Os estudos de Ásia e do Oriente no Brasil: objetos, problemáticas e desafios / Faces da História / 2019

A proposta desse dossiê partiu de um desafio e da busca de respostas a uma pergunta complexa: existem estudos de História da Ásia e do Oriente no Brasil? Se a resposta a essa pergunta fosse positiva, outras perguntas desafiadoras surgiriam: quais seriam os objetos, problemáticas e desafios enfrentados pelos pesquisadores de nossas universidades que se aventuram em um campo de estudos que, à primeira vista, carece de interlocutores, acesso às fontes, definição de temas e metodologias adequadas? Quais seriam as concepções de Ásia e de Oriente dos possíveis pesquisadores dessas temáticas? Em quais períodos essas pesquisas estariam centradas?

A repercussão positiva dessas perguntas desafiadoras veio com o grande número de propostas para a composição desse dossiê, bem como a diversidade temática, espacial e temporal das pesquisas realizadas por jovens pesquisadores de diferentes instituições brasileiras. Ao mesmo tempo, outro desafio seria compreender como temas tão diferentes dialogariam nesse dossiê, pois não poderiam ser agrupadas simplesmente pelo componente geográfico (as subdivisões asiáticas) ou pelo componente cultural (o Oriente e o orientalismo), nem simplesmente pelo recorte temporal (dos séculos XVI aos temas contemporâneos).

Levando essas questões em consideração, os artigos foram agrupados em blocos temáticos. O primeiro deles compreende quatro artigos referentes à Índia (Goa), ao Ceilão e ao Japão a partir da presença das missões religiosas entre os séculos XV e XVI como forma de reafirmação da presença portuguesa no Oriente, as reações contrárias e as hibridizações possíveis.

No artigo “Para favorecer a cristandade: as iniciativas de coerção à conversão dos órfãos em Goa (1540-1606)”, com autoria de Camila Domingos Anjos, foi analisada uma coletânea de cartas e alvarás de reis de Portugal e de vice-reis do Estado da Índia, reunidas e organizadas no Arquivo Português Oriental, referentes às legislações e às estratégias dos agentes coloniais portugueses na catequização de jovens menores de 14 anos de idade, considerados passíveis de serem moldados, educados, disciplinados e aperfeiçoados na fé católica.

Já em “Um catolicismo possível: a Congregação do Oratório de Goa e sua inserção no Ceilão holandês”, Ana Paula Sena Gomide acessou a documentação dessa instituição religiosa para analisar a importância da ação dos oratorianos, formados por um clero mestiço, na manutenção, revitalização e sobrevivência do catolicismo no Ceilão, que passou do domínio português para o domínio holandês, calvinista e anticatólico.

Em outra vertente, Renata Cabral Bernabé, no artigo intitulado “A formulação do discurso anticristão no Japão dos séculos XVI-XVII”, analisou a promulgação de éditos anticristãos emitidos pelo governo japonês que tratavam da expulsão dos missionários e da proibição da prática religiosa cristã no território. Ainda que o cristianismo não tenha desaparecido do Japão, tal legislação foi responsável pelo fim da atividade missionária europeia assim como contribuiu para dificultar o intercâmbio com países ocidentais católicos, numa clara relação com a centralização política do Japão iniciada em meados do século XVI e consolidada no século XVII.

Finalizando esse bloco, o artigo de Laís Viena de Souza, “Os panditos e os jesuítas. Indícios da medicina ayuvérdica nos colégios da Companhia de Jesus no Estado da Índia (séculos XVI-XVIII)”, utiliza a documentação inaciana para discutir a presença na ordem religiosa de médicos indianos vaidyas, chamados de panditos pelos jesuítas, bem como tratar dos embates, das assimilações, da apropriação, e da hibridização da medicina ayurvérdica com os preceitos hipocráticos-galênicos que circulou pelo Império Português na era moderna.

O segundo bloco temático reúne mais quatro artigos cujo ponto em comum é a abordagem da temática acerca do Oriente Médio, Norte da África e o Islamismo no Brasil a partir de fontes documentais brasileiras. Frederico Antônio Ferreira em “Relações entre o Brasil e o norte da África no século XIX: migração e comércio” acessou os documentos da chancelaria brasileira custodiados pelo Arquivo Histórico do Itamaraty no Rio de Janeiro, referentes às relações externas do então Império Brasileiro com países do norte da África no contexto da proibição do tráfico de escravos, do incentivo à imigração e do crescimento da economia cafeeira.

“Conexões Rio de Janeiro-Cairo: possibilidades analíticas acerca das relações Brasil-Egito a partir da imprensa escrita (1950-1954)” de Mateus José da Silva Santos mantém o olhar sob as relações diplomáticas entre o Brasil e o Egito no início dos anos 1950, analisando um conjunto de textos publicados no periódico baiano A Tarde para tratar tanto do protagonismo dos dois países em seus respectivos continentes como para compreender a intersecção de seus interesses na ordem econômica e política mundial fora do eixo Europa, Estados Unidos e América Latina.

Já Felipe Yera Barchi em seu artigo “Referências Bibliográficas sobre o Islã no Brasil: um estudo de caso dos livros didáticos de Gilberto Cotrim e Cláudio Vicentino” centra-se na análise da forma como o Islã, e temas relacionados ao país, são abordados nos livros didáticos de História em nosso país e, entre suas conclusões, verifica-se uma cristalização da história do Islã nos títulos didáticos analisados pelo autor, a despeito das revisões feitas nas obras.

Por sua vez, Bruno Bartolo do Carmo, em “Memórias do Café Árabe: costumes, ritos e modos de preparo em narrativas de sírios e libaneses em São Paulo (1970-2019)”, oferece-nos as tradições e os rituais do preparo do café árabe pelas narrativas de imigrantes e refugiados de origem árabe radicados no Brasil, como uma forma de contribuir aos estudos sobre a imigração e sobre a própria história da bebida declarada como patrimônio pela UNESCO.

A partir de temas ligados à memória, ao testemunho, identidade, resistência e narrativas virtuais, o terceiro bloco agrega a Coreia do Sul, a Palestina e o Estado Islâmico. Camila Regina Oliveira no artigo “Museu, memória, testemunho e a construção do fato: um estudo do caso Seodaemun Prision History Hall, Seul-Coreia do Sul” toma como objeto de análise a exposição permanente desse Museu para tratar das narrativas, memórias e testemunhos sobre a colonização japonesa no país e, sobretudo, para problematizar a questão da construção da identidade cultural sul-coreana, bem como a concepção de uma consciência nacional.

É na perspectiva do debate sobre projeto nacional, identidade, resistência que Carolina Ferreira de Figueiredo desenvolve seu texto “O local e o global em charges: expressões de um artista palestino em Haifa nas décadas de 1970 e 1980”, analisando a obra de Abed Abdi, publicada no periódico comunista Al-Ittihad, baseado na cidade de Haifa. Usando a arte como expressão de um ativismo político, as charges abordam temas relacionados ao imperialismo, colonialismo, intervencionismo e invasões que ainda permanecem em terras palestinas, sem perder de vista as questões locais (o conflito) e as globais (a “grande” política).

De outra perspectiva, Gilvan Figueiredo Gomes em “Califado Virtual: a Hisbah como ferramenta de construção de um Estado Islâmico em Dabiq (2014-2016)” utiliza como fonte de pesquisa as narrativas veiculadas pela revista do grupo jihadista para analisar a ação midiática, os ambientes digitais e as redes sociais como meio de expressão de organizações políticas dessa natureza. Além disso, o autor problematiza os conceitos de Califado tanto do ponto de vista da disputa e da legitimidade do poder, como do ponto de vista Virtual não apenas vinculado ao digital, mas também na eminência do vir a ser, da possibilidade que se concretiza como fato.

Finalmente, o quarto bloco concentra os textos que partem das questões acerca do Orientalismo, tendo como referencial teórico a obra homônima de Edward Said. Paula Carolina de Andrade Carvalho, em seu artigo “Orientalizar-se: as representações dos ‘orientais’ em Personal Narrative of a Pilgrimage to Al-Madinah & Meccah, de Richard Francis Burton (1855-56)”, faz uma análise sobre as generalizações dos “orientais” feitas pelo explorador britânico, que criou o disfarce de Shaykh Abdullah para realizar o ritual sagrado do hajj permitido apenas aos muçulmanos. Ainda que Burton nunca tenha deixado de seguir a cartilha do discurso do orientalismo, a autora aponta que as representações dos “orientais” do autor estão pautadas muito mais pelas ambiguidades e pelos paradoxos.

No artigo “O Orientalismo como prática discursiva hegemônica no auge da expansão europeia”, Lucas Pereira Arruda realiza uma revisão bibliográfica de obras inglesas de diferentes naturezas para compreender como os agentes coloniais tratavam os povos nativos das colônias inglesas no final do século XIX, centrando sua análise em Joseph Conrad e Rudyard Kipling para falar do papel do romance na construção discursiva do outro. J

á em “Discursos Orientalistas sobre a dança: o caso de Almée, na egyptian dancer, de Gunnar Berndtson” de Nina Ingrid Paschoal, uma fonte pictórica é analisada para problematizar a pintura dita orientalista e seu papel na popularização da dança de mulheres orientais eternizada no Ocidente como “dança do ventre”. Entre fantasia e realidade, tais imagens contribuíram para uma construção sobre o Oriente atrelada aos movimentos de colonização, ainda repercutindo na forma de representação dessas mulheres. Por fim, Rafael dos Santos Pires, em seu artigo “O mito do Egito Eterno: desenvolvimento acadêmico, impactos políticos”, parte da associação entre orientalismo, mitos e elementos discursivos para compreender os impactos dos usos do passado no mundo contemporâneo do Egito, na constituição do próprio Estado egípcio e na forma de imaginar e escrever esse passado.

A escolha desses textos para encerrar o dossiê não foi fortuita. A proposta desse dossiê foi elaborada considerando alguns marcos fundamentais do debate que ora se discute: os 40 anos da primeira edição de Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, os 30 anos da primeira edição brasileira e os 15 anos da morte de Edward Said. A obra do escritor de origem palestina tornou-se um marco fundamental nos diversos campos das humanidades, frente aos estudos que levariam o Oriente Médio e, consequentemente, a história da Ásia para um patamar que nas últimas décadas ampliouse em problematizações que inauguraram os estudos pós-coloniais. Outrossim, as inovações e as perspectivas teórico-metodológicas apontaram para revisionismos sobre leituras, interpretações e práticas interdisciplinares referentes ao sujeito histórico “oriental”, ao mundo islâmico, às sociedades do sul e do sudeste asiático, além do chamado “Extremo Oriente”.

Mas afinal, de qual Oriente e de qual Ásia estamos falando? Na perspectiva saidiana, o Oriente foi compreendido no Ocidente como algo imaginário, distante, misterioso e exótico, mas o que essas pesquisas têm demonstrado é a necessidade de compreensão e apreensão da História da Ásia a partir de um ponto de vista que supere as dicotomias oriental-ocidental e que faça prevalecer um olhar conectado entre passado e presente, entre o local e o global, entre o real e o virtual, entre assimilação e resistência. Não uma história do Oriente em oposição a uma história do Ocidente. Não uma História da Ásia em oposição a uma História da Europa. O que se buscou nesse dossiê foi analisar essas Histórias Conectadas, parafraseando Sanjay Subrahmanyam.

Por fim, nas entrevistas das professoras Mônica Muniz de Souza Simas e Marilia Vieira Soares apresentam-se alguns dos resultados e tendências dos estudos orientais e asiáticos no Brasil, no campo da Literatura e das Artes Cênicas, realizados em diferentes laboratórios e instituições, como relevantes contributos em seus diálogos interdisciplinares com a História da Ásia.

Gostaríamos de agradecer aos diversos autores que submeteram seus trabalhos para nossa avaliação, aos pareceristas de diferentes áreas de conhecimento que reforçaram essas conexões, e aos editores da Revista que acolheram essa proposta, bem como tornaram todo esse trabalho possível.

Boa leitura!

Samira Adel Osman – Professora Doutora (UNIFESP)

Jorge Lúzio Matos Silva – Professor Doutor (UNIFESP)


OSMAN, Samira Adel; SILVA, Jorge Lúzio Matos. Apresentação. Faces da História, Assis, v.6, n.2, jul / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

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