A escrita da história de um lado a outro do Atlântico | Maria Eurydice de Barros Ribeiro

“O mar uniu, mais do que o que separou”. Os versos de Fernando Pessoa inspiram a reflexão sobre unidade e diversidade entre os universos singulares aproximados pelo processo de expansão portuguesa e fornecem sentido à organização do livro A escrita da história de um lado a outro do Atlântico, projeto encabeçado por Maria Eurydice de Barros Ribeiro e Susani Silveira Lemos França.

Movidas pelo propósito de “resgatar e mensurar as faces de um processo de identificação”, as autoras aludem aos diálogos entre formações históricas situadas dos dois lados do Atlântico e expõem, no texto da introdução, o lamento frente ao fenômeno contemporâneo de abandono de categorias que, em tempos pretéritos, teriam servido ao reconhecimento dos povos e indivíduos e que hoje se vêem abandonadas em favor da difusão dos conceitos de diversidade e do desenvolvimento de ações afirmativas de identidades.

Efetivamente, votadas à resistência, conservação ou transformação, as ações afirmativas de identidades revelam-se, em nosso tempo, não somente legítimas como eficazes no processo de autoconhecimento, de organização e luta dos povos, e estão na base de princípios e de direitos conquistados. Os princípios afirmativos de identidades foram propulsores dos movimentos de descolonização desde a segunda metade do século XX e contribuem, até os nossos dias, para a ruptura com elaborações tradicionais relativas a origem e pertencimento. Em contraponto a esse movimento de dispersão, situam-se os múltiplos esforços, em campos da produção acadêmica como da arte, de identificação e reafirmação de elementos comuns aos povos e sociedades aproximados pelos fenômenos de expansão e dominação portuguesa. Mais do que acentuar as diferenças, esses esforços se orientam pela perspectiva de valoração positiva dos “pactos que foram se firmando ao longo do tempo” e são movidos pela perspectiva de identificação de um fundo patrimonial comum a esses povos e sociedades. Mas o destaque é dado às “raízes” greco-romana, judaico-cristã e árabe como “fontes de conhecimento que ajudaram a definir o mundo português”. É, pois, sobretudo no campo da escrita que essas tradições transplantadas da Europa para o “outro lado do Atlântico” no tempo de dominação colonial devem ser procuradas.

Nos territórios conquistados, o registro escrito, fundamental ao funcionamento e à ação das instituições, serviu de vetor de transmissão de valores, de difusão de práticas e, ao mesmo tempo, de registro sobre as realidades encontradas nas novas terras. Foram fundamentais, portanto, como destacam as organizadoras do livro, para o “autoreconhecimento e conhecimento do outro em um período de afirmação do reino de Portugal para além de suas fronteiras”.

O livro se organiza em duas partes: na primeira, os autores transitam por uma ampla variedade de fontes documentais, a partir das quais buscam refletir sobre distintos objetos e contextos concernentes à História de Portugal e do Brasil; a segunda parte tem como propósito fazer uma reflexão sobre o trabalho dos historiadores, com foco sobre os avanços e os limites da produção escrita portuguesa ou sobre aspectos da História de Portugal.

O texto de abertura da primeira parte, de autoria de Manuela Mendonça (Universidade de Lisboa), é dedicado ao processo de construção da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, desde o projeto inicial, levado a cabo por António Caetano de Sousa (1674-1759), fundador da Academia Real. Mendonça situa a origem da publicação na conjuntura política e cultural pós-restauração, sob o reinado de Pedro II de Portugal. De acordo com a autora, concebido no âmbito da Academia Real e entrelaçado com o projeto correlato de uma história eclesiástica do reino, a História Genealógica foi publicada, entre 1735 e 1748, em 12 tomos, e compreendeu também seis volumes de documentos, inseridos a partir de 1739. A inserção das cópias dos documentos obedecia à intenção de chancelar a obra com a existência de provas e servia, segundo os seus propositores, como garantia de verdade, objetividade e neutralidade no tratamento das matérias.

No segundo capítulo do livro, Maria Helena da Cruz Coelho (Universidade de Coimbra) propõe a abordagem da corte portuguesa enquanto “instituição política de composição tripartide representativa dos corpos da sociedade e com perfil colaborativo em relação ao monarca”. A origem das cortes portuguesas, de acordo com a autora, pode ser situada no processo de implantação das Cúrias Extraordinárias, no início do século XIII. Convocadas pelos monarcas em situação de crise política, as cúrias contemplavam, além da tradicional representação do clero e da nobreza, a presença dos representantes dos concelhos. Além de discutir os processos que resultaram na constituição das cortes, Mendonça traz importantes reflexões sobre as transformações que as afetaram até o final da Idade Média, sobre a composição social e os assuntos tratados em diferentes conjunturas.

A matéria de que trata Dulce O. Amarante dos Santos (Universidade Federal de Goiás), no capítulo seguinte, é constituída pelos prólogos que acompanham a escrita científica ibérica. A autora delimita o campo de investigação: trata-se da produção textual votada ao conhecimento sobre o mundo da natureza como criação divina. Escritos em latim, esses textos, em especial aqueles dedicados a temas compreendidos como próprios à medicina, eram quase sempre orientados a partir de critérios classificatórios, que distinguem e estabelecem correlações entre elementos variados que constituem o universo. Associado a esses textos, o prólogo é tomado como um gênero literário, cuja singularidade reside nas informações que abriga sobre o conteúdo por ele introduzido, sobre a autoria e, também, sobre o público que, no tempo inicial da produção, integra o horizonte de expectativa dos autores. Amarante dos Santos põe em destaque os métodos e os propósitos de composição dos prólogos e procura demonstrar como eles são claramente marcados por estratégias discursivas, orientadas pelos princípios da retórica, que visavam captar a atenção e modificar a percepção dos leitores sobre os conteúdos.

Francisco José Silva Gomes (Universidade Federal do Rio de Janeiro), no texto seguinte, dedica-se à análise dos Manuais de Confissão elaborados durante os séculos tridentinos. Esses manuais deveriam orientar os confessores encarregados de conduzir os fiéis na contrição e no exame de consciência, atos que deveriam anteceder à confissão. Funcionam como textos de mediação entre a doutrina e a prática. De acordo com o autor, a uniformidade desses manuais reflete o projeto unanimista, levado a cabo pela Igreja e pelo Estado, que orienta a reestruturação da Cristandade nos séculos XVI a XVIII. O seu surgimento deve ser pensado a partir da reestruturação dos conceitos de cristandade e da identidade católica desde o advento da reforma protestante, no século XVI, e o seu desenvolvimento ulterior deve ser situado no processo de secularização que acompanha a difusão do pensamento iluminista e as revoluções burguesas. Gomes põe em destaque as relações e a busca de equilíbrio entre a Igreja e os Estados, de perfil absolutista, que permaneceram ligados ao catolicismo romano. Enquanto a Igreja almejava consolidar a sua imagem como uma ordem independente, os Estados, que dela retiravam os fundamentos ideológicos do poder régio, não só pleiteavam autonomia frente à Sé Apostólica como o direito de intervenção nas estruturas eclesiásticas. É esse o pano de fundo sobre o qual, de acordo com Gomes, se consolida o regime penitencial baseado na confissão auricular. No novo modelo de espiritualidade cristã, cuja origem remonta às reformas dos séculos XII e XIII, a confissão auricular reforça os princípios de individualidade e subjetividade na experiência do arrependimento. Por outro lado, como destaca o autor, as instituições tridentinas que sustentam a introdução da confissão auricular reforçam o papel do sacerdote como mediador com o plano do sagrado e dos sacramentos como “canais de transmissão da graça divina”.

No texto intitulado “Medicina da mulher em Portugal”, Maria de Fátima Reis (Universidade de Lisboa) reflete sobre a atuação de parteiras no campo mais amplo do que se entende como medicina da mulher. Além de um rápido balanço historiográfico sobre o tema, o texto traz o resultado de investigações sobre o regimento das parteiras que, no século XVI, ordenava o trabalho dessas profissionais e definiam os parâmetros para a sua atuação sob a chancela de outros profissionais e subordinada a determinações de natureza religiosa.

Já o texto de Cintia Maria Falkenbach Rosa (Universidade de Brasília) está centrado na análise iconográfica e iconológica de uma cena de natividade – em especial dos elementos concernentes à Adoração dos Magos – que ilustra o Livro de Horas de Dom Manuel I, datado de meados do século XVI. A autora aponta para a singularidade das imagens que ilustram o documento e as associa ao claro propósito de edificação da obra do Rei Venturoso em um contexto de consolidação e expansão do Estado Português.

A primeira parte do livro se conclui com o texto de uma das organizadoras, Maria Eurydice de Barros Ribeiro (Universidade de Brasília). Intitulado “Operários do evangelho”, o capítulo trata da difusão da espiritualidade franciscana no Brasil, tendo por foco conjunto arquitetônico dedicado a Santo Antônio, na cidade de Cairu, no recôncavo baiano. O texto resulta de um exaustivo trabalho de pesquisa documental e bibliográfica sobre história, arquitetura e imagética cristã no período colonial.

O capítulo que abre a segunda parte do livro, dedicada à escrita historiográfica portuguesa e/ou sobre Portugal, é da autoria de Margarida Garcez Ventura (Universidade de Lisboa) e tem por título “O elogio do contraditório”. Em revisita à obra de Zurara, em particular às narrativas sobre a tomada de Ceuta, a autora ocupa-se de analisar os escritos do cronista no intuito de evidenciar a presença do contraditório na discussão dos temas sobre os quais se impunham deliberações por parte da realeza portuguesa no século XV. Nas justificações e objeções ao projeto de conquista de Ceuta e permanência da corte portuguesa no local, a autora identifica o uso retórico do contraditório como elemento constitutivo da memória e da consciência nacional.

A cronística de Zurara também serve de fonte às pesquisas de Susani Silveira Lemos França (Universidade Estadual Paulista), cujo texto se propõe a debater a presença de elementos de abordagem moralizante no tratamento de temas associados à expansão portuguesa. Para tanto, a autora analisa o processo de seleção, atualização e ressiginificação de virtudes exaltadas na narrativa consoante as circunstâncias históricas.

O texto seguinte, de José Rivair Macedo (UFRGS), explora as imagens e os discursos sobre a Costa da Guiné, enunciados nas narrativas portuguesas produzidas entre os séculos XV e XVII. O conjunto documental que orienta a abordagem do tema compreende narrativas memorialistas, roteiros de viagens, literatura de missionários, além de um subconjunto que o autor nomeia como narrativas locais, escritos marcados pela vivência em terras Africanas. As reflexões sobre a natureza e os indicativos de localização das fontes fazem do texto de Macedo um guia fundamental aos estudos sobre representações do continente africano no contexto da expansão portuguesa.

A natureza das fontes históricas é também matéria de discussão no texto de Armando Martins (Universidade de Lisboa). O autor parte da reflexão sobre as relações entre memória e história escrita para discutir duas acepções do termo hagiografia: por um lado, o termo é utilizado para definir a escrita medieval sobre as vidas de santos, compreendendo várias formas, como as vitae propriamente ditas, os relatos de milagres, as narrativas associadas às relíquias etc; por outro lado, a expressão serve ara nomear os estudos sobre textos hagiográficos. As hagiografias medievais, o autor as analisa no panorama das grandes transformações da espiritualidade e do conceito de santidade que ocorreram na Europa ocidental a partir do século XII. O texto se conclui com a apresentação de um quadro analítico em que, a partir de elementos estruturais próprios ao texto histórico, busca-se inferir sobre a natureza do texto hagiográfico.

Já o texto intitulado “Fernão Lopes, o rei D. João I e a historiografia lusobrasileira”, escrito por Adriana Zierer (Universidade Estadual do Maranhão), resulta de importante levantamento sobre pesquisa documental e produção bibliográfica acerca de Fernão Lopes e D. João I. A autora destaca temas, formas de abordagem e fontes relativas à Dinastia de Avis e ao seu mais importante cronista e põe em relevo os historiadores e grupos de pesquisa que, em Portugal e no Brasil, têm a elas se dedicado.

É também na perspectiva da revisão bibliográfica e de reflexão sobre natureza das fontes documentais que Douglas Mota Xavier de Lima escreve as suas notas bibliográficas sobre a história da diplomacia portuguesa do século XV

O livro se conclui com o texto de João Marinho dos Santos (Universidade de Coimbra), que tem como propósito debater a abordagem das cartas e da “relações” dos jesuítas como gênero narrativo historiográfico. O autor principia por delimitar o universo de temas que os jesuítas, em missão missionária na colônia portuguesa da América, instigados pela direção da ordem inaciana, contemplaram em seus escritos sob a designação genérica de “cousas do Brasil”. Aos temas selecionados, Marinho dos Santos procura relacionar as circunstâncias da produção e os potenciais destinatários das cartas e das relações para concluir que “os primeiros jesuítas que escreveram do e sobre o Brasil foram mais memorialistas do que historiadores”, mas que os seus escritos estão em perfeita sintonia com o que se compreende como historiografia dos séculos XVI e XII.

A riqueza do trabalho que ora se apresenta ao público resulta da diversidade de objetos e de fontes abarcados pelos textos que o compõem. Além disso, deve-se destacar o número expressivo de instituições de Portugal e do Brasil que, por meio dos pesquisadores-autores, estão a indicar a renovação permanente da produção historiográfica sobre os contextos civilizacionais que têm o Oceano Atlântico como fronteira, como espaço de interseção, no tempo alargado que remonta à consolidação do Estado Português e se estende por todo o período de dominação colonial.

Rita de Cássia Mendes Pereira – Doutora em História (USP). Pós-Doutorado na Universidade Federal da Bahia (2015-2016). Professora Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Docente do Mestrado em Letras: Cultura, Educação e Linguagens. E-mail: [email protected]


RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros; FRANÇA, Susani Silveira Lemos (Org.). A escrita da história de um lado a outro do Atlântico. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2018. Resenha de: PEREIRA, Rita de Cássia Mendes Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.18, n.2, p. 140- 144, 2018. Acessar publicação original [DR]

A Grande Tentação. Os Planos de Franco para Invadir Portugal – AGUDO (LH)

AGUDO, Manuel RosA Grande Tentação. Os Planos de Franco para Invadir Portugal. Alfragide: Casa das Letras, 2009. Resenha de: MARCOS, Daniel. Ler História, n.58, p. 228-231, 2010.

1 Um dos livros que mais fez vibrar os escaparates das livrarias portuguesas durante o ano de 2009 foi, sem dúvida, o mais recente livro do historiador espanhol Manuel Ros Agudo, intitulado A Grande Tentação. Os Planos de Franco para invadir Portugal. Talvez por uma escolha da linha editorial, esta obra foi dada à estampa com um subtítulo que pode induzir o leitor a pensar tratar-se de um livro unicamente sobre um conjunto de planos imperialistas levados a cabo por Francisco Franco, líder do regime autoritário espanhol a partir de 1936, para tomar Portugal. Tal não é verdade. Como mostra a sub-capa da edição portuguesa, A Grande Tentação aborda o tema mais geral de Franco, o Império Colonial e o projecto de intervenção espanhola na Segunda Guerra Mundial, em que a invasão do território continental português era, somente, um pequeno passo estratégico para alcançar objectivos mais importantes para o regime espanhol: Gibraltar e a expansão territorial de Espanha no Norte de África (p. 224-225). Este é o primeiro e, praticamente único, reparo que se pode fazer à edição desta obra, já que a tradução da mesma parece de grande qualidade.

2 Mas mais importante do que a questão do título do livro trata-se do tema da obra em si. Como o próprio autor afirma logo no prólogo, o seu objectivo central é contribuir para o desenvolvimento de uma nova historiografia espanhola, pondo-se à margem das tradicionais visões polémicas sobre o regime franquista que, na opinião do historiador, procuram usar a História como «arma política para esmagar o opositor» (p. 11). Ros Agudo nem sempre consegue este objectivo, já que ao longo do texto usa recorrentemente expressões qualificativas que acabam por reflectir uma qualquer tomada de posição sobre o assunto. Por exemplo, ao qualificar de «errónea» a crença do Caudilho de que a guerra seria curta e vitoriosa para o Eixo (p. 110), o autor não está a ter em conta que, na realidade, poucos eram os líderes políticos daquela época que não pensavam o mesmo. Mais adiante, ao classificar a propaganda colonialista da Junta de Defesa Nacional espanhola como «disparates linguísticos»
(p. 117), Ros Agudo não está a contribuir para a explicação do que foi a retórica imperialista europeia do período de entre as guerras e que só mudaria com a entrada em cena dos Estados Unidos na política mundial.

3 Quem estiver a seguir esta recensão pode estar inclinado a duvidar da qualidade deste livro. Desta forma, há que fazer um alerta importante. A Grande Tentação é, sem dúvida um importantíssimo trabalho para quem se interessa pela história colonial em geral e pela história espanhola em particular. Por duas grandes razões: em primeiro lugar, porque se debruça sobre um dos menos trabalhados impérios coloniais europeus do século XIX e XX, isto é, o império espanhol em África. Na verdade, a historiografia internacional pouca relevância dá ao esforço colonial desenvolvido pelos regimes espanhóis desde os finais do século XIX. Em especial, se nos centrarmos nas questões da descolonização, um tema tão em voga na historiografia actual, são praticamente inexistentes as análises feitas ao colonialismo espanhol. Este, apesar de breve e tardio, não deixou de marcar a história do século XX e com consequências que ainda hoje se fazem repercutir na cena internacional, como por exemplo na questão do Sara Ocidental. Em segundo lugar, esta obra de Manuel Ros Agudo aborda de forma relevante a história do franquismo e todas as tentativas expansionistas que este regime procurou delinear no início da II Guerra Mundial. Desta forma, torna-se num livro fundamental para compreendermos o regime autoritário espanhol à luz da história dos regimes totalitários e autoritários de direita que surgiram na Europa após a I Guerra Mundial.

4 Ao longo do texto, o autor leva-nos a compreender de que forma as aspirações territoriais espanholas modelaram a política externa de Espanha durante o conflito de 1939 a 1945. Torna-se claro que o ditador espanhol procurou, por via diplomática – sem descurar o recurso ao uso da força – aumentar o espólio imperial da Espanha no Norte de África, incorporando o Marrocos francês no protectorado espanhol, expandindo a sua jurisdição sobre a região em torno da cidade de Orão, na Argélia e aumentando a dimensão da Guiné espanhola. Estas exigências territoriais procuravam rectificar, de acordo com o general Franco e com a cúpula africanista do seu regime, o erro histórico que tinha sido a constante usurpação feita pela França (com o apoio da potência marítima, isto é, da Inglaterra) das aspirações territoriais de Espanha no Norte de África. Como demonstra o autor na primeira parte de A Grande Tentação, desde a Conferência de Algeciras em 1906 até ao estabelecimento do Marrocos espanhol no Tratado de Fez em 1912, os africanistas espanhóis sentiram estes acordos diplomáticos como um vexame para os interesses de Espanha. A acrescentar a este sentimento, em 1923 deu-se a criação do enclave internacional em Tânger, dentro do protectorado espanhol de Marrocos, numa acção que beneficiava mais os interesses do Reino Unido e da França e que demonstrava que as principais potências coloniais não queriam Tânger sob controlo da Espanha. De resto, desde 1921, a monarquia espanhola demonstrava dificuldades em controlar as rebeliões nacionalistas – que custaram a vida a cerca de 8 mil espanhóis – lideradas por Abd-el-Krim. O prestígio de Espanha como potência protectora decaía e contribuiu para que Primo da Rivera não tenha conseguido ganhar a sua autoridade sobre aquela área.

5 Assim, apesar da governação internacional, a França manteve uma hegemonia sobre a cidade portuária de Tânger. Esta situação fazia com que os apoiantes do império, em Espanha, nomeadamente algumas facções do exército, vissem o Protectorado internacional como «um espaço estranho, como uma espinha sob administração internacional encravada no meio do Protectorado espanhol». Era um enclave que «não só comprometia a homogeneidade de conjunto da zona espanhola, como podia colocar em perigo a sua própria segurança e defesa». Era uma verdadeira «humilhação» das potências internacionais sob a Espanha e que contribuiu decisivamente para atear os desejos africanistas da elite política em torno de Franco (p. 37). Dividida entre irredentistas – os que desejavam, apenas, a rectificação das fronteiras espanholas em Marrocos, argumentando o direito espanhol à colonização – e imperialistas – com o início da II Guerra e a derrota da França, defendiam a anexação do Marrocos francês, o departamento de Orão na Argélia e uma ampliação substancial da Guiné espanhola – ambas as opções se traduziram numa acção diplomática seguida pelo governo de Franco: conversações diplomáticas com Londres e Vichy, a propósito das exigências mínimas ou irredentistas, e negociação com Berlim das exigências máximas ou imperialistas. Como demonstra Manuel Ros Agudo, se a primeira exigia somente que Franco permanecesse neutral, a segunda obrigava-o a entrar no conflito, do lado das forças do Eixo (182-183).

6 Do ponto de vista militar, as Forças Armadas espanholas não desdenharam a segunda solução. Com Adolf Hitler a desejar a entrada de Espanha no conflito para, em conjunto com a Alemanha, invadirem Gibraltar e controlarem a passagem do Atlântico para o Mediterrâneo, o alto comando militar espanhol desenhou pormenorizadamente, com a autorização do Caudilho, um conjunto de operações militares de grande envergadura contra o rochedo. Fica, assim, demonstrado que Franco estava verdadeiramente decidido a entrar na guerra como terceiro parceiro do Eixo, sendo que apenas a falta de garantias de Hitler em relação à cedência à Espanha dos territórios franceses do Norte de África mantiveram o governo espanhol fora da II Guerra Mundial.

7 Por último, não podemos deixar de fazer uma referência mais detalhada sobre as referências a Portugal ao longo do livro. Ros Agudo demonstra que Portugal pouco interessava para os planos de Franco. A invasão fazia-se unicamente para evitar que Portugal fosse usado como uma cabeça-de-ponte da Inglaterra para invadir a Península, após o ataque das forças do Eixo a Gibraltar. Os próprios planos militares espanhóis afirmavam isso: «A conquista de Portugal não deve ser considerada uma acção isolada, mas [por estar] intimamente ligada com a Inglaterra, representa um aspecto da luta contra a última nação» (p. 225). Desta forma, pouco importava ao Caudilho o Pacto de Amizade e Não Agressão luso-espanhol de 17 de Março de 1939 e o protocolo adicional de 30 de Julho de 1940. Na nossa opinião, a análise da questão portuguesa necessitava de mais profundidade. Independentemente do pouco interesse que Franco dava a Portugal, a utilização de fontes e bibliografia portuguesa contribuía para o enriquecimento da obra e para uma melhor contextualização da posição de Espanha no sistema internacional. Nomeadamente no período em análise na obra de Ros Agudo, ao longo dos anos 30 e 40 do século XX, Portugal desenvolveu uma intensa actividade diplomática, por vezes pouco visível, com vista a isolar os sectores intervencionistas e germanófilos da Falange e do Exército, que mal conseguiam disfarçar os desígnios anexionistas relativamente a Portugal. Na delicada conjuntura do Verão de 1940, a assinatura do Protocolo Adicional ao Tratado de Amizade e Não Agressão em 29 de Julho de 1949, não pode ser, portanto, completamente desvalorizado. Em parte, a par da recusa de Hitler em garantir o aumento do território colonial no Norte de África, a acção do governo português muito contribuiu para que Franco pusesse de lado os seus desejos de intervenção e optasse pela neutralidade na II Guerra Mundial.

Daniel Marcos – CEHC-ISCTE-IUL

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Os Açores na História de Portugal – Séculos XIX e XX | Fátima Sequeira Dias

1 A obra em apreço é fundamental para compreender a Economia Açoriana nos séculos XIX e XX. As suas características são dissecadas, em especial, quanto à ilha de São Miguel, principal motor do desenvolvimento económico do arquipélago.

2 A autora, professora catedrática da Universidade dos Açores, reuniu neste volume mais de uma dezena de estudos que evidenciam o seu perfeito domínio da pesquisa arquivística de fontes primárias e constituem peças essenciais à edificação da História Económica dos Açores.

3 A «Nota Liminar», com que abre o livro, constitui uma magnífica síntese da unidade que envolve os artigos, ocupados com a caracterização dos ciclos do modelo agro-exportador, dos serviços de navegação que se lhes associavam, de infra-estruturas como o porto artificial de Ponta Delgada e dos agentes que nalguma fase do processo exportador se destacaram. Dá-nos, ainda, o retrato de dois homens salientes na sociedade micaelense: um, oriundo de Aveiro, que emigrou novo para S. Miguel e veio a distinguir-se como comerciante interessado por actividades pouco desenvolvidas na ilha: banca, seguros, indústria. O outro, um grande historiador micaelense, prendeu a atenção da autora pela dimensão e variedade do património.

4 Porém, a caracterização dos ciclos exportadores da laranja e do ananás, esteios centrais da vida económica açoriana nos dois séculos em análise, é feita com observância da escassa repercussão que tiveram nas populações: a pobreza não foi erradicada.

5 Esta é uma tónica essencial na obra de Fátima Sequeira Dias, desde a sua tese de doutoramento, que ganhou o prémio internacional Recent Doctoral Research in Economic History atribuído à melhor tese apresentada em Universidades de todo o mundo ocidental entre 1993 e 1997: a preocupação com o bem-estar da população açoriana, expressa, tanto no seu labor de cientista como na militante intervenção cívica a pugnar pelo progresso cultural e económico da população do seu arquipélago. Situação exuberantemente reflectida no empenho em prestigiar e ver prestigiada a Universidade dos Açores, e em se manter actuante na terra que a viu nascer.

6 O «ciclo da Laranja», que enforma a Economia Açoriana do século XIX, é objecto de três importantes artigos. No primeiro, há criteriosa análise dos processos de cultivo, comercialização e exportação do citrino, sendo que nas duas últimas fases indicadas o comerciante-exportador estabelecido em Ponta Delgada – classe em que preponderavam cidadãos britânicos – tinha posição fulcral. O final do «período da laranja» – bem evidenciado por escassos 697 mil réis que a sua exportação rendeu em 1909 – é objecto de análise, tornando-se evidente terem os critérios de salvaguarda da qualidade, que impunha o produto no mercado britânico, sido postergados pela cupidez com que se aumentava a quantidade vendida acrescentando citrinos de baixa qualidade. A ganância falou mais alto e ajudou ao processo de deperecimento desta cultura.

7 A pretexto de «A decadência da “Economia da Laranja”» a autora traça um importante quadro da era de oitocentos: «a actividade agrícola constituía a base em que se firmava a riqueza micaelense e insular. A comercialização das produções agrícolas animava o sector import-export, fomentava as navegações de cabotagem, inter-ilhas, nacional e internacional, dinamizava o consumo, pressionava o alargamento e acessibilidade ao crédito, sustentava, enfim, a notabilidade dos terratenentes», mas «as benfeitorias na agricultura feitas pelos gentlemen farmer não conseguiram quebrar nem as inércias, nem os estrangulamentos de uma organização económica arcaica, rotineira e injusta na sua distribuição da riqueza». Findo o ciclo da Laranja, enquanto os proprietários rurais continuavam a exibir o seu «estilo de vida ostensivo, e o seu poder político» e a economia insular se afundava atingida, também, pela crise financeira de 1891/92, foram os comerciantes micaelenses a emergir como os grandes agentes da modernidade!

8 O que dizer da vastidão, variedade e profundidade da pesquisa realizada para escrever o texto «Que foi feito dos “Ingleses” do “Ciclo da Laranja” na ilha de S. Miguel? Factos e Hipóteses»? Fátima Sequeira Dias não se ocupou, apenas, dos mais afamados, estendendo a investigação mesmo àqueles que não chegaram a deixar descendência e a comerciantes de outras nacionalidades.

9 No artigo «A redescoberta das ilhas: a construção de um imaginário (a visão nem sempre “politicamente correcta” do viajante nas ilhas)» volta a manifestar-se a grande capacidade de investigação da autora, que, pacientemente, articulou as múltiplas observações de visitantes ilustres, de forma geral, depreciativas para a população micaelense e, mesmo, para a sua elite.

10 Ainda foi o «Ciclo da Laranja» – que percorre todo o século XIX açoriano – a animar os transportes marítimos e a contribuir para o financiamento das obras da importante infra-estrutura que foi o porto artificial de Ponta Delgada, cuja construção se iniciou em 1861 mas só veio a concluir-se em 1940. Dois interessantes artigos são-lhes consagrados.

11 A prosperidade permitida pela exportação da laranja e pela dinamização de tantos sectores, desde a produção do citrino até às várias tarefas associadas à preparação do produto a exportar, não foi suficiente para fazer despontar um sector industrial digno desse nome. Esta problemática é analisada em importante estudo que demonstra como apenas as actividades artesanais domésticas quase só alimentavam o auto-consumo, até que, já no final de oitocentos, surgiram as «fábricas de tabaco, de produção de álcool e de açúcar, de chá, de lacticínios e de cerveja», sectores que permanecem actuantes.

12 O «ciclo do Ananás» inicia-se, ainda, em meados do século XIX, sobrepondo-se, em parte, ao «da Laranja». Cultura forçada, obrigada a desenvolver-se em estufas para proporcionar à planta as condições próprias do clima tropical das regiões de origem, entrou pelo século XX, defrontando as adversidades de duas guerras mundiais, que, praticamente, lhe retiraram os mercados estrangeiros de exportação, os quais, no século XIX, eram os seus destinos de eleição. O artigo «O Ananás dos Açores: ascensão e declínio de uma “cultura forçada” que, de crise em crise, forçadamente tem sobrevivido» apresenta completa panorâmica desta produção agrícola vocacionada para a venda ao exterior, e que, além da «Economia» do gado bovino, foi o motor da vida económica micaelense de novecentos.

13 Outro artigo com projecção temporal no século XX é o que, ocupando-se das «Alfândegas nos Açores», caracteriza os vários períodos que, no arquipélago, conheceram desde o tempo do Marquês de Pombal até aos nossos dias.

14 «Algumas reflexões sobre a difusão da Instrução no concelho de Ponta Delgada, no século XIX» inicia-se com um denso ensaio sobre a História do Crescimento Económico, em que emerge a desenvoltura com que Fátima Sequeira Dias, formada na Escola Historiográfica, se move nos domínios da Ciência Económica e do Pensamento Económico. O quadro apresentado para a Instrução em Portugal, em geral, para os Açores, em particular e, mais em particular, ainda, para São Miguel, no século XIX, tem o negrume próprio das causas perdidas. O subdesenvolvimento gera o subdesenvolvimento e era impossível esperar algo de grandioso de uma sociedade em que a elite não ia além de «quinhentas pessoas»! No entanto, talvez o ensino no Liceu Nacional de Ponta Delgada não fosse tão mau como tudo leva a crer, quando se verifica a quantidade e qualidade de alunos que forneceu à Universidade de Coimbra. Aliás, a autora incentiva a que se faça a competente pesquisa aprofundada.

15 A maioria dos artigos conta com abundante informação quantitativa, correctamente interpretada. Estudiosa voraz, a autora disponibiliza manancial imenso de bibliografia de qualidade, associada à variada temática abordada na obra.

16 Last but not least, o artigo inaugural – «”Ponta Delgada: de ermo a cidade”. Agenda para uma reflexão sobre a História dos Açores com particular incidência no exemplo micaelense» – apresenta notável programa de acção para a abordagem científica do estudo da História Económica dos Açores.

17 Fátima Sequeira Dias, com a autoridade de principal especialista desta matéria, suscita um vasto conjunto de questões a radicar no dualismo da sociedade insular, apenas um pouco mais notório do que o verificado no continente português, na mesma época. É certo existirem algumas especificidades aberrantes, como a da proibição da livre circulação de mercadorias, no arquipélago e deste para o continente, que só foi revogada por uma lei de 1970!

18 Mas o elenco de linhas de pesquisa que apresenta é muito estimulante e assegura que, havendo vontade de prosseguir as suas directivas, a História Económica dos Açores pode vir a ser, a muito breve prazo, um dos domínios mais frutuosamente estudados na historiografia nacional.

António Alves Caetano – Economista.


DIAS, Fátima Sequeira. Os Açores na História de Portugal – Séculos XIX e XX. Lisboa: Livros Horizonte, 2008. Resenha de: CAETANO, António Alves. Ler História, n.59, p. 225-228, 2010. Consultar a publicação original