A escrita da história de um lado a outro do Atlântico | Maria Eurydice de Barros Ribeiro

“O mar uniu, mais do que o que separou”. Os versos de Fernando Pessoa inspiram a reflexão sobre unidade e diversidade entre os universos singulares aproximados pelo processo de expansão portuguesa e fornecem sentido à organização do livro A escrita da história de um lado a outro do Atlântico, projeto encabeçado por Maria Eurydice de Barros Ribeiro e Susani Silveira Lemos França.

Movidas pelo propósito de “resgatar e mensurar as faces de um processo de identificação”, as autoras aludem aos diálogos entre formações históricas situadas dos dois lados do Atlântico e expõem, no texto da introdução, o lamento frente ao fenômeno contemporâneo de abandono de categorias que, em tempos pretéritos, teriam servido ao reconhecimento dos povos e indivíduos e que hoje se vêem abandonadas em favor da difusão dos conceitos de diversidade e do desenvolvimento de ações afirmativas de identidades.

Efetivamente, votadas à resistência, conservação ou transformação, as ações afirmativas de identidades revelam-se, em nosso tempo, não somente legítimas como eficazes no processo de autoconhecimento, de organização e luta dos povos, e estão na base de princípios e de direitos conquistados. Os princípios afirmativos de identidades foram propulsores dos movimentos de descolonização desde a segunda metade do século XX e contribuem, até os nossos dias, para a ruptura com elaborações tradicionais relativas a origem e pertencimento. Em contraponto a esse movimento de dispersão, situam-se os múltiplos esforços, em campos da produção acadêmica como da arte, de identificação e reafirmação de elementos comuns aos povos e sociedades aproximados pelos fenômenos de expansão e dominação portuguesa. Mais do que acentuar as diferenças, esses esforços se orientam pela perspectiva de valoração positiva dos “pactos que foram se firmando ao longo do tempo” e são movidos pela perspectiva de identificação de um fundo patrimonial comum a esses povos e sociedades. Mas o destaque é dado às “raízes” greco-romana, judaico-cristã e árabe como “fontes de conhecimento que ajudaram a definir o mundo português”. É, pois, sobretudo no campo da escrita que essas tradições transplantadas da Europa para o “outro lado do Atlântico” no tempo de dominação colonial devem ser procuradas.

Nos territórios conquistados, o registro escrito, fundamental ao funcionamento e à ação das instituições, serviu de vetor de transmissão de valores, de difusão de práticas e, ao mesmo tempo, de registro sobre as realidades encontradas nas novas terras. Foram fundamentais, portanto, como destacam as organizadoras do livro, para o “autoreconhecimento e conhecimento do outro em um período de afirmação do reino de Portugal para além de suas fronteiras”.

O livro se organiza em duas partes: na primeira, os autores transitam por uma ampla variedade de fontes documentais, a partir das quais buscam refletir sobre distintos objetos e contextos concernentes à História de Portugal e do Brasil; a segunda parte tem como propósito fazer uma reflexão sobre o trabalho dos historiadores, com foco sobre os avanços e os limites da produção escrita portuguesa ou sobre aspectos da História de Portugal.

O texto de abertura da primeira parte, de autoria de Manuela Mendonça (Universidade de Lisboa), é dedicado ao processo de construção da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, desde o projeto inicial, levado a cabo por António Caetano de Sousa (1674-1759), fundador da Academia Real. Mendonça situa a origem da publicação na conjuntura política e cultural pós-restauração, sob o reinado de Pedro II de Portugal. De acordo com a autora, concebido no âmbito da Academia Real e entrelaçado com o projeto correlato de uma história eclesiástica do reino, a História Genealógica foi publicada, entre 1735 e 1748, em 12 tomos, e compreendeu também seis volumes de documentos, inseridos a partir de 1739. A inserção das cópias dos documentos obedecia à intenção de chancelar a obra com a existência de provas e servia, segundo os seus propositores, como garantia de verdade, objetividade e neutralidade no tratamento das matérias.

No segundo capítulo do livro, Maria Helena da Cruz Coelho (Universidade de Coimbra) propõe a abordagem da corte portuguesa enquanto “instituição política de composição tripartide representativa dos corpos da sociedade e com perfil colaborativo em relação ao monarca”. A origem das cortes portuguesas, de acordo com a autora, pode ser situada no processo de implantação das Cúrias Extraordinárias, no início do século XIII. Convocadas pelos monarcas em situação de crise política, as cúrias contemplavam, além da tradicional representação do clero e da nobreza, a presença dos representantes dos concelhos. Além de discutir os processos que resultaram na constituição das cortes, Mendonça traz importantes reflexões sobre as transformações que as afetaram até o final da Idade Média, sobre a composição social e os assuntos tratados em diferentes conjunturas.

A matéria de que trata Dulce O. Amarante dos Santos (Universidade Federal de Goiás), no capítulo seguinte, é constituída pelos prólogos que acompanham a escrita científica ibérica. A autora delimita o campo de investigação: trata-se da produção textual votada ao conhecimento sobre o mundo da natureza como criação divina. Escritos em latim, esses textos, em especial aqueles dedicados a temas compreendidos como próprios à medicina, eram quase sempre orientados a partir de critérios classificatórios, que distinguem e estabelecem correlações entre elementos variados que constituem o universo. Associado a esses textos, o prólogo é tomado como um gênero literário, cuja singularidade reside nas informações que abriga sobre o conteúdo por ele introduzido, sobre a autoria e, também, sobre o público que, no tempo inicial da produção, integra o horizonte de expectativa dos autores. Amarante dos Santos põe em destaque os métodos e os propósitos de composição dos prólogos e procura demonstrar como eles são claramente marcados por estratégias discursivas, orientadas pelos princípios da retórica, que visavam captar a atenção e modificar a percepção dos leitores sobre os conteúdos.

Francisco José Silva Gomes (Universidade Federal do Rio de Janeiro), no texto seguinte, dedica-se à análise dos Manuais de Confissão elaborados durante os séculos tridentinos. Esses manuais deveriam orientar os confessores encarregados de conduzir os fiéis na contrição e no exame de consciência, atos que deveriam anteceder à confissão. Funcionam como textos de mediação entre a doutrina e a prática. De acordo com o autor, a uniformidade desses manuais reflete o projeto unanimista, levado a cabo pela Igreja e pelo Estado, que orienta a reestruturação da Cristandade nos séculos XVI a XVIII. O seu surgimento deve ser pensado a partir da reestruturação dos conceitos de cristandade e da identidade católica desde o advento da reforma protestante, no século XVI, e o seu desenvolvimento ulterior deve ser situado no processo de secularização que acompanha a difusão do pensamento iluminista e as revoluções burguesas. Gomes põe em destaque as relações e a busca de equilíbrio entre a Igreja e os Estados, de perfil absolutista, que permaneceram ligados ao catolicismo romano. Enquanto a Igreja almejava consolidar a sua imagem como uma ordem independente, os Estados, que dela retiravam os fundamentos ideológicos do poder régio, não só pleiteavam autonomia frente à Sé Apostólica como o direito de intervenção nas estruturas eclesiásticas. É esse o pano de fundo sobre o qual, de acordo com Gomes, se consolida o regime penitencial baseado na confissão auricular. No novo modelo de espiritualidade cristã, cuja origem remonta às reformas dos séculos XII e XIII, a confissão auricular reforça os princípios de individualidade e subjetividade na experiência do arrependimento. Por outro lado, como destaca o autor, as instituições tridentinas que sustentam a introdução da confissão auricular reforçam o papel do sacerdote como mediador com o plano do sagrado e dos sacramentos como “canais de transmissão da graça divina”.

No texto intitulado “Medicina da mulher em Portugal”, Maria de Fátima Reis (Universidade de Lisboa) reflete sobre a atuação de parteiras no campo mais amplo do que se entende como medicina da mulher. Além de um rápido balanço historiográfico sobre o tema, o texto traz o resultado de investigações sobre o regimento das parteiras que, no século XVI, ordenava o trabalho dessas profissionais e definiam os parâmetros para a sua atuação sob a chancela de outros profissionais e subordinada a determinações de natureza religiosa.

Já o texto de Cintia Maria Falkenbach Rosa (Universidade de Brasília) está centrado na análise iconográfica e iconológica de uma cena de natividade – em especial dos elementos concernentes à Adoração dos Magos – que ilustra o Livro de Horas de Dom Manuel I, datado de meados do século XVI. A autora aponta para a singularidade das imagens que ilustram o documento e as associa ao claro propósito de edificação da obra do Rei Venturoso em um contexto de consolidação e expansão do Estado Português.

A primeira parte do livro se conclui com o texto de uma das organizadoras, Maria Eurydice de Barros Ribeiro (Universidade de Brasília). Intitulado “Operários do evangelho”, o capítulo trata da difusão da espiritualidade franciscana no Brasil, tendo por foco conjunto arquitetônico dedicado a Santo Antônio, na cidade de Cairu, no recôncavo baiano. O texto resulta de um exaustivo trabalho de pesquisa documental e bibliográfica sobre história, arquitetura e imagética cristã no período colonial.

O capítulo que abre a segunda parte do livro, dedicada à escrita historiográfica portuguesa e/ou sobre Portugal, é da autoria de Margarida Garcez Ventura (Universidade de Lisboa) e tem por título “O elogio do contraditório”. Em revisita à obra de Zurara, em particular às narrativas sobre a tomada de Ceuta, a autora ocupa-se de analisar os escritos do cronista no intuito de evidenciar a presença do contraditório na discussão dos temas sobre os quais se impunham deliberações por parte da realeza portuguesa no século XV. Nas justificações e objeções ao projeto de conquista de Ceuta e permanência da corte portuguesa no local, a autora identifica o uso retórico do contraditório como elemento constitutivo da memória e da consciência nacional.

A cronística de Zurara também serve de fonte às pesquisas de Susani Silveira Lemos França (Universidade Estadual Paulista), cujo texto se propõe a debater a presença de elementos de abordagem moralizante no tratamento de temas associados à expansão portuguesa. Para tanto, a autora analisa o processo de seleção, atualização e ressiginificação de virtudes exaltadas na narrativa consoante as circunstâncias históricas.

O texto seguinte, de José Rivair Macedo (UFRGS), explora as imagens e os discursos sobre a Costa da Guiné, enunciados nas narrativas portuguesas produzidas entre os séculos XV e XVII. O conjunto documental que orienta a abordagem do tema compreende narrativas memorialistas, roteiros de viagens, literatura de missionários, além de um subconjunto que o autor nomeia como narrativas locais, escritos marcados pela vivência em terras Africanas. As reflexões sobre a natureza e os indicativos de localização das fontes fazem do texto de Macedo um guia fundamental aos estudos sobre representações do continente africano no contexto da expansão portuguesa.

A natureza das fontes históricas é também matéria de discussão no texto de Armando Martins (Universidade de Lisboa). O autor parte da reflexão sobre as relações entre memória e história escrita para discutir duas acepções do termo hagiografia: por um lado, o termo é utilizado para definir a escrita medieval sobre as vidas de santos, compreendendo várias formas, como as vitae propriamente ditas, os relatos de milagres, as narrativas associadas às relíquias etc; por outro lado, a expressão serve ara nomear os estudos sobre textos hagiográficos. As hagiografias medievais, o autor as analisa no panorama das grandes transformações da espiritualidade e do conceito de santidade que ocorreram na Europa ocidental a partir do século XII. O texto se conclui com a apresentação de um quadro analítico em que, a partir de elementos estruturais próprios ao texto histórico, busca-se inferir sobre a natureza do texto hagiográfico.

Já o texto intitulado “Fernão Lopes, o rei D. João I e a historiografia lusobrasileira”, escrito por Adriana Zierer (Universidade Estadual do Maranhão), resulta de importante levantamento sobre pesquisa documental e produção bibliográfica acerca de Fernão Lopes e D. João I. A autora destaca temas, formas de abordagem e fontes relativas à Dinastia de Avis e ao seu mais importante cronista e põe em relevo os historiadores e grupos de pesquisa que, em Portugal e no Brasil, têm a elas se dedicado.

É também na perspectiva da revisão bibliográfica e de reflexão sobre natureza das fontes documentais que Douglas Mota Xavier de Lima escreve as suas notas bibliográficas sobre a história da diplomacia portuguesa do século XV

O livro se conclui com o texto de João Marinho dos Santos (Universidade de Coimbra), que tem como propósito debater a abordagem das cartas e da “relações” dos jesuítas como gênero narrativo historiográfico. O autor principia por delimitar o universo de temas que os jesuítas, em missão missionária na colônia portuguesa da América, instigados pela direção da ordem inaciana, contemplaram em seus escritos sob a designação genérica de “cousas do Brasil”. Aos temas selecionados, Marinho dos Santos procura relacionar as circunstâncias da produção e os potenciais destinatários das cartas e das relações para concluir que “os primeiros jesuítas que escreveram do e sobre o Brasil foram mais memorialistas do que historiadores”, mas que os seus escritos estão em perfeita sintonia com o que se compreende como historiografia dos séculos XVI e XII.

A riqueza do trabalho que ora se apresenta ao público resulta da diversidade de objetos e de fontes abarcados pelos textos que o compõem. Além disso, deve-se destacar o número expressivo de instituições de Portugal e do Brasil que, por meio dos pesquisadores-autores, estão a indicar a renovação permanente da produção historiográfica sobre os contextos civilizacionais que têm o Oceano Atlântico como fronteira, como espaço de interseção, no tempo alargado que remonta à consolidação do Estado Português e se estende por todo o período de dominação colonial.

Rita de Cássia Mendes Pereira – Doutora em História (USP). Pós-Doutorado na Universidade Federal da Bahia (2015-2016). Professora Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Docente do Mestrado em Letras: Cultura, Educação e Linguagens. E-mail: [email protected]


RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros; FRANÇA, Susani Silveira Lemos (Org.). A escrita da história de um lado a outro do Atlântico. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2018. Resenha de: PEREIRA, Rita de Cássia Mendes Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.18, n.2, p. 140- 144, 2018. Acessar publicação original [DR]