtoniano. Arqueologia, cultura material, iconografia não eram consideradas documentos ou fontes históricas. Leia Mais

O Passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina – PINTO; MARTINHO (RBH)

PINTO, António Costa; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.). O Passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. 336p. Resenha de: WASSERMAN, Claudia. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.34, n.67, jan./jun. 2014.

O passado ressurgirá mesmo quando existe um acordo inicial de esquecê-lo.

Alexandra Baharona de Brito e Mario Snajder

A historiografia sul-americana tem se dedicado ao tema das ditaduras de segurança nacional desde a sua implantação, em meados dos anos 1960, e o tema continua tendo desdobramentos importantes. A caracterização dos regimes – fascistas, burocrático-autoritários, civil-militares, ditatoriais, totalitários etc. –, a diferenciação com as ditaduras pregressas, o papel dos militares na política, os atores, o contexto nacional e internacional, a influência e participação dos Estados Unidos, o papel desempenhado pela Doutrina de Segurança Nacional (DSN), o esgotamento de um modelo de acumulação capitalista, o papel dos empresários nos golpes, o estudo sobre a resistência aos golpes, a guerrilha, as organizações de esquerda e as memórias de militantes foram objeto de pesquisa dos historiadores e mereceram atenção em livros e coletâneas. Nos primeiros anos do século XXI, o tema das ditaduras latino-americanas entrou definitivamente em outro campo referente ao debate sobre as políticas de memória instituídas ou não pelos governos pós-ditatoriais. Em 2014 o golpe de 1964 no Brasil completa 50 anos, data “redonda” consagrada para discussão e reflexão a respeito do legado autoritário, ou do quanto “restou” de resíduos na nossa sociedade brasileira do regime implantado a partir do golpe.

O livro organizado por Francisco Carlos Palomanes Martinho e António Costa Pinto, O passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina, está dedicado justamente a essa temática. Composto de dez capítulos que discutem temas fundamentais do legado autoritário em vários países na Europa e da América do Sul, o livro trata do ressurgimento e interpretação do passado autoritário durante as transições democráticas na Itália, Espanha, Portugal, Grécia e Brasil. Os casos são debatidos em um duplo sentido: as formas através das quais as elites políticas se apropriaram do acontecido e com ele lidaram, e a presença do passado no seio da sociedade.

O eixo que organiza a obra é a atitude perante o passado autoritário, notadamente as questões relacionadas à justiça de transição. Os capítulos estão embasados em forte teorização a respeito da transição democrática e de suas condicionalidades. O livro procura debater a hipótese de que a qualidade das democracias contemporâneas está fortemente influenciada pelo modo como as sociedades em transição lidaram com o seu passado autoritário. Punição das elites autoritárias, dissolução das instituições correspondentes, responsabilização dos indivíduos e do Estado pela violação dos direitos humanos são aspectos possíveis no cenário da justiça de transição ou do estabelecimento de uma “política do passado”.

Segundo a introdução de Costa Pinto, o volume está estruturado sobre três eixos, a saber: legados autoritários, justiça de transição e políticas do passado (p.19). No texto, um dos dois organizadores do volume procura esclarecer e estabelecer limites entre as definições de conceitos associados uns aos outros.

Por legado autoritário entendem-se “todos os padrões comportamentais, regras, relações, situações sociais e políticas, normas, procedimentos e instituições, quer introduzidos quer claramente reforçados pelo regime autoritário imediatamente anterior, que sobrevivem a mudança de regime…” (p.20). Os capítulos referem-se particularmente a dois legados: a permanência das elites políticas que apoiaram os regimes autoritários e a conservação de instituições repressivas.

Por justiça de transição entende-se toda “uma série de medidas tomadas durante o processo de democratização, as quais vão além da mera criminalização da elite autoritária e dos seus colaboradores e agentes repressivos e implicam igualmente uma grande diversidade de esforços extrajudiciais para erradicar o legado do anterior poder repressivo, tais como investigações históricas oficiais sobre a repressão dos regimes autoritários, saneamentos, reparações, dissolução de instituições, comissões da verdade e outras medidas que se tomam durante um processo de transição democrática” (apud Cesarini, p.22), ou “a justiça de transição é componente de um processo de mudança de regime, cujas diferentes facetas são uma parte integrante desse processo incerto e excepcional que tem lugar entre a dissolução do autoritarismo e a institucionalização da democracia” (p.23). Significa dizer que as decisões tomadas no âmbito da justiça de transição não são necessariamente punitivas. Podem ensejar a reconciliação ou combinar ambas as coisas. Ressaltam, pois, a forma como ocorrem as transições e a qualidade da democracia que está sendo proposta e instaurada.

Finalmente, por política do passado entende-se “um processo em desenvolvimento, no âmbito do qual as elites e a sociedade reveem, negociam e por vezes se desentendem em relação ao significado do passado autoritário e das injustiças passadas, em termos daquilo que esperam alcançar na qualidade presente e futura das suas democracias” (p.24). A política do passado envolve a forma como o passado é trazido à tona nos novos regimes democráticos, e a qualidade da democracia vai depender dessas atitudes, condenatórias ou sutilmente críticas. Ao longo dos capítulos do livro percebe-se que com respeito à política do passado, a ruptura foi menos frequente do que a convivência com os resíduos do autoritarismo, e que o tempo transcorrido entre a redemocratização e o estabelecimento de uma política do passado também deve ser considerado para comparar os diversos casos. A existência de múltiplos passados confrontados em sociedades recém-democratizadas conduz a uma diversidade de formas de lidar com o passado autoritário que vão desde a conciliação (transição pactuada ou negociada), com o estabelecimento de medidas de reconciliação em relação aos crimes cometidos pelo Estado, até a instauração de uma justiça de saneamento (transição por ruptura) com medidas punitivas.

Ao longo dos capítulos instauraram-se, portanto, as seguintes questões: nos casos estudados tratou-se de “esquecer ou reavivar o passado?”, “ocultar ou trazer à tona a memória do autoritarismo e/ou da resistência?”, “enfrentar ou não o passado autoritário?” e, finalmente, “é possível optar entre confrontar o passado ou esquecê-lo?”. Costa Pinto observa que mesmo diante da consolidação da democracia “as velhas clivagens da transição não desaparecem como por milagre: podem reemergir em conjunturas específicas” (p.29), e é isso que nos leva a compreender a frase que serviu de epígrafe à resenha: “O passado ressurgirá mesmo quando existe um acordo inicial de esquecê-lo” (p.300), aplicada aqui à realidade espanhola.

A instauração de uma política do passado depende de circunstâncias relacionadas com a força dos partidos políticos; os agentes que conduzem a transição; os traços singulares de cada ditadura (relativos à memória coletiva e ao terror instaurado no seio da sociedade); ao tempo de duração de cada ditadura; à qualidade da democracia anterior (cultura política); à autocrítica dos atores (políticos e intelectuais); o rompimento súbito ou prolongado com o regime autoritário; a capacidade dos atores políticos, intelectuais e midiáticos em incluir ou retirar os temas “política de memória, justiça de transição e avaliação do legado autoritário” da agenda a ser debatida pela sociedade como um todo, entre outros fatores mencionados ao longo dos capítulos.

No capítulo introdutório, Costa Pinto compara os casos de Itália, Espanha, Portugal e Grécia, sendo os três primeiros exemplos de ditaduras duradouras, com lideranças personalizadas e alto grau de inovação institucional, enquanto a Grécia assemelhou-se a um regime de exceção. As definições conceituais e a tentativa de comparação entre as quatro transições que aparecem no capítulo compensam a ausência de profundidade de cada um dos casos.

Marco Tarchi se debruça sobre “O passado fascista e a democracia na Itália”. Trata da queda do regime autoritário, do regresso da classe dirigente anterior ao fascismo, das diferenças entre o Sul e o Norte do país, dos matizes ideológicos de cada partido antifascista (dos mais moderados aos mais radicais) e, por consequência, das diferentes visões sobre a justiça de transição ou dos métodos para “desfascistizar o país” (p.51). Ainda se refere aos detalhes que envolveram o “ajuste de contas” – os ataques aos símbolos do regime, a dissolução das instituições do regime – e à política de saneamentos que vigorou na administração pública. No caso italiano, também se observa a pressão exercida pelos Aliados no sentido de garantir o julgamento dos que haviam colaborado com os alemães. A condenação pública do regime de Mussolini e atos de extrema violência verificados no processo transicional podem ser explicados também com base nessas pressões.

O capítulo sobre a justiça de transição em Portugal, escrito por Filipa Raimundo, trata da criminalização dos antigos membros da polícia política do Estado Novo. Aborda especialmente o papel dos partidos políticos no processo procurando elucidar como se constituiu o sistema partidário, quando a questão da justiça de transição entrou na agenda dos políticos e como os partidos se posicionaram a respeito das medidas punitivas. Através de quadros sintéticos, a autora verifica avanços e retrocessos nas medidas punitivas e, simultaneamente, aborda os reflexos na legislação que regulou o processo. Apresenta uma análise da imprensa diária e semanal, dos programas eleitorais e da imprensa partidária para avaliar a importância do tema.

Francisco Carlos Palomanes Martinho aborda “As elites políticas do Estado Novo e o 25 de abril”, através da memória construída em torno do último presidente do Conselho dos Ministros do Estado Novo, Marcello Caetano, em dois períodos: 1980, o ano de sua morte, e 2006, no ano do centenário de nascimento. Os dois períodos são contextualizados e ajudam a explicar a “batalha de memórias” (apud Pollak, p.128). O texto está apoiado em ampla bibliografia a respeito do político e verifica a ambivalência de sua trajetória, bem como questiona sobre o possível “encapsulamento” da memória no final do seu governo, o que reduziria, segundo Martinho, injustamente o papel dessa personagem. O capítulo não reabilita Caetano ou o Estado Novo, mas contribui para entender os objetivos do regime e as “artimanhas da memória” (p.155).

O caso da Espanha é abordado pelo capítulo de Carsten Humlebaek como um caso de transição negociada, em que a forte polarização da sociedade no período da ditadura resultou na necessidade de reconciliação na época da queda do franquismo. Segundo o autor: “A combinação da necessidade de reconciliar a nação com o medo de conflito traduziu-se numa procura obsessiva de consenso como um princípio indispensável para a mudança política depois de Franco, mas também fez os principais atores absterem-se de qualquer tipo de mudança abrupta que pudesse ser interpretada como revolucionária” (p.161). Humlebaek contextualiza o reaparecimento do tema na virada do século XXI, sobretudo na esfera pública, e descreve as organizações que surgiram em torno do tema.

Dimitri Sotiropoulos trata do caso grego e compara-o às transições na Espanha e em Portugal. O capítulo aborda o regime dos coronéis, a sua derrocada e a aplicação muito severa da justiça de transição que promoveu saneamento das instituições, inclusive das Forças Armadas. Revela igualmente, mediante pesquisa de opinião pública, que a sociedade grega não tem uma memória precisa de rejeição ao regime ditatorial. Segundo sua visão, o modelo grego de justiça de transição teve caráter “rápido e comedido” (p.212), o que ajuda a explicar o apagamento ou atenuação da memória a respeito do regime.

O capítulo dedicado ao Brasil, escrito por Daniel Aarão Reis Filho, debate a lei da anistia, aprovada no país em 1979, no que se refere aos “silêncios” que a legislação ajudou a produzir (p.217), quais sejam, dos torturados e torturadores, das propostas revolucionárias de esquerda e do apoio da sociedade à ditadura. Em seguida, o autor considera a possibilidade de revisão da Lei da Anistia e observa que a chegada de antigos militantes de esquerda ao poder impulsionou “questionamento aos silêncios pactados em 1979” (p.224). Finalmente, Reis Filho se pergunta se é positivo ou não para a sociedade brasileira discutir esses silêncios. Segundo sua visão, debater o passado é a “melhor forma de pensar o presente e preparar o futuro” (p.225).

Alexandra Barahona de Brito também aborda o caso brasileiro, considerando-o como uma das transições mais longas da América Latina, onde supostamente “a duração e o ritmo da transição se deram mais pela ação dos militares do que pela pressão da sociedade civil” (p.236). Ao descrever a forma como os militares tutelaram o processo e menosprezar a resistência e a pressão da sociedade no final dos anos 1970, Brito contribui para mais um silêncio, dos tantos referidos por Reis Filho. O capítulo, ao contrário dos demais, expressou opiniões sem a devida comprovação, bem como procedeu à caracterização de processos com utilização de adjetivos não muito esclarecedores, como aquele que qualifica a política de Lula e Fernando Henrique Cardoso em relação ao passado de “esquizofrênica” (p.244 e 246). Ainda assim, o capítulo mostra os avanços na direção do estabelecimento de uma política de memória. Finalmente, as explicações sobre os motivos que tornaram tão lento, no Brasil, o ritmo da “justiça de transição”, enunciadas na página 253, parecem mais uma vez fruto de opinião e não de um estudo de fontes históricas e da cultura política do país.

O capítulo 9, de Leonardo Morlino, propõe uma análise comparada dos “Legados autoritários, das políticas do passado e da qualidade da democracia na Europa do Sul”. Retoma conceitos e teorias formulados e apresentados ao longo de todo o volume e sugere uma relação entre “inovação dos regimes, duração e tipo de transição” (p.271). Seu texto apresenta dados de pesquisas de opinião pública nos países da Europa do Sul a respeito das atitudes da sociedade em relação ao passado autoritário e reflete sobre a qualidade da democracia em cada país.

Finalmente, no último capítulo Alexandra Baharona de Brito e Mario Sznajder refletem sobre a “Política do passado na América Latina e Europa do Sul em perspectiva comparada”. Completam assim um volume que pretendeu a cada passo comparar os casos e tirar experiências comuns e singulares para explicar as transições democráticas no final do século XX. Grécia, Portugal e Espanha, além de Argentina, Uruguai e Chile, são examinados no capítulo. A abordagem central é a respeito da transição e da instauração de mecanismos de acionamento do passado. Reflete igualmente sobre os legados da ditadura em cada país e como esse legado interfere na implementação da justiça de transição.

Diante de um “passado que não passa” e de resíduos autoritários que permanecem latentes em todas as sociedades estudadas, a leitura do livro nos faz pensar muito sobre as políticas de passado instauradas pelos Estados democráticos e sobre o papel do historiador de ofício nesse processo. Visto que as políticas de memória instauradas pelos Estados vão se modificando com o tempo porque respondem às preocupações do presente e são emolduradas pelo contexto histórico-social concreto, o livro nos induz a refletir sobre o ofício e a responsabilidade do historiador diante dessas políticas de memória instauradas pelos Estados e acerca dos processos traumáticos vividos pelas sociedades. As dimensões problemáticas do passado são a matéria-prima do historiador. Por isso, consolidada a democracia, cada nova geração de historiadores vai debruçar-se sobre o tema do autoritarismo e da ditadura e procurar incrementar o acervo de informações sobre o período. Com base nesse acervo de informações, caberá aos historiadores refletir a respeito das políticas de memória e estabelecer com a maior precisão possível a diferença entre o passado que emana dos interesses rememorativos dos Estados e os prováveis esquecimentos, omissões e artimanhas da memória que possam se contrapor às informações levantadas pelo historiador a partir das fontes e da pesquisa científica.

Claudia Wasserman – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected].

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A expansão do Brasil e a formação dos Estados na bacia do Prata: Argentina/ Uruguai e Paraguai. Da colonização à Guerra da Tríplice Aliança | L. A. M. Bandeira

Em 1979, J. J. Chiavenato publicou reportagem jornalística de viés populista e anti-imperialista sobre a Guerra do Paraguai. Esse trabalho de divulgação histórica, de enorme sucesso, apoiava-se em temas da historiografia revisionista platina ignorados no Brasil (CHIAVENATO, 1986). O autor abraçava a tese de que a guerra era desejada pela Inglaterra, muito questionada no Prata (PEÑA, 1975, p. 61).

Em 1985, sem despertar maior discussão, Luiz Alberto Moniz Bandeira publicou, por pequena editora, O expansionismo brasileiro: o papel do Brasil na Bacia do Rio da Prata. Da colonização ao Império. O livro continha “apresentação” do autor assinada em fins de 1981 (BANDEIRA, 1985). No livro, o autor deu ampla abordagem à Guerra do Paraguai, embora o título do trabalho não conduzisse a essa percepção. Leia Mais

O que o dinheiro não compra – SANDEL (C)

SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. Resenha de: BERTONCELLO, Leandro da Silva Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 1, p. 191-194, jan/abr, 2014.

Michael Sandel é uma das mais renomadas autoridades da filosofia no contexto atual. Ele é mais conhecido em função do curso Justice, ministrado na Universidade de Harvard, disponível na internet no site <http://www.justiceharvard.org/>. Para um auditório lotado, Sandel lança a polêmica sobre questões, como: A tortura é justificável? ou Você furtaria um remédio de que seu filho necessita para sobreviver? ou, ainda: Às vezes é errado dizer a verdade? No seu mais recente livro, O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado (traduzido para o português por Clóvis Marques e publicado em 2012 pela Civilização Brasileira), Sandel analisa e critica a crescente mercantilização da vida moral. Demonstra, por exemplo, que, em algumas unidades carcerárias nos EUA, os presos podem pagar para desfrutar de acomodações melhores; casais estadunidenses podem pagar por uma barriga de aluguel na Índia, onde tal prática é permitida; na União Europeia, uma empresa pode pagar 13 euros pelo direito de lançar uma tonelada métrica de gás carbônico na atmosfera.

O autor reflete que, após o fim da Guerra Fria, quase tudo passou a poder ser comprado e vendido, e que os mercados passaram a governar nossa vida como nunca. Dois motivos são apontados para a preocupação com a invasão pelo mercado: a desigualdade, pois os pobres ficam cada vez mais afastados da influência política, de um bom atendimento médico, de uma casa em um bairro seguro e de escolas de qualidade (a distribuição de renda adquire importância maior); e a corrupção, pois os mercados corrompem ao estabelecer preços para coisas da vida, com o descarte de valores não vinculados à compra e venda. Leia Mais

Machado de Assis: por uma poética da emulação | João Cezar Castro Rocha

Em abril de 1878, em resenha ao recém-saído O Primo Basílio de Eça de Queirós, Machado de Assis – comentando o diálogo estabelecido pelo autor português com a tradição francesa, especialmente com Zola – afirma que se Eça “fora simples copista, o dever da crítica era deixá-lo, sem defesa, nas mãos do entusiasmo cego, que acabaria por matá-lo; mas é homem de talento” (CASTRO ROCHA, 2013, p.138). Ora, para quem bem conhece o vocabulário intelectual do século XIX brasileiro, associar a imitação da tradição francesa com talento pode soar com certa estranheza, haja vista o intenso esforço para a afirmação de uma produção cultural e literária dita própria e conseguir a denominada “independência de espírito” da nação. A resenha de Machado registra, porém, um importante influxo nessa linhagem interpretativa que irá marcar daí em diante a obra do autor, dando início à recuperação de uma interessante prática intelectual que se caracteriza, dentre outras formas, por uma maneira particular de lidar com a tradição e com a posição do homem brasileiro de letras naquele contexto. Leia Mais

Espada, cobiça e fé: as origens do Brasil | Francisco Wffort

É bem conhecido o gosto com que nossos “homens de letras” e intelectuais sugeriram “sínteses” e interpretações da formação histórica do Brasil, construindo as mais variadas avaliações sobre a colonização ibérica e seus desdobramentos na sociedade do Novo Mundo. A chamada “herança ibérica”, afinal, era a possibilidade de intervenção direta nos debates políticos e sociais referentes à formação do Brasil: é justamente nesse sentido que se situa o mais recente livro de Francisco Weffort (“Espada, cobiça e fé: as origens do Brasil”, editora Civilização Brasileira, 2012).

A ênfase da recente obra de Weffort recai sobre os séculos XVI e XVII (momento central para o entendimento das “origens do Brasil”, segundo o autor) – séculos que nos falam de perto: eles não estão suspensos num passado longínquo, como peças para a curiosidade de um antiquário. Afinal, como o autor explicita na célebre epígrafe retirada de Requiem for a nun, de Faulkner: “o passado não está morto e enterrado; na verdade, ele nem mesmo é passado”. Weffort, nesse sentido, apresenta uma discussão, a um só tempo, historiográfica e sociológica, buscando uma intervenção direta no debate político brasileiro: a proposta é refletir sobre a formação histórica da América Portuguesa, já que “nos primeiros tempos deste novo mundo nascido da violência, da cobiça e da fé, o que mais surpreende é o quanto sua história ajuda a compreender os tempos atuais”.[2]

A obra não se ocupa de pesquisas propriamente arquivísticas, de modo que dialoga fundamentalmente com documentos impressos (portanto, já publicados) da América colonial (Antonil, Gandavo, Barléus, Las Casas, Ruiz de Montoya etc.). As reflexões, a bem da verdade, ganham maior densidade com os diálogos estabelecidos entre os “clássicos” do pensamento brasileiro (Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Afonso Taunay, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Paulo Prado etc.), a historiografia mais recente sobre o período colonial brasileiro (Maria Fernanda Bicalho, Leslie Bethel, João Fragoso, Arno Wehling) e alguns nomes das ciências humanas em geral (Marc Bloch, C. Boxer, R. Blackburn, Norbert Elias, O. Patterson, Lewis Hanke, Q. Skinner, D. Brading). O autor, nesse sentido, empreende um significativo esforço em uma ampla análise preocupada em ressaltar as principais linhas de força (tendências históricas, por assim dizer) da formação sociopolítica brasileira.

A síntese sugerida por Weffort para o entendimento dos séculos XVI e XVII toma como ponto de partida o conceito de “conquista”: “sabemos que o Brasil, como os demais países ibero-americanos e o Novo Mundo em geral, foi conquistado em meio a guerras quase permanentes”.[3] A conquista da América Portuguesa seria um processo de dois séculos, de modo que, alimentada pela violência e pela fé, ela teria sido “um fenômeno geral das Américas, estabelecendo um padrão histórico que se prolongou além do século XVII”.[4] A abordagem sugere um interessante contraponto teórico com a própria historiografia brasileira: ao passo que, por meio do conceito de “colonização”, Fernando Novais destacava, no entendimento da formação colonial brasileira, a ocupação e a valorização das novas terras nas coordenadas socioeconômicas estruturais da Época Moderna (o “Sistema colonial”),[5] a ideia de “conquista” realçada por Weffort circunscreve a própria ocupação lusa das novas terras em um processo demarcado pela posse do território, conquista de riquezas e dominação dos povos indígenas. Além da cobiça pelo enriquecimento, o Brasil de Weffort foi profundamente marcado pela violência.

A conquista da América “nasceu, sobretudo, das memórias de um cruzadismo que, tendo sido um fenômeno geral da Europa nos séculos XI e XII, durou na Ibéria muito mais tempo do que se costuma admitir”.[6] A história da América, para o autor, está profundamente entrelaçada com a própria história Ibérica. Os séculos XVI e XVII de Weffort, portanto, estão tomados do espírito da longa Reconquista ibérica dos séculos VIII-XV: “a América Ibérica surgiu de um medievalismo, talvez já em decadência a partir do século XVI, mas que ainda trazia muito dos entusiasmos da Reconquista”,[7] de modo que a nova sociedade foi construída sobre um “rude medievalismo, agressivo e violento, que estabeleceu os inícios eminentemente rústicos de uma sociedade que tomará muito tempo para sofisticar-se e refinar-se”.[8]

Os ecos “medievais” destacados por Weffort nos primeiros séculos da “conquista”, bem entendido, não implicam necessariamente uma retomada do longo debate sobre as origens feudais, capitalistas ou escravistas do Brasil. Antes de privilegiar a estrutura socioeconômica, o “medievalismo” dos primeiros tempos dizia respeito às formas socioculturais introduzidas no Novo Mundo: é nesse sentido que se situa, por exemplo, o que o autor chama de “personalismo de fundo senhorial” da formação brasileira. Explorando o clássico debate espanhol entre Américo Castro e Sánchez-Albornoz, Weffort extrai da própria Reconquista o sobrepeso cultural e sociológico da pessoa no mundo ibérico, já que os cristãos “[…] acreditavam que sua crença na consciência da dimensão imperativa da pessoa (lhes) permitiria ascender da gleba ao poderio. Para eles, o fundamento da verdade estava em Deus e na pessoa do homem”.[9] Nesse sentido, em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, Weffort enfatizaria que “o personalismo é uma dimensão fundamental de nossa identidade”:[10] afinal, “encontra-se aí a raiz fundamental da subvalorização das normas e das leis, típica da cultura brasileira e hispano-americana em geral” (Weffort, aqui, não está tão distante da “cordialidade” magistralmente discutida por Sérgio Buarque de Holanda).[11] O autor, inclusive, assinala algumas implicações políticas desastrosas daquela crença senhorial no valor da pessoa no continente, construindo uma espécie de cultura do “casuísmo” que, contorcendo a lógica impessoal de leis e instituições às circunstâncias e aos interesses pessoais, teria algum peso no sem-número de “caudilhos”, ditadores e golpes que, de alguma forma, ainda assombram a América Latina.

A América de Weffort, no entanto, não se construiu apenas sobre as ruínas do passado ibérico. O dilema da própria “modernidade” americana, por assim dizer, está situado no que o autor chama de “paradoxos das origens”, ou seja, a complexa interação entre as heranças do Velho Mundo e a possibilidade de construção de uma sociedade peculiar, contando com elementos, instituições e processos sociais praticamente desconhecidos na composição social do mundo aquém-Pirineus. Base dessa espécie de “experimento americano” foi o complexo contato cultural entre europeus, indígenas e negros. Nesse sentido, a atuação de dominicanos e jesuítas junto às monarquias católicas ibéricas é central: tratava-se de uma concepção de império na qual “os sacerdotes se tornaram assessores das respectivas Coroas […] Assim, os dois países católicos tomaram trajetórias que os tornaram semelhantes a estados teocráticos”.[12] A visão de Weffort, aqui, parece excessivamente generalista, perdendo de vista, no caso português, por exemplo, as complexas inter-relações entre a Coroa e os jesuítas (relações que, a bem da verdade, nem sempre foram tão amigáveis). No entanto, apesar de perder nas nuanças, o autor ganha na abrangência explicativa: para Weffort, a conquista territorial, além da espada, fundamentou-se na própria “conquista espiritual” dos povos indígenas, sacramentando o domínio ibérico.

Especialmente no caso brasileiro, tratava-se de um domínio, aliás, bastante singular, já que se assentava em uma sociedade escravista, construída sobre um amplo processo de exploração da mão de obra africana. Após analisar as polêmicas e as indisposições de missionários portugueses e espanhóis em relação à escravidão indígena, Weffort assevera que “diferentemente da escravização dos índios, a escravidão dos negros […] tornou-se, de certo modo, invisível”.[13] Para o autor, isso “significa que essa parte fundamental da mentalidade colonial se manteve durante quase todo o primeiro século do país independente e se prolongou no racismo que conhecemos, em formas mitigadas, às vezes apenas disfarçadas, do Brasil contemporâneo.[14]

A própria peculiaridade das raízes ibéricas no Novo Mundo situa a formação do Brasil como um mundo de fronteira. Weffort, nesse sentido, mescla os Capítulos de história colonial, de Capistrano de Abreu, com as reflexões do clássico trabalho de Frederik Turner sobre a fronteira na expansão norte-americana ao Oeste: trata-se de definir a “fronteira”, a princípio, como um conceito de base sociológica, evidenciando o contato entre culturas como processo criador de interações e relações sociais. Weffort adensa o enfoque sociológico ressaltando fundamentalmente sua situação histórica na formação brasileira: “no sentido moderno, esse ponto de encontro entre a barbárie e a civilização é um fenômeno do mundo europeu em expansão. Tipicamente, é um fenômeno da chegada e do avanço dos europeus sobre o Novo Mundo”.[15] É justamente nesse sentido que a mescla entre Capistrano e Turner ganha sentido: ao passo que, nos Estados Unidos, a fronteira define-se na expansão oeste, “o Brasil tornou-se brasileiro” nas várias frentes (norte, sul e oeste) para o interior.

Na porção norte da América Portuguesa (sobretudo com as ocupações de Sergipe, Rio Grande do Norte, Maranhão e Pará) e nas terras mais ao sul (com as investidas sobre São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), Weffort destaca a ação de povoadores e o papel do bandeirismo, entendendo os séculos XVI e XVII como centrais para a definição moderna das fronteiras: “o sentido histórico mais abrangente que se atribui à noção de fronteira é a de um fator determinante da moderna civilização ocidental”.[16] O espaço americano – a um só tempo fronteira da conquista ibérica e fronteira sociológica do contato entre povos diversos – permite, segundo o autor, desdobrar a ideia de que “as sociedades modernas são em geral sociedades de fronteira, nascidas do influxo de centros mais modernos”.[17] Afinal, assevera Weffort, “no caso do Brasil, e talvez de outros países ibero-americanos, a fronteira sociológica criou as bases das fronteiras políticas, firmadas nos séculos XVIII e XIX”.[18]

A própria formação da estrutura política e social do Brasil, nesse sentido, situa-se justamente no entrelaçamento da “conquista” e da “fronteira” nos séculos XVI e XVII: “aqui, o sistema de produção não antecedeu ao sistema de dominação, mas criaram-se juntos”.[19] Portanto, dentro do processo mais amplo da conquista, o autor circunscreve a efetiva construção de uma nova experiência social nas novas terras – experiência fronteiriça que, torneada pela violência na subjugação da mão de obra (indígena e posteriormente africana) e pela cobiça de riquezas, logrou construir um domínio sobre a terra. Do processo sociopolítico mais amplo da conquista, o autor deriva toda uma forma social do “mando” e do “poder”, sintetizando um arco cronológico bastante extenso e complexo da história brasileira: para o autor, essa estrutura social foi projetada, em tempos mais recentes, sobre a “aristocracia” imperial e o “coronelismo” da República Velha. Nessa expansão da perspectiva cronológica, Weffort perde as mediações que marcam o exercício do poder político em diferentes contextos da história brasileira (Império e República, no caso): sacrifica, por assim dizer, a complexidade dos matizes, em prol da ênfase sobre uma forma mais geral do próprio exercício social da política.

De que modo, portanto, a história da própria América Portuguesa traz os dilemas do futuro Brasil? O livro de Weffort ensaia algumas observações sobre esta incômoda pergunta: a nova sociedade não rompeu com o passado, mas foi agregada a ele. “A nova sociedade nasceu da busca do futuro, e persiste até hoje nessa busca. Mas jamais rompeu, pelo menos não inteiramente, seus vínculos mais profundos com a tradição”.20 Escrito em tom ensaístico, extrapolando a formalidade acadêmica na análise dos textos de época e dos autores, o texto não hesita em fazer ousadas conexões com suas preocupações políticas do presente, buscando um entendimento da formação de um país construído sobre a espada, a cobiça e a fé – enfim, sobre uma ampla “conquista” (quase aventureira) militar, econômica e espiritual. Sintomático que, ao lado de Faulkner, o autor tenha colocado junto à epígrafe a conhecida passagem das Teses, de Walter Benjamin: “não existe documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie”. O ensaio de Weffort sugere uma necessária reflexão sobre os impasses e os fantasmas da nossa própria “modernidade”.

Notas

2. WEFFORT, Francisco. Espada, cobiça e fé: as origens do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012b. p. 11.

3. Ibid., p.17.

4. Ibid., p.21.

5. NOVAIS, Fernando. Colonização e Sistema Colonial: discussão de conceitos e perspectiva histórica. In: NOVAIS, Fernando. Aproximações: ensaios de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

6. WEFFORT, 2012b, p.27.

7. Ibid., p.64.

8. Ibid., p.29.

9. Ibid., p.70.

10. WEFFORT, Francisco. A capacidade prática deste país de fazer sem saber é enorme. Folha de S. Paulo, São Paulo, dez. 2012a.

11. WEFFORT, 2012b, p.70.

12. Ibid., p.39.

13. Ibid., p.48.

14. Ibid., p.49.

15. Ibid., p.59.

16. Ibid., p.60.

17. Ibid., p.60.

18. Ibid., p.60.

19. Ibid, p.174.

20. Ibid., p.217.

Felipe Ziotti Narita –  Professor Bolsista – Departamento de História – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais / UNESP. Doutorando em História – FCHS / UNESP. E-mail: [email protected]


WEFFORT, Francisco. Espada, cobiça e fé: as origens do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. Resenha de: NARITA, Felipe Ziotti. As heranças ibéricas revisitadas. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.13, p.299-303, ago./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX | Denise Rollemberg e Samantha V. Quadrat

O século XX foi, talvez, o período histórico mais impactante da História da Humanidade. O nível de progresso social foi gigantesco – mesmo que raras vezes tenha beneficiado aos seres humanos de forma bem distribuída. O século XX foi o século da busca pela igualdade entre homens e mulheres, da conquista dos direitos civis, do reconhecimento dos direitos das minorias. Foi o século das Revoluções que pretenderam concluir o legado da Revolução Francesa: a Revolução Russa, mas também a Revolução Cubana, a Revolução de 1968, a Revolução Sandinista e tantas outras que enfatizavam o caráter da busca pela igualdade. Mas o século XX também o foi século dos horrores das duas Grandes Guerras Mundiais, do Nazismo, dos conflitos típicos da bipolaridade da Guerra Fria. O século XX trouxe flores, como Marc Riboud universalizou por sua célebre foto: algumas flores, no entanto, têm muitos espinhos.

Esses espinhos estão presentes por todo mundo! Não são mazelas de povos subdesenvolvidos, exclusivamente. Esses espinhos se materializaram, quase sempre, na forma de regimes autoritários. África, América, Ásia, Europa, em todos esses continentes houve ditaduras ao longo do século XX. Como as sociedades conviveram com essas ditaduras é a pergunta que articula os textos acadêmicos da coleção A Construção Social dos Regimes Autoritários, editada pela Civilização Brasileira e organizada pelas professoras Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Na última década, a editora Civilização Brasileira tem contribuído muito com a divulgação da pesquisa acadêmica em História. Foram editadas as coleções: O século XX (2000),[2] O Brasil Republicano (2003),[3] As Esquerdas no Brasil (2007), [4] O Brasil Imperial (2009).[5] Com a exceção de O Brasil Republicano, organizado em quatro volumes, as outras obras estão dispostas em três volumes e todas tem a organização delegada a professores de Universidades do Rio de Janeiro. Os mesmos moldes são seguidos na coleção organizada pelas professoras da UFF; mas há novidades na política editorial dessa coleção, entre elas, a grande quantidade de contribuições de historiadores e demais cientistas sociais do estrangeiro.

Há uma apresentação comum aos três volumes, assinada pelas professoras Rollemberg e Quadrat e na qual abordam a linha geral da coleção, baseada em dois problemas de pesquisa: “como um regime autoritário/uma ditadura obteve apoio e legitimidade na sociedade; como os valores desse regime autoritário/ditatorial estavam presentes na sociedade e, assim, tal regime foi antes resultado da própria construção social”.[6] Argumentam as autoras que o fio condutor da coleção é baseado em uma perspectiva mais original, haja vista que os estudos sobre as ditaduras, no Brasil por exemplo mas não só, são calcados fundamentalmente na idéia da resistência à implantação e ao desenvolvimento dos regimes autoritários, esquecendo-se que as ditaduras foram construídas e mantidas com o apoio de parcelas da população.

O primeiro volume da coleção aborda a Europa. Composto por 11 artigos, examinase a França colaboracionista do Regime de Vichy em dois artigos – um o ótimo “Sociedades e Regimes Autoriátios” de Marc Olivier Baruch, professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS); a URSS é abordada em três artigos escritos por Marc Ferro, Daniel Aarão Reis e Angelo Segrillo – é de Segrillo a grande contribuição à coleção, em termos teóricos, ao utilizar o conceito de hegemonia elaborado por Antonio Gramsci enfatizando para o leitor leigo que “as hegemonias de classe na história não são apenas uma questão de imposição pela força, mas envolvem também uma criação de consenso em redor de certos valores, o que torna possível e mais estável sua dominação”;[7] o fascismo italiano está presente em dois artigos, um escrito por historiador francês e outro por historiadora italiana; sobre o regime nazista, duas colaborações aparecem na obra, sendo uma delas a interessante, para nós que gostamos do futebol, “O futebol sob o signo da suástica”, na qual o professor Nils Havemann, da Universidade de Mainz, demonstra o uso político do esporte. O primeiro volume ainda conta com textos sobre as ditaduras de Franco e Salazar no ocidente da Europa.

O segundo volume trata da América Latina – dos 17 artigos 8 são dedicados ao Brasil, entre eles: “Estado Novo: ambigüidades e heranças do autoritarismo no Brasil”, de Angela de Castro Gomes (grande influência para esse grupo de historiadores das Universidades do Rio de Janeiro); “Celebrando a ‘Revolução’: as Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o Golpe de 1964”, de Aline Presot; e “Simonal, ditadura e memória: do cara que todo mundo queria ser a bode expiatório”, de autoria de Gustavo Alonso. Sobre os demais países da América Latina esse volume – o mais extenso de todos – conta ainda com artigos para Argentina, Paraguai, Chile, Uruguai, México, Perú e Cuba (assim como eu estranho a inclusão de Cuba em uma coleção sobre regimes autoritários, outros analistas certamente estranharão a exclusão da Venezuela).

O terceiro volume analisa os continentes africano e asiático. Entre os 11 textos, chamam muito a atenção dois artigos escritos sobre a Tunísia e que foram escritos antes da Primavera dos Povos Árabes ocorrer: “À sombra da Europa, o autoritarismo no Mediterrâneo: o caso da Tunísia”, do professor Michel Camau, da Universidade de Aix-em-Provence e “Economia Política da Repressão: o caso da Tunísia” escrito por Béatrice Hibou, pesquisadora do Centre d’Études et de Recherches Internationales. O volume traz, ainda, contribuições muito relevantes sobre o Irã, o Iraque e a Coreia do Norte, demonstrando, historicamente, qual o verdadeiro sentido de terem sido enquadrados por George W. Bush como “Eixo do Mal”, além de artigos sobre a África Ocidental, São Tomé e Príncipe, África Central, China e Filipinas.

Mas a História não é feita apenas de sombras; também é feita luz! E essa luminosidade torna impossível para nós, professores de História, não condenarmos moralmente fenômenos terríveis como as ditaduras civil-militares, os fascismos e o caso incomparável – único regime realmente totalitário que o é – do nazismo. No entanto, parcelas da sociedade apoiaram as torturas, denunciaram opositores aos regimes, colaboraram com os invasores. Quem eram essas parcelas da sociedade? Por que fizeram isso? Quem foram os maiores beneficiados com essas rupturas dos Estados Democráticos de Direito? “A Construção Social dos Regimes Autoritários” fornece boas pistas para essas questões.

Notas

2. REIS FILHO, Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge; ZENHA, Celeste (orgs.). O Século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 3v.

3. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 4v.

4. FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (orgs.). As Esquerdas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 3 v.

5. GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 3v.

6. ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz. Apresentação – Memória, História e Autoritarismos. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (orgs.). A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p.12. V. 1.

7. SEGRILLO, Angelo. URSS: coerção e consenso no estilo soviético. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (orgs.). A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p.123. V. 1.

Charles Sidarta Machado Domingos – Professor de História no IFSUL. Doutorando em História na UFRGS. Autor de O Brasil e a URSS na Guerra Fria. Porto Alegre: Suliani Letra e Vida, 2010.


ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (orgs.). A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 3v. Resenha de: DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. As sombras do Século XX. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.13, p.308-310, ago./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

João Goulart: uma biografia | Jorge Ferreira

A obra de Jorge Ferreira intitulada João Goulart: uma biografia, lançada em 2011, retrata a vida pessoal e política do presidente deposto pelo golpe militar em 1964. Logo em sua introdução, o autor trata de desmistificar a imagem, recorrente em boa parte da historiografia, de João Goulart como um político demagogo e impotente diante das crises políticas do período em que foi presidente. Ferreira demonstra que essa alegoria sobre Goulart foi criada pelas administrações políticas subsequentes, interessadas em afetar a imagem de qualquer liderança que estivesse ligada ao trabalhismo ou demonstrasse complacência com a corrente comunista.

Professor titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense, Ferreira também publicou outros livros que focaram a política nacional, especialmente o chamado populismo, entre eles: O imaginário trabalhista – getulismo, PTB e cultura política popular; Prisioneiros do Mito – cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (1930-1956); além de ter organizado O populismo e sua história, debate e crítica2 . Graduado em História pela mesma instituição na qual leciona, obteve o título de doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Atualmente, lidera um grupo de pesquisa na própria UFF chamado Brasil Republicano – Pesquisadores em história cultural e política e é pesquisador também em outro grupo dessa universidade denominado Núcleo de pesquisa e estudos em história cultural. Leia Mais

O Deus da Idade Média. Conversas com Jean-Luc Pouthier | Jacques Le Goff

A obra “O Deus da Idade Média, Conversas com Jean-Luc Pouthier” (Civilização Brasileira, 2007, 126 p.) é fruto de uma entrevista de Jean-Luc Pouthier (historiador francês, ex-redator chefe da revista de História das Religiões Le Monde de la Bible) com Jacques Le Goff (historiador francês, considerado o maior especialista em Idade Média Ocidental ainda vivo, membro do movimento dos Annales e da EHESS), que mostra em suas respostas grande potencial intelectual ao abordar uma temática tão ampla e complexa, por se tratar de um período de tempo muito extenso.

Publicado originalmente em 2003 na França e no Brasil em 2007, com tradução de Marcos de Castro. O principal conceito abordado é o de Deus, entretanto não de uma maneira lato mas sim o Deus circunscrito na cristandade medieval; ou seja, como homens e mulheres, leigos e clérigos medievais do ocidente entendiam, interpretavam, imaginavam e representavam o Deus cultuado por toda a Europa Ocidental, construído e administrado pela Igreja Romana. Leia Mais

Corpo em evidência: a ciência e a redefinição do humano – ORTEGA; ZORZANELLI (TES)

ORTEGA, Francisco; ZORZANELLI, Rafaela. Corpo em evidência: a ciência e a redefinição do humano. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010. 192 p. Resenha de: AMARAL, Jonathan Henriques do. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 10 n. 3, p. 561-565, nov.2012/fev.2012.

Talvez não seja necessário possuir um conhecimento teórico amplo para perceber a importância que tem sido atribuída ao corpo na contemporaneidade. Em programas televisivos, revistas semanais ou pesquisas científicas, é possível constatar o papel central desempenhado pelo corpo em explicações sobre quem somos, quem podemos ser (sim, a ‘natureza’ corporal não é mais um limite) e como devemos administrar nossas vidas.

É justamente sobre essa importância do corpo que Francisco Ortega e Rafaela Zorzanelli dissertam nesse livro. As complexas relações entre ciência, corpo e saúde consistem no fio condutor que perpassa e une os quatro capítulos da obra. Escrito em linguagem acessível, mas sem prescindir da profundidade das informações apresentadas, o livro consiste em referência fundamental para quem se interessa pela abordagem das ciências humanas para a compreensão do corpo.

No primeiro capítulo, os autores apresentam um histórico das tecnologias de visualização do interior do corpo – desde o século XV até os dias de hoje. O desenvolvimento dessas tecnologias está relacionado à crença de que a visão seria um sentido dotado de objetividade, de modo que, por meio delas, seria supostamente possível ver o interior do corpo exatamente como ele é. Os autores chamam esse ideal de objetividade de ‘mito da transparência’. Contudo, para os autores, o corpo visualizado em seu interior é tudo menos transparente, pois sua complexidade foi acirrada pelos métodos que o tornaram mais visível. Se, por um lado, as tecnologias de visualização possibilitaram obter inúmeras informações acerca do funcionamento corporal, por outro, o corpo continua sendo um mistério, pois muitas destas informações são de difícil entendimento, e há muitas doenças e estados corporais que a ciência médica não consegue compreender.

Graças à crença na objetividade da visão, essas tecnologias têm desempenhado um papel central no diagnóstico de doenças e na produção de verdades científicas sobre o corpo e a saúde. No entanto, as tecnologias de visualização não prescindem do olhar treinado do especialista, e este olhar sempre envolve uma interpretação, a qual nunca é neutra, mas assentada em determinados pressupostos. Por exemplo, as imagens obtidas por neuroimageamento – amplamente difundidas nos meios de comunicação – não consistem em fotografias de cérebros reais, mas na reconstituição de parâmetros estatísticos e matemáticos.

Os autores não deixam de reconhecer os avanços proporcionados pelas tecnologias de visualização para o diagnóstico e tratamento de problemas de saúde, de modo que elas não são, de forma alguma, dispensáveis. No entanto, Ortega e Zorzanelli criticam a abordagem estritamente visual do corpo, em detrimento da compreensão de aspectos subjetivos – que também estão relacionados a doenças, mas não podem ser visualizados por nenhuma tecnologia.

O segundo capítulo inicia com uma reflexão sobre uma mudança fundamental ocorrida na forma de compreender a subjetividade: a ideia de um sujeito habitado por um profundo espaço interior, no qual se encontrariam as explicações para as características individuais, vem dando lugar a uma concepção de subjetividade compreendida em termos corporais e biomédicos, a partir dos quais são explicados nossos comportamentos, nosso caráter, dentre outras características.

O corpo não esconde mais uma identidade interior: ele é a própria identidade. Cada vez mais os indivíduos têm criado suas identidades sociais a partir de critérios baseados no corpo e na saúde, a tal ponto que até mesmo a cidadania se tornou ‘biológica’, conforme expressão dos próprios autores: indivíduos que compartilhem determinadas condições corporais se reúnem para reivindicar tratamentos médicos, acesso a medicamentos e outros serviços. Essa centralidade do corpo na construção da identidade explica por que ele tem sido alvo de constantes intervenções, tanto em sua superfície (através de cirurgias plásticas, dietas, exercícios, tatuagens, dentre outras práticas) quanto em seu interior (que é visualizado em busca de tratamentos médicos).

Termos biomédicos têm sido amplamente difundidos pelos meios de comunicação, integrando- se ao vocabulário popular e sendo utilizados na forma como os indivíduos compreendem e descrevem a si mesmos. A avaliação moral de um indivíduo também se dá a partir dos cuidados que ele toma (ou não) com o corpo e a saúde, de modo que fumantes, obesos, sedentários, dentre outros ‘desviantes’, se tornam objeto de críticas: o fracasso em atingir e/ou manter ideais corporais e de saúde é visto como fraqueza de vontade.

O gerenciamento de riscos vem assumindo grande importância. ‘Saúde’ não é mais sinônimo de ausência de doenças, mas potencialização de estados saudáveis e prevenção de possíveis problemas, através da realização de exames, tratamentos preventivos, dentre outros recursos.

Os conhecimentos da genética, por exemplo, possibilitam averiguar a probabilidade de desenvolvimento de determinadas doenças para, assim, controlá-las. Portanto, a biologia não é mais destino, pois é possível agir sobre o corpo no presente para evitar problemas futuros.

As explicações etiológicas atuais são baseadas unicamente no corpo, como se uma doença tivesse apenas causas orgânicas. O cérebro é um órgão que vem recebendo destaque nessas explicações, e é sobre este destaque que os autores falam no terceiro capítulo. Os seguintes fatores podem explicar o atual prestígio do cérebro: a ascensão de explicações neurocientíficas para perturbações comportamentais e mentais; o desenvolvimento de neuroimagens e seu poder de persuasão perante o público; e a extensão das preocupações das neurociências aos comportamentos morais e sociais.

É nesse contexto que emerge o chamado ‘sujeito cerebral’ – uma nova figura antropológica que se refere a discursos, práticas, formas de pensar sobre si e o outro que partem do pressuposto de que o cérebro é o único órgão necessário para definir o que alguém é. Em outras palavras, é como se o indivíduo fosse o seu próprio cérebro, havendo uma equalização entre a condição de ter um cérebro e ser alguém.

Cada vez mais o ser humano vem sendo definido pela ‘cerebridade’, conforme expressão dos próprios autores. O trocadilho com ‘celebridade’ parece ter sido intencional, pois o destaque que o cérebro vem recebendo, tanto nas neurociências quanto na cultura popular, realmente tem transformado este órgão em uma celebridade.

O sujeito cerebral não se constitui como uma entidade autônoma, que teria vida própria e exerceria efeitos sobre as coisas. O conceito se refere a discursos, formas de pensar, manifestações práticas e teóricas que pressupõem uma visão específica sobre o ser humano, baseada estritamente no cérebro. Essa visão está presente, por exemplo, em debates sobre morte cerebral; em concepções acerca de comportamentos, doenças e experiências; e no surgimento de novas áreas do saber, situadas na convergência entre as ciências humanas e as neurociências, como a neuroeducação e a neuropsicanálise.

Em linhas gerais, a neuroeducação parte do princípio de que a aprendizagem pode ser aprimorada pelo conhecimento de suas bases neurobiológicas. Uma conclusão problemática que se pode inferir dessa premissa é a de que o cérebro seria o único elemento em jogo nos processos de aprendizagem. Já a neuropsicanálise visa à reconciliação entre perspectivas psicanalíticas e neurológicas, buscando obter fundamentação científica para o conhecimento psicanalítico.

Para os autores, não se pode simplesmente descartar o conhecimento neurocientífico na compreensão do ser humano. As neurociências trouxeram, por exemplo, contribuições relevantes para o aprimoramento da aprendizagem de pessoas portadoras de necessidades especiais. O que os autores criticam é a redução do ser humano ao cérebro, visto que há outros fatores envolvidos em nossa constituição enquanto sujeitos.

O capítulo quatro tem como foco as chamadas síndromes funcionais – classificação descritiva que se refere a um conjunto de sintomas corporais que não possuem causas orgânicas.

Uma vez que essas síndromes não podem ser diagnosticadas objetivamente, elas ocupam um status marginal, como se fossem menos importantes ou legítimas por não apresentarem localização precisa no corpo, passível de ser visualizada por tecnologias médicas. Convém lembrar que essa ‘ilegitimidade’ deve ser compreendida em relação a determinados parâmetros, segundo os quais uma doença ‘verdadeira’ deve possuir explicações biológicas e ser atestável por exames, enquadrando-se em diagnósticos ‘objetivos’. Contudo, o fato de uma doença não possuir fundamento biológico não significa que ela não exista, pois pode ser causada por fatores psicológicos e socioculturais.

Graças a essa valorização do conhecimento médico, têm surgido grupos de portadores de determinadas patologias que ‘lutam’ em prol de explicações biológicas para suas doenças, de modo que elas sejam consideradas ‘reais’. Uma das formas de atuação desses grupos é a arrecadação de recursos para financiamento de pesquisas científicas, que descubram as ‘verdadeiras’ causas (isto é, causas biológicas) de suas patologias. As tecnologias informacionais desempenham um papel importante nesse tipo de ativismo, pois possibilitam a aproximação de indivíduos localizados em contextos distintos e o acesso a informações médicas.

Em suma, o livro permite a elaboração de questionamentos sobre a importância que tem sido atribuída ao corpo e à ciência médica.

Utilizando argumentação consistente, os autores demonstram os limites de uma compreensão estritamente biológica dos fenômenos que envolvem o corpo humano. Ora, se o corpo não responde a certas perguntas que a ciência lhe faz, talvez as perguntas a serem feitas sejam outras, envolvendo outros fatores que não os biológicos.

Jonathan Henriques do AmaralUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. E-mail: [email protected]>

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Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394) | Paul Veyne

Paul Veyne é um nome proeminente e controverso entre os classicistas. Membro da École Française de Rome, sua eleição para o Collège de France, onde é professor honorário, causou certa surpresa. Pondo-se à margem das correntes historiográficas vigentes, seu trabalho é marcado pela curiosidade intelectual, certa ironia e pela influência da obra de Michel Foucault. Já nos anos 1970 abraça a narrativa e advoga sobre a importância do diálogo da história com a filosofia e a sociologia.

Comecemos pela afirmação que permeará todo o livro e que representa uma quebra a um cânone histórico: a fé do imperador Constantino (272-372 d.C) era verdadeira, e sua opção pelo cristianismo não foi fundamentada em interesses políticos. Os cristãos, durante o século IV, período ao qual o livro se atém, formavam uma parcela muito pequena da população do Império Romano, cerca de 5 a 10% do total. Constantino teria sido pragmático, pois não forçou os pagãos à conversão, o que teria feito com que esses se insurgissem contra sua autoridade. A política cristã do imperador se deu, sobretudo, em suas atitudes para com sua própria pessoa, sua religião foi imposta apenas em sua esfera pessoal.[1[ Todavia, a pessoa do imperador influi também nas questões estatais, como o exército, o fisco e a nomeação dos ocupantes de cargos públicos. Assim, aos poucos o cristianismo adquire cada vez mais força na vida pública romana. O livro relata que, com o decorrer dos anos, o cristianismo se torna a religião da maioria da população, mas se concentra mais na figura de Constantino e nas motivações de que o levaram a promover a fé cristã que nas práticas e doutrinas do cristianismo na antiguidade tardia.

A história da conversão de Constantino é famosa: no século IV de nossa era, o Império romano estava sob o governo de quatro coimperadores, dois governando o Ocidente e dois o Oriente. A porção ocidental se encontrava repartida entre Licínio e Constantino, sendo o último responsável pela administração das províncias da Gália, Inglaterra e Espanha. Maxêncio tomou a Itália, território que cabia a Constantino, que por sua vez declarou-lhe guerra e, na véspera da batalha decisiva, teve um sonho, no qual lhe apareceu o símbolo do crisma. Ordenou que o símbolo fosse pintado nos escudos de seus soldados, e no dia 28 de outubro de 312 derrotou as tropas do rival Maxêncio, episódio conhecido como a vitória de Ponte Mílvio. Entretanto, há questionamentos sobre o relato, pois a principal fonte, Vida de Constantino, de Eusébio de Cesareia, apresenta versões diferentes sobre o que teria sido visto pelo imperador no sonho, uma cruz ou o crisma. Veyne acredita que o sonho foi uma manifestação do inconsciente, revelando o desejo de Constantino em se converter.

O autor esclarece que, a seu ver, Constantino enxergou no cristianismo uma “superioridade” em relação ao paganismo. Seu monismo politeísta e natureza metafísica o faziam superior ao paganismo.[2] O imperador teria promovido uma verdadeira revolução religiosa ao conceder aos cristãos as mesmas benesses que os pagãos desfrutavam, e atribuiu a si o papel de protetor da cristandade. O grande atrativo para as conversões ao cristianismo, visto como vanguarda que atraía a elite, explica Veyne, era sua originalidade: ser uma religião que prega o amor; o “gigantismo de seu deus”, criador de todas as coisas e a vitória de Cristo sobre a morte. A nova sensibilidade a que o cristianismo deu gênese lhe proporcionou sucesso, pois se trata de uma religião que proclama a igualdade de todos (em espírito) e fornece significação existencial. O cristianismo não floresceu e se propagou por ter respondido às necessidades de uma época, e sim porque trazia em si algo novo, o amor da divindade pelos homens. O autor não se coaduna às explicações de natureza psicológica sobre a religião, pondo-se ao lado de Georg Simmel e defendendo que o sentimento religioso é algo inseparável do ser humano.[3] Constantino, no desejo de ser um grande imperador, necessitava de um grande deus. E o deus cristão abraça toda a humanidade. A religião de vanguarda viria a corresponder os desejos do imperador: ao se converter, ele tomou parte em uma “epopeia espiritual”, assumindo as rédeas da cristianização.

Ao tratar da Igreja Católica, Paul Veyne contraria, mais uma vez, a corrente tradicional. Para os marxistas, Constantino valeu-se da Igreja para se estabilizar no poder. Para Veyne, o cristianismo era atrativo ao imperador por seu dinamismo e organização, traços presentes na própria personalidade de Constantino. Tratava-se de uma instituição cuja influência sobre seus membros era notável, pois infundia um modo de vida aos fiéis e possuía uma rígida hierarquia. Todavia, por si mesma a Igreja não tinha meios suficientes para se impor junto à grande maioria pagã. Constantino, ao crer que Deus o havia escolhido para difundir a Sua palavra, promove a construção de igrejas em diversos locais do Império, faz doações vultosas, concede cargos aos cristãos, entre outras benesses, o que amplia a divulgação religiosa. Destarte, não foi Constantino que se apoiou na Igreja: essa foi beneficiada pela ação prosélita do monarca. Segundo o autor: “Constantino instalou a Igreja no Império, deu ao governo central uma função nova, a de ajudar a verdadeira religião…”.[4] Paul Veyne utiliza diversas cartas do próprio Constantino como forma de rebater a historiografia tradicional e não crê que ele tenha utilizado o cristianismo como uma ideologia em seu governo: o monarca mantinha a fachada pagã do Império, não precisava da religião a fim de se legitimar, os cristãos eram uma minoria desprezada. E também porque não eram necessárias motivações de cunho ideológico para que as multidões venerassem o imperador. A obediência à autoridade e o patriotismo são frutos da vivência social. Para os antigos o respeito à lei e a ordem também era algo sagrado. O que ocorre a partir de Constantino é a adoção de uma nova fraseologia legitimante: reina-se pela graça e pela vontade de Deus, e a função do imperador é estar a serviço da religião.

Outra novidade do governo de Constantino é a entrada do sagrado na política. O laicismo não seria uma invenção moderna. O paganismo romano do século IV era como um hábito, respeitado como uma tradição patriótica, mas em crise entre os intelectuais. A questão da verdade religiosa é apontada por Veyne, que afirma que o paganismo não tinha respostas para ela, enquanto o cristianismo se posicionou como a verdadeira religião. Ao se converter, Constantino considera o avanço da Igreja uma questão política, pois cabia a ele, como cristão e como soberano, levar a verdadeira fé a seus súditos e zelar por sua salvação. Apesar disso, não há perseguição aos pagãos e sim aos hereges. A preocupação com a ortodoxia faz com que Constantino se insira nos assuntos da Igreja, agindo como seu “presidente” e essa, no século IV, não interfere no governo secular, ao contrário: se mostra submissa ao imperador. De fato, era pregada a divisão entre “as coisas do céu” e “as coisas da terra”, e a Igreja prezava pela fidelidade ao Império Romano. Constantino uniu ambas as coisas ao portar-se como líder não apenas político, mas também espiritual. A Igreja, antes da conversão do imperador, já era uma instituição independente, mas irá ter proveito com o proselitismo imperial.

Mesmo com o favorecimento do cristianismo o Império continuava pagão, pelo menos em sua fachada. O imperador ainda era o sumo-pontífice da religião politeísta, e não houve uma mudança significativa nos costumes. Havia o foro íntimo do imperador, que era cristão e coexistia com a religião pagã, formando um ‘”Império Bipolar”.[5] Durante o século IV o clima entre as duas religiões é de tolerância, apesar das benesses ao cristianismo. A manutenção da ordem pública era um ideal que devia ser mantido a despeito das convicções religiosas.

O judaísmo não teve a mesma sorte. Durante o período em que o paganismo primava, a religião judaica era rejeitada por suas restrições alimentares e pela exclusividade de seu Deus. Quando o cristianismo começa a se propagar, o judaísmo é rechaçado justamente por conta de sua proximidade com a nova religião. Ambos têm por característica a inventividade. Os judeus não eram nem cristãos, nem pagãos, e essa incerteza, que Paul Veyne relaciona aos estudos de Mary Douglas sobre o puro e o impuro, faz com que a população judia sofra perseguições. No apêndice do livro, onde são analisadas as transformações do judaísmo, de uma monolatria a um monismo e religião nacional, vê-se que o judaísmo, antes da expansão do cristianismo, atraía alguns pagãos e tinha um caráter prosélito.[6] Com as perseguições cristãs, que se iniciaram no período de Constantino, a comunidade judaica fecha-se sobre si mesma, tornando raras as conversões à sua fé. O autor vê na intolerância desses tempos a causa real do antissemitismo atual.

Veyne afirma que, sem o posicionamento de Constantino, o cristianismo estaria fadado ao papel de seita e tenderia a se esvanecer com o tempo. Para ele, a ação do monarca foi crucial para o desenvolvimento e expansão da religião. Com a morte de Constantino funda-se uma tradição de imperadores cristãos, quebrada momentaneamente por Juliano, o Apóstata (331-363 d.C), que tenta restabelecer o paganismo ao seu antigo esplendor. Com sua morte, o exército coloca no poder imperadores cristãos. Arbogast, líder germânico, toma o poder na parte ocidental do Império e põe no trono o imperador-fantoche Eugenio, o que agrada aos pagãos. De fato, durante a primeira metade da década de 390 há um reflorescimento dos cultos pagãos. Teodósio (347-395 d.C), o governante cristão do Oriente, não vê com bons olhos essa manobra, rejeitando Eugenio como coimperador. A proibição dos cultos pagãos em 392 transforma o conflito pelo trono em disputa religiosa, e o paganismo tem fim como religião autorizada em 394. O cristianismo se torna religião de Estado.

Enquanto nos quadros do governo imperial a nova religião avançou rapidamente, a cristianização da população foi um processo que levou séculos, especialmente no campo, onde ocorreu por impregnação progressiva, e não individualmente. A recepção do cristianismo pelas camadas populares provocou a paganização. O fervor cristão dos primeiros séculos de nossa era transforma-se e nos séculos VI e VII o cristianismo, tal como o politeísmo antigo, passa a ser uma religião habitual. Paul Veyne discorda da expressão de Max Weber: para ele não houve um “desencantamento do mundo”, e sim uma especialização 7.[7] Os sincretismos que ocorreram por conta da conversão em massa e que se tornaram a religião popular não são tratados no livro, algo que seria interessante abordar.

No último capítulo o autor nos pergunta sobre as raízes cristãs europeias. Para ele, como uma realidade heterogênea, não é possível que a Europa possua raízes. A formação da Europa atual foi uma epigênese, se fez de etapas imprevisíveis. A religião é apenas um dos muitos traços das sociedades. Um traço que se sobressai, é verdade, mas que sozinho não pode definir uma realidade social. Sendo uma elaboração coletiva e oral, os criadores do cristianismo foram os apóstolos, os primeiros fiéis. O Império Romano, em sua vastidão, significava uma oportunidade maior de expansão dessa nova fé, a qual os judeus não davam crédito. Os valores que hoje são caros às sociedades europeias, tais como a democracia, a liberdade religiosa e sexual, a redução das desigualdades, não são cristãos. O cristianismo não era um programa político: pregava o desligamento das coisas mundanas, uma vivência casta e obediente. Veyne crê que a espiritualidade moderna estaria muito mais ligada á filosofia de Kant e Spinoza que ao Evangelho. As transformações do 7 Ibid., pp.184-185. mundo fizeram com que o catolicismo assumisse algumas posições sociais, porém, os cristãos não estão distantes da moral social vigente. Assim, “não é o cristianismo que está na raiz da Europa, é a Europa atual que inspira o cristianismo ou algumas de suas vertentes”.[8] O cristianismo permanece como um ancestral, mas não se pode dizer que a Europa atual é uma sociedade cristã. O humanitarismo atual não é fruto do cristianismo, mas sim do Iluminismo. Todavia, ele (cristianismo) auxiliou na tarefa de “preparar terreno” para as ideias de igualdade. Mas já não está nas raízes da Europa há muito tempo.

O livro, publicado originalmente em 2007 na França, se tornou um bestseller, e oferece uma visão original sobre os primeiros séculos do cristianismo. Veyne busca as grandes figuras públicas e os eventos, afirmando a importância da ação individual na história.

Notas

1. VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.28.

2. Id. Ibid., p.40.

3. Id. Ibid., p.47.

4. Id. Ibid., p.138.

5. Id. Ibid., p.143.

6. Id. Ibid., p.273.

7. Ibid., pp.184-185.

8. Ibid., p. 232.

Mariana Figueiredo Virgolino.


VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. Resenha de: VIRGOLINO, Mariana Figueiredo. Constantino, um Imperador de fé. Cantareira. Niterói, n.17, p. 138-141, jul./dez., 2012. Acessar publicação original [DR]

Justiça: o que é fazer a coisa certa – SANDEL (C)

SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.Resenha de: BOMBASSARO, Alessandra. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 2, p. 183-186, maio/ago, 2012.

Considerando um dos mais importantes filósofos de sua geração, Michael Sandel leciona há mais de vinte anos na Universidade de Harvard, no famoso curso “Justice”, por onde passaram cerca de 15 mil alunos.

Quando ele profere as suas aulas no amplo anfiteatro universitário, quase mil alunos o acompanham na exposição de temas sumamente instigantes.

Sandel é ouvido atentamente ao abordar grandes problemas filosóficos relacionados a prosaicos assuntos da vida cotidiana, incluindo, por exemplo, a união entre pessoas do mesmo sexo, suicídio assistido, aborto, imigração, impostos, o lugar da religião na política, os limites morais dos mercados.

Para ele uma abordagem da filosofia – considerada por ele a mais segura – ajuda a entender melhor a política, a moralidade, contribuindo também para a revisão de aferradas convicções.

As questões propostas por Sandel, que integram um extenso elenco de problemas contemporâneos, são cada vez mais discutidas por sua complexidade. Por exemplo: Quais são as nossas obrigações uns com os outros e em uma sociedade democrática? O governo deveria taxar os ricos para ajudar os pobres? O mercado livre é justo? Às vezes é errado dizer a verdade? Matar é, em alguns casos, moralmente justificável? É possível, ou desejável legislar sobre a moral? Os direitos individuais e o bem comum estão necessariamente em conflito? Sandel é um crítico do liberalismo. Sustenta que essa ideologia política se caracteriza pela importância que dá aos direitos civis e políticos dos indivíduos. É a defesa intransigente da “liberdade pessoal”, em torno da qual se agregam a liberdade de consciência, de expressão, de associação, de ocupação e de exercício sexual. Os liberais não admitem que, em tais âmbitos, o Estado pretenda intrometer-se, a não ser para proteger os que poderiam sofrer dano.

Enquadrado no grupo dos “comunitaristas”, Sandel denuncia, nas críticas ao liberalismo, uma concepção anti-histórica, associal e incorpórea do sujeito, implícita na ideia de um indivíduo dotado de direitos naturais que preexistem à sociedade. O autor nega a tese da prioridade do direito sobre o bem, que se encontra, por exemplo, no centro do novo paradigma liberal estabelecido por John Rawls.

O que Sandel pretende destacar reside no fato de que o liberalismo se apoia, erroneamente, no pressuposto de que as pessoas podem escolher e revisar os seus fins na vida “sem nenhuma dependência de laços comunitários”. Adotando uma posição contrária, o autor afirma que certas obrigações comunitárias são “constitutivas” da identidade dos indivíduos, além de toda escolha. Tais obrigações compartilhadas formariam a base para uma “política do bem comum”, contrastando com a “política dos direitos” do liberalismo.

Tais pressupostos são apresentados por Sandel, principalmente, em sua obra Liberalism and the limits of Justice, literalmente [Liberalismo e os limites da Justiça] (2000). É com ela que o autor participou, contribuindo para o início do “debate liberalismo-comunitarismo” que dominou a filosofia política anglo-americana nos anos 80 (séc. XX). Sandel também defende que certas liberdades civis, tais como a de consciência e da sexualidade, são melhor entendidas como protetoras de fins “constitutivos” do que como protetoras de escolhas “sem limites”.

Sandel pretende ressuscitar uma concepção de política como domínio onde cada um reconhece o outro, ambos como participantes de uma mesma comunidade. Contra a inspiração kantiana do liberalismo, baseada nos direitos, os comunitaristas apelam para Aristóteles e Hegel. E, contra o liberalismo, Sandel apela para o republicanismo cívico. É o que deve favorecer o regresso a uma política do bem comum baseada em valores morais partilhados. Entretanto, não fica clara a questão: Mas como fica a defesa da liberdade individual? Feitas essa aproximações às posições e propostas do autor, é importante agora guiar a atenção, objetivamente, para a obra de Sandel: Justice, título original em inglês, aqui traduzida como [Justiça: o que é fazer a coisa certa]. Ela foi publicada em 2009, nos Estados Unidos, tendo sido traduzida por editoras de vários países. No Brasil, todos os seus direitos foram adquiridos pela Editora Civilização Brasileira, cujos livros são distribuídos pela Record.

Em dez capítulos, Sandel discorre sobre a filosofia do livre mercado, enfatizando a ganância com o abuso dos preços. Examina o socorro financeiro aos bancos, no decorrer da presente crise internacional. Faz uma reflexão sobre o utilitarismo de Jeremy Bentham e a posição de John Stuart Mill.

Enfoca a questão da tortura, da desigualdade econômica e do Estado mínimo pretendido pelos liberais. Insinua-se, em seguida, no âmbito da bioética, abordando temas como o suicídio assistido, a barriga de aluguel, a utilização de células-tronco, o direito ao aborto. Quando enfoca questões atinentes aos direitos humanos, analisa o pensamento kantiano em torno da maximização da felicidade, moralidade, liberdade e justiça. Logo, Sandel examina a teoria da justiça de Rawls. Evolui para o problema da segregação racial, do propósito da justiça, do significado de política e vida boa, de justiça e vida boa, finalizando com o desejo de uma política do bem comum.

O livro Justiça – como o próprio Sandel afirma –, começou como um curso. Por quase três décadas, o autor teve o privilégio de ensinar filosofia política a universitários de Harvard e, durante vários desses anos, ministrou aulas sobre uma matéria chamada “Justiça”. O curso expõe aos alunos algumas das maiores obras filosóficas escritas sobre justiça e também aborda controvérsias legais e políticas contemporâneas que levantam questões filosóficas.

Alessandra Bombassaro – Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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 João Goulart: uma biografia – FERREIRA (RBH)

FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 714p. Resenha de: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, n.63, 2012.

João Goulart, ou Jango, é um dos personagens mais controvertidos da história brasileira e, por que não dizer, dos mais trágicos também. Presidiu a um governo que mobilizou as esperanças de milhares de pessoas sob a promessa de reformar o Brasil e atenuar suas mazelas sociais, projetos que provocaram medo e insegurança em outros grupos sociais, os mesmos que o derrubaram do poder em 1964. Dono de imagem inevitavelmente polêmica, a suscitar tanto admiração quanto desprezo, a importância de Goulart no contexto que levaria ao golpe é inquestionável, pois suas ações e projetos, mas sobretudo a maneira como foram interpretados, desempenharam papel chave no processo.

O livro João Goulart: uma biografia, de autoria do professor Jorge Ferreira, constitui extensa e cuidadosa análise sobre o ex-presidente e traz contribuição inestimável ao estudo do controverso líder, bem como do contexto político em que atuou. Trata-se de trabalho de grande fôlego, com base em pesquisa abrangente que inclui entrevistas, memórias, documentos pessoais, registros da imprensa e consulta a numerosa bibliografia, resultando em obra de mais de setecentas páginas. Dado o escopo do trabalho, resenhá-lo adequadamente em poucas linhas torna-se um desafio. Adotando postura realista, preferiu-se aqui apontar alguns traços fortes da obra, como um convite ao leitor para ler o trabalho e formular seu próprio juízo.

Motivado pela percepção de que a memória sobre Jango está presa aos eventos de 1964, Ferreira procurou lançar luz sobre outros pontos da trajetória política do ex-presidente, de modo a permitir visão mais ampla. Moveu o autor, também, o desejo de ir além das apreciações críticas ao político gaúcho, dominantes na literatura e na memória, e revelar as qualidades positivas do líder que, aliás, explicam sua ascensão. A intenção foi produzir análise mais equilibrada sobre Jango, fugindo das críticas que o rotulam de populista e fraco e o acusam de responsável pela crise que levou ao golpe. Isso não significa que o autor tenha escamoteado as críticas a Goulart, pois, no seu texto, aparecem referências aos erros cometidos pelo ex-presidente, principalmente em 1964; mas ele tende a destacar mais traços positivos como lealdade (ao varguismo, em especial), talento para a negociação e sensibilidade social. Goulart foi de fato político hábil, fiel ao estilo de seu mestre, e por isso mesmo conseguiu fazer carreira rápida no campo varguista e trabalhista, com o detalhe de defender projeto social bastante mais avançado em comparação às ações adotadas por Getúlio. A obra oferece excelente análise da trajetória inicial de Goulart, justamente a fase menos conhecida da sua vida, começando pelos primeiros contatos com Vargas, de quem era vizinho em São Borja, e prosseguindo pelos laços construídos por Jango com os sindicatos e a esquerda. Merece destaque a análise sobre a construção do relacionamento entre Goulart e os sindicalistas, no início dos anos 1950, graças à sua atuação como ministro do Trabalho na tormentosa segunda metade do mandato constitucional de Vargas, bem como a análise de suas atividades como presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), no mesmo período, as quais forneceram os pilares para toda sua carreira política.

Naturalmente, a biografia apresenta dados sobre a vida pessoal do político, como a explicação para o defeito na perna de Goulart, assim como suas aventuras amorosas com as mulheres. A propósito, os dois fatos tinham relação, as aventuras sexuais e o problema físico. Porém, Ferreira não se deixou levar pela atração fácil do escândalo e do espetáculo e, ainda que não tenha omitido informações úteis para o entendimento do personagem, tratou sua vida privada com sobriedade. Outro aspecto da vida privada de Jango analisado com propriedade pelo autor foi o talento empresarial do político gaúcho. Goulart herdou os negócios rurais do pai, mas ampliou consideravelmente a fortuna da família ao desenvolver notável faro para ganhar dinheiro, característica que seria muito útil na sua futura vida de exilado. Mas a biografia se concentra mais nos aspectos públicos da vida de Goulart, a sua atuação como líder que começou como afilhado político de Vargas e terminou no exílio, onde encontrou a morte, após tumultuado e inconcluso período como presidente.

Nesse percurso, Ferreira analisou os grandes eventos e processos políticos vivenciados por Jango nos anos 1950 e 1960, fase decisiva na história brasileira. No livro encontramos narrativas cuidadosas de alguns momentos importantes, como a passagem de Goulart pelo Ministério do Trabalho, a crise do governo Vargas e seu suicídio, a renúncia de Jânio Quadros e o movimento pela ‘legalidade’ (ou seja, pela posse do vice-presidente João Goulart), o comício de 13 de março de 1964 e outros acontecimentos às vésperas do golpe. O livro oferece informações e análises imprescindíveis ao conhecimento da nossa história política recente, aliás, pouco conhecida pelo grande público. Do período pós-1964 até a morte de Goulart, em fins de 1976, a biografia nos mostra os padecimentos da vida no exílio, dele e dos familiares, que viram as amarguras do desterro se associarem à angústia da insegurança, pois Uruguai e Argentina, países escolhidos por Goulart por sua proximidade com o Brasil, logo seriam convulsionados por episódios de violência política semelhantes aos experimentados no Brasil.

O autor demonstra certa simpatia/empatia pelo biografado, o que lhe permite analisar os objetivos políticos de Jango de maneira compreensiva, embora não indulgente. Mesmo que aponte algumas atitudes autoritárias do presidente, principalmente no controle do PTB, e não deixe de considerar o projeto pessoal de poder do político gaúcho, Jorge Ferreira nos mostra um Goulart sinceramente empenhado nas causas anunciadas em seus discursos. Ele desejava melhorar a vida dos mais pobres e reduzir a dependência externa (ou emancipar a nação, nos termos da época), e pretendia consegui-lo por meio de negociações e acordos, que evitassem rupturas revolucionárias. Não desejava questionar as bases do sistema capitalista, afinal era grande fazendeiro e negociante, mas queria construir modelo econômico menos injusto e mais ‘nacional’.

A análise do autor é convincente ao mostrar que o principal impulso do projeto político de Goulart era realizar reformas, e não utilizá-las para tornar-se ditador ou golpear as instituições. De fato, há poucos indícios de que Jango desejasse ou tenha planejado instituir um regime autoritário. Não obstante, o presidente aceitou e adotou uma estratégia de pressionar o Congresso Nacional para obter as reformas, fazendo uso de comícios e outros meios de pressão que deixaram no ar a dúvida sobre suas reais intenções e semearam confusão e intranquilidade no campo político. Os aliados de esquerda do ex-presidente fizeram movimentos mais agudos nessa direção, principalmente Leonel Brizola, com discursos agressivos dirigidos ao Congresso que podiam ser interpretados como ameaça às instituições liberais. Pessoalmente, Goulart repeliu sugestões de fechar o Congresso, porém, entre seus aliados nem todos pensavam assim.

Na correta avaliação de Jorge Ferreira, os principais erros de Goulart foram cometidos no front militar, e esses foram decisivos para sua queda. Ele confiou em oficiais pouco capazes que trouxe para seu círculo íntimo, e, no episódio da revolta dos marinheiros (março de 1964), chancelou uma solução para a crise totalmente favorável aos rebeldes, decisão considerada equivocada até por oficiais comunistas ligados ao governo. Com a libertação dos marinheiros, o presidente permitiu que a oficialidade o imaginasse favorável à quebra da hierarquia militar, e isso jogou contra o governo a maioria da corporação militar, até então neutra e na expectativa. Outro erro grave do presidente no campo militar e político foi sua atitude no episódio do pedido de estado de sítio, em outubro de 1963. Ele aceitou a sugestão dos ministros militares para solicitar ao Congresso a medida extrema, decisão incompreensível ainda hoje e surpreendente em vista da esperteza política do presidente. Como concordou com medida que não tinha apoio de nenhuma força política significativa, e que o deixou isolado tanto à esquerda quanto à direita, lançando insegurança e ansiedade em todos os quadrantes?

Por fim, vale destacar a análise de Jorge Ferreira sobre as razões para Goulart ter abdicado de resistência armada ao golpe, o que rendeu muitas acusações e críticas ao ex-presidente. Ao contrário de fraqueza, o autor viu no episódio a manifestação do cuidado de Jango em preservar o país de guerra civil, que possivelmente teria resultado em intervenção dos Estados Unidos. O desmoronamento do apoio militar ao governo e a fraca capacidade dos grupos de esquerda para arregimentar-se contra o golpe, apesar de honrosas e corajosas exceções, demonstram que as chances de vitória em caso de guerra civil eram poucas, e a decisão de Goulart bem pode ter poupado o país de violências ainda maiores. Mas é possível, também, que, além da violência da guerra civil, o presidente desejasse evitar outro desdobramento: a resistência armada poderia gerar radicalização esquerdista muito além do seu projeto político.

Enfim, trata-se de obra escudada em sólida pesquisa e análises consistentes, que se constitui em texto indispensável para os pesquisadores do tema e também para o público mais amplo. É produto maduro de historiador experiente, que passa a integrar o rol de leituras obrigatórias sobre a história política recente do Brasil.

Rodrigo Patto Sá Motta – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. Avenida Antônio Carlos, 6627, Pampulha. 31270-901 Belo Horizonte – MG – Brasil, E-mail: [email protected]

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A construção social dos regimes autoritários – Brasil e América Latina; África e Ásia; e Europa – ROLLEMBERG; VIZ QUADRAT (CTP)

ROLLEMBERG, Denise; VIZ QUADRAT, Samantha (Org). A construção social dos regimes autoritários – Brasil e América Latina; África e Ásia; e Europa. [Rio de Janeiro]: Civilização Brasileira, 606 p. Resenha de TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. A Construção Social dos Regimes Autoritários. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 06 – 06 de janeiro de 2012.

A Civilização Brasileira e as pesquisadoras Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat, ambas do Núcleo de Estudos Contemporâneos/NEC, da UFF, apresentam-nos uma volumosa e imprescindível coletânea de trabalhos sobre os chamados “regimes autoritários”. Trata-se de uma coleção II de amplíssima e necessária abrangência, composta de três volumes — “Brasil e América Latina”, “África e Ásia” e “Europa” —, todos acompanhados de um ensaio introdutório bastante informado e que já nos apresenta os pontos centrais do trabalho.

Para as organizadoras, cabe a superação de teses tradicionais de explicação das ditaduras, quase sempre centradas em conceitos fossilizados ou “combatentes” da Guerra Fria, tais como “populismo” e “totalitarismo”. Na crítica contra tais esquemas simplificadores, as autoras propõem-se a discutir uma nova abordagem composta por teses inovadoras: a ambivalência entre sociedade e Estado nas ditaduras; a busca do consenso por parte dos ditadores e de suas instituições; o papel dos intelectuais como ponte entre regimes autoritários e população.

No seu conjunto , em especial no volume sobre “Brasil e América Latina”, brotam análises de extrema riqueza e variedade, comprovando que, mesmo sob ditaduras, a maioria das pessoas busca projetos e estratégias de convívio, de realização pessoal e profissional, ao lado de mecanismos de sobrevivência que, no limite, implicam conviver, dialogar, colaborar ou fingir não ver “o rinoceronte no quarto ao lado”, como na expressão de Eugene Ionesco.

Neste sentido destacam-se os ensaios primorosos de Marcos Napolitano e das próprias Denise Rollemberg e Samantha Quadrat, além de Daniel Aarão Reis, que inovou nos estudos de regimes ditatoriais ao estudar o período de 1964-1985 no Brasil. Vários outros pontos são ainda de suma importância, incluindo aí — em tempos de debate sobre a nossa recém-criada Comissão da Verdade — a questão da pronta, e quase total, conversão de todos à democracia no imediato período pós-ditaduras. Trata-se, neste caso, da construção de memórias regeneradoras, capazes de promover “esquecimento”, “perdão” ou “passar currículos a limpo”. Neste sentido, o belo ensaio sobre o “pensar-duplo” na França pós-ocupação alemã,   no volume “Europa”, serviria de modelo para entender boa parte do processo de democratização no Brasil pós-1985 e da oposição em face da Comissão da Verdade.

Todo esse debate encontra-se exemplarmente discutido no ensaio introdutório, de ambas as autoras. Este é imprescindível para o projeto da coleção ao identificar e explicitar os principais eixos do debate historiográfico (e político, pela própria natureza do texto) que se apresentarão nos ensaios subsequentes. Lamento apenas que o mesmo ensaio seja repetido em cada volume. Mesmo imaginando que se possa comprar cada livro individualmente, caberia indubitavelmente assinalar as características e vicissitudes das ditaduras em cada um dos continentes, suas especificidades e os “espelhos” buscados.

A questão e a natureza dos regimes de “apartheid” — que atingiram a África do Sul, Zimbábue/Rodésia e Namíbia —, por exemplo, estão ausentes, não se discutindo suas possibilidades de construção enquanto ditaduras de forte conteúdo racialista e social, malgrado a imensa literatura sul-africana. Da mesma forma, a questão das classes sociais e de seus interesses — exagerada e de forma mecanicista — tratada na historiografia marxista dos anos de 1945-1980 ficam relegadas. Talvez fosse o caso de se retornar, agora sem a ganga de um marxismo oficial, ao debate sobre empresariado, burocracia de Estado e classes sociais nas ditaduras.

Temos ainda uma outra discordância quando, à pagina 13 do ensaio, as autoras descartam o estudo das ditaduras varguistas de 1930-1934 e de 1937-1945, em razão dos “estudos estarem bem desenvolvidos”. Não creio que seja este o caso. Há, isto sim, uma abundante literatura sobre o período. Contudo, na ótica inovadora proposta pelas organizadoras — expressa, por exemplo, nos textos de Angela Castro, do CPDOC/FGV, Jorge Ferreira, da UFF e Maria Helena Capelato, da USP — falta muito a ser feito numa história das instituições ditatoriais no Brasil.

A aplicação das riquíssimas hipóteses propostas no ensaio introdutório da coleção implicaria no (re)estudo de áreas fundamentais para a compreensão do varguismo ditatorial, como instituições políticas e constitucionais, os órgãos de governo, o processo de decisão política, a burocracia e sua construção profissional, clubes de futebol, associações carnavalescas, as igrejas e o Estado Novo, entre outros. Talvez seja esta uma nova tarefa.

No seu conjunto a coleção apresenta artigos de autores brasileiros e estrangeiros de pouco acesso ou mesmo desconhecidos do público brasileiro. Assim, a presença de grandes nomes Pierre Laborie, Robert Gellately e Francisco Sevillano Calero — só em relação com as ditaduras europeias — enriquece imensamente o trabalho e o torna imprescindível. Da mesma forma, estudiosos latino-americanos, africanos e árabes tornam a coleção um recurso de grande valor para os alunos dos mais diversos cursos das áreas de ciências humanas e sociais.

As temáticas apresentadas — e que devem servir de exemplo de abordagens para futuros trabalhos brasileiros — são inovadoras e comprovam a estreita relação entre sociedade e Estado em regimes ditatoriais. A visão heroicizada, pós-ditatorial, de uma sociedade civil vitimada pelo Estado, em que um grupo era constituído de “heróis da resistência”, enquanto outro era de “colaboradores”, não mais se sustenta. Eis aqui, ao meu alvitre, a principal contribuição da coleção. Da leitura inicial do ensaio emerge uma situação de ambivalência, de busca de condições de (bem)viver ou sobreviver sob as ditaduras. Daí emergem também a delação, a participação e o consentimento na aniquilação física, cívica ou mental do outro como um dado “normal” nos regimes ditatoriais. Em quase todos os casos a maioria poderia dizer, em sua defesa, que eram temas estranhos às suas vidas. Da mesma forma, a capacidade de sedução — e de sua resposta, o consentimento — é elemento central da análise proposta, de forma rigorosa e rica, pelas organizadoras. Em suma, as ditaduras, para nosso horror e reflexão, constroem-se, conforme Rollemberg e Quadrat, na naturalidade da sociedade humana. Creio que tais conclusões, por mais duras que sejam, são uma nova e fértil via de trabalho.

Aberto o caminho, podemos acreditar que novos trabalhos — como as inúmeras teses que ambas orientam — caminharão em direção a uma História mais nuançada, mais real e também mais humana.

Notas

2 A construção social dos regimes autoritários— Brasil e América Latina; África e Ásia; e Europa, coleção organizada por Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat. Editora Civilização Brasileira, 606 páginas (“Brasil e América Latina”, R$ 69,90); 392 páginas (“África e Ásia”, R$ 59,90); e 309 páginas (“Europa”, R$ 49,90).

Francisco Carlos Teixeira da Silva – Nascido em 1954, Rio de Janeiro, bolsista de produtividade CNPq. Graduação e Licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1976), Especialização em História (UFF, 1979), Mestrado em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense (1980), Magister in Geschichtewissenschaft (Freie Universität, Berlin, 1983), Doutorado em História Social pela Universidade de Berlin/UFF (1990) e Pós-doutorado pela Universidade Técnica de Berlin e USP (1999/2000) e pela Universidade Livre de Berlin, 2011/12; Professor Titular de História Moderna e Contemporânea, da Universidade do Brasil/UFRJ, de 1993 até 2012 ). Professor Emérito da ECEME, Professor de Estratégia e Relações Internacionais da EGN e |Professor Conferencista da ESG. Autor de vários trabalhos de História Social no Brasil, com foco no desenvolvimento agrário e nas origens da pobreza no país, e de relações internacionais, conflitos e negociações. Principais teses:Mestrado: A Formação Social da Miséria, 1980; Doutorado: A Morfologia da Escassez, 1990; Tese de Titular: O Concerto Europeu e o Pensamento Conservador, UFRJ, 1993. Alguns dos trabalhos publicados: História Geral do Brasil (Coord. de Maria Yedda Linhares); Domínios da História (Coord. de Ciro Cardoso e Ronaldo Vainfas); Mundo Rural e Política (com o CPDA/UFRRJ); História e Imagem (Tempo Presente, Rio, 1997); Mutações do Trabalho (SENAC, Rio, 2000-); História da Agricultura Brasileira (Brasiliense, São Paulo, 1985); Sociedade Feudal (Brasiliense, São Paulo, 1990); Terra Prometida (com Maria Yedda Linhares, Campus, Rio, 2001) e Memória Social dos Esportes (organizador, v. 1 e v. 2, Mauad, Rio, 2004 e 2006). Em História das Relações Internacionais destacam-se os seguintes trabalhos: Conflitos e das Guerras: O Século Sombrio (Elsevier, São Paulo, 2005), Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX (Mauad, Rio, 2005); História do Século XX (Record, sob coord. de Daniel Aarão Reis et alii); Corporativismo em Português (Coord. de Francisco Martinho, Lisboa/Rio, 2008); Ordens e Pacis (Coord. de Alexander Zhebit, Mauad, 2008); Os Impérios na História (obra coletiva sobre a crise dos grandes estados, São Paulo, Campus, 2009); Neoterrorismo (com Alexander Zhebit, Grama, Rio, 2009). Organizador de O Brasil na Segunda Guerra Mundial (Rio, Multifoco, 2011) e Terrorismo na América do Sul (Rio, Multifoco, 2011 ) e Relações Brasil-Estados Unidos (com Sidnei Munhoz, Maringá, EDUEM, 2011). É professor-conferencista da Escola Superior de Guerra na área de Segurança Internacional e da ECEME em Estratégia Internacional. Articulista do Jornal das Dez, Globo News e consultor de várias empresas na área de relações internacionais. Foi Assessor da Presidência da Finep (2008-2010) e Membro dos Comitês Pro-Sul e Pro-África do CNPq. É também Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército brasileiro, detentor da Medalha do Pacificador, a Ordem de Tamandaré e do Medalha Amigo da Marinha e Cavaleiro da Ordem do Mérito Naval. Professor Convidado de “Ambientes e Cenários do Século XXI” da FDC.

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O Brasil imperial. Volume II: 1831-1870 – GRINBERB; SALLES (HH)

GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil imperial. Volume II: 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, 502 p. Resenha de: POPINIGIS, Fabieane. Conflitos e experiências na formação do Estado imperial brasileiro. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7 p.357-363, nov./dez. 2011.

Conflitos e experiências na formação do Estado imperial brasileiro 358 Organizado por Keila Grinberg e Ricardo Salles e publicado em 2009 pela Civilização Brasileira, o livro O Brasil Imperial – Vol. II: 1831-1870, faz parte de uma coletânea de três volumes que abrange, em seu conjunto, todo o período Imperial: o primeiro deles vai de 1822 a 1831, o segundo de 1831 a 1870 e o terceiro de 1870 a 1889. Este volume dois tem onze capítulos, distribuídos em 502 páginas, acrescido de uma apresentação de José Murilo de Carvalho e de um pequeno prefácio dos organizadores.

Os autores tiveram bastante sucesso em pelo menos três quesitos que norteiam a organização da coleção: a exposição didática dos acontecimentos – inclusive em narrativas cronológicas; a escolha dos autores e temas, que possibilitaram aliar o estágio atual das pesquisas à critica historiográfica; e a articulação entre os temas e problemas historiográficos abordados, que se interconectam.

Através do artigo de Ilmar Mattos, que transita entre todos os temas abordados nos capítulos seguintes como que tecendo um fio invisível entre eles, somos apresentados a uma das mais interessantes características da coletânea: o diálogo entre os temas e abordagens, que parecem ser retomados aqui e ali, formando um conjunto na maior parte das vezes harmonioso e com movimento. Sob o título “O Gigante e o Espelho”, o autor mostra que a revolução de 7 de abril tornava realidade a independência do Brasil e abria um novo tempo de liberdade para os “brasileiros”, condensando problemas que eram centrais para os contemporâneos e seu projeto de construção da nação.

Em primeiro lugar, o gigante território e o desafio de mantê-lo unido, enquanto o restante da América se fragmentara, cria a singularidade de sua primeira expansão, que Mattos chamou de “expansão para dentro”. A partir da Independência, abdicava-se de um domínio ilimitado em termos espaciais e construía-se a ficção entre território e nacionalidade. O espelho, por sua vez, tinha dupla face: de um lado os brasileiros espelhavam-se nas nações “civilizadas” da Europa, no porcesso de construção da nação brasileira, e do outro, a associação do Brasil à lavoura e a opção pela manutenção da escravidão na consolidação da ordem significava conviver com outras “nações” no interior do território. O nexo de pertencimento, propriedade e características fenotípicas distinguiria os homens bons do “povo mais ou menos miúdo” e dos escravos, e, na medida em que avançavam o café e o regresso, também se acrescia à diferenciação entre livres e escravos aquelas entre escravo e cidadão. Seguir por esse caminho significava também voltar as costas a uma “proposta de nação constituída por homens e mulheres representados como livres e iguais juridicamente”. O regresso, a derrota dos liberais em 1842 e a consolidação do projeto político conservador, com os liberais atrelados às propostas e ações políticas dos saquaremas, “incapazes de manter viva entre seus compatriotas a lembrança do dia 7 de abril como início de um novo tempo”. A ordem imperial, portanto, consolidar-se-ia sob o signo da conciliação entre as famílias da boa sociedade sob o governo do Estado, que imprimiria, nas palavras de Mattos “não apenas um exercício de dominação, mas de direção intelectual e moral dos brasileiros, uma história e uma língua nacionais com seus propósitos ‘imperiais”.

História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7 nov./dez. 2011 357-363 Assim, o capítulo inicial sugere os eixos organizadores dos capítulos seguintes: as disputas políticas e sociais em torno da formação administrativa do território nacional, as questões suscitadas pelo nexo organizador da sociedade escravista e suas desigualdades, e a necessidade de criação de sentimento de pertencimento, a partir da imprensa e da literatura.

No caso do primeiro eixo, cuja referência fundamental é claramente o momento de abdicação de D.Pedro I, em 7 de abril de 1831. O período regencial é retomado como momento de disputa em torno de diferentes projetos de nação, em perspectivas diversas – que vão das discussões na arena estritamente política, passando pelos conflitos sociais em torno do processo de integração das regiões ao projeto centralizador na Corte Imperial, até lugar de homens e mulheres de cor na construção da nação.

Privilegiando a política parlamentar e abordando com minúcia as disputas entre as diversas propostas e os grupos que iam se delineando, Marcello Basile mostra, em “O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840)”, que o 7 de abril inaugurou um momento ímpar de experimentação política em que uma diversidade de fórmulas políticas foram apresentadas e experimentadas, e de participação popular, ainda que não na política institucional, mas nas ruas, de um amplo leque de grupos e estratos sociais. Partindo da crítica à historiografia que atribuiu ao período características sobretudo negativas – ressaltando as revoltas ocorridas como sinônimo de anarquia e empecilho ao estabelecimento da ordem -, ele é aqui abordado em suas próprias bases, e não como um momento de transição política entre a abdicação e o chamado regresso conservador. Embora não contemple neste capítulo sua própria pesquisa sobre os motins urbanos no Rio de Janeiro durante o período (BASILE 2007, p. 65) – o que teria contribuído para enriquecer o diálogo entre o que acontece nas ruas e os debates no Parlamento-, o autor observa que o que orientou o pacto responsável pelo esvaziamento do espaço público das práticas de cidadania experienciadas naquele momento inicial foi o temor das revoltas e a consciência da necessidade de coesão das elites políticas.

Alguns desses movimentos ocorridos nas províncias, sua relação com a Corte, os projetos de identidade nacional e a participação popular são analisados por Marcus Carvalho no capitulo intitulado “Movimentos sociais: Pernambuco (1831-1848)” e em “Cabanos, patriotismo e identidades”, de Magda Ricci. Nos dois casos, a data da Abdicação é novamente o divisor de águas que mobiliza esses grupos e radicaliza as oposições. Entretanto, os acontecimentos e seus desenvolvimentos são vistos neles como parte de um processo histórico de longa data, envolvendo questões políticas e sociais engendradas no enfrentamento entre os interesses dos diversos grupos em disputa. Ambos articulam o plano político institucional das tentativas do governo na Corte de tomar o controle sobre as províncias ao plano regional e cotidiano das querelas locais e aos sentidos da liberdade atribuídos pelo povo miúdo, atentando para a precariedade das liberdades individuais. A participação popular é aqui posta em relevo sem ser vista como espasmódica ou manipulada pelas elites políticas. Os autores tecem os acontecimentos numa trama complexa para ir além dos conhecidos marcos políticos, mostrando a diversidade de grupos envolvidos e as lógicas que informavam suas lutas, fazendo-os por vezes aliados circunstanciais – como no caso dos senhores de engenho, escravos, quilombolas, indígenas e homens livres pobres em geral. Ainda que, por vezes, não houvesse uma organização com objetivos mais específicos, os grupos em questão tinham suas razões e sua lógica de ação a partir de interesses próprios. Assim, a política cotidiana das pessoas comuns e dos diversos grupos que as compõe é analisada sem esquecer seus laços com a política institucional.

No caso de Carvalho, a inovação é a não compartimentação da história desses movimentos num Pernambuco em constante estado de tensão, que é guiada, de modo mais geral, pelos acontecimentos ligados ao 7 de abril, data da Abdicação, quando aqueles que haviam apoiado a repressão de D. Pedro I às pretensões revolucionárias de 1817 ou 1824 passam a ser perseguidos pelos que agora foram elevados pela gangorra política. Ricci, por sua vez, analisa o segundo ciclo de revoltas do período regencial no norte do território. Ela mostra que a Província do Pará, ao contrário de isolada e pouco povoada como se pretendeu em várias análises, estava interligada a rotas internacionais através do comércio intercontinental e da circulação de pessoas e ideias entre a região e os países vizinhos. Durante a Revolução de 1835, como chama a autora, surgia um sentimento comum de identidade entre povos e etnias de culturas diferentes, uma identidade local não afinada com aquela em formação no Rio de Janeiro. Com a luta de classes no centro do processo de formação do Império e das incertezas que configuraram a década de 1830, os dois textos são importante contribuição para mostrar como o medo aos sentidos de liberdade atribuídos pelo povo miúdo forçou dirigentes imperiais e elites locais a se aliarem e a submeter esses homens e mulheres livres pobres à repressão. A evidente vantagem destas estratégias é a de oferecer aos leitores um panorama do período abordado a partir de uma referência de fora da Corte.

O texto de Keila Grinberg também se conecta a este primeiro eixo, analisando a Sabinada não apenas como parte do processo conflituoso de disputa entre projetos de autonomia e independência das províncias em relação à Corte, mas, sobretudo, como disputa pelo lugar dos homens de cor na construção da nação. No texto intitulado “A Sabinada e a politização da cor na década de 1830”, o movimento na Bahia foi utilizado por Keila Grinberg para analisar dois projetos políticos em disputa: de um lado aquele representado por Antônio Pereira Rebouças que, colocando-se do lado da “ordem”, procurava ater-se aos princípios constitucionais segundo os quais os cidadãos brasileiros, qualquer que fosse a sua cor, só poderiam ser distinguidos por seus talentos e virtudes; Francisco Sabino, por outro lado, representava aqueles que viram com desgosto serem cada vez mais negadas as possibilidades abertas a partir da independência, de uma maior inserção de livres e libertos, pardos e mulatos, tanto na participação política como na ocupação de cargos públicos e militares.

A derrota do movimento e as políticas centralizadoras do Regresso, entretanto, fechariam os ciclos de revoltas e manifestações populares, frustrando as aspirações liberais de homens livres e de cor, que viram cada vez mais distante de sua realidade as possibilidades de uma participação verdadeiramente igualitária naquela sociedade.

Uma das principais causas de insatisfação entre homens livres pobres e libertos era a questão do recrutamento, grande causador de conflitos, pois expunha as contradições e hierarquias sociais. Como mostra Victor Izechsohn, no capítulo intitulado “A Guerra do Paraguai”, essas tensões foram acirradas durante a guerra: por um lado, os agregados buscavam proteção nos chefes políticos; quando não conseguiam, a opção era a oferta de substitutos, livres ou libertos ou a simples fuga. Por outro lado, por conta da “massificação operada pelo recrutamento”, aos trabalhadores pobres livres desagradava ver seu status igualado a tais recrutas. Afinal, a certa altura, o governo imperial resolveu libertar quantidade significativa de escravos para serem integrados ao exército, e o próprio Caxias mostrou constante preocupação com sua grande heterogeneidade racial. A Guerra do Paraguai é aqui analisada como elemento central na construção dos estados e nações envolvidos, num momento em que se procurava a manutenção do controle territorial pelos novos centros políticos estabelecidos.

Assim, as tensões que o recrutamento suscitava se entrelaçavam ao problema político da constituição de sentimentos de pertencimento a um território que havia sido consolidado recentemente.

O segundo organizativo dos capítulos da coleção – o da escravidão como nexo organizador da sociedade – é analisado de diferentes perspectivas nos trabalhos de Rafael Bivar Marquese e Dale Tomich e de Jaime Rodrigues. Para Marquese e Tomich em “O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX” foi a ação “concertada” entre os fazendeiros do Vale escravista e os políticos ligados ao regresso o que estreitou a relação entre o crescimento do tráfico atlântico e o aumento da produção cafeeira, além da otimização do tráfico conseguida por luso-brasileiros que comandavam boa parte do infame comércio na região da África centro-ocidental. O texto inscrevese no objetivo mais geral de enfatizar a necessidade de voltar à utilização das lentes de aumento na análise histórica sobre a inserção do Brasil num contexto mais amplo de relações, neste caso para perceber o “papel do Vale do Paraíba na formação do mercado mundial do café” e na conformação do estado brasileiro.

Dois elementos possibilitaram esse investimento inicial e o crescimento da produção na intenção de atender às necessidades do mercado externo entre as décadas de 1820 e 1830: em primeiro lugar, toda a estrutura dos caminhos de tropas montadas em função da mineração, no século XVIII, ligando o sul e o litoral ao interior de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro possibilitava escoar a produção do Vale do Paraíba (que dominaria a produção brasileira de café ate meados de 1870) para os portos do litoral; em segundo lugar, os arranjos políticos eficientes por parte do Império do Brasil para lidar com a pressão inglesa e a ilegalidade do tráfico a partir de 1831 teriam garantido um terreno seguro para as práticas escravistas.

Jaime Rodrigues, por sua vez, procura ir além dos paradigmas mais consolidados da historiografia que põe em relevo a pressão inglesa como razão determinante para o fim do tráfico atlântico de escravos em “O fim do tráfico transatlântico de escravos para o Brasil: paradigmas em questão”. O autor encontra os principais argumentos de justificativa do comércio e do tráfico atlântico de escravos na função civilizatória da catequização de africanos e, posteriormente, na necessidade da manutenção da mão de obra para a lavoura, através da análise de obras e discursos letrados do início do século XIX. Rodrigues reafirma então a centralidade do comércio de escravos para a construção da nação na primeira metade do século XIX, imbricada no processo que levou ao fim do tráfico como seu aspecto fundante. O que teria mudado no período entre a primeira lei de proibição do tráfico atlântico e a lei de 1850 e sua efetiva aplicação? Entre o argumento da “corrupção de costumes” e a conivência das autoridades policiais com a propriedade escrava, Rodrigues atribui um grande peso ao medo senhorial em relação à população escrava, não apenas de motins e revoluções, mas também de ações jurídicas dos escravos contra seus senhores e em prol de sua liberdade. Segundo ele, é no “equilíbrio entre o medo das ações violentas dos escravos e a necessidade de manter a produção, que devem ser procuradas as explicações para as idas de vindas na decisão de acabar com o tráfico atlântico de escravos africanos”. Finalmente, nesse processo, o importante era definir o status jurídico dessas pessoas na sociedade que se estava construindo, limitando a cidadania de livres e libertos e garantindo meios de controle sobre eles e sobre seu trabalho.

No terceiro eixo que permeia a organização dos capítulos, a literatura, a língua nacional e a imprensa são analisadas por Ivana Stolze Lima, Márcia de Almeida Gonçalves e Sandra Jathay Pesavento como lugares privilegiados de disputa em torno da formação de um sentimento de pertencimento e nacionalidade. Em “Uma certa Revolução Farroupilha”, Pesavento atribui papel de destaque à literatura na construção posterior que se faz deste percurso de dez anos de guerra da província do Rio Grande do Sul contra o Império, centralizado no Rio de Janeiro, para elevar a Farroupilha a foros de evento mitológico e fundador de uma identidade que é ao mesmo tempo nacional e regional. Entre diferenças e semelhanças, literatura e história constroem o mito de um passado idílico em que “senhores não encontravam freios a seu mando”.

A partir da Independência, a interferência centralizadora da corte estabelecida no Rio de Janeiro representará “o outro”, assim como os inimigos no Prata. O ethos de uma identidade regional situa-se no Rio Grande do Sul como paladino da liberdade, unindo-os num ideal comum para além das distinções étnicas da posse da terra ou de hierarquia social. A elevação da Farroupilha como acontecimento chave para a explicação da província reiterava a vocação libertária do gaúcho, que, nessa leitura, rebelar-se contra o autoritarismo do Império, não para dele se desvincular, mas, ao contrário para transformar o nacional.

Ressaltando a importância da literatura e seus autores, Marcia Gonçalves em “Histórias de gênios e heróis: indivíduo e nação no Romantismo brasileiro”, analisa as disputas em torno da existência de uma literatura própria do Brasil na segunda metade do século XIX. As biografias mobilizavam conceitos de gênio e herói para a caracterização dos construtores do império do Brasil: selecionando- -se quem não deveria ser esquecido e como deveria ser lembrado, procurava- se criar exemplaridades para o que era ser brasileiro e individualizar o Brasil como estado. Elementos do romantismo que caracterizavam singularidades da cultura de povos e sociedades locais foram utilizados na construção de uma nacionalidade brasileira e suas especificidades. Nesse sentido, portanto, Gonçalves ressalta a importância do fundo histórico da literatura, que deveria alçar o Brasil a um lugar entre as nações modernas e civilizadas.

Ivana Stolze Lima, em “A língua nacional no Império do Brasil”, também atenta para a questão da especificidade da língua brasileira como “uma das expressões do Romantismo literário no Brasil” – tomando para isso um outro caminho, que procura revelar também o lugar daqueles que não faziam parte dos projetos dos letrados do século XIX, mas com quem tinham que lidar. A autora mostra como no início da colonização as línguas indígenas e africanas persistiam, e a escravidão africana ajudava a difundir o português. As diferenças linguísticas dos africanos eram superadas pelo uso de línguas gerais e pela utilização do português como base ou pela criação de línguas crioulas. No século XIX, com a evolução de um certo projeto de nação, dirigentes imperiais e homens de letras consideravam a centralidade da unidade da língua e sua utilização para a constituição do sentimento de pertencimento e nacionalidade.

Para isso foi essencial a atuação da imprensa no século XIX – que atingia mais gente do que os que sabiam ler -, e a educação escolar, formando cidadãos de acordo com os valores da classe senhorial em formação. Segundo a autora, a língua também propiciava caminhos para a incorporação social de homens livres pobres e mesmo escravos que se utilizavam de seus recursos.

Trata-se assim de um livro composto por capítulos escritos por especialistas reconhecidos nos variados campos de discussão historiográfica sobre o período, mas articulados por uma estratégia que possibilita sua interconexão a partir de grandes eixos temáticos. Isso faz com que a obra preencha uma importante lacuna na compilação de debates e pesquisas recentes, oferecendo aos leitores e leitoras uma leitura acessível para a compreensão dos processos históricos centrais no Brasil Imperial. Mais ainda, a coletânea, de forma geral, constitui-se em leitura obrigatória para os que trabalham com o tema e se interessam pelo debate historiográfico sendo por isso ótima opção para ser utilizada em sala de aula. Em suma, o livro cumpre com a função de divulgação para um público amplo sem abdicar de pesquisa empírica rigorosa e do debate historiográfico atualizado. Uma boa notícia para todos interessados em conhecer o que de mais novo se produz sobre o período Imperial.

Referência bibliográfica BASILE, M. Revolta e cidadania na Corte regencial. Tempo: revista do departamento de história da UFF, v. 22, p. 65, 2007.

Fabiane Popinigis – Professora adjunta Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] Rua Glaucio Gil, n.777, bloco 101, casa 01 – Recreio dos Bandeirantes 22795-171 – Rio de Janeiro – RJ Brasil.

João Goulart. Uma biografia – FERREIRA (AN)

FERREIRA, Jorge. João Goulart. Uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 713p. Resenha de: WASSERMAN, Cláudia. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 33, p. 281-285, jul. 2011.

“Jango era um conciliador porque buscava o entendimento entre as partes. Seu objetivo era alcançar acordos e compromissos políticos.” Jorge Ferreira

Para que serve a biografia de um ex-presidente do Brasil? Para esquadrinhar a história de vida de um personagem importante do século XX brasileiro, conhecer suas motivações, sua vida pessoal, suas dúvidas ocultas e suas realizações palpáveis. Neste trabalho, Jorge Ferreira gastou dez anos de sua vida profissional, pesquisando, explorando e indagando sobre João Goulart. Os outros tantos anos que Ferreira tem de estrada no ofício de historiador serviram como bagagem cognitiva para que a biografia de Jango não fosse apenas o retrato do personagem, mas também se configurasse como uma análise aguçada sobre nossa história contemporânea.

O livro desenrola-se em ordem cronológica, desde antes do nascimento de Janguinho, em 1919, até sua morte, em 1976, sem deixar de examinar os desdobramentos decorrentes das investigações sobre a hipótese de assassinato, concluídas com o arquivamento do processo de averiguação em 2010.

A tendência de construir uma ilusão biográfica, identificada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (A Ilusão Biográfica, 1996), não se confirma para a biografia construída por Jorge Ferreira, ainda que o autor de Jango: uma biografia tenha recorrido à “sucessão cronológica, às sequências ordenadas e às relações inteligíveis” (BOURDIEU, 1996, p. 75). Essas, no entanto, não cedem à “ilusão retórica” (p.76), porque foram desenhadas a partir de pesquisa minuciosa, que deixa entrever “a estrutura da rede” (p. 81).

Mesmo fiel à diacronia, Ferreira rejeita os conceitos de unidade e coerência do sujeito, fornecendo ao leitor suficientes elementos para compreender que João Goulart teve uma sinuosa trajetória, perpassada pelo mutável panorama da sociedade brasileira: “[…] não procurei montar um quebra-cabeças para, ao final, encontrar um quadro de coerências. Também evitei, o equívoco, tão comum ao relatar a vida de um personagem, de apontar suas diversas incoerências.” (p. 18). Em outras palavras, Jorge Ferreira conseguiu driblar a “ilusão biográfica”. Para tanto, valeu-se de infl uências teóricas consistentes – entre as quais ele menciona Jean-René Pendaries, Phillipe Levillain, Giovanni Levi, Chrisopher Lloyd, Vavy Pacheco Borges – e do quase infalível procedimento de “[…] recorrer a uma multiplicidade de fontes” (p. 16-17).

O controle da técnica, a consistência teórica e a profusão de fontes não fazem do volume um compêndio enfadonho com centenas de citações. O livro tem uma linguagem propositadamente fl uida, mas não peca pelo excesso de empiria. Ao contrário, seu primeiro mérito é realçar duas polêmicas, presentes, nem sempre tão evidenciadas, na historiografia brasileira. Em primeiro lugar, a respeito da ausência/quase-supressão de João Goulart dos estudos históricos do nosso país e, em segundo lugar, sobre a personalidade dessa personagem e sua suposta vacilação diante do golpe de 1964.

Ao realçar esses dois pontos, Ferreira evidencia sua admiração pela personagem. Mas o que poderia parecer falta de objetividade, merece ser investigado. Ferreira consegue, com habilidade indisfarçável, compreender a origem dessas características da historiografia brasileira em relação a Jango. Explica – a partir da noção de “[…] usos políticos do passado” – porque e por quais grupos sociais Jango foi acusado de covarde, bem como que setores da sociedade se interessaram, ao longo da história recente, por esquecer/eclipsar a sua passagem pela presidência da república. Com isso, apesar da aparente admiração pelo biografado, o que Ferreira procura é despersonalizar a história, evitando recair sobre o indivíduo todo o peso do passado.

Ao longo do livro, Jorge Ferreira vai mostrando que a construção da personalidade de Jango não estava definida a priori, mas que foi sendo moldada a partir de infl uências, de lealdades e até mesmo, fruto da ingenuidade e da inconsistência política que caracterizaram seus primeiros passos na vida pública. A profusão de outras personagens da história do Brasil, algumas altamente estudadas pela historiografia e outras desconhecidas, obscurecidas pelo tempo e pelas omissões propositais, é um mérito adicional do livro. Nesse aspecto, o livro também aborda instituições – algumas delas igualmente pouco estudadas pela historiografia brasileira – como a trajetória do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), lugar privilegiado de militância ao qual Jango dedicou sua vida inteira; o sindicalismo brasileiro, que cresceu enormemente na década de 1950, acompanhado de perto pelo percurso do político João Goulart. A imprensa, as forças armadas, o parlamento são algumas outras instituições brasileiras abordadas no livro. Foram evidenciados também processos, tais como a industrialização e o capitalismo brasileiros, oscilantes entre os ideólogos do nacional-desenvolvimentismo e do desenvolvimento integrado ao capital monopólico.

Os capítulos oito e nove, respectivamente, De março a março: rumo à radicalização e Rumo ao desastre, são eletrizantes. Ferreira utiliza grande parte da bibliografia disponível a respeito do golpe civilmilitar e narra o desenrolar daquele processo através da figura presidencial, de seu apreço pela democracia e pela conciliação. O título do capítulo dez, Dois dias finais sugere o início de uma narrativa linear dos fatos que se sucederam entre os dias trinta de março e primeiro de abril de 1964, mas o capítulo surpreende com um intenso debate historiográfico, motivação principal do livro e de toda a pesquisa.

De um lado, Ferreira não aceita que políticos, cientistas sociais e historiadores tenham responsabilizado Jango pelo golpe, ou que tenham atribuído o desfecho trágico daqueles dias à clara indisposição do presidente em resistir ao golpe. Para corroborar sua perspectiva e explicar os motivos desse uso abusivo do passado, o autor da biografia de Jango ressalta a personalidade conciliadora do presidente, ressaltando que “Conciliação, aliás, era o termo mais insultoso entre as esquerdas naquele momento. Em uma conjuntura política de crescente radicalização, aquele que não fosse radical era considerado conservador ou, mesmo, reacionário” (FERREIRA, 2011, p. 292).

Acompanhando o raciocínio de Ferreira: o Brasil vivia um dos períodos mais democráticos de toda a sua história. A participação e as reivindicações das classes subalternas, antes ignoradas e/ou mantidas sob rígido controle coercitivo, somente aumentavam em ritmo alucinante. Um dos horizontes desses grupos sociais era o socialismo que, segundo eles próprios, e a partir do exemplo cubano, deveria ser desencadeado a partir de uma revolução.

Neste contexto, as propostas de conciliação só poderiam soar como um obstáculo concreto ao seu projeto e, portanto, como adesão velada ao projeto antagonista. Sendo que os antagonistas da transição ao socialismo e da revolução brasileira também não confiavam que a postura conciliadora de Jango pudesse garantir a continuidade do sistema econômico, político e social por eles defendido.

Por isso, a postura conciliadora do presidente João Goulart foi tão veementemente contestada. Porque ser conciliador, em meio ao contexto de polarização, não significava ficar em cima do muro, mas adquiria sentido de um firme posicionamento político, nesse caso, contrário às transformações sistêmicas.

Restaria discutir criticamente esse termo tão difuso para nosso campo da história e tão caro aos cientistas políticos: o conceito de conciliação. Buscar o entendimento entre as partes, procurar fazer acordos e compromissos políticos é um comportamento louvável nos homens públicos, que pode impedir graves crises políticas.

Mas, até onde pode ir o acordo, o entendimento e a conciliação? Até onde se pode abrir mão das próprias convicções? Diante de projetos antagônicos de sociedade e de nação, as convicções devem ser abandonadas pelos homens públicos em nome da conciliação?

Por outro lado, Ferreira tem razão, não foi efetivamente essa personalidade conciliadora de Jango que provocou o golpe nem uma atitude mais consistente poderia ter impedido o desfecho, mas isso também não vem ao caso. A história não é mestra da vida, certamente não teremos uma repetição desses episódios que possam desmentir uma ou outra interpretação.

Fato emblemático e, ao mesmo tempo, curioso, no entanto, é que o apelo à conciliação e à boa acolhida a essa postura de negociação pacífica dos confl itos sociais, harmonização das relações etc.

esteve presente nos dois momentos mais polarizados da nossa história contemporânea: o período pré-64 e a luta pela redemocratizado por volta dos anos 80. No primeiro período, a posição conciliatória não impediu o golpe de morte à democracia e, no segundo, essa harmonização impediu que a sociedade brasileira soubesse de verdade quem foram os responsáveis por esse atentado.

A pesquisa sobre o exílio do presidente Goulart foi primorosa, ajuda a compreender as relações entre exilados, os ambientes dos países de acolhida, as relações entre os militares dos países assolados por ditaduras e as tentativas de articulação política para o retorno ao país. Jango voltou morto ao Brasil em 1976, para ser enterrado em São Borja, segundo Ferreira, uma concessão do governo militar; não sabemos como ele agiria politicamente caso tivesse sido anistiado em 1979. Mas sabemos o que disse Leonel Brizola ao chegar ao país, o mesmo Brizola impaciente que tanto criticou a “falta de atitude” do cunhado presidente. Entrou no Brasil por Foz do Iguaçu no dia 06 de setembro de 1979 e falou pouco, deixando claro que aqueles que o seguissem no retorno ao Brasil deveriam ter “cautela, paciência e prudência”. Um indício de que a ideia da conciliação voltaria a assombrar a história recente do país.

Claudia Wasserman – Professora do PPG-História da UFRGS. E-mail: [email protected].

O Brasil imperial | Keila Grinberg e Ricardo Salles

Esses três volumes dividem a história da monarquia brasileira em três fases distintas: 1808-1831, 1831-1870 e 1870-1889; ou seja, da transferência da Corte portuguesa à abdicação do primeiro imperador; da Regência até o fim da Guerra do Paraguai; e deste conflito até a queda da monarquia. Cada volume é composto por onze capítulos, escritos, individualmente ou em colaboração, por 36 historiadores.

Coleções são, notoriamente, difíceis de organizar. Os colegas, com frequência, têm dificuldade de cumprir prazos ou hesitam em aceitar sugestões e correções. Os resultados, amiúde, variam consideravelmente de capítulo a capítulo. Essa coleção de três volumes é, contudo, excepcionalmente sólida, pelo alto nível geral de conhecimento que apresenta, por sua abrangência e pela clareza da escrita e, como José Murilo de Carvalho observa em sua elegante introdução, expressiva das conquistas do país na última ou nas duas últimas gerações. A coleção pode ser considerada uma celebração da maneira como a história do Brasil tem sido escrita e ensinada nesse período. As referências bastam para tornar os volumes indispensáveis, tanto para o graduado quanto para o profissional da área. O estilo e a abordagem são, muitas vezes, tão convidativos que também o leigo poderá se beneficiar. Embora fique evidente que Grinberg e Salles não exerceram uma coordenação autoritária (abordagens, extensões e graus de sucesso variados sugerem que se limitaram a selecionar colegas e tópicos), eles devem ser felicitados e reconhecidos por esse triunfo ímpar na historiografia.

São dois os precedentes desses volumes. A imprescindível série A história geral da civilização brasileira, organizada por Sérgio Buarque de Hollanda e, depois, por Boris Fausto, durante os anos 1960 e 1970; e os magistrais capítulos sobre o Brasil na Cambridge History of Latin America [CHLA], composta em grande parte na década de 1980 (sendo que as contribuições mais recentes foram feitas ainda em 2008) e organizada por Leslie Bethell. A primeira foi escrita por especialistas brasileiros e americanos como uma narrativa tanto para leigos quanto para acadêmicos, com um mínimo de referências. A segunda fornece análises densas e narrativas sintéticas, feitas por especialistas de três continentes. Sua linguagem sugere que foi escrita para acadêmicos ou graduados, e, embora careça seriamente de referências, cada capítulo é reforçado por um ensaio bibliográfico bastante útil, que abrange as pesquisas em todos os idiomas indispensáveis. A coleção em mãos difere de ambos os precedentes. Com uma exceção, Dale Tomich, todos os autores são brasileiros. Alguns dos textos são fundamentados tanto em fontes primárias quanto em bibliografia, e todas elas recebem notas (não há bibliografia no final dos capítulos). Muitos dos autores, assim como os da CHLA, sintetizam e colocam referências somente nas fontes bibliográficas; na verdade, muitos dos trabalhos citados são os mais recentes na área e estão em teses e dissertações não-publicadas. Lamentavelmente, há, reiteradas vezes, espantosas lacunas nas citações. Referências a importantes contribuições em inglês variam de autor para autor; mas, com frequência, estão ausentes ou desiguais, e, com muita frequência, trabalhos mais antigos escritos em qualquer idioma são negligenciados. Em geral, esta poderia ser definida como uma coleção feita por e para acadêmicos brasileiros dessa geração e da anterior, com ênfase na pesquisa realizada nesse período.

Dos três volumes, o primeiro e o terceiro são os mais irregulares em termos de qualidade. No primeiro, podem-se considerar problemáticos o segundo capítulo e os capítulos de quatro a sete, por várias razões. O capítulo de Iara Schiavinetto sobre o período joanino apresenta escassa narrativa sobre a época e poucas evidências para seus argumentos. Em vez disso, a autora pressupõe um público erudito e enfatiza as expressões culturais e simbólicas. O texto de Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira sobre o Primeiro Reinado negligencia as ligações entre líderes políticos e seguidores populares, não faz distinção entre os interesses e as ações dos vários elementos que compõem as massas e, no fundo, tende a confundir pessoas de cor, libertos e filhos de escravos em argumentações que se esforçam para persuadir o leitor quanto à agência popular. O ensaio de Patrícia Sampaio sobre política indigenista é surpreendentemente decepcionante; um estudo de relatórios ministeriais que presta pouca atenção ao que aconteceu na realidade concreta. O capítulo sobre tráfico de escravos, escrito por Beatriz Mamigonian, é ambicioso, até por suas conclusões provocativas e problemáticas em um ponto ou outro. Seja como for, suas novas proposições (de que o tráfico esteve sujeito a intensos ataques jurídicos, os quais impactaram a escravatura e os próprios africanos) são apenas expostas, e não satisfatoriamente demonstradas. Por fim, o capítulo sobre rebeliões de escravos pré-1850, escrito por Keila Grinberg, Magno Borges e Ricardo Salles, fornece um estudo e uma bibliografia úteis. Ainda assim, o argumento (de que as rebeliões e a violenta resistência dos cativos eram o aspecto distintivo do regime escravista, as quais impunham temor e pânico generalizados sobre os livres) fundamenta-se em evidências problemáticas e, por vezes, contestadas por fatos comprovados (por exemplo, a primazia da resistência pela fuga e por quilombos, a reduzida dimensão e o caráter efêmero das revoltas, suas seguidas repressões e, sobretudo, o êxito e a expansão do sistema escravista em todas as regiões e classes sociais).

A maior parte do volume, contudo, é bem mais consistente. O primeiro capítulo, uma introdução de Cecília Helena Oliveira para todo o período, é uma síntese sólida, que expõe a narrativa e os argumentos com destreza. Falta-lhe apenas uma melhor análise sobre as bases regionais e socioeconômicas por trás da divisão política da época. O capítulo de Piedade Grinberg sobre arte e arquitetura é uma apresentação culta e instrutiva, com notas explicativas e referências úteis. Embora ele já seja bastante proveitoso, seria bem-vindo alguém capaz de estender sua abordagem para os possíveis paralelos com escolas literárias e outras instituições de inspiração francesa, tais como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Colégio Dom Pedro II e também o papel de mecenas do monarca. O capítulo de Lúcia Maria Bastos P. das Neves sobre o Estado e a política na época da Independência faz hábil uso de fontes coevas em um percurso muito bem sucedido pela historiografia, ao qual se segue uma análise útil e, por vezes, revisionista, da narrativa. O capítulo de Eduardo França Paiva sobre Minas no século XIX é um estudo magistral, um tour de force que utiliza as pesquisas mais recentes para ressaltar a importância racial, demográfica e de desenvolvimento da província – é uma pena que ele não aplica o mesmo esforço para fazer as relações com a história política do período. Gabriela Ferreira compensa essa negligência, tão comum nestes capítulos, em seu engenhoso texto sobre a história diplomática no Prata. A autora fornece um relato útil e necessário sobre a consolidação do Estado entre 1837 e a década de 1850 e utiliza essa análise como estrutura indispensável para sua síntese narrativa. Fundamentado tanto em clássicos quanto em trabalhos recentes, este é um estudo que não para de surpreender e informar. Por fim, o capítulo de Guilherme Pereira das Neves, sobre a religião na monarquia, conclui o volume com um estudo amplo e útil, contextualizando a história da Igreja com um uso erudito de fontes em diversos idiomas e criteriosas referências a debates parlamentares. Só se poderia desejar que o autor houvesse tido espaço para aprofundar o tema da maçonaria ou a questão dos bispos, depois de tê-los apresentado.

O segundo volume é, no geral, o mais consistente. É verdade que o capítulo introdutório de Ilmar Rohloff de Mattos não aprimora muito seu clássico estudo sobre o período. Fazendo referência a uma bibliografia ampla e seletiva, sem o benefício da pesquisa de arquivo, sua análise digressiva evoca O tempo saquarema, frequentemente citado em outras partes por seus colegas, no qual se confunde a monarquia, o Estado e as classes dirigentes, sem uma clara noção do processo, da articulação ou das distinções partidárias, tão importantes na tentativa de compreender esse complexo passado. O estudo de Magda Ricci sobre a Cabanagem pode ser mais bem recomendado, se bem que com hesitação. A autora não apresenta nenhuma pesquisa de arquivo e presume que o leitor está familiarizado com a narrativa – os que desconhecem o assunto talvez ficarão confusos. No entanto, sua síntese de uma ampla gama de trabalhos apresenta a mais devastadora das revoltas regenciais, geralmente ignorada ou desconhecida por muitos de nós, e suas citações de obras relativamente obscuras da historiografia amazônica são úteis. O capítulo de Jaime Rodrigues acerca do fim do comércio atlântico de escravos é surpreendente, devido à erudição do autor. Ele pressupõe que o debate central permanece no tema das motivações britânicas versus motivações nacionais e geralmente ignora a contenda mais atual, que aponta como causas a agência escrava e a febre amarela. Embora forneça uma fascinante história intelectual da polêmica e da crítica parlamentar ao tráfico, ele o faz sem atentar ao seu impacto sobre a decisão de terminar o tráfico, às opiniões daqueles que realmente tomaram esta decisão ou à história política, essencial para compreender o contexto desta decisão. Por fim, o capítulo de Márcia Gonçalves sobre o Romantismo pode ser considerado como uma oportunidade perdida. É um trabalho sobre os conceitos fundamentais da escola e pressupõe um interesse na análise teórica de tais conceitos e um conhecimento do período e de suas figuras literárias. Há uma excelente bibliografia sobre os temas abordados e sobre autores canônicos brasileiros. No entanto, não há preocupação em mostrar como a sensibilidade e os literatos românticos se encaixavam no meio literário, social e político da época. Na verdade, a chance de demonstrar a relação entre a alta cultura e os interesses de outros historiadores – ou até mesmo dos leitores – foi perdida.

Outros capítulos são verdadeiramente valiosos. Nenhum período é mais importante ou seminal para a história da monarquia que a Regência, e a introdução de Marcelo Basile a esse período é deveras admirável, devido à sua clareza e maestria, beneficiando-se da ótima pesquisa, tanto de fontes primárias quanto de bibliografia. Embora seja preciso notar que ele negligencia a questão crucial do impacto socioeconômico no início da formação dos partidos, deve-se recomendar este texto bastante sólido e provido de úteis notas explicativas. O texto de Sandra Pesavento sobre os farroupilhas inclui uma útil narrativa, embora a necessária análise contextual da revolta seja atrapalhada, aqui e ali, por hipóteses e conclusões equivocadas. Estas são bem menos relevantes que a provocativa investigação que a autora faz da construção literária e historiográfica da identidade e do imaginário gaúchos e de sua importância. O capítulo de K. Grinberg sobre a Sabinada também tem valor evidente. Pode-se discordar da autora em algumas passagens, quanto a fatos e interpretações, mas o texto é, em si, útil por seu caráter provocativo e pela centralidade das questões que apresenta. Ela usa essa destacada revolta para ilustrar como o debate sobre discriminação racial veio à tona e depois foi suprimido na década de 1830. Ao fazê-lo, discute explicitamente os aspectos raciais do movimento, a oposição que lhe fez Antônio Rebouças e as carreiras deste e de Sabino. Embora a autora procure se concentrar na questão da raça, sua bela pesquisa mostra que os fatores políticos, de classe e de carreira se entrelaçam com o fator racial consistentemente. De fato, as generalizações políticas e raciais que ela sugere nem sempre se ajustam com a carreira de Rebouças ou com as de Justiano José Rocha, Francisco Otaviano, Aureliano e Paula Brito. O texto de Vitor Izecksohn sobre a Guerra do Paraguai faz um sólido resumo da guerra e fornece uma excelente bibliografia. Além das várias linhas de pesquisa cuidadosamente sugeridas na conclusão, outras são indicadas pela bem elaborada análise política: qual foi o impacto da guerra na política doméstica em termos de reforma urbana e dificuldades financeiras? Qual foi a base dos temores do gabinete quanto à mobilização política entre liberais e veteranos depois de 1870? A conclusão de Ivana Lima para o volume dedica-se ao tópico aparentemente pouco auspicioso da língua nacional. Ainda assim, por mobilizar uma gama impressionante de bibliografia e textos coevos publicados, pode-se considerá-la muito útil para se pensar a formação cultural multiétnica, os aspectos culturais da sociabilização e o seu impacto político e as intenções políticas da cultura literária e o uso da língua. Por exemplo, a autora mostra a intenção senhorial de usar a língua para manter a hierarquia social, mas também demonstra os usos da língua para inclusão dos subalternos e para a mobilidade social. É uma introdução cuidadosa e atraente a um tópico que a maioria de nós ignora.

Dois capítulos deste volume são especialmente admiráveis por suas contribuições: o capítulo de Marcus Carvalho sobre movimentos sociais pernambucanos e a análise de Rafael Marquese e Dale Tomich sobre a produção cafeeira do Vale do Paraíba no contexto mundial. Nenhuma província era mais atingida pela instabilidade e pela violência que Pernambuco naquele período. Nenhuma era mais importante para compreender o significado nacional tanto da Regência quanto do Regresso. A análise de Marcus Carvalho aborda todas essas questões em uma mostra singular e impressionante do ofício do historiador. É exemplar por sua habilidosa conjugação de uma vasta gama de fontes de arquivo com bibliografia; por sua atenção à interação entre classes e cores de pele e entre a província e a Corte; e pela clareza de sua exposição. Modelo de como lidar com os complicados elementos em jogo na política e nas revoltas provinciais do início da monarquia, o artigo demonstra quão indispensável a história social é para a história política, a história política é para a social, e quão crucial a apreciação das contingências e das especificidades de tempo e lugar é para a compreensão e o encadeamento dos processos políticos. É invejável o evidente domínio de Carvalho sobre as questões no plano empírico e na historiografia; espera-se ansiosamente o dia em que forem feitas análises similares sobre todas as províncias do Império. Marquese e Tomich, em uma notável demonstração que combina um extraordinário entendimento das tendências gerais a uma atenção focada no detalhe local, colocam em contexto a emergência das plantações de café escravistas, em uma síntese magnífica, baseada em uma fundamentação historiográfica excepcionalmente extensa. Seu vigor específico provém da maneira pela qual insere as exportações do café brasileiro no contexto global, expondo, sem dificuldade, números e análises acerca do mercado do produto, da competição e da relação de ambos com o cultivo e a mão-de-obra no Brasil. Com excelentes números e preocupação com a cronologia, essa dupla ilustra, de forma ousada, os fatores vários que permitiram que o Brasil se lançasse à frente de rivais contemporâneos, como as ilhas caribenhas e Java. Mais que isso, a escrita e a organização dos autores é feita de tal modo, que aquilo que muitos de nós julgamos ser o aspecto mais desalentador da história torna-se dramático.

Como no primeiro volume, as contribuições do terceiro tendem a se agrupar em dois extremos – o dos problemáticos e o dos impressionantes. O texto introdutório de Hebe Mattos sobre raça, escravidão e política, por exemplo, focaliza as três principais leis abolicionistas de 1850, 1871 e 1888, mas se esquiva da complexidade da história política com generalizações simplificadas sobre a classe dominante e o reformismo desprezado e com a afirmação insatisfatória de que cada lei foi, em grande medida, resultado da mobilização dos escravos. O ensaio de Margarida Neves sobre o Rio é inesperado, baseado em uma considerável bibliografia sobre as exposições universais e, na maior parte, as impressões de Koseritz. A bibliografia sobre o Rio ou sobre a história urbana do final do século XIX é, em geral, ignorada, exceto pelos trabalhos de Chalhoub. Não há nada sobre assuntos como a dramática transformação demográfica da cidade, o declínio do escravismo, a nova opulência e as amenidades da era pós-1850, a economia que girava em torno da cidade, a infraestrutura que a sustentava ou os estilos arquitetônicos que a adornavam, o surgimento dos novos bairros elegantes, o impacto qualitativo e quantitativo das doenças contagiosas. O capítulo de João Klug sobre a imigração para o sul também não satisfaz. É menos uma síntese competente que uma tentativa fracassada de construir uma narrativa triunfalista. Preocupa-se quando o autor supõe que a política de Estado ou que a classe dirigente da nação não mudaram com as décadas, e, embora ele presuma que há uma lógica racial na imigração europeia, não faz qualquer tentativa de atrelar as mudanças na política de imigração às mudanças na política atinente ao tráfico de escravos africano e à escravidão. Por fim, o relato de Maria Helena Machado sobre a abolição da escravatura é igualmente decepcionante. A exemplar pesquisa de arquivo sobre eventos locais paulistas é maravilhosa, mas nota-se que a autora geralmente deixa de lado as fontes coevas abolicionistas publicadas e a tradição acadêmica sobre o movimento abolicionista para privilegiar o argumento de que as rebeliões escravas e o medo por elas espalhado impulsionaram o abolicionismo. Suas evidências são demasiado seletivas e, às vezes, podem ser lidas de modo bem diferente do que ela propõe. E, embora o próprio texto indique algo sobre a importância dos abolicionistas na fuga e na resistência dos escravos rurais, ela insiste em argumentar que os líderes abolicionistas eram marginais até 1888. Na verdade, a autora só menciona o movimento abolicionista uma única vez e, apesar de seu enfoque na desestabilização rural paulista nos anos 1880, ela se refere apenas de passagem a Antonio Bento. A agência escrava dos escravos é crucial para o entendimento tanto da escravidão quanto da abolição no Brasil, mas não há motivos para ignorar as realidades políticas nacionais ou a natureza do movimento nacional que, com êxito, se envolveu com essas realidades, promoveu e organizou a fuga e a resistência na década de 1880 e fez um uso político astuto e efetivo do impacto da agência escrava.

Há trabalhos bem mais interessantes nos outros capítulos do volume. Veja-se, por exemplo, o convincente relato de Martha Abreu e Larissa Viana sobre cultura urbana afro-brasileira. Bem escrito e envolvente, é resultado de uma persuasiva síntese da bibliografia atual e dos valiosos registros do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Pode-se perguntar, devido à pesquisa das autoras, por que elas ainda se sentiram compelidas a impor uma identidade “negra” a-histórica e uma política cultural consciente sobre os afro-brasileiros pobres. Afinal, essa imposição é, muitas vezes, contrariada pela especificidade e complexidade dos fatos que eles mesmos apresentam tão bem. Identidade negra, comunidade negra e comunidades e festividades negras são concepções post-facto com que eles cobrem uma realidade muito mais complexa – as variadas etnias africanas, a crioulização, a miscigenação racial, o hibridismo cultural e as metamorfoses nas festividades, o oportunismo, além da exploração, que eles detalham tão bem. O relato de Renato Lemos sobre republicanismo e o golpe de 1889 é uma síntese bastante útil e bem organizada de uma bibliografia considerável e variada. Apenas se poderia esperar que sua hábil análise se demorasse um pouco mais na ideologia e no papel crucial dos republicanos positivistas, no fracasso do reformismo democrático e agrário dos abolicionistas e nas divisões e recuos dos partidos tradicionais. Contudo, o artigo deve ser recomendado por sua discussão acerca da dissidência, da alienação e da politização dos militares – excepcional pela minúcia e clareza.

Os capítulos restantes são ainda mais consistentes, dois deles em particular. Embora se possa discordar da compreensão de Salles sobre a história dos saquaremas e da crise de 1871, deve-se recomendar a maior parte deste capítulo sem hesitação. Bem concebido e escrito, o texto faz uso de uma criteriosa seleção de bibliografia e de fontes primárias publicadas para fornecer um sofisticado tratamento da história política de meados do século e das figuras que o dominaram, com evidente conhecimento sobre o crucial contexto socioeconômico. Talvez um estudo mais rigoroso das fontes de arquivo e dos debates de 1871 pudesse explicar como e porque os saquaremas condenaram a Conciliação e pudesse fazer a clara distinção entre as políticas e a perspectiva do imperador e as dos saquaremas. Não obstante, esse é um trabalho notável e uma excelente base para um debate proveitoso. O texto de Ângela Alonso sobre as ideias e as correntes da Geração de 1870 é indispensável por vários motivos. Baseado em uma leitura cuidadosa de bibliografia e fontes coevas publicadas, é uma análise rica e original que requer (e recompensa a) leitura atenta, pois trata, com esmero, de influências, autores e preocupações. O artigo destaca o ponto crucial da adaptação do pensamento atlântico feita pelos intelectuais brasileiros e o papel decisivo que estes desempenharam como atores políticos engajados (e não como intelectuais descompromissados). A autora também esclarece que eles deixaram um importante legado, enfatizando a missão civilizatória do pensamento social e a ideia seminal de que as massas da nação eram um singular amálgama de três raças. De modo geral, o capítulo é fortemente recomendável. Mas, devido à ênfase no ativismo político, o leitor é surpreendido pela implícita decisão da autora por separar a história política da intelectual ao tratar da primeira sem a costurar com a segunda, na maioria das vezes. Isso pode explicar alguns deslizes: o artigo não aborda de modo satisfatório a natureza ou influência duradoura do radicalismo liberal pré-1870; afirma que o regime possuía uma ideologia aristocrática e católica, em contradição com as verdadeiras ideologias e políticas da monarquia; e seu foco sobre o positivismo e seus militantes é irresoluto, apesar da importância destes sobre os republicanos, sobre a queda do regime e sobre o regime seguinte.

Os capítulos remanescentes também são altamente recomendáveis. O texto de Maria Luiza Oliveira sobre São Paulo é exemplar; escrito com grande empatia e destreza, combina um estudo magistral sobre as abordagens e tendências da historiografia com um esboço útil da natureza, do ritmo e da direção das mudanças urbanas que transformaram São Paulo de centro intelectual provincial em núcleo agroexportador emergente. As referências indicam domínio dos clássicos e selecionam textos acadêmicos inéditos; a autora emprega, engenhosamente, fontes de arquivo para provar pontos específicos. Instrutivo e inspirador em todos os aspectos, o artigo é uma realização invejável. O mesmo talvez possa ser dito sobre o agradável ensaio de Leonardo Pereira sobre a literatura do período. Bem escrito, é um texto lúcido, que se vale da literatura e do célebre dito de Machado de Assis sobre o “instinto nacional” para traçar os meios pelos quais a literatura e os literatos pós-1870 se engajaram na transformação da política e da sociedade. Aqui encontramos um hábil tratamento da teoria literária coeva, das obras literárias e do meio político e social, além de uma demonstração competente de como esses aspectos se relacionavam. O leitor pode apenas imaginar o que um acadêmico tão talentoso haveria feito se sua tarefa houvesse sido estendida até o divisor de águas literário dos anos 1850, durante os quais tanto Alencar quanto Machado se formaram. Ainda que o uso das fontes primárias seja exemplar, o leitor fica intrigado com a decisão do autor em citar apenas textos bibliográficos selecionadas e muito recentes – o que surpreende, sobretudo, quando se leva em conta a grande força da história e da interpretação literárias brasileiras e brasilianistas ao longo das gerações. Por fim, José Augusto Pádua nos fornece um estudo bem sucedido sobre a história e o pensamento ambiental do período. Dominando as fontes e a bibliografia imprescindíveis, as quais ele discute com destreza, essa é uma contribuição revigorante e provocativa que sugere, implícita ou explicitamente, inúmeras possibilidades para pesquisas ulteriores nesse campo relativamente novo. Seria desejável, por exemplo, que o autor houvesse enfatizado com maior vigor o impacto da oposição (ou da indiferença) do Estado e das classes dominantes às críticas concernentes à natureza do modelo de desenvolvimento rural do Brasil. Como no caso dos abolicionistas até a década de 1880, brasileiros que se opunham ao modelo de produção agro-exportadora insustentável eram marginalizados, não importando quão proeminente fossem pessoalmente. Tudo isso faz o leitor relembrar algo que a obra clássica de Emília Viotti da Costa sobre a abolição da escravatura deixou evidente. Não é a ausência ou a presença de ideias esclarecidas o que explica práticas ruins em um período e práticas boas em outro. Mas, sim, as alterações favoráveis nas circunstâncias materiais e políticas.

A resenha de uma coleção desse porte pode ser comparada a um convite para um bufê de amigos. É preciso provar os diversos pratos e emitir uma opinião; felizmente, está claro que a maioria dos pratos aqui degustados é excelente ou, pelo menos, que vale a pena experimentá-los, apesar de uma ou duas objeções. Talvez agora o convidado possa notar que faltaram alguns pratos que ele gostaria que houvessem sido servidos – apenas para fazer algumas sugestões de pesquisas futuras para todos nós.

Faz sentido haver capítulos sobre o Rio, a capital nacional, e sobre o café e o Vale do Paraíba; também faz sentido haver um capítulo sobre Minas, devido à sua importância política, econômica e demográfica; sobre Pernambuco, dada a sua constante importância política e econômica, e sobre São Paulo, cuja primeira emergência no cenário econômico ocorre sob a monarquia e cuja proeminência ulterior no país chama atenção. Pode-se perguntar, porém, pela ausência de capítulos sobre Salvador e a Província da Bahia, pela falta de um capítulo sobre o açúcar ou pela ausência de um capítulo sobre a Amazônia.

Afinal, Salvador foi a segunda cidade do império ao longo do período e a Bahia foi economicamente significativa e politicamente crucial durante toda a monarquia. O açúcar, mesmo que sua exportação e participação no mercado internacional tenham recuado na época, dominou as exportações no início do período que os três volumes discutem e continuou sendo um item de exportação regional muito importante no nordeste e na baixada fluminense durante a monarquia. Embora comentários sobre isso estejam espalhados pelos volumes, um capítulo sobre a ascensão e o declínio do produto, com uma análise das várias consequências, seria, por certo, útil. Quanto à Amazônia, embora o capítulo sobre a Cabanagem tenha sido uma excelente ideia, o esquecimento no qual Belém, Manaus e a Amazônia caem logo na sequência da trilogia é lamentável. Embora o mesmo possa ser dito sobre o Rio Grande do Sul depois do capítulo sobre a revolta farroupilha, a importância econômica e política da província gaúcha pelo menos é abordada no capítulo sobre a diplomacia platina. O mesmo não pode ser dito sobre o norte; a antologia negligencia sua história após o início dos anos 1840. Ainda que a política de Estado tenha focalizado e se dedicado a outras áreas, ela demonstrou um esporádico, mas crescente interesse na região pelo menos a partir de meados do século. A Província do Amazonas data desta época, quando as marcas do ciclo da borracha, que atingiu seu pico por volta do ano 1900, começaram a se definir; além disso, toda a região é um interessante campo para conflitos diplomáticos, expansão da infraestrutura, penetração econômica e política indigenista. Embora o desdobramento de grande parte desses eventos ocorra um pouco mais tarde (1890-1914), sua preparação tem atraído e deve atrair maior interesse.

Outra lacuna se refere a uma atenção séria e constante ao pensamento econômico e às políticas financeiras sob a monarquia, com ênfase em uma escrita que seja acessível àqueles que não têm noções sobre economia. Tradicionalmente, historiadores do desenvolvimento e das finanças do Brasil asseveram que o século XIX foi significativo para o que aconteceu ou não aconteceu e por quê. Mais que isso, a monarquia é a época em que foram feitos avanços cruciais na infraestrutura e na qual o dramático incremento na produção, no comércio, nas comunicações e nos investimentos da nação ocasionou a inovação e o debate na política financeira e nas instituições. De fato, dívidas internacionais, demandas e crises atlânticas modelaram a política dos gabinetes e o debate parlamentar a partir dos anos 1850, com crescente importância e impacto doméstico desde a época da Guerra do Paraguai até a era do reformismo urbano e do abolicionismo. Sem dúvidas, esses assuntos solicitam nossa atenção.

Jeffrey D. Needell – Professor de História Brasileira no Departamento de História da Universidade da Flórida (College of Liberal Arts and Sciences/ UF – Flórida/EUA) e Professor Afiliado do Centro de Estudos Latino-Americanos (UF – Flórida/EUA). E-mail: [email protected]


GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Orgs.). O Brasil imperial. 3 Vols. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. Resenha de: NEEDELL, Jeffrey D. Uma celebração da História Imperial do Brasil. Tradução da resenha: LUCIANI, Fernanda Trindade. Almanack, Guarulhos, n.2, p. 160-167, jul./dez., 2011.

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A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno – SILVA (AF)

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. Resenha de: KANGUSSU, Imaculada. Artefilosofia, Ouro Preto, n.9, out., 2010.

A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno, livro recém-lançado de Márcio Seligmann-Silva, chama imediatamente a atenção pela densidade do texto. O autor da obra apresentada como uma “publicação introdutória” (p.83), e com o desejo de servir “de incentivo para os leitores irem aos originais” (p.12), consegue condensar em poucas páginas, e em linguagem acessível a não especialistas, aspectos importantes do legado intelectual deixado pelos dois amigos, luminares da forma de pensamento conhecida como Teoria Crítica, a partir do conceito de atualidade. Através da apresentação de reflexões dos próprios filósofos em torno do necessário movimento de atualização, Benjamin e Adorno revelam-se, no correr do texto, como pensadores de problemas ainda atuais e como autores de reflexões que ainda podem auxiliar na percepção das realidades atuais.

Depois de uma breve introdução, os protagonistas são apresentados separadamente e em ordem cronológica: a primeira parte é dedicada a Benjamin, a segunda a Adorno. O modo de o autor enfocá-los também é distinto, mais amplo em Benjamin, mais pontual para Adorno. Na primeira parte, denominada simplesmente “Walter Benjamin”, mesmo confessadamente consciente do perigo existente na tentação de explicar as obras a partir da biografia do autor e com isso “cair no biografismo” (p.15), Seligmann-Silva assume o risco de, no seu texto, levar em frente, entrelaçados, o pensamento filosófico e a “memória de sua (dele, Benjamin, ik) trágica vida” (p.16). Ao adotar esse procedimento essencialmente benjaminiano, i.e, o de considerar a obra pari passu com a materialidade do contexto histórico de sua produção, o livro já diz a que veio, na medida em que pinça e dá a conhecer, condensados, detalhes da vida do protagonista potencialmente capazes de lançar novos focos de luz sobre seu pensamento. E se aceitarmos a ideia benjaminiana segundo a qual a repetição é a alma do jogar – ou da brincadeira, em alemão spielen nomeia os dois – e, mais ainda, de que “toda experiência mais profunda quer ser insaciavelmente, até o fim de todas as coisas, repetição e volta, restauração de uma protossituação da qual ela partiu” (BENJAMIN, Gesammelte Schriften III, p.131, citado na p.19), o autor realiza essa experiência anímica como convite ao jogo de levá-la adiante por meio da repetição. Como uma mônada, com mais ou menos ênfase, o texto reflete toda a vida do pensador alemão, do nascimento ao suicídio, e a incidência desta sobre a obra, e vice-versa. A escolha da amplitude leva à apresentação por meio de índices da enorme exuberância dos conceitos benjaminianos e movimenta uma massa de pensamentos sucintamente 214 Imaculada Kangussu apresentados. Corre com isso o perigo de que a intensidade das dobras e manobras presentes na formulação destes passe desapercebida aos neófitos diante da síntese tão bem construída a partir da relação vida e obra. Risco que, da minha perspectiva, vale a pena ser corrido na medida em que é compensado pelo volume de informação fornecido. Por outro lado, em quem encontra-se mais familiarizado/a com o filósofo, o livro provoca um turbilhão mental ao promover, com sua leitura, a rememoração dos percursos realizados até que sejam encontradas as formulações apresentadas. Com isso, o texto ganha uma força extra ao mover leitores e leitoras rumo à rememoração do que não está dito, e, vale lembrar, todo rememorar configura uma forma de atualização. Seja como apresentação, seja provocando rememorações, o livro atualiza a dimensão metafísica da linguagem salientada pelo assim chamado “jovem Benjamin”; a caracterização da crítica como médium da e de reflexão (Reflexionsmedium), de acordo com a tese fundamental de O conceito de crítica da arte no romantismo alemão (Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik); as articulações de uma teoria política, as ideias messiânicas, a percepção corpórea dos fenômenos e sobretudo o desdobramento da filosofia da linguagem, presentes nos textos dos anos 1920; a capacidade de pensar imageticamente revelada em Rua de mão única (Ein- bahnstrasse) e nos Diários de Moscou ; o entrelaçamento entre vida e obra sob a égide da filosofia, na Crônica Berlinense (Berliner Chronik) e em sua versão posterior, Infância berlinense por volta de 1900 (Berliner Kindheit um neunzehnhundert). Deslocando um pouco o termo, também é salientada a atualidade de certas passagens relativas às obras de arte, como acontece por exemplo na defesa da pertinência de uma teoria estética composta a partir “do índice, dos traços, rastros e marcas, em oposição à arte da narrativa totalizante, épica, metafórica e tradicional” (p. 41), percebida por Seligmann-Silva na descrição feita por Benjamin, em “O autor como produtor”, dos objetos dadá, capazes de produzir a percepção de que, devidamente emoldurado, “o menor fragmento autêntico da vida diária diz mais que a pintura”. Dialeticamente, revela-se também bastante atual a denúncia da transformação da “própria miséria em objeto de fruição”, encontrada no mesmo texto.

Em nossa época, povoada por excessos de dados e ausências de nexos, soa extremamente up to date o termo fantasmagoria, usado para nomear certas indistinções (frutos da impossibilidade de distinção) entre o real e o universo da fantasia. Seligmann-Silva observa que foi nos brinquedos e nas brincadeiras que Benjamin aprendeu pela primeira vez seu significado: “os brinquedos e as brincadeiras implicavam para ele (Benjamin, ik) uma libertação” (p. 78). Antes de passar para a segunda parte do livro, onde o autor discorre sobre Theodor W. Adorno, julgo – tendo em vista a analogia temática – valer a menção a um brevíssimo texto de Norbert Bolz, “Estéticas da Media”, composto em torno da questão relativa ao “custo de se manter Benjamin atual”. Bolz atualiza o pensamento deste ao salientar a verdade ainda presente na necessidade, reclamada por Benjamin, de se reformular, na teoria estética contemporânea, a distinção entre individual e coletivo, a partir do momento em que, na prática, organizar a percepção coletiva constitui a principal tarefa do cinema. O preço atribuído por Bolz à atualização de Benjamin consiste, portanto, no necessário abandono das categorias estéticas focadas nas relações entre a obra e o indivíduo, cujo conceito precisa acompanhar o deslizamento factual deste, rumo à sua dissolução nas amorfas massas urbanas. Parece não ter sido ainda levado às últimas consequências o fragmento (K 3, 3) das Passagens, onde se apresenta o filme como “desdobramento (resultado?) de todas as formas e percepção, tempo e ritmo que se encontram pré-formados nas máquinas atuais, de tal maneira que todos os problemas da arte atual só podem encontrar suas formulações definitivas na correlação com o cinema” (Der Film: Auswicklung (Auswirkung?) aller Anschauungsformen, Tempi und Rhyth- men, die in den heutigen Maschinen präformiert liegen, dergestalt dass alle Pro- bleme der heutigen Kunst ihre endgültige Formulierung nur im Zusammenhange des Films finden). Quando se vai, para além do conceito de obra de arte, em direção à dimensão estética em seu sentido original mais abrangente, pode-se perceber que a necessidade de atualização do pensamento filosófico relativo às transformações provocadas nos modos de percepção sensível pelo incessante processo de maquinização – incluindo nesse processo o próprio cinema – permanece viva. E lembro aqui o duplo significado de “atual” (duplicidade existente também no termo alemão Aktuell) que pode dizer respeito tanto a algo significativo no momento presente, quanto àquilo que é a realização de uma potência, do que se encontrava anteriormente em estado virtual.

Conforme já foi registrado, a segunda parte do livro, relativa à atualidade de Adorno, tem um foco mais fechado e a chave de leitura da filosofia adorniana é encontrada na teoria estética. Seligmann-Silva inicia seus comentários sublinhando o caráter assistemático do filósofo e o engano de se considerar sua recusa ao sistema como abandono dos conceitos. Na realidade, Adorno elege a forma ensaística como modo privilegiado para expressar campos de força onde as “partículas (efêmeras) do real” são organizadas a partir de conceitos dinâmicos, tendo em vista que, “em lugar da falsa definição, do artigo de dicionário, o pensamento que se deixa embalar pelo ritmo do ensaio permanece aberto, tenso” (p.85). Parece-me bem aguda, a esse respeito, a observação formulada por Alfred Whitehead, em Process and Reality, segundo a qual o conceito de “mundo real” é similar a “ontem” e “amanhã”: ele muda de sentido de acordo com o ponto de vista. Esse preâmbulo torna-se essencial por- que, conforme a citação de A Dialética do Esclarecimento, recolhida por Seligmann-Silva, “a história real (die reale Geschichte) se teceu a partir de um sofrimento real, que de modo algum diminui proporcionalmente ao crescimento dos meios para sua eliminação, a concretização desta perspectiva depende do conceito” (p.86). Em outras palavras, para Adorno, “crítica da sociedade é crítica do conhecimento, e vice-versa” (ibidem). Na segunda parte do livro, também se apresentam as relações entre vida e obra, através do entrelaçamento das duas esferas e ao mesmo tempo mantendo a distinção entre ambas, procedimento consoante ao proposto por Adorno para abordar a relação entre sujeito e objeto. Grande destaque é dado ao ponto de vista adorniano da “arte como expressão do sofrimento e memória da barbárie”, nome de uma das seções da obra. A arte aparece como potência capaz de fazer vir à tona o reprimido, o recalcado, e, a partir de certo momento, ao colocar em cena vidas danificadas pelos horrores da história, de constituir uma forma de “memória do sofrimento acumulado”. Segundo o filósofo citado, “os autênticos artistas do presente são aqueles em cujas obras ressoa o terror mais radi- cal” (“ Die authentischen Künstler der Gegenwart sind die, in deren Werken das Grauen nachzittert ”, p.97). Tal perspectiva implica ir além dos limites do trágico e do sublime assinalados por Schiller, dentro dos quais a dor e o sofrimento extremos não tinham lugar. Vemos no texto de Seligmann- Silva (p.104), como Adorno ultrapassa essa limitação e, no ensaio – de 1967 – “A arte é alegre?” (“ Ist die Kunst heiter? ”), critica a famosa frase de Schiller, escrita no fi nal da introdução de Wallenstein, “A vida é séria, a arte é alegre” (“ Ernst ist das Leben, heiter ist das Kunst ”), com o irônico comentário, segundo o qual “o burguês deseja que a arte seja voluptuosa e a vida ascética, o contrário seria melhor” (“ Der Bürger wünscht die Kunst üppig und das Leben asketisch; umgekehrt wäre es besser ”).

Na teoria estética adorniana pós-Auschwitz, a verdadeira arte é a expressão do indizível, aquela que tira da pressão o que em outra linguagem não encontraria som nem figura. Conforme recortado por Seligmann-Silva: “Não há quase outro lugar [senão na arte] em que o sofrimento encontre a sua própria voz” (“ kaum woanders [als in der Kunst] findet das Leiden noch seine eigene Stimme ”, p.107). O problema reside no fato de, por um lado, a obra testemunhar o irreconciliável, e, por outro, de tender à reconciliação, devido à linguagem própria da forma, que provoca prazer. Dor e sonho se acasalam tendo como pano de fundo uma espécie de anseio quimérico. Mesmo o radicalismo formal de Schonberg na canção “Sobrevivente de Varsóvia” (Überlebende von Warschau) também pode consolar. Se o movimento pode ser considerado traição do conteúdo através da forma, a aporia nesse caso não é o fim do caminho, ao contrário, pode ajudar a ir adiante porque expressa também o que ainda não encontrou reconciliação: a barbárie testemunhada e a outra esfera criada pelas obras, a qual, mesmo quando se trata de obras formalmente radicais, aponta para a reconciliação, em uma ambiguidade bastante condizente com a já famosa metáfora utilizada por Adorno da mensagem na garrafa. Depois de assinalar tais questões, entre outras, sumamente atuais, o livro sobre A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno termina lembrando que “o importante é percebermos o pólen ativo do pensa- mento de ambos. Eles possuem potencial para fertilizar muito em nosso presente” (p.126). Palavras que faço minhas.

Imaculada Kangussu – UFOP.

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Uma história do corpo na Idade Média | Jacques Le Goff e Nicolas Truong

LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 207 p. Tradução: Marcos Flamínio Pires. Revisão técnica: Marcos de Castro. Resenha de ROIZ, Diogo da Silva. O corpo no Ocidente Medieval. Revista Estudos Feministas v.18 n.2 Florianópolis May/Aug. 2010.

O corpo está no centro de toda relação de poder.
Mas o corpo das mulheres é o centro, de maneira imediata e específica.
1

Desse modo, Michelle Perrot, em 1994, sintetizava as relações de poder que mediavam estreitamente os debates sobre ‘gênero’ na Europa. Muito embora Jacques Le Goff apenas circunstancialmente houvesse tratado do assunto, com Uma história do corpo na Idade Média, que foi escrito em parceria com Nicolas Truong, os autores ofereceram uma bela contribuição para o entendimento desse tema na Civilização do Ocidente Medieval. Leia Mais

Os marxismos do novo século – ALTAMIRA (TES)

ALTAMIRA, César. Os marxismos do novo século. Tradução de Leonora Corsini. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, 460 p. Resenha de: COELHO, Eurelino. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.8, n.1, mar./jun., 2010.

Era para ser o fim do marxismo, de novo. Após as crises terminais da URSS e dos regimes políticos e econômicos que foram construídos no Leste Europeu depois do final da Segunda Guerra Mundial não faltaram vozes anunciando a desaparição iminente do marxismo dos meios intelectuais e dos espaços políticos em que ele existira até então. Ou então era a pós-modernidade que, ao transformar profundamente todas as dimensões da realidade, terminava deixando o pensamento marxista desprovido de referente. Em qualquer dos casos, de acordo com esses profetas, o marxismo estava em vias de tornar-se uma peça de antiquário, mais uma lápide no cemitério das idéias e da política.

Ocorreu, porém, que mais uma vez a profecia era falsa. O marxismo não apenas sobrevive, apesar de tudo, mas foi capaz de se renovar e de abordar de modo original e profícuo os próprios temas que supostamente teriam determinado a sua extinção. O livro de César Altamira discute a emergência desses ‘marxismos do novo século’ contra o pano de fundo das transformações que incidiram sobre o mundo da luta de classes no final do século XX. O contexto do aparecimento desses novos marxismos é o da grande crise capitalista global da década de 1970 que pôs fim aos 25 anos ‘gloriosos’ de crescimento do capitalismo. Por ‘novos marxismos’ devemos entender, basicamente, três grupos de intelectuais que ganharam evidência nesse período, a saber: a chamada Escola Francesa da Regulação, os autores que publicam nas revistas Common Sense e Capital & Class (chamados também de open marxism) e o operaísmo italiano, juntamente com seu desdobramento ‘autonomista’ que, dos três, é aquele com o qual Altamira mais se identifica e que ele melhor descreve e analisa. Com a possível exceção dos regulacionistas, são autores relativamente pouco publicados e lidos no Brasil, o que já confere ao livro de Altamira o mérito de apresentá-los aos leitores brasileiros.

No entanto, o autor faz bem mais do que apresentar os ‘novos marxismos’. Sua análise da crise dos anos 70 é parametrizada pelas categorias teóricas do operaísmo, sobretudo a obra de Toni Negri. O desenvolvimento do capitalismo – e suas crises – não são pensados como movimentos cuja lógica seja interna ao capital, mas como fenômenos gerados pelo conflito entre o capital e o trabalho: “A crise não pode ser considerada expressão de leis imanentes que conduzem o sistema ao estancamento e à paralisia do desenvolvimento. Deve sim ser apreendida a partir da ação operária que enfrenta o capital como sujeito antagônico” (p. 63). Assim, a grande crise dos 70 foi a manifestação do apogeu da combatividade do operário-massa, a forma assumida pelo trabalhador coletivo no período do fordismo. A resposta do capitalismo veio na forma da globalização e da aceleração da incorporação de capital fixo (mudanças tecnológicas), medidas com as quais se buscava “controlar as ameaças trazidas pelos conflitos de classe” (p. 67) e que tiveram como consequência a produção de uma nova ‘composição de classe’, o engendramento de um novo trabalhador coletivo – o operário social, substituto histórico do operário-massa fordista. Não é mais a velha fábrica fordista o lugar privilegiado da exploração da força de trabalho na produção de valor, mas sim o conjunto da sociedade. Poder-se-ia falar numa ‘fábrica social’ na medida em que as “diversas atividades a que se dedicam as pessoas, não apenas como trabalhadores, mas também como estudantes, consumidores, compradores, telespectadores estarão diretamente ligadas ao processo de produção” (p. 76).

Trata-se de uma expansão sem precedentes do trabalho assalariado e, por conseguinte, do antagonismo capital-trabalho. Para Altamira, seguindo de perto as indicações operaístas, o operário social é o novo sujeito histórico que antagoniza o capitalismo pós-moderno. Seria um ‘trabalhador de tipo novo’, caracterizado por estar imerso em redes comunicacionais e pela “forte e cada vez mais próxima recomposição e combinação entre tempo de trabalho e tempo de vida” (p. 77). Para o capital o objetivo passa a ser o de apropriar-se da cooperação coletiva e de seu substrato, a capacidade comunicacional dos trabalhadores.

Esta caracterização do contexto de emergência dos novos marxismos choca-se violentamente contra as alegações de autores para quem as novas configurações da vida social contemporânea teriam aposentado as análises marxistas. Altamira sabe disso e comenta alguns desses autores em sua longa introdução, o que agrega ao texto mais um valor: ele constrói sólidas refutações marxistas para algumas teses bastante difundidas e pouco contestadas, como as de Laclau e Mouffe, Alberto Melucci ou Alvin Tofler.

Ao texto não faltam ousadia e espírito polêmico, inclusive contra posições no interior do marxismo, pois, para Altamira, nem todo marxismo está preparado para os desafios do século XXI. As “novas genealogias marxistas capazes de imaginar um horizonte crítico diferente” são precisamente aquelas que não se deixam atingir pela “desintegração do bolchevismo”. O leninismo, esse sim, foi superado pela história porque era “um marxismo super-adaptado a um momento particular do desenvolvimento do capitalismo que, consubstanciado no fordismo, adquiriu características próprias: divisão taylorista do trabalho, mecanização industrial, ênfase na organização de massa, etc.” (p. 23).

Não será menor, entre os leitores marxistas, a polêmica provocada por seu endosso à recusa da dialética propugnada por Toni Negri. Ele aborda a questão nos dois últimos capítulos explorando os principais pontos de divergência entre os autores ligados ao open marxism e o operaísmo. Os primeiros, inspirados pela dialética negativa de Adorno, admitem a presença do sujeito no objeto negado. A existência do sujeito trabalhador é concebida não apenas contra, mas dentro do capital, como sua contradição. A relação entre os polos capital e trabalho não é de exterioridade, mas de determinação dialética e o capitalismo é constituído por esta contradição imanente. A emancipação do trabalho, nesta perspectiva, passa pela dissolução (Auflösung) da contradição. Negri (e Altamira), ao contrário, postula uma negação não dialética entre o capital e o trabalho, uma relação de exterioridade e antagonismo que enfatiza a autonomia ontológica do trabalho perante o capital. Altamira interpreta esta posição como sendo a afirmação da materialidade da classe operária em contraposição à visão do marxismo crítico e do open marxism na qual, como no Lukács de História e consciência de classe, “os trabalhadores considerados de maneira concreta e direta, em carne e osso, parecem estar ausentes” (p. 333). O antagonismo tem caráter absoluto e sua solução exige a destruição do oponente. Altamira ainda extrai, dessa dissensão, desdobramentos no plano da organização política: enquanto o open marxism aposta na crítica e na compreensão das contradições, o operaísmo engaja-se na atividade espontânea das lutas dos trabalhadores (mantendo-se, assim, mais próximo de Lenin, apesar de tudo). O capítulo final prolonga esta contraposição para o terreno epistemológico. Contra o perfilhamento clássico do marxismo no campo da dialética, que Altamira (seguindo, mais uma vez, Negri) identifica como o “eixo teórico Hobbes-Rousseau-Hegel-Marx” ele propõe outro eixo, notadamente materialista: Maquiavel-Spinoza-Marx. O exame de aproximações e divergências entre os pensamentos de Althusser e Deleuze servem de guia para as contribuições que ele propõe ‘para uma teoria do conhecimento materialista’, o título do último capítulo.

Por mais incômodo que provoquem, as idéias de Altamira não são fáceis de atacar. Inútil cobrar delas fidelidade estrita aos textos de Marx, já que o autor não se cansa de repetir que está interessado na renovação do marxismo, o que inclui permitir-se selecionar criteriosamente os elementos que perduram daqueles que ficaram datados na obra marxiana. O caminho mais promissor para uma crítica parece ser o de testar a validade lógica, histórica e política dos argumentos, ou seja, aceitar o debate nos termos propostos por ele. Poderíamos também indagar sobre a relação entre o tipo de crítica que ele nos propõe e as lutas da classe trabalhadora ‘de carne e osso’ e insinuar que haja aí, talvez, uma dialética. Ou argumentar que ainda existem bons motivos para formularmos questões sobre o problema da consciência de classe a partir de observações de fenômenos que não se deixam explicar pela mera ‘afirmação do ser’ deleuziana. Ou mesmo poderíamos nos perguntar sobre se as noções de composição de classe e antagonismo absoluto deixam espaço para uma formulação adequada do problema da dominação de classe, considerando-se que o capital não foi, afinal, derrotado.

A relevância das questões propostas por César Altamira e a qualidade da sua formulação, não importa se concordamos com as respostas que ele nos dá, constituem razão mais do que suficiente para que seu livro seja lido. Seu maior mérito, porém, talvez seja outro. Ao invés de apenas reivindicar a validade ou a atualidade do marxismo, Altamira trata de procurar desenvolver o marxismo aplicando-o a temas da contemporaneidade. Ele não apenas nos fala dos marxismos do novo século: ele nos dá um texto que é a prova concreta de que o marxismo continua vivo e capaz de enfrentar as questões do nosso tempo.

Eurelino Coelho – Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Bahia, Brasil. E-mail: [email protected]

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[MLPDB]

As paixões intelectuais (3 volumes) – E. Badinter

A questão do poder e da eficiência dos intelectuais europeus é, sem dúvida, um ponto de controvérsia na historiografia internacional.

Questões como quando surgiram, como se organizam, o que pensam, como agem e o que fazem os intelectuais são fundamentais não apenas para entendê-los adequadamente, mas também para pensar e inquirir a história que foi e é escrita por eles e sobre eles. Sem deixar de lado esses questionamentos, mas detendo-se num momento que marcou a França e a Europa do século XVIII, Elisabeth Badinter nos ofereceu em sua obra As paixões intelectuais, publicada em três volumes, uma verdadeira radiografia de como surgiram e se organizaram os “intelectuais” franceses em torno do “grande público”, por meio do projeto aglutinador da “Enciclopédia”, tendo por base o “espaço público”, então em formação, com a imprensa periódica. Leia Mais

Figuras do pensável. As encruzilhadas do labirinto VI | Cornelius Castoriadis

“É autônomo aquele que dá a si mesmo suas próprias leis” (CASTORIADIS, 2004, p. 161)

Com essas palavras, de Cornelius Castoriadis, já se buscou resumir sua filosofia, como a busca constante pela autonomia do sujeito (VALLE, 2008). Mas, evidentemente, ela não se limita a essa busca pela autonomia (CHAUÍ, 1995; CASTORIADIS, 1992, 2006). Aliás, é em sua interpretação do homem e das instituições, ou antes, da forma como os homens instituem imaginariamente as sociedades e, inversamente, estas dão contorno as suas formas de agir e pensar, que se deve pensar o lugar que teria a autonomia em seu pensamento, visto que, segundo ele, “a história da humanidade é a história do imaginário humano e de suas obras” (CASTORIADIS, 2004, v. 6, p. 127). Talvez o local em que melhor o autor tenha analisado esta questão tenha sido em sua obra As encruzilhadas do labirinto, organizada em seis volumes, o último dos quais foi póstumo. Para organizar mais didaticamente a exposição, destacou-se num primeiro momento como foi organizada esta obra pelo autor, e num segundo, analisou-se os seus principais aspectos teóricos e metodológicos. Leia Mais

Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói nacional – GRAMMONT (Bo)

GRAMMONT, G. Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Resenha de: GARNICA, Antonio Vincente Marafioti. Da Historiografia: campos, mitos, biografias. Bolema, Rio Claro, n. 34, p. 283-294, 2009.

“Toda vida narrada, biográfica ou auto-biográfica, é sempre habitada por uma dupla tentação: transformar os acasos e imprevistos de uma existência numa implacável necessidade; sustentar, com irredutível singularidade, o que foi um destino fragmentário.” (Roger Chartier)

“It ain’t necessarily so

It ain’t necessarily so

De things dat yo’ liable to read in de Bible

It ain’t necessarily so

/…/

Dey tell all you chillun de debble’s a villain But ‘taint necessarily so.”

(Gershwin)

Na apresentação ao recente livro de Guiomar de Grammont – sua tese de doutorado em Literatura Brasileira defendida na Universidade de São Paulo em 2002 – Roger Chartier sensatamente avalia o trabalho como uma demonstração de que “é possível escrever a história sem ficar prisioneiro de fórmulas herdadas”. O tema, bem como o esboço de cada um dos cinco capítulos, vem explicitado na Introdução da autora: “Esta não é a história de um personagem. É a história de uma imagem que se desdobra em outra e outra”. Trata-se, portanto, não de apresentar Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, e suas obras, mas de descortinar a trajetória que alçou o personagem à condição emblemática de mito, herói nacional, genial expressão do espírito barroco. Os mitos e heróis são predestinados a serem e fazerem aquilo que se deseja que sejam e façam, sendo suas existências atestadas, grande parte das vezes, à revelia de documentação que as sustente. Uma vasta busca em arquivos e uma cautelosa análise das referências bibliográficas fundadoras da mitificação permite à autora afirmar que a história do Aleijadinho (e de sua obra), “reconstituída, na medida do possível, apenas a partir dos dados que se encontram nos documentos, resulta prosaica e comum, muito menos espetacular do que se supunha. Como costuma ser, aliás, a maior parte das vidas humanas.” O tom configurador desse mito barroco é inaugurado pelo texto de Rodrigo José Ferreira Bretas1, obra meticulosamente analisada pela autora.

Fundado em 1838 e tendo como patrono o imperador Pedro II, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) esforça-se para iniciar uma historiografia nacional, da qual necessariamente faria parte o resgate de personagens, localidades e eventos que, em seu conjunto, definiriam “a” identidade nacional. O IHGB, com a intenção enunciada de apropriar-se do passado como fonte de experiência que visasse a uma sustentação para o futuro da Nação, praticava uma história teleológica, não só “conferindo ao historiador um papel central na condução desse fim último, que seria o patriotismo, o amor pelas instituições monárquicas e o sentimento religioso” como também, nas palavras de Lilia Schwarcz, “nas mãos de uma forte oligarquia local, associada a um monarca ilustrado, o IHGB se autorepresentará, nos certames internos e externos, enquanto uma fala oficial em meio a outros discursos apenas parciais”. Nesse cenário não é estranha a criação de um prêmio, em 1842, aos melhores trabalhos estatísticos e históricos sobre as províncias brasileiras. Particularmente interessantes seriam as notas biográficas sobre nossas “celebridades”, das quais surgiria um panteon de heróis nacionais. Tendo ou não sido escrita com a intenção específica de permitir a Bretas o ingresso no IHGB, o certo é que a obra sobre o Aleijadinho abre a ele as portas do Instituto, do qual passa a fazer parte como sócio-correspondente.

A obra de Bretas cria o Aleijadinho e torna-se não um texto a ser lido segundo a perspectiva da ficção – como são os retratos biográficos encomiásticos – mas como uma síntese documental encorpada com fontes orais e, portanto, a descrição de um conjunto de “fatos reais”. E “o retrato realizado por Bretas não apenas servirá à invenção romântica do artista como monstruoso gênio que a doença teria tornado taciturno e solitário, mas também provocará leituras da obra do monstro como retrato expressivo da sua personalidade atormentada. /…/ Na urgência de destacar um personagem da massa anônima dos artesãos coloniais, já não se sabe quem é autor, quem é obra”. O Aleijadinho de Bretas carrega a pesada cruz dos heróis, cujos destinos são sempre acompanhados de provação e dor. O sofrimento é condição essencial para que os consumidores de mitos reconheçam, nesses heróis, sua própria finitude e com eles sejam solidários, tornando-se co-criadores e perpetuadores dos heróis, apropriando-se inclusive de sua redenção e vitória sobre o mal. “Em Bretas”, afirma a autora, “já se inicia a associação entre o artista sofrido, martirizado (como Cristo, naturalmente) e a idéia, germinal, de nação. Aleijadinho e a nacionalidade brasileira nascem juntos na mesma manjedoura, ou seja, envoltos pela força da Igreja, força que atravessou, incólume, um século XIX de transição para a República, marcado por conflitos sangrentos, mas setorizados. Aleijadinho chega quase a tornar-se um mártir a serviço da pátria: ‘jazeu por quase dois anos, tendo um dos lados horrivelmente chagado, aquele que por suas obras de artista distinto tanto havia honrado a sua pátria!´.”

Embora a documentação existente não dê garantias sobre a paternidade do Aleijadinho, Bretas a atribui a Manuel Francisco Lisboa, artesão branco e relativamente reverenciado nas Minas dos Oitocentos: “Na sociedade rigidamente hierarquizada de então, o ‘homem bom’ é aquele que tem um bom nascimento. O filho de um homem sábio e honrado será necessariamente sábio e respeitado2. Além disso, note-se que, ao fazê-lo, Bretas dá a seu personagem uma origem branca, que o dignifica, mesmo no século XIX, quando, supõe-se, essas clivagens raciais fossem um pouco mais tênues do que no século anterior”.

Também os viajantes, interessados em explorar a exótica terra brasilis e descrevê-la a seus conterrâneos, criam uma imagem da arte mineira e, por conseguinte, operam no sentido de atribuir uma identidade ao Brasil frente ao mundo civilizado que representam. Essa visão estrangeira será por vezes negada e por vezes servirá de fundamentação aos modernistas, nas primeiras décadas do século XX, ainda que sustentando discursos em sentidos distintos: “No discurso dos viajantes do século XIX, como Saint-Hilaire, Burton, Eschwege e outros, observamos sempre a comparação implícita com manifestações artísticas e monumentos europeus, para fornecer imagens verossímeis, que possam aproximar mais da visão de seus leitores aquilo que descrevem. A comparação, contudo, sempre é efetuada segundo um padrão de inferioridade da colônia americana em relação à Europa /…/. No discurso modernista, o movimento é contrário: a ordem é revalorizar a arte local para integrá-la no vasto programa de ‘redescoberta’ das raízes da arte brasileira, enfatizando aspectos como a miscigenação racial e cultural, projeto no qual foi integrado o mito do Aleijadinho. O que chamamos de ‘redescoberta’, contudo, em nossa perspectiva, significou, efetivamente, a invenção de um país que é o Brasil modernista, baseado na invenção das raízes culturais. O barroco teria um papel fundamental na constituição dessas ‘raízes’.”

Para o viajante estrangeiro, as artesanias nacionais sempre foram arremedos da alta arte praticada nos países “centrais” dos quais provinham; interessava-lhes mais a fauna e a flora exóticas e as possibilidades que elas abriam ao desenvolvimento das ciências européias. Os relatos dos viajantes, entretanto, convém notar – como ressalta a própria autora – “costumam ser utilizados como fontes históricas ‘primárias’, capazes de fornecer informações de ‘primeira mão’ sobre os acontecimentos. Raramente essas obras são analisadas como ficção literária em si mesmas /…/. Não são apenas ‘fontes históricas’, mas fontes privilegiadas, em acordo com o pressuposto positivista de que a distância conferiria certa ‘imparcialidade’ ao olhar.” O modernismo, ao contrário, tenderá a valorizar as produções nacionais, ávido por repensar nossa identidade. O projeto de constituição dessa identidade, entretanto, afasta-se daquele anteriormente praticado pelo IHGB que era, ao mesmo tempo, uma continuidade da tradição ilustrada já iniciada no século XVIII e uma alteração quanto aos seus objetivos: no século XIX, o IHGB “tinha o objetivo completamente novo de produzir uma reflexão sistemática sobre os problemas da nação e do Estado emergentes, como um projeto civilizatório de uma elite, uma vez que /…/ a maior parte de seus membros pertencia aos aparelhos burocráticos e administrativos da hierarquia dominante no Império.” Apostando na construção da idéia de Nação num momento em que a escravidão ainda existia e parametrizado por uma visão de História apoiada na noção de progresso, não caberia identificar a cultura nacional a uma arte produzida por mulatos e indivíduos situados em escalas sociais inferiores (daí a necessidade, em Bretas, de “clarear” Antônio Francisco Lisboa e aproximá-lo da casta mais nobre, atribuindo-lhe um pai branco e até certo ponto endinheirado). Os “mitógrafos do império” tenderão, de forma mais ou menos clara, mais ou menos explícita, a desvalorizar a arte barroca ou jesuítica. No Modernismo, ao contrário, a intenção de repensar a identidade nacional não teme a aproximação com a discussão sobre a identidade racial: torna-se visceral a idéia da pluralidade étnica e, conseqüentemente, passam a ser valorizadas as contribuições dadas pela mistura de raças diferentes, ainda que as relações entre o Modernismo (leia-se Mário de Andrade) e o Estado Novo (leia-se Gustavo Capanema) não tenham sido totalmente cordiais principalmente devido ao desacordo quanto a essa questão das etnias raciais3. Do modernismo surge o Aleijadinho mulato genial, representante de uma artesania emblemática que simbolizaria a riqueza e a originalidade da arte brasileira, expressão mesmo da “alma nacional”.

Se os três primeiros capítulos do livro de Guiomar de Grammont voltam-se mais à biografia (lacunar) e à constituição do mito do artista genial a partir dessas caracterizações biográficas e interesses diversos, o capítulo quarto inicia uma discussão mais pormenorizada sobre a produção do Aleijadinho que, se já havia sido evocada nos capítulos anteriores – dada a vinculação sempre estabelecida entre autor e obra – começa então a ser tratada com mais detalhamento. O pressuposto da autora, enunciado já no primeiro parágrafo do capítulo, é o de que técnicos e historiadores da arte, via-de regra, operam “sem questionar a historicidade das categorias nas quais se baseiam para construir seus objetos. Fundamentando-se em pressupostos como ‘estilo’, ‘autoria’, ‘diretos autorais’ etc., os críticos costumam analisar obras de tempos e lugares diferentes do seu, aplicando, anacronicamente, categorias de análise contemporâneas.”

A noção de autoria – cujas origens Foucault supõe radicadas no final do século XVIII e início do século XX e que Chartier, preenchendo as lacunas cronológicas deixadas por Foucault, fixa no começo do século XVIII – pressupõe a construção de um autor que, de alguma forma, teria a prerrogativa de propriedade em relação a sua obra. Ainda que atualmente a idéia de autoria – em vários campos, mas principalmente no da arte, onde autoria está diretamente vinculada à questão financeira – nos seja usual, ela só é consolidada no século XVIII, embora tenha começado a desenhar-se na idade média (“com o revivescimento das cidades [e] a conseqüente formação das corporações de ofícios”) e fortalecida durante o Renascimento. Certamente a autoria encontra ressonância e tem sua importância maximizada num mundo que transforma tudo em mercadoria. Os ateliers mineiros do século XVIII, entretanto, funcionavam como uma coletividade produtora de obras cuja execução era “arrematada” em leilões pelos mestres desses núcleos que congregavam os mais distintos artesãos. Dessa feita, os mestres coloniais seriam bons negociantes, mas não necessariamente os artistas mais hábeis de sua corporação. Sem ater-se a esses “pormenores”, a atribuição de obras ao Aleijadinho passou a ser feita a partir de um suposto “estilo próprio”, categoria bastante interessante ao ideal onipresente de destacar, dentre a multidão de artífices mineiros, os criadores originais e, dentre eles, o genial criador dentre os criadores. Do estilo Aleijadinho, segundo os críticos, destacam-se, “além dos polegares na mesma posição dos outros dedos, /…/ os olhos amendoados, o furo no queixo, o nariz afilado com as ventas bem marcadas, as maçãs salientes do rosto; os bigodes e a barba bem delineados, apontando para baixo, barba partida no queixo /…/ etc.” O estilo é a norma a partir da qual todo o resto é definido como mesmice e vulgaridade. A discussão sobre os parâmetros que dariam conta da autenticidade da obra, assentados em princípios anacrônicos, despreza tanto as lacunas documentais relativas às obras quanto despreza as condições reais de produção à época: “em um tempo em que a locomoção de uma cidade a outra não era nada fácil, Aleijadinho teria trabalhado em cerca de trinta igrejas em diversas cidades de Minas, e realizado um número incalculável de pequenas imagens, oratórios, castiçais etc. Quantos artífices anônimos não se ocultam sob a sombra desse mito?”.

Junto aos critérios de autoria e estilo surge, para os historiadores da arte, a difícil questão da originalidade. Estudos sobre Manoel da Costa Ataíde mostram claramente que a originalidade não era um critério a nortear os trabalhos dos artífices coloniais. Há evidências eloqüentes quanto à existência de modelos prévios, gravuras e desenhos comercializados e/ou disponíveis em bíblias e outras obras. A originalidade do Aleijadinho – defendida chamando à cena seu autodidatismo, suas limitações físicas, a enorme produção em um período de tempo tão exíguo – sempre foi uma prova de sua genialidade. Há que se considerar, entretanto, que não há prática – artística ou qualquer que seja – genuinamente autóctone, e as evidências face às cópias e emulações naturais à artesania colonial levaram a uma redefinição no conceito de originalidade de modo a perpetuar mitos de genialidade artística: aos originais, o artista genuinamente genial agrega características próprias, que definem a arte nacional frente aos modelos importados. As igrejas de Aleijadinho, por exemplo, seriam “borromínicas”, mas sua apropriação do estilo seria nova e consistiria em algo totalmente diferenciado.

“Em sua definição contemporânea” – afirma Chartier logo na apresentação do livro – “a obra [de arte] supõe a originalidade da expressão, fortes relações entre as experiências do artista e suas criações e a inalterável propriedade do criador sobre os produtos de sua imaginação. É sobre tais categorias que, a partir do século XIX, foram escritas as histórias da literatura, da pintura e da escultura”. Aplicadas anacronicamente à produção artística de um escultor (ou de vários escultores) mineiro do século XVIII, esses postulados vão se conformando para sustentar a genialidade de um personagem intencionalmente constituído para louvar a nação e provê-la com uma identidade. Na confluência desses fatores tantos surge um Aleijadinho inventado a partir de documentos que, ao mesmo tempo, servem para diferentes fins, “na medida em que se imponha a eles a interpretação desejada”. Constrói-se, pois, o Aleijadinho, e tal construção – alerta Chartier – atua como um silogismo: “Aleijadinho é o escultor barroco por excelência; o barroco é a expressão mais completa da identidade brasileira; portanto, o barroco é a nação brasileira em sua essência e Aleijadinho seu profeta, reconhecido como tal pelo Estado e suas instituições. Guiomar de Grammont retira (como se diz em relação à restauração de um quadro) as diferentes camadas de verniz depositadas sobre o traço histórico do Aleijadinho”.

O que justifica, entretanto, uma resenha deste trabalho, elaborado em searas aparentemente tão distantes, num Boletim de Educação Matemática?

A aproximação de outros campos de produção cultural e acadêmica – temos defendido – é vital para repensarmos nossas próprias práticas e, num processo de apropriação criativa, dão novo fôlego e permitem a configuração de novos rumos às nossas investigações. Assim, alguns elementos claramente perceptíveis no livro de Grammont podem, sim, servir de guia principalmente aos que atualmente exercitam-se na interface entre História, Matemática e Educação Matemática.

Como primeira contribuição, aponta-se a clareza com que a autora – e o prefácio de João Adolfo Hansen, orientador da pesquisa que originou o livro – explicita a posição do IHGB que, como sabemos, é uma das matrizes – se não a matriz – da historiografia nacional e, especificamente, da historiografia da Educação. Não parece ser vão entender os mecanismos de favores e interesses que sustentavam o projeto historiográfico elitista e teleológico do Instituto, afinando-o como um aparelho ideológico cuja função precípua era inventar a nacionalidade de modo a propagar os valores imperiais. São, essas, algumas das raízes do nosso modo de conceber e produzir História, e aliar-se ou afastar-se dessas intenções talvez seja uma opção mais adequadamente feita ao se analisar versões sobre suas “origens”. Note-se, entretanto, que nem todas essas versões sobre o IHGB são tão radicais. A reportagem “Os inventores do Brasil”, de Lorenzo Aldé, publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional em comemoração ao aniversário de 170 anos do IHGB, relativiza a situação do Instituto e seus sócios em relação à tutela do Império: “D. Pedro II foi assíduo freqüentador dos debates. O fato de ter o imperador como patrono e mecenas costuma render à instituição o rótulo de ‘chapa branca’. Embora não haja dúvidas sobre o monarquismo do IHGB no século XIX, essa impressão soa anacrônica, segundo Lúcia Guimarães: ‘Era um espaço de contraposição de interpretações. As idéias eram debatidas, não impostas. A versão sobre a independência que se consolidou nos livros didáticos tinha opositores no Instituto. Varnhagen combatia a idéia de que o episódio tinha sido fruto da vontade de José Bonifácio, D. Pedro I e do povo’ /…/. Ou seja, a idéia de ´chapa branca´ faz sentido atualmente, mas não é adequada para se pensar um tempo em que os contornos do Brasil mal existiam. Literalmente falando. Em 1841, convocado ao Parlamento para expor informações sobre os limites do país, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Aureliano de Souza Coutinho, teve que confessar que…não sabia. Quando D. João voltou para Portugal, em 1821, levou com ele os mapas originais.”

Nas práticas do IHGB ficam claras as intenções quanto à construção de um panteon nacional de heróis a partir de biografias. O fascínio pelas biografias, entre alguns, perdura até hoje, e por vezes a elaboração de descrições de personagens e situações “como realmente ocorreram” confunde-se com a própria função da historiografia. Dos livros didáticos (inclusive dos de Matemática) provêm grandes contribuições para a divulgação dessa concepção distorcida de história. A “ilusão biográfica”, expressão cunhada por Bourdieu, nos dá “a ilusória unidade de uma identidade específica, aparentemente sem contradições, mas que não passa de uma máscara sob a qual se oculta uma miríade de fragmentos e versões. A utopia biográfica”, continua Grammont, “é a ilusão de que a narrativa pode reconstituir autenticamente um destino”. Esforços contemporâneos, portanto, têm a intenção de “desnudar essa utopia, de desconstruir – a contrapelo – uma história tornada verdade pela repetição e por sua adequação aos diversos interesses de momentos específicos da historiografia brasileira”. O desnudamento da utopia, porém, implica trazê-la à cena: por que as verdades fabricadas deveriam ser rechaçadas, postas à margem do histórico? Não somos também as verdades que nos impomos e segundo as quais pretendemos ou quereríamos viver? Qual o problema em aceitar o relato de uma vida que se faz relato exatamente para que o passado seja purgado, para que o presente seja mais aceitável? Tal relato não nos diz tanto quanto o relato que o nega? E ainda que alguma checagem fosse feita, ainda que alguma divergência nos surgisse no processo mesmo sem checagem alguma, não seria mais produtivo indagar-se por que essa divergência? O que ela nos ensina sobre o sujeito, sobre suas verdades, sobre seu tempo e seu modo de constituição do mundo? Recentemente numa revista nacional de grande circulação debatia-se, na seção de cartas dos leitores, sobre a autoria da conhecida frase “O Brasil não é um país sério”. Foi Charles De Gaulle, afirmam alguns. Foi Celso Vieira, embaixador brasileiro na França, rebatem outros. Foi um assessor de De Gaulle? Foi Carlos Alves de Souza, embaixador em Paris? Perguntaríamos: o que faz com que o eco dessa frase ressoe tão significativamente até hoje? Por que esse fascínio com uma autoria? O que esse fascínio nos revelaria? Que percepção de país a frase nos permite vislumbrar? Na História da Matemática, Gauss realmente determinou com presteza, quando ainda criança, a soma dos cem primeiros naturais? Como saber? Como garantir a isenção dos biógrafos de Gauss? Por que essas perguntas afetam de modo tão inclemente os historiadores da Matemática? Não seria mais operativo perguntar-se que tipo de concepção essa afirmação – e sua trajetória pelos tempos – desvela? Qual Gauss esse registro permite construir? Qual Gauss esse registro quer construir? Obviamente, na esteira de uma história-problema, não se negam as questões: afirma-se a necessidade de analisá-las sob diferentes perspectivas.

Ademais, a criação de mitos e heróis para defender posições e construir verdades “compartilhadas” não é nova, não foi inventada pelo IHGB, nem termina com o Império.

Joaquim José da Silva Xavier – apelidado Tiradentes pela habilidade em arrancar dentes sem ter formação específica para isso – é um dos maiores heróis nacionais, tido como mártir do movimento que levou o Brasil à independência de Portugal. Tiradentes foi enforcado no Rio de Janeiro em 21 de abril de 1792. Tanto sua biografia quanto os traços de seu caráter são incertos, vagamente registrados: de Tiradentes não conhecemos um esboço fisionômico confiável, nem podemos decidir se foi um consistente revolucionário ou apenas uma personagem útil às causas da República implantada no país em 1889. Dentre tantos revolucionários de biografia mais documentada, com configuração de caráter e fisionomias menos lacunares, foi Tiradentes o escolhido a representar o sucesso da causa republicana: tão logo proclamada a República, já o dia 21 de Abril de 1890 foi feriado. O regime militar, em 1965, declarou Tiradentes “Patrono da Nação Brasileira”.

Os espaços em branco no registro de sua trajetória permitiam que ele fosse visto por uns como o defensor dos valores que os militares pretendiam representar e, por outros, como um revolucionário contrário aos valores defendidos pelos militares. Sobretudo, agradava à população a fusão de dois aspectos – o Tiradentes herói defensor da Pátria e o Tiradentes ícone religioso que, como um quase-Cristo protagonizou uma paixão, percorrendo seu calvário. Mas, principalmente – e este é o traço que pretendemos realçar – Tiradentes havia nascido no estado de Minas Gerais. Ao contrário de outros estados brasileiros onde viveram grandes revolucionários, defensores das causas da Pátria, Minas Gerais constituiria, já em meados do século XIX, com os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, o centro político do país.

IHGB, Modernismo, Império, República, Tiradentes, Aleijadinho… em tantas alterações, quantas permanências. Face a essas observações, mantemos (e defendemos como legítima) a posição de que se escreve história a partir da detecção e análise dos mecanismos – ora contrários, ora complementares – que sustentam alterações e permanências, de que é possível escapar à sina de escrever História a partir de estratégias consagradas – muitas vezes pelo senso comum –, apostando na história-problema, querendo com isso significar que “a história não deveria ser propriamente vista como uma ciência do passado, mas como uma disciplina que procuraria estabelecer um  ‘diálogo do presente com o passado, e no qual o presente tomaria e conservaria a iniciativa’”, como aponta Miguel. Essa não é, definitivamente, uma posição hegemônica dentre aqueles que, em Educação Matemática, se inscrevem na região cujas preocupações orbitam no binômio História – Educação Matemática. Dentre as tantas justificativas possíveis, essa talvez seja a que mais eloqüentemente indique a pertinência da leitura, entre nós, educadores matemáticos, do livro de Guiomar de Grammont.

Notas:  

1 Traços biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa (o Aleijadinho), publicado no Correio Oficial de Minas em 1858.

2 Segundo a autora, o postulado de que os filhos se assemelham a seus pais está radicado na noção de genus, da retórica de Quintiliano que Bretas – especialista em retórica – certamente conhecia.

3 Segundo Guiomar de Grammont, o projeto do governo Vargas propunha a erradicação das raças, ao contrário do Modernismo que defendia a integração e louvava a miscigenação: “Houve, então, um prepotente esforço do governo nacionalista de criar as bases de um novo conceito de nacionalidade por meio da educação, da cultura e de versões oficiais da história, visando, pela unificação da língua e padronização do ensino, à ‘erradicação das minorias étnicas, lingüísticas e culturais’ em todos os níveis.”

Referências

ALDE, L. Os inventores do Brasil. Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 4, n. 39. Rio de Janeiro: Sociedade de Amigos da Biblioteca Nacional, pp. 56-61. Dez./ 2008.

CARVALHO, J. M. de. A Formação das Almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

GRAMMONT, G. Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

HORTA, J.S.B. O hino, o sermão e a ordem do dia: a educação no Brasil (1930-1945). Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994.

NEMER, J.A. A mão devota: santeiros populares das Minas Gerais nos séculos 18 e 19. Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2008.

VIDAL, D.G., A escrita da História da Educação e seus múltiplos olhares In: SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA MATEMÁTICA.PACHECO, n. 7, 2007, Guarapuava. Anais… Guarapuava: SBHMat, 2007. p. 97-108.

Antonio Vicente Marafioti Garnica.

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Fórmula para o caos: a derrubada de Salvador Allende 1970-1973 | Luiz Alberto Moniz Bandeira

“Fórmula para o caos”, expressão extraída de um telegrama da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA), é o nome que o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira escolheu para seu livro sobre o golpe de Estado que depôs Allende, no Chile. O autor parte do pressuposto de que seria impossível se chegar à efetivação do modo de produção socialista pela via democrática como desejava Allende, e menos ainda pelo caminho das armas, como defendiam alguns movimentos revolucionários, já que a conjuntura local, regional e internacional era totalmente desfavorável. Recorre à história das guerras pela independência e da formação do Estado nacional na América Latina para explicar o surgimento do militarismo, que gerou o caudilhismo e que, por sua vez, criou a cultura do golpe de Estado contra projetos nacional-populares.

Não se pode esquecer, no entanto, que o triunfo da Unidade Popular em 1970, não se deu apenas por conta de uma divisão interna na classe dominante, mas culminou de um prolongado esforço de formação de consciências, de organização popular e de lutas comunitárias, cujas origens remontam ao início do século XX, no Chile. Por isso, a transição ao socialismo chegou a ser uma possibilidade nos anos 1970, pois não se tratava de um projeto de um grupo de intelectuais ou de uma ação limitada de alguma vanguarda desvinculada das massas, mas sim de algo surgido dessas mesmas massas e das organizações que não falavam em nome do proletariado, mas que efetivamente o representavam orgânica e ideologicamente. Os trabalhos desenvolvidos por Cueva e Vuskovic apontam para essas ideias2 Leia Mais

Fórmula para o caos: a derrubada de Salvador Allende/ 1970-1973 | L. A. Moniz Bandeira

Recém chegado às livrarias, o novo livro de Moniz Bandeira (Fórmula para o caos: a derrubada de Salvador Allende, 1970-1973. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008) é sucesso de venda, tanto em sua versão portuguesa quanto espanhola. Conhecido por seus livros acerca da história das relações internacionais hemisféricas, o historiador angariou fama e respeito no mundo acadêmico, jornalístico e político, como profundo conhecedor dos Estados Unidos, do Brasil, da Argentina e de outros países da América do Sul.

A narrativa original sobre os três anos de governo de Salvador Allende, bem como sobre a trama interna e internacional que resultou no bombardeio do palácio La Moneda e na assunção de Augusto Pinochet, foi elaborada à base de documentação primária fornecida por arquivos chilenos, brasileiros e norte-americanos, especialmente os arquivos da CIA. Leia Mais

Em busca da Idade Média: conversas com Jean- Maurice de Montremy | Jacques Le Goff

LE GOFF Jaques www cartacapital com br o cotidiano de uma médica do SUS

LE GOFF Em Busca da Idade Media o cotidiano de uma médica do SUSLE GOFF, Jacques. Em busca da Idade Média: conversas com Jean- Maurice de Montremy. Tradução de Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, 222p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva.[1] História da Historiografia. Ouro Preto, n.2, ago, 2008.

Torna-se cada vez mais comum a apresentação de trajetórias acadêmicas e intelectuais em forma de testemunho, coletadas a partir de conversas e entrevistas, normalmente efetuadas quando o profissional está perto do final de sua carreira e se encontra em idade avançada, na qual a avaliação e organização da obra se evidenciam corriqueiramente.

Para Jacques Le Goff esse tipo de empreendimento já se tornou comum, uma vez que o têm praticado desde o final da década de 1970, devido ao sucesso da História das Mentalidades e do Imaginário. No entanto, enquanto as conversas e entrevistas concedidas nos anos de 1970 e 80 vislumbravam mais a atuação do autor e do grupo, ao qual faz parte até hoje, que é o da ‘terceira geração’ do movimento dos Annales na França, nas que tem oferecido nesta primeira década do século XXI, estas tem demarcado especificamente sua trajetória e produção intelectual. Leia Mais

A raiz das coisas – Rui Barbosa: O Brasil no mundo | Carlos Henrique

O Chefe da Delegação Brasileira na Segunda Conferência de Paz de Haia de 1907 é um personagem central da história da primeira república, mas curiosamente, pouco estudado como diplomata e pensador dos fundamentos da inserção internacional do Brasil. A lembrança mais freqüente da atuação política de Rui Barbosa é do seu perfil de tribuno civilista e de opositor da tutela militar sobre a República nascente. Seria exagero, portanto, afirmar que o jurista baiano Rui Barbosa tenha sido injustamente esquecido pela historiografia brasileiro – de fato não o foi – mas a sua presença no pensamento diplomático brasileiro foi certamente eclipsada pela obra dos seus contemporâneos, sendo o mais importante o Barão do Rio Branco.

Esse esquecimento injusto é motivo da obra do diplomata de carreira e professor da Universidade de Brasília Carlos Henrique Cardim intitulada “A raiz das coisas – Rui Barbosa: O Brasil no mundo”, que vem a ser a mais completa análise da visão de mundo que Rui destilou ao longo da sua importante atuação como diplomata e que, em alguma medida, fundamenta até os dias de hoje, os princípios da ação internacional do Brasil. Leia Mais

Sete mitos da conquista espanhola | Matthew Restall

O autor Matthew Restall, professor da Universidade da Pensilvânia, procura, em seu livro, desconstruir sete mitos consolidados sobre o processo de descoberta e conquista da América e povos nativos. Para realizar essa tarefa, utilizou-se de registros escritos realizados por espanhóis que participaram do processo de conquista, cartas de religiosos, biografias, filmes produzidos sobre o tema, relato de pensadores do século XVIII, abordagens historiográficas contemporâneas, enfim, uma gama de fontes históricas. Restall desmonta inúmeras “verdades” relacionadas ao processo de dominação ibérica sobre a América ao propor-se a comparar duas formas de descrever o que se passou: uma criada no decorrer do processo de dominação, e a outra, formulada em arquivos e bibliotecas em séculos posteriores, ou seja, confrontando explicações sobre a conquista formuladas ao longo dos séculos XVI ao XX. Sugere algumas outras interpretações, as quais afirma também não serem infalíveis e eternas, o que não significa, segundo ele, que não possam revelar algo de verdade.

No primeiro capítulo denominado Um punhado de aventureirosO mito dos homens excepcionais o autor questiona a idéia de que um pequeno número de homens “notáveis” teria conquistado a América e subjugado milhões de nativos. Restall argumenta que a necessidade de permissão real e de um contrato estabelecido entre a Coroa e o conquistador para a exploração do Novo Mundo estimulou a escrita de cartas, nas quais os colonizadores superestimavam suas atividades e feitos nas novas terras. Exaltando a si mesmos por meio das “Probanzas”, uma espécie de prestações de contas enviadas à Coroa, os colonizadores criaram o mito de homens grandes, corajosos e desbravadores, prontos a vencerem qualquer obstáculo. Religiosos, biógrafos e cronistas ajudaram a confirmar o mito em seus relatos. Segundo o autor, esses homens eram, em sua maioria, despreparados, mal treinados, insuficientemente armados e famintos, que fizeram da aliança com outras nações nativas suas aliadas para a sobrevivência e vitórias em batalhas. Leia Mais

O Brasil Republicano – FERREIRA; DELGADO (RBH)

FERREIRA, Jorge Ferreira; DELGADO, Lucilia de Almeida N. (Org.). O Brasil Republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. v.1, 446p.; v.2, 376p.; v.3, 432p.; v.4, 432p. Resenha de: VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.25, n.50, july/dec. 2005.

É usual na historiografia brasileira e internacional a organização de publicações que agreguem artigos em torno de um tema comum, principalmente quando esse foi objeto de variadas pesquisas acumuladas ao longo dos anos anteriores. Trata-se não só de um processo de reunião de paradigmas compartilhados, em meio à vasta variedade de enfoques, mas, sobretudo, de uma possibilidade de reflexão sobre o que se avançou, até então, nas pesquisas acerca de um mesmo tema. Em geral, tais coletâneas possuem caráter revisionista. Destaca-se, neste âmbito, a consagrada obra organizada por Sérgio Buarque de Holanda e Boris Fausto intitulada História Geral da Civilização Brasileira. Nela foi reunido um conjunto de artigos — de autoria de variados pesquisadores — separados temática e cronologicamente, disponibilizando aos leitores uma síntese das pesquisas mais recentes publicadas sobre a História do Brasil, naquele período. Essa iniciativa pioneira fazia parte de um projeto concebido na Europa, cujo carro-chefe era a História Geral das Civilizações de Maurice Crouzet e René Taton. Muitos daqueles textos do “HGCB” — conforme a coleção ficou conhecida pelo público leitor — tornaram-se referências obrigatórias para pesquisas posteriormente realizadas, e fizeram parte da formação de boa parte dos historiadores hoje em atividade. O mesmo se pode dizer da coletânea Brasil em Perspectiva, organizada por Carlos Guilherme Mota em 1968, e dos 50 Textos de História do Brasil, publicado em 1974, sob a coordenação da Professora Dea Ribeiro Fenelon, para citar apenas dois exemplos mais marcantes. Todas essas iniciativas revelavam o vigor da produção historiográfica brasileira, expondo as mais recentes reflexões da academia nacional sobre os diversos períodos de nossa História.

A década de 1990 deu continuidade à reunião de grandes sínteses, desta vez, mais preocupada em atingir um público mais amplo, o dos professores e estudantes do ensino médio, propiciando-lhes o acesso às revisões historiográficas mais recentes sobre temas clássicos da História do Brasil. Aqui destacamos a iniciativa da Professora Maria Ieda Linhares, responsável pela organização de A História Geral do Brasil, que abarca os períodos colonial, imperial e republicano até o ano de 1984. Francisco Iglesias, prefaciando a obra, já apontava para o seu caráter inovador, afirmando ter sido a primeira iniciativa a incorporar na renovação do ensino de História o que mais avançado se escrevia sobre a História do Brasil.

Com a virada do milênio, duas obras inauguram a sistematização de textos organizados por períodos cronológicos, tendo por base exclusivamente o período republicano. Trata-se de A República no Brasil de Ângela de Castro Gomes, Dulce Pandolfi e Verena Alberti (2002), e a Coleção, objeto desta resenha, O Brasil Republicano, organizada pelo Professor Jorge Ferreira, da Universidade Federal Fluminense, e pela Professora Lucília Neves Delgado, da Universidade Federal de Minas Gerais e, atualmente, da PUC-Minas.

A coleção O Brasil Republicano apresenta um caráter bastante inovador por ser mais plural em relação às anteriormente citadas. Este pluralismo resulta da diversidade de formação e atuação profissional dos quarenta e quatro autores reunidos em torno do tema. Pela primeira vez no Brasil, agregam-se historiadores vinculados a vinte e quatro instituições de ensino superior e/ou centros de pesquisa diferentes e que atuam em dez estados da Federação. Claro que isto só foi possível em razão do crescimento e da descentralização da pesquisa e da pós-graduação em História, ocorridos nas duas últimas décadas, e da agregação dos pesquisadores nos eventos científicos nacionais promovidos pela Associação Nacional de História (ANPUH) e demais associações existentes. Esse pluralismo, afortunadamente, não resultou na junção de análises regionais. O que surpreende é que autores das mais diversas regiões do país reuniram-se para discutir eixos temáticos nacionais, independentes das regiões em que se originaram ou nas quais atuam.

A pluralidade reflete-se, também, na variedade de enfoque dos temas que compõem os artigos. Segundo os organizadores afirmam, o eixo central é a questão da cidadania, desdobrada em dois sub-eixos, a saber: o cerceamento da prática cidadã e a resistência contra a exclusão política e social. Em todos os volumes o leitor poderá encontrar textos que enfocam, direta ou indiretamente, a questão da cidadania. Para o atendimento das discussões acerca desta temática, os artigos foram divididos cronologicamente em quatro períodos, seguindo a tradicional divisão proposta pela História Política Brasileira: primeiro volume: O tempo do liberalismo excludente (1889-1930); segundo volume: O tempo do nacional-estatismo (1930-1945); terceiro volume: O tempo da experiência democrática (1945-1964); e quarto volume: O tempo da ditadura (de 1964 a fins do século XX). A opção pela divisão tradicionalmente usada como referência se justifica pelo público alvo ao qual se destina a obra: alunos de graduação e alunos e professores de ensino médio. Não só os programas ou matrizes de competência do ensino médio se organizam a partir dessa cronologia republicana, como também, a maior parte dos nossos currículos de graduação o faz.

Assim, os quarenta e dois artigos que compõem a coleção apresentam uma interessante diversidade temática. Em seu conjunto existem dezenove artigos de História Política, nove de História Cultural, oito de História Social e cinco de História Econômica. O volume dois apresenta uma divisão mais eqüitativa, propiciando ao leitor uma visão bem diversificada dos acontecimentos do período. Nele, o leitor poderá encontrar reflexões sobre o Integralismo, sobre as experiências comunistas, sobre a política cultural do Estado Novo, sobre a organização das classes trabalhadoras, sobre a política-econômica predominante no período, além de textos excelentes sobre os intelectuais, a literatura e o cinema, por exemplo. Em todos os volumes ocorre uma distribuição mais ou menos eqüitativa entre esses campos de atuação dos historiadores. A concentração em História Política é, porém, bastante nítida. Mas, reflete a produção nacional da área sobre o período republicano. Além do que, por se tratar de uma análise sobre a História Contemporânea brasileira, associa-se naturalmente à História Política, em razão de ter esta, por objeto, eventos de mais curta duração. Essa opção não fragiliza, de maneira alguma, o conjunto da obra. Ao contrário, nos dá um retrato fiel dos resultados das pesquisas mais recentes sobre o período.

Segundo os organizadores da obra, ela tinha por um de seus objetivos principais o de disponibilizar em uma só coleção um conjunto de informações importantes para a formação de alunos que, em geral, têm dificuldade em adquirir livros. Acredito que o fim seja nobre e que os organizadores foram felizes em fazer esta opção. Ao mesmo tempo, destacam que a coleção tinha por propósito apresentar ao público vinculado ao ensino médio a oportunidade de ter acesso às renovações historiográficas, resultantes de pesquisas recentes produzidas pelas universidades. Este objetivo também é muito louvável, dado que a maior parte dos professores de História do Brasil se “atualiza” com base nos livros didáticos a que têm acesso, os quais, na grande maioria das vezes, demoram muitos anos para incorporar as mais recentes pesquisas produzidas pela academia. Ambos os objetivos foram atingidos.

Destaca-se na obra a inclusão, ao fim de cada volume, de uma bibliografia geral bastante atualizada e de uma filmografia, composta de uma relação de títulos com suas respectivas fichas técnicas. Este material será certamente de grande valia para professores e alunos de História em seus mais diferentes níveis.

Mas uma resenha não se faz só de reconhecimento de mérito. É preciso destacar os problemas para o aperfeiçoamento de iniciativas como essa. O primeiro problema observável é a dificuldade encontrada pelos organizadores em agregar um número muito grande de temas e pesquisadores sem que deixassem de ocorrer repetições de conteúdo ou até mesmo algumas contradições entre artigos em um mesmo volume. No primeiro volume esse problema esteve bem visível. O período que se interpõe entre a proclamação da República e a gestão de Campos Salles foi abordado factualmente em pelo menos cinco artigos diferentes. Em alguns deles, o eixo central (Cidadania) sequer foi tangenciado. Para uma leitura de artigos em separado, esse problema desaparece. Mas, para uma leitura do conjunto da obra, ele se torna muito evidente.

Um segundo problema a ser destacado é que nem todos os articulistas conseguiram atingir o objetivo proposto, ou seja, levar ao público leitor um conhecimento atualizado sobre o seu objeto. Alguns artigos limitaram-se a resenhar produções historiográficas já revistas, repetindo conteúdos que ainda se encontram presentes nos livros didáticos. Isso ocorreu, sobretudo, nos textos que não resultaram de pesquisas empíricas de seus próprios autores ou naqueles que se limitaram a resumir pesquisas antigas anteriormente feitas por eles próprios, mas que já foram revistas por outros que lhes sucederam, sem que as revisões tivessem sido incorporadas ao novo texto. Este problema, porém, encontra-se em poucos artigos e não prejudica a qualidade do conjunto da coleção.

Um terceiro problema detectado foi a ausência de ilustrações suficientes em artigos cujos objetos eram as próprias imagens. Muito embora reconheçamos as dificuldades impostas pelos editores visando ao barateamento da obra, as ilustrações, em alguns casos, eram indispensáveis ao entendimento dos objetivos dos autores.

Por fim, o ideal era que cada livro contivesse uma apresentação específica, ou seja, um texto introdutório responsável pela “amarração” dos artigos. A presença de uma apresentação específica para cada um dos quatro volumes auxiliaria o leitor a relacionar os diferentes temas abordados a respeito de cada período e poderia apresentar uma visão geral introdutória que facilitaria muito o acompanhamento dos textos, principalmente quando o leitor for o estudante de ensino médio.

A despeito desses problemas, como leitora e principalmente como professora de graduação em História, considero essa obra um relevante trabalho de síntese que pretendo recomendar a meus alunos e colegas. Certamente, contribui para atenuar uma das maiores dificuldades da área de Ciências Humanas no Brasil: a precariedade de nossas bibliotecas e a falta de recursos financeiros de nossos alunos. E consegue, na maior parte dos temas, oferecer ao leitor uma leitura agradável e atualizada acerca de temas clássicos da História Republicana.

Ao mesmo tempo, considero essa Coleção um marco na historiografia brasileira pelo seu caráter inovador e pluralista. A diversidade regional de seus autores e a variedade temática refletem uma convivência possível e harmônica de nossa comunidade acadêmica, rompendo com guetos e descortinando novos horizontes para jovens historiadores que, mesmo estando fora do eixo Rio—São Paulo, demonstram a pujança da historiografia nacional recente.

Cláudia Maria Ribeiro Viscardi – Universidade Federal de Juiz de Fora — UFJF.

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Figuras do Pensável – As Encruzilhadas do Labirinto VI | Cornelius Castoriadis

CASTORIADIS, Cornelius. Figuras do Pensável – As Encruzilhadas do Labirinto VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. Resenha de: REZENDE, Antônio Paulo. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.21, n.1, p.327-331, jan./dez. 2003.

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A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII | Giovanni Levi

A Herança Imaterial, do historiador italiano Giovanni Levi, chegou ao Brasil quinze anos após sua publicação pela editora Einaudi, em 1985, conservando o seu título original, (L’eridità immateriale. Carriera di un esorcista nel Piemonte del seicento. Torino: Einaudi, 1985) uma vez que na França tinha sido publicada como Le pouvoir au village. A tradução, sim, manteve o prefácio de Jacques Revel entitulado “A história ao rés-do-chão”, publicada pela primeira vez na edição francesa (Paris: Gallimard, 1989). Esse prefácio oferece numerosas pistas que facilitam a leitura deste livro que já foi consagrado como um clássico da micro-história por parte da crítica especializada. Ora, nesta breve resenha pretendo entrar na análise, não tanto do conteúdo, mas sobretudo do método desta produção historiográfica, em especial naquilo que caracteriza a micro-história italiana, ou seja, a redução da escala de análise no seu método de pesquisa e, em seguida, o jogo entre a dimensão detalhada do enfoque e a escala ampliada do contexto social que lhe atribui sentido e que é enriquecido com as novidades provenientes da microanálise. Leia Mais

O Populismo e sua História: debate e crítica | Jorge Ferreira

A coletânea reúne textos de sete historiadores, uma antropóloga e uma socióloga, num total de sete artigos, já que dois deles são escritos a quatro mãos. Constituem uma plêiade de pesquisadores contemporâneos que labutam nos departamentos de História, Antropologia e Sociologia de universidades como USP, UFF, UFRJ, UFMG, Metodista de Piracicaba e Escola Sindical São Paulo, vinculada à CUT. Não seria exagerado afirmar que se trata de um livro que corta e recorta, não sem marcar o nosso tempo, a categoria populismo e seu corolário histórico mais imediato, a chamada democracia populista que teria sua vigência mais arrebatadora entre 1945 e 1964. Do fato de que o uso da categoria remete à noção de traição, ninguém ficaria contrariado e, embora nem os seus críticos nem os seus defensores tenham aludido a hipóteses psicológicas, talvez não fosse despropositado mencionar que a própria idéia de traição política e de classe teria gerado no Brasil um fenômeno de complexo de populismo. O propósito da minha recensão é tentar elucidar, com a verve e a argúcia dos autores reunidos, a teoria e o complexo, tarefa nada fácil para o espaço normativo das revistas nacionais em se tratando de polêmicas historiográficas. Leia Mais

Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII) – FRAGOSO et al (RBH)

FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 473p. Resenha de: GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002.

Com um prefácio impecável de A. J. R. Russell-Wood, chega-nos uma obra coletiva inovadora que une pesquisadores lusos e brasileiros. Não se trata de mais uma publicação que acompanha o crescimento do mercado editorial sobre os tempos coloniais, embalado pela comemoração dos descobrimentos, mas de uma contribuição definitiva para a revisão do chamado “antigo sistema colonial”. Lá se vão pouco mais de vinte anos desde que Ciro Flamarion Cardoso chamou a atenção, de forma ensaística, para a preocupação obsessiva com a extração de excedentes pela metrópole na historiografia colonial brasileira. Ao cabo deste período, a pesquisa acadêmica tomou fôlego e trouxe novas evidências empíricas para a cena do debate.

A historiografia portuguesa, independentemente das discussões acerca da autonomia do modo-de-produção escravista colonial que marcou profundamente os estudos brasileiros, também se renovou com o revisionismo de seu Antigo Regime, particularmente sobre o fracasso das reformas pombalinas, o crescimento industrial gorado com a Independência brasileira e o questionamento sobre a centralização do poder pelo Estado monárquico lusitano.

Ambos os percursos historiográficos se amalgamam nesse livro, nos dando uma visão ampla e diversificada sobre a complexidade do que foi o Império luso, tendo como elemento catalizador o controvertido “pacto colonial”.

O primeiro bloco de ensaios, através da pesquisa de múltiplas fontes primárias manuscritas e inéditas, traça a trajetória da elite econômica e política da capitania do Rio de Janeiro. João Fragoso, Antonio Carlos Jucá de Sampaio e Helen Osório vão abrir o conjunto de doze artigos, situando a praça mercantil carioca no centro de uma vasta rede de operações abrangendo rotas no ultramar africano e asiático, bem como as linhas do abastecimento do mercado brasileiro da época. Atuação que caracterizou a elite mercantil de grosso trato daquela cidade pelo menos até os anos de 1830 e que se consolida no setecentos (Fragoso, p. 333).

A passagem da elite agrária dos fundadores da Guanabara para o predomínio dos homens de negócios na hierarquia social é marcada pela crise da economia açucareira que acompanhou a reativação mercantil do Rio de Janeiro, causada pelo impacto da mineração e o controle carioca no abastecimento das Minas Gerais. Também a subordinação da economia sulista ao domínio dos capitais mais elevados dos negociantes guanabarinos fica patente nos dados de arrematação dos impostos sobre as mercadorias rio-grandenses, estudados por Helen Osório.

Os três artigos iniciais vão sublinhar as estratégias de enriquecimento dentro de uma economia chamada do “bem comum”, dominada pelas melhores famílias da terra. Nessa economia de distribuição de benesses e privilégios, as alianças familiares e clientelistas são decisivas para acumulação de fortunas. Nota-se a influência, entre outras, da abordagem de Giovanni Levi, Braudel e Polanyi, para a análise da reciprocidade dos favores entre famílias e o mercado pré-capitalista imperfeito, bem como do método genealógico das famílias, propalado por Adeline Daumard e Jacques Dupâquier, imprescindível para a reconstituição dos mecanismos de formação dos patrimônios privados nas sociedades pré-industriais.

Talvez, neste bloco inicial e ao longo do livro, o leitor sinta a falta de trabalhos que cuidassem mais detidamente da participação das demais capitanias no sistema complexo das rotas mercantes e no funcionamento administrativo dos vice-reinados, notadamente da Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo e Grão-Pará. Embora esse desejo pudesse soar excessivo ao plano que alinhava a obra, o do esforço de análise dos aspectos centrais do Antigo Regime lusitano revisto pelo papel desempenhado pelas instituições e elites coloniais, com ênfase na praça do Rio de Janeiro.

Nas duas seções seguintes, a diversidade de assuntos partilha de um denominador, o das relações de poder na administração do Mare Lusitano. A figura de um regime colonial centralizado no poder da Coroa é substituída pela imagem de um espaço de negociação, que edifica as relações mutualistas ou simbióticas entre a grande autonomia das câmaras municipais, instituições eclesiásticas ou senhoriais e o poder real, que se beneficiava do bom andamento dos negócios coloniais (ver artigos de Maria Fernanda B. Bicalho, Antonio Manuel Hespanha, Nuno Gonçalo F. Monteiro e Maria de Fátima S. Gouvêa). Afinal a economia política dos privilégios, institucionalizada pelas monarquias do Antigo Regime nas colônias, estava assentada numa cadeia de negociações entre redes pessoais e institucionais do poder local e o trono metropolitano, hierarquizando os homens e o acesso à obtenção das benesses imperiais. O outro lado desta realidade seria a coesão política necessária para o governo do Império. Antonio Manuel Hespanha, investigando as regras formais para a atuação das instituições coloniais diante do poder real, indicará as inconsistências da suposta uniformidade da estrutura jurídica do Império, como corolário da idealização do centralismo do poder do monarca. Trabalhando comparativamente com a diversidade de situações entre a organização da justiça em Goa, Bahia e Rio de Janeiro, Antonio Hespanha torna visível a pluralidade dos laços de políticos que iriam se estabelecer entre o poder local e a Coroa a partir das distâncias e realidades da conquista, nas quais o direito colonial moderno se ajustava e os nativos estabeleciam suas práticas legislativas próprias. Portanto, a centralização não poderia ser efetiva sem um quadro legal uniforme e o poder restrito ao mando dos oficiais metropolitanos.

A experiência da evangelização é tratada por Ronald Raminelli e Hebe de Mattos. O primeiro, enfatizando as diferentes estratégias missionárias no Congo, Brasil e Japão, que pretenderam unir povos diversos sob a defesa da fé cristã. O projeto missionário que cimentava a conquista, ao criar a identidade cultural entre povos subjugados e os valores metropolitanos, continha elementos para a sua corrosão ao se manter dentro dos limites da desigualdade representada pela exclusão dos gentios no corpo social hierarquizado.

Num dos artigos mais polêmicos da coletânea, Hebe de Mattos vai se contrapor às motivações de ordem econômica utilizadas pela historiografia brasileira para explicar o estabelecimento do regime escravista nas Américas, tais como a falta de braços para as tarefas da colonização ou a lógica mercantilista das monarquias modernas. A construção de justificativas religiosas para a escravidão, a exemplo da guerra justa para a salvação dos gentios, não foi forçada pela lógica mercantil da expansão. Ao contrário, antecederia a empresa ultramarina e teria fabricado as referências mentais e políticas, de fundo corporativo e religioso, que permitiram a aventura colonial, inclusive em sua dimensão mercantil. A escravidão seria a mola propulsora para os colonos portugueses motivados pela possibilidade de se afidalgarem no além-mar, conquistando o status de senhores de homens e terras. Caímos, assim, na polêmica das determinações históricas e poderíamos nos perguntar se não deveríamos separar as motivações das razões impostas pelas necessidades da experiência da colonização. Ou ainda, distinguir as aspirações que moviam os colonos e as estratégias da Coroa para o seu enriquecimento, dentro da lógica mercantilista do Estado moderno. De qualquer maneira, deixemos o leitor tomar partido.

A última parte do livro vincula múltiplos aspectos da obra à construção da noção de uma economia colonial tardia, que se define pela hegemonia do capital mercantil residente no Rio de Janeiro, e se constituiria na nova elite econômica da América portuguesa. João Fragoso persegue um modelo explicativo para a economia colonial já definido em sua tese de doutorado (Homens de grossa aventura), e do qual alguns trabalhos aqui apresentados lhe são tributários. Por conseguinte, modelo forjado no programa de história agrária da UFF, sob a batuta de Maria Yedda Linhares. Nele, a autonomia da economia colonial é sustentada, com base numa cuidadosa pesquisa empírica, diante das flutuações externas e do poder da metrópole. A hegemonia econômica dos negociantes do Rio de Janeiro é meticulosamente recuperada por fontes cartoriais e arquivísticas diversas. Neste novo livro, Fragoso procura remontar seu estudo ao momento da transformação da acumulação de capitais pela economia da plantation em direção à constituição de uma elite mercantil colonial, que se mostrará autônoma e capaz de amealhar sua fortuna nas redes do comércio interno e ultramarino. As implicações dessas constatações são imensas para a historiografia brasileira, ainda não explorada de todo nas suas dimensões políticas e sociais.

E, finalmente, os textos de Roquinaldo Ferreira e Luís Frederico Dias Antunes ajudam a fundamentar os argumentos de Fragoso. Ambos, com riqueza de detalhes, reconstroem os circuitos intra-ultramarinos do comércio carioca com a costa africana e Goa. Negociantes do Rio, da Bahia e Pernambuco são identificados com freqüência nos portos indianos, participando ativamente do comércio de tecidos asiáticos (Luís Antunes). As três praças também usufruíam da vantagem do comércio direto com Angola, com a presença de suas embarcações representando cerca de 85% de toda a movimentação portuária de Luanda entre 1736 e 1770 (Roquinaldo Ferreira). Do Brasil partiam os panos asiáticos reexportados, as cachaças (“geribitas”), pólvora e armamentos para as trocas no sertão angolano, especialmente os escravos. E nesse tráfico novamente o Rio de Janeiro se destaca, absorvendo 48,5 % dos navios negreiros que zarparam de Luanda na década de 1760 (Idem).

Ao concluirmos nossa leitura, no mínimo podemos afirmar que se os argumentos não convencerem os mais céticos, a profusão de indícios e as comprovações empíricas, especialmente sobre a vinculação da praça carioca com a navegação de longa distância e suas triangulações de mercadorias com a Costa da Mina, Angola e Goa, alteram em definitivo a percepção do “pacto colonial”, reafirmando a autonomia que o capital mercantil sediado nas colônias ousou possuir ante o poder metropolitano. É prova também de que a história econômica e das estruturas se renova, sem esgotar as suas possibilidades de contribuição para o saber histórico. Aqui, os resultados das pesquisas regionais se sintonizam e dialogam com uma totalidade revisitada, o Império colonial português. Aguardamos ansiosos pelas controvérsias que o livro certamente causará no meio acadêmico.

Afonso de Alencastro Graça Filho – Universidade Federal de São João del Rei.

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O populismo e sua história – debate e crítica – FERREIRA (RBH)

FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história – debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 380p. Resenha de: BORGUES, Vavy Pacheco. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002.

A coletânea organizada por Jorge Ferreira, professor do Departamento de História da Universidade Federal fluminense, se inscreve a meu ver em uma das melhores vertentes da chamada “história política renovada”, trazendo preocupações conceituais como eixo de articulação dos artigos, conforme bem exprime seu título. Como os historiadores têm procurado mostrar, os conceitos, além de históricos (como tudo que se refere ao homem e sua cultura, isto é, tudo que é humano), quando usados em política ¾ eminentemente uma disputa ¾ nunca são neutros. Também as emoções, os sentimentos e instintos dos indivíduos e das “massas” são hoje, para muitos historiadores, uma dimensão fundamental da vida política; os analistas do séc. XIX dela muito se ocuparam, mas essa dimensão foi relegada pelos cientistas sociais brasileiros das últimas décadas. Ao começar seu texto por uma bela epígrafe de Rachel de Queiroz, Jorge Ferreira indica sua intenção de lembrar a importância dessa questão, embora isso só permaneça subjacente aos textos. Cita ele : “Não há povo amorfo. Não há massa bruta e indiferente. A massa é formada de homens e a natureza de todos os homens é a mesma: dela é a paixão, a gratidão, a cólera, o instinto de luta e de defesa.”

Os autores, em suas análises, fazem-nos dar profícuas voltas e mais voltas em torno do conceito ou categoria explicativa populismo, ao qual se referem também como “noção”, “palavra”, “expressão”, “imagem”, “sentido”… Exploram também aqueles que são vistos como os sujeitos políticos dessa história: os líderes e seus projetos, as “massas” ou as classes e suas relações. Na obra, o populismo surge absolutamente enredado em outros conceitos, como trabalhismo, getulismo, queremismo, sindicalismo ou peleguismo, autoritarismo, fascismo ou totalitarismo (como se fossem termos equivalentes), e ainda nacionalismo e estatismo. Esses são analisados em suas doutrinas e em suas práticas, configuradas estas em noções como “mistificação, manipulação e demagogia”.

São sete artigos, praticamente todos sobre a história brasileira, e a forma de analisá-la. Apenas o de Maria Helena Capelato se debruça sobre a questão no âmbito da América Latina, fazendo uma comparação do chamado fenômeno populista no México e na Argentina. Alguns, na trilha “arqueológica” da história do conceito de populismo, apresentam preocupações teórico-conceituais mais marcantes, sobretudo os de Ângela C. Gomes, Jorge Ferreira e Daniel A . Reis. O artigo de Fernando T. da Silva e Hélio Costa situa-se ainda nesse terreno de fortes preocupações teórico-metodológicas, mas analisando interpretações historiográficas no campo da história social do trabalho. Os outros são mais reconstituições de partes da história política do período denominado populista, cujos inícios, a partir dos anos 1930 (“tempo das origens”), se solidificam no que é apresentado como um sistema político de 1945 a 1964 (a “república populista”). O artigo de Lucília de A . Neves (no campo das idéias políticas) explicita as propostas do trabalhismo, no que ela chama de “um projeto para o Brasil” de 1945 a 1964, entrelaçadas ao nacionalismo e ao desenvolvimentismo. Eliana Pessanha e Regina Morel comparam experiências de sindicalismo no Rio de Janeiro, que consideram “expressivas da experiência sindical no período considerado”: os operários navais e da indústria siderúrgica.

Como a maioria das coletâneas ou coleções, o resultado é desigual na organização do pensamento e na forma de exposição, da clareza, do estilo, revelando por vezes maior reflexão própria, outras vezes mais resumos e crítica historiográfica, sempre interessantes. Inicia com artigos agradavelmente escritos, como os de Ângela C. Gomes e Jorge Ferreira, com imagens simples e eficientes, e termina com um fecho de ouro, no sentido da narração, que é o artigo de Daniel A. Reis, dotado de uma fina ironia e um estilo envolvente. Há algumas repetições de idéias e de análises de autores que nos dão impressão de vai-e-vem; isso se nota mais no conjunto dos textos, mas por vezes em um mesmo texto.

De uma forma geral, o que ressalta da obra é mais uma demonstração cabal e irrefutável de que os conceitos que usamos para explicar a história política estão sempre enredados nos laços permanentes e inextricáveis entre o momento histórico e sua análise, entre a história e a política1. É preciso estar constantemente atento a esses laços, pois senão, por motivos múltiplos e diversos, as intenções não desvendadas da política levam o analista a considerar o conceito como um fato que se passou ou um tema que mereça um estudo, sem maiores questionamentos2. Não é possível, enquanto cientistas sociais, pensarmos no populismo só na vida política ou só na academia: o imbricamento entre os dois ( visto na coletânea como um “deslizamento”) resulta da luta política mais ampla, como bem se percebe pelos artigos que se detêm no panorama historiográfico, ao abordarem o conceito e seu uso pelos mais diversos agentes e/ou analistas políticos.

Do conjunto da obra depreendem-se claramente os mecanismos pelos quais as explicações sociológicas e da ciência política resultaram de uma luta política mais ampla3. Já no início a Introdução de Jorge Ferreira mostra a elasticidade da categoria até torná-la o que chamei de “categoria-monstro”, quando fiz uma retomada do surgimento do conceito de tenentismo e seus diversos empregos, por diferentes oponentes políticos, em diversos momentos da política brasileira4. Assim como esse, o populismo teve seu sinal invertido, mas em sentido contrário: quando surgiu o uso do termo populista no vocabulário da luta política, este aparecia quase como um mero adjetivo, ligado a “popular”. Getúlio Vargas e João Goulart eram chamados de populistas, e isto não tinha, para Jorge Ferreira, um sentido ofensivo. Depois, tornou-se um insulto para a direita liberal. O tenentismo começou como uma tentativa de descrédito político, depois foi legitimado e positivamente valorizado por Virgínio de Santa Rosa e outros da época, como a “revolução das classes-médias”5.

Ambos os conceitos tiveram também até hoje um uso eminentemente plástico: pelo fato de querer “pôr tudo no mesmo saco” (imagem de Jorge Ferreira) e por querer explicar tudo, acaba-se não explicando realmente nada. Como explicita o mesmo autor, “personagens com diferentes tradições políticas foram reduzidos a um denominador comum: líderes trabalhistas como Getúlio Vargas, João Goulart, Leonel Brizola e mesmo Miguel Arraes perfilaram-se ao lado de políticos regionais paulistas, como Adhemar de Barros e Jânio Quadros; de um general anódino, como Eurico Dutra; de um udenista golpista, como Carlos Lacerda; e de uma figura ainda mal estudada, como Juscelino Kubitschek. Após 1964, o próprio general-presidente João Figueiredo igualmente entrou no rol, segundo algumas análises. (…) projetos políticos que fincaram tradições políticas, e que ainda hoje se manifestam na sociedade brasileira, como o trabalhismo petebista e o liberalismo udenista, dissolvem-se e confundem-se em um mesmo rótulo: tratar-se-ia de ‘populismo’ ” 6.

Esse populismo, chamado pelos autores de “gato de sete vidas” ou “herança maldita” ¾ pois foi e por vezes ainda é visto como uma categoria explicativa de um sistema político e social brasileiro ¾ tem suas apontadas características explicitadas em muitos dos artigos. São dissecadas com propriedade e clareza as análises clássicas sobre o populismo, em especial as dos anos 1960, de Francisco Weffort e Octávio Ianni, mas também os primeiros trabalhos da década de 1950, do Grupo de Itatiaia e depois do ISEB, que estão nas origens das interpretações posteriores.

Algumas práticas historiográficas ¾ hoje já condenadas ¾ estavam presentes em nossa historiografia naquele momento, sendo de certa forma um pano de fundo que propiciava as interpretações analisadas na obra. As duas principais me parecem a linearidade do chamado “processo histórico” e o papel atribuído ao Estado na história brasileira. A primeira percebe-se numa recorrência da interpretação da nossa vida política: até hoje muitos consideram que 1937 está necessariamente contido em 1930, ou em outras palavras, o golpe de Estado e o autoritarismo eram as únicas possibilidades ao longo do primeiro período getulista, e assim a dita Revolução de 30 teria levado necessariamente ao golpe de Estado e à ditadura do Estado Novo; da mesma forma, no conjunto das interpretações criticadas pelos diversos autores, 1954 ¾ ano da morte de Getúlio ¾ contém em germe, inelutavelmente, o golpe político-militar de 1964, apontado como momento do colapso do populismo, tanto como sistema como prática política (esses dois sentidos por vezes parecem se confundir, na obra )7. Essas relações apresentadas como necessárias e inelutáveis são combatidas por historiadores que, além de recusar modelos de desenvolvimentos de outros tempos e espaços, estão atentos às possibilidades e potencialidades da história, que nunca é uma estrada de mão única, linear e com ponto de chegada definido, predeterminado. O segundo tipo de prática tem a ver com a definição dos sujeitos em história. No “desprezo” da história das grandes figuras do início do século XX, passamos, décadas atrás, a ver o Estado como o demiurgo de nossa história; isso se deu entre os historiadores ainda devido a essa importância atribuída às análises das ciências sociais. A forte presença do Estado na organização da vida política brasileira anulava os outros possíveis sujeitos.

Na verdade, a grande questão que estrutura toda a coletânea é: qual é o papel dos trabalhadores enquanto sujeitos da história brasileira? Os autores internacionais e nacionais que estudaram a história social do trabalho em geral e a brasileira em particular são bastante bem utilizados por alguns textos. Há uma crítica aos trabalhos que tratam de populismo por verem em geral os trabalhadores seja como massa manipulada, seja como “atrasados” em relação a outros desenvolvimentos históricos. Isso aparece centralizar as reflexões sobretudo de Jorge Ferreira, Fernando T. da Silva e Hélio Costa. Os dois últimos lembram o questionamento levantado pelo brasilianista John French, sobre a “mistificação” dos trabalhadores que apresenta como “a grande pergunta, nunca respondida”: “por que os operários sucumbiram aos agrados dos líderes populistas, aceitando a dominação, e, ao mesmo tempo, se dispuseram a confiar em traidores?” Decorre dessa questão o debate sobre os reais avanços da Consolidação Geral do Trabalho (CLT), hoje em dia ameaçada.

Só se pode receber bem estudos e pesquisas sobre a história política do período, ainda muito pouco examinada. Além disso, concordo com Francisco Carlos T. da Silva, autor da orelha da obra, que Jorge Ferreira, ao reunir autores significativos no tema, fez um trabalho “extremamente louvável”, que acaba por constituir uma “garantia contra o pensamento único”. Pois apesar do debate e da crítica a que os diversos artigos nos introduzem e reforçam, o conceito de populismo continua vivo, presente na mídia e em nosso cotidiano, como se referindo a um fato político-social indubitável, tanto no Brasil quanto na América Latina (e por vezes, em alguns breves momentos me pareceu que alguns dos próprios autores do livro escorregam nessa aceitação, legitimando o populismo como um “fenômeno histórico”). O que mostra que um conceito, uma vez consagrado pelo senso comum, é de difícil extirpação8.

Como diz Ângela C. Gomes, “escrever sobre o populismo no Brasil será sempre um risco”. Hoje em dia pode-se perceber que, na boca e na pena da direita conservadora, a pecha de “populista” substituiu a pecha de “comunista”, desde os anos vinte do século passado empregado como o maior insulto, ou seja, uma forte “arma” política. Aliás, Jorge Ferreira destacou a origem do termo populista enquanto insulto desde os anos 1960, mas também hoje em dia, na boca, por exemplo, de nosso presidente atual, Fernando Henrique Cardoso. Percebe-se na luta política mais ampla que, por trás do uso da qualificação de populista, há a tentativa (sempre renovada e proveniente do medo, e por que não dizer, mesquinhez) de se impedir uma decisiva participação de sujeitos políticos que possam mudar os rumos de nossa história, marcada por terríveis indicadores sociais, provenientes em última análise da nossa injusta e desumana distribuição de renda.

Penso que a principal contribuição da coletânea reside em repor a historicidade do conceito de populismo ( e de alguns dos a ele conexos). A tarefa não é empreendida explicitamente por cada texto, mas bem sucedida em seu conjunto. Para ilustrar tal resultado, penso ser interessante relatar um episódio ocorrido durante minha defesa de tese de doutorado, em que Francisco Weffort era membro da banca (trabalho já citado sobre a retomada do conceito de tenentismo). Ele terminou sua simpática argüição pela pergunta seguinte: “mas, afinal, o que foi o tenentismo?” Eu (e os outros membros, assim como parte do público, que compreenderam bem a intenção da tese ) percebemos que, enquanto cientista social e diversamente de Octávio Ianni, que orientara minha tese, Weffort não conseguia compreender o trabalho de um historiador que, numa linha de raciocínio de crítica ao conceito, procurara recuperar sua historicidade9. Não acredito, porém, que um leitor que faça atentamente a leitura desta coletânea, ao terminar pergunte, de forma semelhante à de Weffort: “mas, afinal, o que foi o populismo” ?

Notas

1 Ver BORGES, Vavy Pacheco. “História e Política: laços permanentes”. In Revista Brasileira de História: Política e Cultura. São Paulo: ANPUH/Marco Zero/SCT/CNpq/Finep, vol. 12, Nº.23/24, pp.7-18, set. 91-ago.92.

2 Esse tipo de preocupação surge entre nós historiadores brasileiros em torno do tema da “Revolução de Trinta”, a partir da década de 1970. No caso, ver sobretudo VESENTINI, Carlos A. A Teia do Fato: uma proposta de estudo sobre a memória histórica. São Paulo: HUCITEC/HISTÓRIA SOCIAL, USP, 1997.

3 A historicidade dos conceitos tem entre nós, no alemão Reinhardt Kosseleck e no francês Pierre Rosanvallon, alguns de seus expoentes. Os assuntos em questão têm sido debatidos nas apresentações promovidas nos encontros da ANPUH pelos grupos de trabalho de História Política e de Mundo do Trabalho.

4 Ver BORGES, Vavy Pacheco. Tenentismo e Revolução Brasileira.. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992.

5 Essa concepção, embora questionada, permanece intocada em muitíssimos trabalhos. Tome-se um exemplo ao acaso, entre inúmeros exemplos recentes de obras de divulgação: a obra Viagem pela história do Brasil, de Jorge Caldeira, publicada em 1997 pela Companhia das Letras; essa apresenta o tenentismo como a expressão dos anseios das classes médias; apresenta também um capítulo intitulado: “O período populista” sem maiores explicitações….

6 Ver pp.10-11 da coletânea.

7 É interessante lembrar que, durante a presidência de Fernando Collor, uma caricatura na grande imprensa paulistana mostrava Collor sentado em um trono presidencial, tendo ao lado um bobo da corte, que carregava um livro intitulado ” O colapso do populismo”.

8 No momento em que escrevo a resenha, dois exemplos: do ponto de vista da academia, a recente versão do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro ¾ pós-1930, produzido pelo CPDOC, traz um item “Populismo” com quase tudo o que é criticado nesta coletânea; do ponto de vista da política, o populismo na mídia tem aparecido como o culpado, em boa parte, pelos insucessos políticos atuais da Argentina (dezembro 2001- janeiro 2002.)

9 Eu respondi a Weffort que a criação do termo, datada do primeiro semestre do ano de 1931, foi resultado de um enorme medo das elites políticas paulistas, depois difundido por essas nas classes médias urbanas, gerado pela presença de uma forma de militarismo na política, que poderia trazer, temiam todos, uma enorme mudança social. Porém, para as elites, antes e depois desse momento histórico, quando os militares fazem o que elas querem, eles não parecem despertar medo algum.

Vavy Pacheco Borges – Universidade Estadual de Campinas.

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De Martí a Fidel: A Revolução Cubana e a América Latina | Luiz Alberto Moniz Bandeira

A revolução cubana, “inquestionavelmente o maior acontecimento da América Latina no século XX”, como a qualifica o professor Luiz Alberto Moniz Bandeira, é o objeto da mais recente obra deste historiador e cientista político de invejável fôlego para pesquisar, refletir e escrever. É o 16º livro de Moniz Bandeira dedicado à pesquisa histórica, e, tal como os anteriores, um trabalho extenso e profundo.

Nos primeiros parágrafos da introdução, o autor, atualmente morando na Alemanha, diz que a motivação para realizar a pesquisa foi o contraste que ainda assombra muita gente: como Cuba conseguiu resistir ao desmerengamiento da antiga União Soviética e do bloco socialista europeu, tendo sua população um padrão de vida menor do que o da extinta República Democrática Alemã? Leia Mais