Mestiça cientificidade: três leitores franceses de Gilberto Freyre e a sua máxima consagração no exterior | Giselle Martins Venancio e André Furtado

A Editora da Universidade Federal Fluminense acaba de lançar Mestiça cientificidade: três leitores franceses de Gilberto Freyre e a sua máxima consagração no exterior (2020). O livro de Giselle Martins Venancio e André Furtado é uma importante contribuição para interpretar a recepção da obra de Gilberto Freyre no exterior, em especial na França do pós-guerra. Compreender as condições de leitura de autores canônicos como Fernand Braudel, Roger Bastide e Lucien Febvre – os leitores franceses estudados no livro – não é trivial, pois a consagração de Casa-grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre (1900-1987), não dependeu apenas do próprio texto, nem da argumentação e da pesquisa contidas nele, mas de uma série de questões que povoam o mundo dos leitores.

Mestiça cientificidade aprofunda o entendimento acerca da recepção francesa de Casa-grande nas décadas de 1940 e 1950. Funciona também como iniciação à obra de Gilberto Freyre para estudantes, jovens pesquisadores e interessados em um dos autores brasileiros mais importantes do século XX, o de maior repercussão internacional, objeto ainda hoje de acalorado debate público. Sem perder a potência da pesquisa e dos debates acadêmicos contemporâneos, o livro em questão não deixa de praticar história pública. Leia Mais

Fernand Braudel, Geohistória e Longa Duração: críticas e virtudes de um projeto historiográfico – RIBEIRO (PH)

RIBEIRO, Guilherme. Fernand Braudel, Geohistória e Longa Duração: críticas e virtudes de um projeto historiográfico. São Paulo: Annablume, 2017. 211 p. Resenha de: PAULINO, Davi Luiz. Geohistória e longa duração na obra de Fernand Braudel. Projeto História, São Paulo, v.63, pp. 387-395, Set.-Dez., 2018.

Guilherme Ribeiro, docente do Departamento de Geociências da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, desenvolve pesquisas acerca da História do Pensamento Geográfico, bem como a relação entre Geografia e História.

Fruto de uma complexa pesquisa de doutoramento com estágio na França apresentada em 2008 ao Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense, agraciada com o Prêmio Capes de Tese na área de Geografia, o livro busca mostrar o papel que a geografia cumpriu na formação da concepção de história de Fernand Braudel (1902-1985).

O referido estudo perpassa a trajetória intelectual do historiador francês, estudando obras como O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na época de Filipe II, Gramática das Civilizações, Civilização Material, Economia e Capitalismo – Séculos XV-XVIII e a Identidade da França.

O autor aborda as origens epistemológicas do conceito de Geohistória demonstrando que a Geografia será importante como instrumento que o permitirá estudar as atividades humanas em transcursos diferentes de tempo. Braudel a “transforma em aliada de peso no esforço de superação do obsoleto meio acadêmico francês, além de pedra angular na apreensão da temporalidade de longa duração e em seu ousado intuito de reorganização epistemológica das Ciências Humanas”.1  Partindo de grandes nomes da ciência geográfica como Paul Vidal de la Blache, Alfred Philippson e Emmanuel de Martonne, Braudel clama por uma ciência que aborde o todo, ou seja, que não somente o meio físico-natural, mas também o homem, sendo o começo do que mais tarde seria conhecido como Geografia Humana.

Ribeiro elucida que a questão da Geohistória e determinismo em Braudel teria como objetivo esclarecer os aspectos frágeis da leitura que se fazia da geopolítica como simples estudo das ações políticas e partindo do conceito de geohistória ele encontraria uma representação ampliada da sociedade. Este posicionamento mostra a influência da escola alemã de Geografia e através dela, Braudel “valorizará a economia como um produto das relações sociais, que ao longo do tempo, constrói redes e distribui informações em variadas escalas” utilizando as categorias analíticas de “espaço (Raum), economia (Wirtschaft) e sociedade (Gesellschaft)” para construir seus estudos sobre “a economia mediterrânica no século XVI, no desenvolvimento da civilização material, economia de mercado e capitalismo na era moderna e na história da França sob a égide das estruturas de longa duração”2.

Em seguida, Ribeiro centraliza sua análise em O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na época de Filipe II, obra resultante da tese de doutorado de Braudel apresentada a Sorbonne em 1947 e considerada um dos maiores livros de História do século XX. Obra em que a geohistória se faz presente do começo ao fim, o autor nos mostra como o historiador instrumentaliza-se da geografia para “desacelerar” a história e com isso desestrutura o passado, explicitando a dialética das durações com seus variados espaços revelando múltiplas temporalidades, partindo do tempo breve ao mais longo, o tempo das civilizações.

Segundo o autor, Braudel, ancorado nas estruturas de longa duração, considera que a história possui uma temporalidade mais duradoura, resistente a mudanças e que precisa ser compreendida não na brevidade dos acontecimentos, mas sim nas estruturas que sustenta o tempo longo.

Embora isto não queira dizer que há um menosprezo ao acontecimento por parte de Braudel, ele apenas defende que mesmo para entender as dinâmicas dos eventos é necessária a compreensão da longa duração.

Em O Mediterrâneo, é possível encontrar a centralidade do meio geográfico, isto porque, segundo Ribeiro, a história humana não se constrói fora do meio, mas sim a partir dele.

Com isso, no meio “estão contidas tanto as determinações quanto as possibilidades: é impossível parar a chuva ou conter o vento, mas é possível administrar as intempéries construindo diques ou drenando o solo, por exemplo”3, percebemos que sua análise prova que a questão geográfica está intrinsecamente atrelada as atividades humanas, portanto, há uma espacialização da ciência histórica.

Braudel sofreu críticas por sua posição determinista sob as atividades humanas, mas como podemos constatar no estudo de Ribeiro, há a defesa de que o meio age nas práticas dos homens, no entanto admite-se, que a ação do homem no meio seja de maior peso. Segundo o autor,  o “determinismo geográfico braudeliano” não é outra coisa senão a evidência que os aspectos naturais não estão separados e isolados das atividades humanas. Eles fazem parte de um todo onde o clima, o relevo, a hidrografia, o sítio e a posição jogam papel crucial na história das sociedades. Assim sendo, em certas situações e períodos, o meio determina esta ou aquela decisão, esta ou aquela resposta social de acordo com as possibilidades técnicas e culturais. Segundo, Braudel, alimentação, agricultura, produção de mercadorias, vestimentas, crenças, economia, relações internacionais, enfim, o conjunto da vida social é indissociável do meio.4  Essa explicação de Ribeiro é importantíssima para o debate acerca do determinismo geográfico, principalmente porque o biógrafo de Braudel, Pierre Daix, alegara que a ausência do capítulo intitulado Geohistória e determinismo teria sido suprimido da segunda edição de O Mediterrâneo porque Braudel teria abandonado esse posicionamento, tese refutada por nosso autor, pois segundo ele, abandonar a geohistória seria a renúncia da própria concepção braudeliana de história.

Ribeiro não crê em abandono do conceito, mas defende a tese de que geohistória fora substituída pelo conceito de espaço, lembrando que esse conceito está na origem da formação da epistemologia braudeliana.

Com essa problemática, o autor trabalhará sobre as críticas historiográficas acerca do pensamento braudeliano, as quais alegam que a história de Braudel é imóvel, partindo da primeira obra do historiador, Ribeiro busca demonstrar que a sua concepção histórica não é imóvel, pois permite a mudança.

Em razão de não só trabalhar a partir do tempo longo, mas sim dialeticamente com o tempo conjuntural e com o tempo tradicional, sendo assim, há em Braudel a presença de “um tempo geográfico, de um tempo social e de um tempo individual”.5  Ribeiro explicita a dimensão teórica da obra de Fernand Braudel. Entre seus elementos constitutivos estão…

a longa duração como uma possibilidade de releitura do tempo cronológico; a geohistória representando a articulação do espaço com o tempo e a preocupação em comparar épocas e escalas diferentes; a apreensão do passado não como algo pronto e acabado, mas como questão a ser problematizada; conexões entre o passado e o presente; busca de explicações pluricausais dos fenômenos.6  Criticada por ser empirista e descritiva, o autor mostra que essa crítica demonstra a compreensão distorcida da totalidade da obra braudeliana que realiza uma notável coerência entre a longa duração, geohistória e a história-problema. Como mostra Ribeiro, por mais que a obra seja descritiva, ela está amplamente ancorada em um embasamento epistemológico que a sustenta: as estruturas de longa duração. Braudel, com sua concepção de história total, abarca as escalas local, regional, nacional e, principalmente, mundial, visto que as atividades dos homens se encontram misturadas em ritmos temporais diferentes.

Ribeiro mostra que a história para Braudel não é a ciência do passado, muito menos a descrição documental, mas sim a explicação das temporalidades dos fenômenos e suas relações entre si, buscando as permanências e o predomínio das profundidades.

Partindo da busca por permanências e profundidades, a obra Gramática das civilizações ocupa um ponto importante na reflexão histórica, pois Braudel, segundo o autor, compreende por gramática o tempo ou as temporalidades, pois para o historiador, as civilizações possuem ritmos e estações diferentes, embora estejam em contato entre si. Partindo desse pressuposto, a estruturas da história são mutáveis, mas seus movimentos são perceptíveis através da longa duração.

A proposta de Ribeiro é demonstrar que na obra braudeliana há a percepção dos problemas sociais, como a desigualdade, por exemplo, e, que sua eliminação se dará a partir de uma abordagem estrutural. Braudel também considera importante, os eventos como a Revolução Russa e a Revolução Cubana, isto porque a seu ver, causaram forte impacto nas civilizações. O conceito de civilização assume importância no pensamento de Braudel, pois é por meio dele que “a geohistória alcança todas as esferas da vida social: seja a política, a economia, a cultura ou as mentalidades, nenhuma delas escapa a um determinado contexto espaço-temporal”.7  Sua análise sobre a obra Civilização material, Economia e Capitalismo, mostra que o termo material, não se trata somente de trocas econômicas ou a dinâmica financeira, mas sim a concretude da civilização em relação ao que a estabelece na condição de poderosos grupos culturais, como é possível perceber nas civilizações mediterrânea e atlântica.

Em As estruturas do Cotidiano, Ribeiro defende que as relações sociedade-meio estão na base formativa da modernidade, com uma profunda reorganização espacial, isto com base no próprio pensamento braudeliano, pois argumenta Braudel que os agrupamentos civilizacionais possuem características geográficas distintas. Nessa obra é possível compreender a amplitude da concepção braudeliana de história, visto que “a geohistória é além do estudo ampliado das relações homem-meio, uma ferramenta de análise das múltiplas escalaridades urdidas pelas práticas econômicas modernas”.8  Nos próximos volumes O jogo das Trocas e O tempo do Mundo faz-se presente o conceito de origem alemã economia-mundo (Weltwirtschaft) que diferentemente de economia mundial, representa um determinado “espaço” com profunda coerência econômica que se basta por si mesmo. Ribeiro exprime este conceito da seguinte forma:  Ao empreender o conceito de economia-mundo do ponto de vista geográfico, Braudel não o concebe apenas como delimitação cartográfica dos fenômenos econômicos, mas segundo um enfoque “vertiginoso” e “ativo” capaz de perscrutar como o jogo econômico cria e se reproduz a partir de determinada lógica espacial.9  Braudel fora tachado de “conservador” por parte de alguns historiadores, dentre eles, o brasileiro José Carlos Reis, mas como nos mostra o autor, por mais que a construção da concepção de história braudeliana passe por fora da questão das lutas de classe, ele não deixa de observar as tensões nas organizações sociais.

Aproximando-se de Lacoste, Braudel analisa o poder de quem controla e domina o espaço.

É possível perceber que na totalidade da obra braudeliana, A Identidade da França, segundo Ribeiro, seria o livro que possuí mais elementos que podem constituir um perfil político de Braudel. Ele retoma as origens da França buscando traçar a Identidade, ou seja, o típico de uma nação, embora para Braudel, é possível identificar aspectos de diversidade regional e cultural.

É interessante ressaltar que a obra de Ribeiro nos permite abordar que a tríade economia, espaço e sociedade perpassa toda a produção braudeliana, pois partindo da instrumentalização da geografia em sua concepção histórica, ela o permite adentrar em um passado longínquo, o tempo do mundo. Em A Identidade da França ele continua com seu tripé metodológico, pois é perceptível que…

seus três volumes revelam o movimento dos vilarejos aos burgos e às cidades, o sítio e a situação, as migrações, o papel das cidades na formação do mercado nacional e suas associações com as outras escalas; a urbanização e as estradas da Gália superando suas florestas; as villa galo-romana e suas muralhas protetoras e as cidades como loci privilegiados para o desenvolvimento da economia de mercado e, sobretudo, do capitalismo, a atividade econômica superior.10  Com esse panorama apresentado da obra braudeliana, acreditamos que o trabalho de Guilherme Ribeiro contribui sobremaneira para a reflexão acerca do pensamento de Fernand Braudel, principalmente pela atualização do debate e pela crítica aos críticos do historiador francês, como François Dosse, Yves Lacoste e José Carlos Reis, entre outros. A leitura do livro se faz necessário para o aprofundamento da discussão e abertura de novos caminhos para o estudo da obra e pensamento de Braudel.

Referências

RIBEIRO, Guilherme. Fernand Braudel, Geohistória e Longa Duração: críticas e virtudes de um projeto historiográfico. São Paulo: Annablume, 2017.

Notas

1 RIBEIRO, 2017, p. 30.

2 Ibid., p. 43-44.

3 Ibid., p. 55.

4 Ibid., p. 67.

5 Ibid., p. 79.

6 Ibid., p. 84.

7 Ibid., pp. 110-111.

8 Ibid., p. 127.

9 Ibid., p. 135.

10 Ibid., p. 178.

Davi Luiz Paulino – Graduando em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). eto historiográfico. 1ª ed. São Paulo: Annablume, 2017.

Memorias del Mediterráneo – BRAUDEL (PR)

BRAUDEL, Fernand. Memorias del Mediterráneo. Madrid: S.n, 1998. 381p. Resenha de: NÚÑEZ, Ana M.  Panta Rei – Revista de Ciencia Y Didáctica de la Historia, Murcia, n.4, p. 1998.

Tal vez lo primero que cabe advertir sobre el libro es que no se trata de una obra escrita recientemente, sino que es un encargo al autor en 1968 como parte de una colección sobre el passado del Mediterráneo. Sin embargo, el autor de El Mediterráneo en tiempos de Felipe II, no llegó apublicar lo en su día y ahora lo encontramos recuperado por Jean Guilaine y Pierre Rouillard, quienes, debido al lapsus temporal entre autoría y edición, se han ocupado de revisarlo y anotarlo debidamente sin alterar el manuscrito. Coincide la publicación de este libro con la nueva edición completa hecha sobre manuscritos hasta ahora inéditos de la obra clásica de Marc Bloch, Apología para la historia o el oficio de historiador, escrito en 1943, quizá no sea un hecho casual la revisiónde estos dos autores.

Supone, pues, el libro que reseñamos un viaje por el Mediterráneo desde su génesis geológica hastala fundación de Constantinopla y la irrupción del cristianismo, en navegación de cabotaje p